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v. 1, n. 2 - jul-out de 2010, p. 7-30. FILOSOFIA, DIVERSIDADE E A QUESTÃO DO NEGRO: ARGUMENTOS CRIADOS NO SEIO DA FILOSOFIA PODEM NOS AUXILIAR A ENTENDER A QUESTÃO RACIAL CONTEMPORÂNEA? Gislene Aparecida dos Santos 1 Resumo: Neste artigo, apresento algumas discussões inspiradas nas questões propostas pela filosofia (e pelo questionamento de teorias filosóficas) que podem ser importantes para a construção de um conhecimento crítico sobre as questões raciais. São discutidas a crítica à racionalidade instrumental e a crítica do conhecimento focalizado somente em categorias eurocentradas. Como alternativa a isso, proponho construir novas formas de pensar que focalizem a valorização da diversidade. Palavras-Chave: filosofia, diversidade, negro, conhecimento, reconhecimento. PHILOSOPHY, DIVERSITY AND THE BLACK QUESTION: CAN ARGUMENTS FROM PHILOSOPHY HELP US UNDERSTAND THE CONTEMPORARY RACIAL DISCUSSION? Abstract: In this article, I present some discussions inspired by the questions posed by philosophy (and the questioning of philosophical theories) that may be important for building a critical knowledge about racial issues. I discuss the criticism of instrumental rationality and the criticism of knowledge focused only on Euro-centric categories of thinking. As an alternative to that, I propose to build new ways of thinking focused on the appreciation of diversity. Key Words: philosophy, diversity, black people, knowledge, recognition. FILOSOFIA, DIVERSIDAD Y LA CUESTIÓN DE NEGRO: ARGUMENTOS CREADOS EN LA FILOSOFÍA PUEDEN AYUDARNOS A CENTENDER LA QUESTIÓN RACIAL ONTEMPORANEA? Resumen: En este artículo, presento algunas discusiones inspiradas en las preguntas formuladas por la filosofía (y el cuestionamiento de las teorías filosóficas) que pueden ser importantes para construir un conocimiento crítico sobre los problemas raciales. Se discute la crítica de la racionalidad instrumental y el conocimiento crítico sólo se centra en las categorías eurocentrada. Como alternativa a esto, propongo para construir nuevas formas de pensamiento que se centra en valorar la diversidad. Palabras clave: filosofía, la diversidad, el negro, el conocimiento, el reconocimiento. 1 É Livre docente pela Universidade de São Paulo (USP) e professora associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, lecionando no curso de Gestão de Políticas Pública. Também é professora orientadora do Programa de Pós Graduação em Direito Área de Concentração em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui mestrado em Filosofia, especialização em epistemologia da psicologia e da psicanálise, doutorado em Psicologia, pós-doutorado pelo Kings College London e pela York University. E-mail: [email protected].

Filosofia e a Questão Do Negro

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Texto de uma filósofa brasileira sobre a relação entre filosofia e racismo

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  • v. 1, n. 2 - jul-out de 2010, p. 7-30.

    FILOSOFIA, DIVERSIDADE E A QUESTO DO NEGRO:

    ARGUMENTOS CRIADOS NO SEIO DA FILOSOFIA PODEM NOS

    AUXILIAR A ENTENDER A QUESTO RACIAL CONTEMPORNEA?

    Gislene Aparecida dos Santos1

    Resumo: Neste artigo, apresento algumas discusses inspiradas nas questes propostas pela

    filosofia (e pelo questionamento de teorias filosficas) que podem ser importantes para a

    construo de um conhecimento crtico sobre as questes raciais. So discutidas a crtica

    racionalidade instrumental e a crtica do conhecimento focalizado somente em categorias

    eurocentradas. Como alternativa a isso, proponho construir novas formas de pensar que focalizem

    a valorizao da diversidade.

    Palavras-Chave: filosofia, diversidade, negro, conhecimento, reconhecimento.

    PHILOSOPHY, DIVERSITY AND THE BLACK QUESTION: CAN ARGUMENTS FROM PHILOSOPHY

    HELP US UNDERSTAND THE CONTEMPORARY RACIAL DISCUSSION?

    Abstract: In this article, I present some discussions inspired by the questions posed by

    philosophy (and the questioning of philosophical theories) that may be important for building a

    critical knowledge about racial issues. I discuss the criticism of instrumental rationality and the

    criticism of knowledge focused only on Euro-centric categories of thinking. As an alternative to

    that, I propose to build new ways of thinking focused on the appreciation of diversity.

    Key Words: philosophy, diversity, black people, knowledge, recognition.

    FILOSOFIA, DIVERSIDAD Y LA CUESTIN DE NEGRO: ARGUMENTOS CREADOS EN LA

    FILOSOFA PUEDEN AYUDARNOS A CENTENDER LA QUESTIN RACIAL ONTEMPORANEA?

    Resumen: En este artculo, presento algunas discusiones inspiradas en las preguntas formuladas

    por la filosofa (y el cuestionamiento de las teoras filosficas) que pueden ser importantes para

    construir un conocimiento crtico sobre los problemas raciales. Se discute la crtica de la

    racionalidad instrumental y el conocimiento crtico slo se centra en las categoras eurocentrada.

    Como alternativa a esto, propongo para construir nuevas formas de pensamiento que se centra en

    valorar la diversidad.

    Palabras clave: filosofa, la diversidad, el negro, el conocimiento, el reconocimiento.

    1 Livre docente pela Universidade de So Paulo (USP) e professora associada da Escola de Artes,

    Cincias e Humanidades, lecionando no curso de Gesto de Polticas Pblica. Tambm professora

    orientadora do Programa de Ps Graduao em Direito rea de Concentrao em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. Possui mestrado em Filosofia, especializao em

    epistemologia da psicologia e da psicanlise, doutorado em Psicologia, ps-doutorado pelo Kings College

    London e pela York University. E-mail: [email protected].

  • 8 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    INTRODUO

    Os estudiosos da questo racial no Brasil tradicionalmente realizam suas pesquisas

    nas reas da Antropologia, Sociologia (ou cincias sociais) e Histria. rara a

    investigao desta temtica a partir da Filosofia. Acredita-se que seria atributo da

    Filosofia pensar idias e conceitos universais e atemporais formulados e encadeados

    dentro das obras dos filsofos. E o negro (os negros), sabe-se, so pessoas, indivduos,

    homens e, portanto, melhor compreendidos se estudados pelas cincias que tratam de

    homens, indivduos quer na histria quer na vida social. Tambm comum se afirmar que

    o pensamento filosfico opera de forma no alusiva, em sentido indireto, a no-aluso

    seria uma de suas chaves. E a questo do racismo e da discriminao requereria, quase

    sempre, uma fala direta, alusiva e, segundo esses, que impediria ou empobreceria o

    pensamento filosfico.

    Esses, entre outros argumentos, tm impedido que pesquisadores da Filosofia

    reflitam sobre a questo racial e que pesquisadores sobre o racismo se lancem

    investigao filosfica. Ignora-se, assim, que pela Filosofia se poderia compreender

    como, por meio do racismo, se permite a desumanizao dos homens, se entrelaam

    teorias do pensamento autoritrio e uma ideologia que impregna as sociedades e seus

    indivduos de modo a faz-los reproduzir aquilo mesmo que os nega.

    Neste artigo, procuro mostrar que algumas discusses inspiradas pela filosofia

    (mas no exclusivamente por ela) podem ser importantes na construo de um

    conhecimento crtico sobre as questes raciais.

    A RETOMADA DO SENSO COMUM E AS APORIAS DO MULTICULTURALISMO

    Tema clssico para os estudiosos das teorias sociais e da Filosofia, o

    questionamento da validade do senso comum como fonte/produtor de conhecimento volta

    baila, inspirada por autores como Boaventura Sousa Santos (2002) e Serge Moscovici

    (2004). Tanto ao considerar a experincia e as aes sociais quanto ao focalizar as

    representaes sociais como fonte de um saber que no deve ser desperdiado, esses

    autores contestam o foco tradicional do conhecimento elaborado por especialistas,

    cientistas e filsofos e sugerem a existncia de um pensamento social entranhado na

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    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    vivncia do cotidiano, manifesto por meio de idias comuns a um determinado grupo e

    por meio das representaes que esse grupo elaboraria sobre si e sobre o mundo.

    Para Moscovici, a dualidade entre cincia ou ideologia (no sentido marxista do

    termo) seria uma reduo irreal, havendo nela um componente nunca considerado o

    senso comum. Nessa abordagem, o senso comum (ou pensamento comum) seria edificado

    a partir da observao, da experincia e do compartilhamento de uma viso comum de

    mundo que permitiria a construo de um discurso que, mesmo sob a tica especializada,

    considerado precrio e contingente, seria compreensvel e suficiente para um conjunto

    relativo de pessoas. Ou, nos dizeres de Oswaldo Porchat Pereira, seria o discurso de todos

    aqueles que se consideram homens comuns. Na exata medida em que nos reconhecemos

    uns aos outros como homens que vivem a experincia comum do mundo, podemos falar

    de uma viso comum do mundo, pressuposto irrecusvel dessa experincia comum, assim

    como da comunicao que nos une atravs de nosso discurso comum (Pereira, 1994, p.

    63).

    Entretanto, o pensamento comum, edificado a partir de uma experincia imediata

    e espontnea do mundo, tem sido questionado pelos pensadores da Filosofia que o

    consideram uma iluso e/ou ideologia, por assumir como verdade aquilo que est

    circunstanciado e delimitado histrica, espacial e subjetivamente, tomando como verdade

    o que foi construdo apoiado em aparncias e comandado pela imaginao que, sabe-se,

    conduz os homens a acreditar ser sophia (sabedoria) ou episteme (conhecimento) aquilo

    que no passa de doxa (opinio).

    Para Moscovici, esse conhecimento no pode ser reduzido ideologia, pois

    quando se estuda o senso comum, o conhecimento popular, ns estamos estudando algo

    que liga sociedade ou indivduos, a sua cultura, sua linguagem, seu mundo familiar

    (Moscovici, 2004, p. 322). Muito embora, tradicionalmente, o senso comum seja

    vinculado irracionalidade, o autor considera que ele nada tenha de irracional e que seria,

    outrossim, espao de um conhecimento consensual.

    Enquanto o conhecimento cientfico tradicional se apoiaria em investigaes que

    se pretenderiam imparciais, independentes do sujeito que as elaboraria e universais, o

    conhecimento comum partiria do pressuposto de que seria necessrio uma negociao e

    uma aceitao mtua, ocorrendo, portanto, uma polifasia do conhecimento.

  • 10 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    O primeiro procede, sistematicamente, da premissa para a concluso e ele se

    apia naquilo que ele considera puros fatos. O mtodo do segundo no to

    sistemtico; ele se apia na memria coletiva, no consenso. Mas o que deve ser

    enfatizado que ambos os modos de pensar esto baseados na razo. O

    pensamento do senso comum razovel, racional e sensvel... (Idem, Ibidem, p.

    323).

    Boaventura Sousa Santos tambm parte da premissa de que a cincia moderna

    construiu-se em oposio ao senso comum, que foi por ela considerado superficial,

    ilusrio e falso. E faz eco s consideraes de Moscovici, ao afirmar que o senso comum

    to moderno quanto a cincia moderna, sendo ambos entidades epistmicas uma

    oposta a outra. Moscovici destacou o princpio da no-contradio como alicerce do

    conhecimento cientfico. Sousa Santos argumentar que as leis da inteligibilidade

    cientfica repousariam no conceito de causalidade desenvolvido por Aristteles e segundo

    o qual haveria quatro tipos de causas: a causa material, a formal, a eficiente e a final. A

    cincia moderna se assentaria na causa formal, que privilegiaria o conhecimento do como

    as coisas funcionariam em detrimento do conhecimento do agente e das finalidades das

    coisas. O senso comum faria coincidir a causa e a inteno e estaria vinculado ao

    humana como princpio criativo e de responsabilidade individual.

    Para Sousa Santos, o senso comum seria prtico e pragmtico, reproduz-se

    colado s trajectrias e s experincias de vida de um dado grupo social e, nessa

    correspondncia, inspira confiana e confere segurana (Santos, 2002, p.108). E tambm

    seria transparente e evidente, desconfiando, por sua prpria natureza, de um

    conhecimento fechado sobre si mesmo, com uma linguagem que no permitisse o acesso

    irrestrito a ele. O senso comum indisciplinar e no-metdico; no resulta de uma

    prtica especificamente orientada para produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder

    quotidiano da vida. O senso comum privilegia a aco que no produza rupturas

    significativas no real. O senso comum retrico e metafrico; no ensina, persuade ou

    convence (Idem, Ibidem).

    Com base nessas observaes, Sousa Santos demonstra que o senso comum, e

    no o conhecimento cientfico, que ofereceria as condies para a transformao da

    ignorncia em saber solidrio. O conhecimento cientfico seria totalitrio, na medida em

    que negaria o carter racional a outras formas de conhecimento que no se alicerassem

    em seus pressupostos epistemolgicos. Por outro lado, o conhecimento comum, ou o

    senso comum, seria uma forma de enriquecer nossa relao com o mundo, guardando

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    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    feies utpicas e libertadoras, por no se constituir a partir das relaes de causa-efeito

    tradicionais e por considerar a intencionalidade e as finalidades humanas. Por isso, o

    senso comum est na base da reformulao epistemolgica proposta por ele.

    Ora, pode-se indagar como o senso comum se tornaria um paradigma para a

    transformao social ou se tornaria um conhecimento emancipatrio. A resposta seria:

    sendo ele prprio originrio da tpica dos grupos sociais. O senso comum emancipatrio

    um senso comum discriminatrio (ou desigualmente comum, se preferirmos),

    construdo para ser apropriado privilegiadamente pelos grupos sociais oprimidos,

    marginalizados ou excludos, e, de facto, alimentado pela prtica emancipatria destes

    (Idem, Ibidem, p. 109). O senso comum emancipatrio originrio da confluncia dos

    discursos consensuais dos diferentes grupos sociais que reivindicam alguma forma de

    transformao social. Haver senso comum emancipatrio quando os topoi2

    emancipatrios desenvolvidos numa dada comunidade interpretativa encontrarem

    traduo adequada nos topoi de outras comunidades e se converterem, assim, em topoi

    gerais (Idem, Ibidem, p. 111). Isso ocorre, por exemplo, quando a tpica assumida por

    um grupo especfico (o autor cita como exemplo os movimentos feministas, mas

    considera que o mesmo pode ocorrer com todas as tpicas emancipatrias) expande seu

    espao domstico, local e encontra traduo no espao da produo, do mercado, da

    cidadania, da comunidade e no espao mundial. Quanto maior for o domnio tpico

    influenciado pelos topoi emancipatrios, maior ser o senso comum emancipatrio

    (Idem, Ibidem).

    Dessa forma, percebe-se que (alicerado em um conhecimento como

    emancipao) o conceito de senso comum emancipatrio desenvolvido por Sousa Santos

    recupera e valoriza a aes coletivas como foco de transformao social. De um

    conhecimento-como-regulao para um conhecimento-como-emancipao o trnsito no

    apenas epistemolgico, tambm um trmite entre conhecimento e ao (Santos,

    1999, p. 110). Ao aqui entendida como ato de rebeldia, como ao-com-clinamen.3 A

    2 Os topoi so os lugares onde se fala e os argumentos que so escolhidos ou so mobilizados para se falar

    desse lugar de modo a se fazer entender, dialogar e convencer uma platia ou uma comunidade de ouvintes.

    So os lugares-comuns a essa comunidade, ou os pontos de vistas aceitos nela e por ela acerca de

    determinados contedos. Recurso da retrica clssica contempornea, Sousa Santos utiliza o conceito de

    topoi para defender a necessidade da construo de uma novssima retrica baseada numa argumentao

    dialtica na qual os lugares do orador e do auditrio sejam mveis.

    3 A ao com clinamen aquela que brota onde no seria esperado que brotasse, o movimento que existe

    apesar de todas as adversidades e a prpria luta coletiva contra a ordem opressora, apesar da ordem

  • 12 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    reformulao epistemolgica seria, ento, no s forma de reinveno da democracia,

    mas tambm uma forma de conhecimento solidrio. Sendo uma revoluo cientfica que

    ocorre numa sociedade ela prpria revolucionada pela cincia, o paradigma a emergir

    dela no pode ser apenas um paradigma cientfico (o paradigma de um conhecimento

    prudente), tem de ser tambm um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)

    (Idem, Ibidem, p. 74).

    Partindo desses pressupostos, haveria uma confluncia entre a proposio feita

    pelos tericos que valorizam o senso comum como forma de emancipao e aqueles que

    defendem o multiculturalismo como afirmao do direito ao reconhecimento e

    expresso dos diferentes grupos socioculturais, principalmente no sentido de

    multiculturalismo oferecido por autores que defendem que o respeito dignidade dos

    diferentes resulte na efetivao de um ideal cvico comunitrio, de bem comum.

    Contudo, essa passagem no tranquila, j que a simples assuno da rubrica

    multicultural ou do multiculturalismo no oferece garantia para a construo de uma

    sociedade democrtica ou para a reformulao epistemolgica que daria voz aos topoi dos

    grupos excludos e que poria fim hegemonia de um pensamento eurocentrado.

    Radicalizando a proposta multicultural, o afrocentrismo considera que enquanto a

    construo terica sobre negros e afrodescendentes, sobre a frica e a Dispora, no

    colocar em xeque os conceitos, a epistemologia e a racionalidade eurocentrada,

    correremos o risco de continuar a reproduzir duplos de discursos racistas pautados nas

    mesmas categorias da razo e das epistemologias eurocntricas. Elisa Larkin do

    Nascimento salienta que:

    a cultura universal do modelo liberal pressupe um jogo poltico em que todos

    participem em condies de igualdade. (...) Para oferecer a uma identidade

    subordinada iguais condies de competir nesse jogo democrtico, impe-se a

    necessidade de quebrar a hegemonia da identidade dominante, a brancura

    eurocentrista, construda com tamanha solidez e a tal ponto reforada que reina

    silenciada sem ser percebida (Nascimento, 2003, p. 94).

    Para essa autora, somente o afrocentrismo seria capaz de reverter essa perspectiva,

    no que diz respeito construo de um conhecimento do negro sobre o mundo. Assumir

    uma perspectiva afrocentrada, ou afrocntrica, permitiria no somente uma leitura das

    opressora. Por isso, Sousa Santos considera a valorizao da experincia e a recuperao do senso comum

    como fonte de conhecimento til.

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    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    contribuies que as culturas negras da frica e da Dispora oferecem e ofereceram,

    mas tambm permitiria uma leitura africana e diasprica de toda a produo cultural.

    O afrocentrista priorizaria a desconstruo dos conceitos dominantes de histria e

    cultura africanas, distorcidas pelo eurocentrismo, e a reconstruo dos contedos por eles

    encobertos (...) Por isso, a proposta da afrocentricidade resultou na fundao de escolas

    afrocentradas e no desencadeamento de um movimento amplo na rea da educao.

    (Idem, Ibidem, p. 97-98).

    Na mesma perspectiva, Gonalves e Silva, retomando o estudo de Willinsky

    acerca de Taylor, afirmam:

    No basta oferecer aos alunos, salienta ele, a possibilidade de em estudo

    comparativo das diferentes culturas para que eles apreendam seu valor relativo.

    Nessa perspectiva, bastante arguta sua crtica [de Willinsky] posio do

    filsofo Charles Taylor, que defende uma postura relativista no trato com as

    diferentes culturas, porque acredita ser possvel, por meio dela, reduzir o

    etnocentrismo.

    (...) dependendo de como isto feito, a comparao leva fatalmente

    supervalorizao do Ocidente.

    (...) O segundo problema apontado por Willinsky, quanto postura relativista de

    Taylor, nosso conhecido de longa data. O autor a chama de esforos protomulticulturais cujo objetivo ensinar aos jovens como os diferentes povos que constituem sua nao contriburam para constru-la. Ele cita ironicamente

    iniciativas que buscavam fazer estudantes canadenses aprenderem como os nativos americanos introduziram o milho, a batata, o tomate e o tabaco no

    Ocidente, como se isso pudesse reduzir algum etnocentrismo. No Brasil, essas iniciativas que, na verdade, minimizam a contribuio dos povos na construo da

    nao, focalizaram ndios e africanos (Gonalves e Silva, 2003, p. 114).

    No se trataria somente de fuses de horizontes com a construo de novos

    vocabulrios de comparao, por meio dos quais poderamos nos movimentar com mais

    desenvoltura na comparao entre culturas diferentes. A demanda dos jovens (sob a gide

    do reconhecimento) se refere ao manejo e distribuio do poder associados construo

    dos cnones e a tudo que se vincula valorizao daquilo que se configura como

    conhecimento.

    A presena de sujeitos negros dentro do espao de produo de conhecimentos

    decisria para que ele seja transformado. No somente sua presena, mas a possibilidade

    de que, eles prprios (como intelectuais orgnicos ou simplesmente como pessoas mais

    atentas para a diversidade) ofeream novos sentidos quilo que a academia j realizava,

    mas de uma perspectiva que tida como equivocada porque eurocentrada. A prpria

    presena do diverso dentro do espao de produo do conhecimento, seria ela mesma

  • 14 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    turbulenta o suficiente para alter-lo e para afetar modos de pensar e contedos a serem

    pensados. Essa , basicamente, a tnica do discurso do multiculturalismo, em todas as

    suas variveis.

    A CRTICA DA RETOMADA DO SENSO-COMUM

    Ao mencionar a discusso de Souza Santos e Moscovici, pretendi deixar claro o

    que tem sido compreendido por uma mudana de estruturas na forma como o

    conhecimento produzido-formulado-elaborado. Contudo, no creio que a proposta feita

    por Boaventura Santos, focalizando o conhecimento emancipatrio por meio da

    valorizao do senso comum e dos tpicos dos movimentos sociais, tivesse como objetivo

    o mundo acadmico ou universitrio. Ao contrrio, faz mais sentido pensar que seu

    intento fosse exatamente outro: o de desacreditar o mundo acadmico como o nico e o

    mais privilegiado lugar de saber-conhecimento. Nesse sentido, seria permitido (guardadas

    as diferenas bsicas) recuperar a idia formulada por Chau acerca de um discurso

    competente, que silenciaria todas as outras falas. Chau considera que o discurso

    competente aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou

    autorizado:

    O discurso competente o discurso institudo. aquele no qual a linguagem sofre

    uma restrio que poderia ser assim resumida: no qualquer um que pode dizer

    a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstncia. O

    discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente

    permitida ou autorizada, isto , com um discurso no qual os interlocutores j

    foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os

    lugares e as circunstncias j foram predeterminadas para que seja permitido falar

    e ouvir e, enfim, no qual o contedo e a forma j foram autorizados segundo os

    cnones da esfera de sua prpria competncia (Chau, 1993, p. 7).

    O discurso competente do ponto de vista do conhecimento o discurso do

    especialista que explica, ensina as pessoas como se relacionarem com o mundo e entre

    elas prprias e que desqualifica o social (os sujeitos sociais e polticos) como capazes,

    eles prprios, de oferecerem sentido ao mundo e serem eles mesmos fonte de sentido, sem

    a necessria racionalizao do especialista, que transforma a todos em objetos sociais e

    objetos para o seu conhecimento. Quando Souza Santos afirma que as tpicas dos

    movimentos sociais e o senso comum seriam os nicos com condies de gerarem o

    conhecimento solidrio, penso que seja a isso que esteja se referindo. Esse conhecimento

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    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    no estabeleceria hierarquias nem competncias, nem teria carter totalitrio nem

    totalizador e valorizaria a diversidade.

    No entanto, no podemos nos esquecer de que a conceituao do senso comum

    como pensamento comum partilhado vai ao encontro das definies elaboradas pelos

    tericos da representao social, na rea da Psicologia. Muito embora se considere que a

    temtica das representaes sociais deva muito a Durkheim, os autores da rea da

    Psicologia Social iro se afastar das discusses positivistas e consideraro que:

    o importante a natureza da mudana atravs da qual as representaes sociais se

    tornam capazes de influenciar o comportamento do indivduo participante de uma

    coletividade. dessa maneira que as coisas so criadas, internamente,

    mentalmente, pois dessa maneira que o prprio processo coletivo penetra, como

    o fator determinante, dentro do pensamento individual (Moscovici, 2004, p. 40).

    Essa organizao mental aquela que permite tornar familiar o que no familiar.

    Afastar sentimentos angustiantes e sensaes de desconforto, por meio do processo de

    ancoragem e da objetivao. A ancoragem, nada mais do que o exerccio mental por

    meio do qual se tenta encaixar o que no familiar. E a objetivao seria a maneira por

    meio da qual tornaramos concretas e visveis realidades abstratas de difcil compreenso,

    associando essas idias a imagens j conhecidas.

    Todo conhecimento seria um processo de ancoragem, ou seja, uma maneira de

    traduzir aquilo que investigamos em uma linguagem que nos seja familiar. Entretanto, h

    um grande risco quando passamos a acreditar que a ancoragem deva tomar o lugar da

    problematizao, tradicionalmente associada construo do pensamento cientfico;

    quando passamos a desejar o apaziguamento em vez da indagao e dos questionamentos

    que geram inquietude, mas nos fazem sair do lugar comum em busca de respostas em

    lugares inusitados.

    Miriam Chnaiderman e Octvio de Souza (ambos discutidos por Santos, 2004)

    consideram que esse processo de traduo do estranho em algo familiar pode ser uma

    das formas utilizadas para a construo do racismo. A produo do outro como diferente

    e ameaador a forma que temos para adquirir segurana diante de nossa prpria

    estranheza, diante de nossa impossibilidade de reconhecer em ns mesmos contedos que

    nos horrorizariam. Ento, se projeta no Outro, inventado por ns, tudo aquilo que no

    gostaramos de ver reconhecido em ns mesmos. E, para objetivarmos esse sentimento de

    to difcil decodificao, transformamos o Outro em imagem. O lado negro, o lado

  • 16 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    escuro, a sombra... No toa essas imagens teriam sido associadas aos povos africanos e

    aos indivduos negros. O racismo equivale projeo que se faz de todas as

    caractersticas e valores negativos que os humanos possuem em um Outro (o negro, o

    judeu) que passariam a representar toda a negatividade.

    A operao que viabilizaria a percepo dessa projeo seria aquela que, por um

    lado, possibilitaria a ressignificao do Eu e do Outro, de modo que os sujeitos pudessem

    reincorporar (enxergar como contedos seus) os valores tanto positivos quanto negativos.

    Na impossibilidade de realizar esse processo de incorporao, os humanos, ainda

    ameaados pela sua prpria estranheza, inventam a figura do extico e criam o racismo

    como maneiras para lidarem com o Outro, que seria considerado ameaador. O processo

    de tornar o estranho algo familiar, o processo da ancoragem, tambm pode permitir a

    duplicao de preconceitos e estereotipias.

    No pretendo aqui retomar a discusso sobre essa temtica, visto j t-la realizado

    com mais vagar em outros trabalhos. Porm, quero destacar que nesse sentido que

    alguns autores da filosofia condenam o senso comum como repositrio de ideologias.

    Ideologia entendida como pensamento fracionado, construdo de modo a manter a

    dominao social e o poder de uma classe sobre outras, de modo a inculcar nos

    dominados os mesmos valores, idias e conceitos da classe dominante, tornando sua

    forma de ser, ver, pensar, sentir no s hegemnica como tambm universal.

    Os estudos do negro (Black Studies) so o melhor lugar/rea para percebermos a

    complexidade dessa questo, visto nos permitirem compreender a falcia de uma srie de

    argumentaes, tanto no que diz respeito supremacia do intelectual em referncia ao

    homem comum quanto no que diz respeito articulao de tpicas sociais a partir do

    senso comum.

    sabido que, antes de serem dispersos no mundo social sob a forma de senso

    comum, houve um longo e intrincado processo de construo da figura do negro como

    inferior, por meio de argumentos elaborados pela Filosofia, pela Antropologia, pela

    Biologia, pela Psicologia... Poderamos, facilmente, afirmar que esses contedos no so

    propriamente cientficos, mas sim ideolgicos. Mas qual seria o limite entre cincia e

    ideologia e quem estaria habilitado a estabelec-lo?

    A dificuldade para encontrar respostas a essas questes dificuldades j

    enunciadas por Mannheim, de acordo com a avaliao feita desse terico por Paul

  • 17

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    Ricouer (1991) que faz com que hoje se considere parte da efetivao da justia o

    direito dos povos, grupos e discriminados escreverem a sua prpria verso da histria e

    confrontarem seus conhecimentos, tanto sobre si mesmos, quanto sobre o mundo, queles

    conhecimentos j estabelecidos pelo cnone acadmico e pela cincia tradicional. E isso

    se configura um terrvel dilema. Se, por um lado, os movimentos sociais no podem

    prescindir da possibilidade da articulao do pensamento comum partilhado como forma

    para se organizarem coletivamente; por outro lado, o prprio senso comum pode ser o

    veculo mais rpido e poroso de preconceitos e esteretipos sobre os prprios movimentos

    sociais. A construo de um pensamento comum partilhado (tanto pelo homem comum

    ou pelo senso comum quanto pelos intelectuais cercados por discursos competentes)

    pode no ir alm da construo de novos preconceitos. Por isso, parte da demanda por

    reconhecimento, principalmente entre intelectuais feministas, e tem-se alicerado tanto na

    incluso de novos contedos no cnone quanto na reconstruo de teorias que

    demonstrem como o conhecimento construdo, considerando o lugar de quem elabora as

    idias, o lugar que se ocupam no mundo, as representaes construdas sobre ele e por

    ele, de modo que se conceba que conhecer construir relaes.

    Diante desse dilema, muitos optaram por, ao mesmo tempo, assumir a tpica dos

    movimentos sociais como quando afirmam o desejo de que seu conhecimento reflita os

    anseios de suas comunidades de origens, e tambm assumir o desejo de partilhar desse

    mundo de conceitos e idias hierarquizados e que demarcam espaos para a

    intelectualidade, a ao dos movimentos sociais e o pensamento no sistematizado,

    elaborado pelo homem comum. Por isso, afirmam tanto a tpica do senso comum quanto

    o seu oposto, que a valorizao do cnone, por meio da expresso de demanda por sua

    alterao.

    Contudo, a busca por mudanas no cnone, simplesmente, cria novas figuras de

    poder, novas competncias e novos especialistas que iro operar dentro da mesma

    estrutura hierrquica. Fugindo dessa lgica maniquesta, no quero dizer que isso seja

    necessariamente bom ou ruim em si mesmo. A diversidade, dentro do mundo acadmico

    implica a possibilidade efetiva de incorporar novos elementos ao cnone, de alter-lo e

    ampli-lo a partir das contribuies de novos paradigmas. Alis, dessa forma que o

    mundo acadmico tem sobrevivido at os dias de hoje. Nesse sentido, incorporar ao

    cnone contedos das diferentes culturas africanas e indgenas, questionar o carter da

  • 18 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    produo do conhecimento difundido nas universidades como sendo orientado pela tica

    masculina e branca fundamental, mas no altera as regras do jogo que implica a

    institucionalizao do conhecimento, a naturalizao da formao escolar e seriada, a

    valorizao dos especialistas e das autoridades.

    Ao longo de sculos, o conhecimento produzido apareceu como neutro, quando

    sabemos que isso era e falso. A neutralidade, assim como a imparcialidade, e a

    autoridade so construes ideolgicas. Uma das grandes contribuies que as discusses

    sobre multiculturalismo nos oferece a de mostrar que todos os saberes e culturas tm

    direito mesma dignidade. Porm, a crtica feita a Taylor pelos autores afrocentristas

    que, de fato, ele no ofereceria o mesmo valor aos conhecimentos, mantendo, dessa

    forma, a hierarquia entre aqueles mais valorosos para humanidade e os menos. Sobre esse

    aspecto recai a crtica de Peter Mclaren, segundo o qual os paradigmas do

    multiculturalismo manteriam as ideologias conservadoras neoliberais sob o manto

    discursivo da diversidade. E as crticas de Asante, segundo as quais:

    a recusa da agncia africana restringe a expectativa e o espao de sua participao

    no jogo de poder das identidades do multiculturalismo. Reforada pelo poder da

    mdia e das instituies de educao e cultura, a representao do africano como

    no-produtor de conhecimento, tecnologia ou civilizao, e portador apenas de

    culturas tnicas da ordem do sub (por exemplo, samba, futebol e culinria) leva limitao dessa participao do afrodescendente (Asante, 1998, p. 99).

    Entretanto, pergunto: em que momento essas mesmas instituies so criticadas?

    Em quais momentos, no lugar de sugestes de mudanas de autoridades, so sugeridas

    mudanas radicais na prpria maneira de se pensar o conhecimento e o lugar de saber-

    poder das universidades e das escolas? Ambas foram naturalizadas como se, sem elas e

    fora delas, reinasse o mundo da ignorncia absoluta. Penso se no faria parte da adoo

    da lgica eurocntrica a ratificao desse lugar de saber que, j foi dito, hierrquico e

    regido pela lgica da racionalidade instrumental. Criticamos. Mas a prpria crtica o

    reafirma.

    A CRTICA DA RACIONALIDADE INSTRUMENTAL

  • 19

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    Todos sabemos que o cone da racionalidade instrumental representado pelos

    estudiosos do tema pela estria e pela figura melanclica de Ulisses, heri da mitologia

    que vence o medo, controla os afetos e utiliza da astcia e do clculo racional para

    alcanar seus objetivos. Ora, haveria na constituio da chamada racionalidade

    instrumental algo que permitiria a instaurao da diferena como sinnimo de

    negatividade. Sob essa tica, considerado racional aquilo que obedece aos princpios de

    Identidade, No contradio, Causalidade, Separao entre sujeito e objeto do

    conhecimento. E o mais importante, desde os primrdios da Filosofia, estabelece-se que

    somente se pode conhecer aquilo que se coloca na esfera da identidade, partindo de si

    mesmo como parmetro e como metro, e o parmetro seria o branco europeu. J a

    separao entre sujeito e objeto como norma para um conhecimento aceitvel, legtimo e

    rigoroso cria obstculos para a aceitao do saber produzido quando negros, mulheres,

    homossexuais, indgenas discutem a sua prpria realidade. Mais grave ainda, cria

    obstculos para a aceitao dos conhecimentos pautados em aspectos considerados no-

    cientficos, como a intuio, a espiritualidade, os rituais e outros fartamente encontrados

    entre as culturas consideradas primitivas porque pr-lgicas (algicas) e, portanto

    irracionais. No se considera as possibilidades de existncia de um conhecimento

    elaborado em funo da conjuno entre sujeito e objeto, entre razo, desejo e

    afetividade. Marion Iris Young discute essa questo:

    Nesta lgica da identidade a razo no significa apenas ter razes ou uma

    explicao, ou inteligentemente refletir sobre uma situao. Para a lgica da

    identidade razo ratio, isto , a reduo, com base em princpios dos objetos de

    pensamento a uma medida comum, as leis universais. (...) A lgica da identidade

    vai alm desse empenho por ordenar e explicar os particulares da experincia. Ela

    constri sistemas completos que procuram mergulhar a alteridade das coisas na

    unidade do pensamento. O problema com a lgica da identidade que, atravs

    dela, o pensamento procura ter tudo sob controle, eliminar toda incerteza e

    imprevisibilidade, idealizar o fato corporal da imerso sensorial num mundo que

    ultrapassa o sujeito, eliminar a alteridade (Young, 1987, p. 70).

    Nessa perspectiva, a racionalidade, a lgica e a tecnologia seriam atributos da

    cultura branca, masculina e europia, enquanto o primitivismo, a emotividade, a

    corporeidade pertenceriam aos povos africanos, indgenas, aborgenes e s mulheres. Isso

    no s os tornaria inaptos a decidir sobre suas prprias vidas, como tambm no lhes

    ofereceria condies para o pensamento adequado sobre o mundo social e poltico,

    interditando-os, portanto, participao poltica plena.

  • 20 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    Vale a pena relembrar a forma como geralmente o conhecimento produzido pelos

    sujeitos negros recebido:

    atividade folclrica e de entretenimento e raramente como cultura;

    expresses de emotividade e raramente como conhecimento puro.

    Por que nossa produo no pode ser cultura e o que levaria nosso pensamento a

    no ser considerado ordenado e adequado? Mais uma vez, o recurso racionalidade

    instrumental explicaria. Ora, as normas da academia estabelecem como forma de

    conhecimento o controle dos sentimentos e do corpo pela razo, o distanciamento entre

    sujeito e objeto, o que pode acontecer no momento em que, na produo do

    conhecimento, sujeito e objeto se encontram? Ou seja, como avaliar as pesquisas

    realizadas pelos sujeitos negros e que tenham a si prprios como tema? E ainda mais,

    como nos afastarmos do mote de que essa emotividade desqualifica o trabalho acadmico

    o tornando intimista, subjetivo e sem valor?

    Penso que possa ser interessante avaliar em que medida, ao nos obrigarmos

    produo dentro dos padres estabelecidos pela racionalidade instrumental no

    estaramos camuflando as prprias tenses e contradies que esto vinculadas a essa

    busca do conhecimento. Ao contrrio de encarar estas tenses, se estabelece a idia de

    que alguns so autorizados e competentes para falar sobre todos os assuntos e outros no

    o so. Por esta lgica se considera que os negros, por serem negros (e por isso

    considerados emotivos, ligados natureza), no seriam suficientemente isentos para

    discutir as questes referentes a ns prprios com a mesma neutralidade e iseno que os

    brancos o fariam. J por nossa emotividade e racionalidade imperfeita, no seramos

    competentes o suficiente para discutir qualquer outro assunto com a mesma propriedade

    que os brancos o fariam. O que restaria a ns? Ainda em acordo com esta lgica, nos

    restaria a tutela pela racionalidade mais perfeita e menos equivocada que a nossa.

    Esta lgica cruel se revela nos momentos em que fazemos a opo por nossos

    parceiros preferenciais de trabalho e quando negamos o reconhecimento produo

    intelectual daqueles que no so brancos. O privilgio da brancura ou a branquitude

    implica considerar que o ser branco, ou no negro, no indgena em uma sociedade como

    a nossa j oferece vantagens mesmo que a pessoa no as deseje e nunca tenha demandado

  • 21

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    ou compactuado com elas. Uma pessoa, ao nascer branca (mesmo que lute contra todas as

    formas de opresso em toda a sua vida) j desfruta, simbolicamente, de uma srie de

    vantagens e privilgios que outros jamais tero (enquanto as normas que hoje vigem na

    sociedade prevalecerem).

    Piza, recuperando as discusses de Frankenberg sobre branquitude, afirma:

    Frankenberg vai definir branquitude a partir do significado de ser branco, num

    universo racializado: um lugar estrutural de onde o sujeito branco v os outros e a

    si mesmo; uma posio de poder no nomeada, vivenciada em uma geografia

    social de raa como um lugar confortvel e do qual se pode atribuir ao outro

    aquilo que no atribui a si mesmo (...) Muitos de ns, brancos, j experimentaram

    alguns desses traos de conforto, cuja caracterstica mais evidente encontra-se na

    sensao de no representar nada alm de nossas prprias individualidades (Piza,

    2002, p. 71).

    Essa autora enfatiza, por meio de exemplos, como os brancos podem e so

    pensados como indivduos com direito a nome e a sobrenome e os negros (e descendentes

    de asiticos, no caso brasileiro) so pensados como grupo. Dessa forma, a prpria

    estrutura da discriminao racial calcada na construo de esteretipos sobre o que seria o

    negro d a pauta para a construo de um projeto de identidade de grupo. Se a lgica da

    ideologia racista fez com que todos os negros fossem representados como raa inferior, a

    tnica da poltica da diferena ser a de demonstrar/afirmar a positividade de todos os

    negros como um grupo unificado. Piza afirma ainda:

    esta excessiva visibilidade grupal do outro e a intensa individualizao do

    branco que podemos chamar de lugar de raa. Um lugar de raa o espao de visibilidade do outro, enquanto sujeito numa relao, na qual a raa define os

    termos desta relao. Assim, o lugar do negro o seu grupo como um todo e do

    branco o de sua individualidade. Um negro representa todos os negros. Um

    branco uma unidade representativa apenas de si mesmo. No se trata, portanto,

    da invisibilidade da cor, mas da intensa visibilidade da cor e de outros traos

    fenotpicos aliados a esteretipos sociais e morais, para uns, e a neutralidade

    racial, para outros. As consequncias dessa visibilidade para negros bem

    conhecida, mas a da neutralidade do branco dada como natural, j que ele o modelo paradigmtico de aparncia e de condio humana (Idem, Ibidem, p. 72).

    No basta saber que o racismo existe, preciso saber que existe como parte e/ou

    efeito do racismo, o privilgio da brancura. O que percebemos nos ltimos anos a

    aceitao terica da existncia do racismo (mesmo que ainda na prtica seja difcil puni-

    lo e para alguns, seja impossvel enxerg-lo onde ele ocorre), mas o que no vemos

    discutido ou refletido nos espaos acadmicos o sentido que o privilgio da brancura

  • 22 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    opera entre ns. Isso implicaria discutir e refletir sobre os privilgios rotineiros que

    alguns tm, mesmo sem o querer, somente em funo da cor da pele. Refletir sobre isso

    dar um passo na direo de no permitir que estes privilgios sejam mantidos. dar um

    passo na direo de um reconhecimento efetivo dos sujeitos e da produo dos sujeitos

    negros.

    A NEGAO DO RECONHECIMENTO

    Axel Honneth, um dos autores que apresentam a questo do reconhecimento como

    central para a compreenso das sociedades contemporneas, associa a teoria do

    reconhecimento a uma luta por meio da qual sejam exigidos cada vez mais altos padres

    de reconhecimento que seriam mediados por lutas intersubjetivas nas quais os sujeitos

    tentariam ganhar aceitao para reivindicaes a respeito de sua prpria identidade. A

    identidade do sujeito deve ser reconhecida para que ele se sinta em condies de

    participar da sociedade como igual. Sua identidade por meio do respeito a seu corpo e

    cultura, sua identidade por meio da no-excluso de seus direitos e sua identidade como

    pessoa portadora e executora de habilidades e talentos que podem ser estimados

    socialmente.

    A compreenso da teoria de autores que se dedicaram a pensar sobre estas

    questes tambm uma forma de compreenso de modos por meio dos quais se pode

    utilizar o pensamento da filosofia tradicional para a reflexo e a formulao de problemas

    de interesse na rea dos estudos sobre a questo racial. Por isso, considero fundamental

    apresentar alguns aspectos do pensamento de Axel Honneth.

    Para Axel Honneth (2007a) haveria trs etapas de reconhecimento de modo que a

    cada negao de um direito corresponderia uma demanda por reconhecimento que

    resultaria no desenvolvimento de uma fase da conscincia moral de cada indivduo.

    A primeira negao seria sentida por meio das humilhaes fsicas, como a tortura

    ou estupro, que privam o ser humano da autonomia corporal. O reconhecimento positivo

    se daria por meio do desenvolvimento da autoconfiana corporal, por meio do cuidado

    emocional, do amor. Esse reconhecimento se desenvolve no seio das relaes sociais

    primrias: na famlia, entre amigos ou no amor.

    A segunda negao seria sentida por meio da negao dos direitos e por meio da

    excluso social que afetam a dignidade daqueles que no podem atuar como pessoas

  • 23

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    plenas na sociedade. O reconhecimento ocorre quando reciprocamente todos se

    consideram portadores de iguais direitos. No caso do reconhecimento legal, Honneth

    afirma que so dadas consideraes legais s diferenas nas oportunidades disponveis e

    tambm se garante que os grupos excludos tenham os mesmos direitos que os outros

    membros da sociedade. Este o reconhecimento dos sujeitos como sujeitos de direitos

    tanto no plano moral quanto no plano material, de modo a que sejam dadas garantias para

    que o sujeito tenha a sua intersubjetividade respeitada, como tambm garantias de sua

    sobrevivncia material.

    Como disse anteriormente, a terceira negao a da depreciao do valor social

    das formas de autorrealizao que no permitem que os sujeitos obtenham a estima social

    a partir da realizao das habilidades adquiridas por eles ao longo de suas vidas. O

    reconhecimento implicaria no sentimento de auto-estima desenvolvido quando os

    indivduos sentem uma aceitao solidria de suas habilidades e de seu estilo de vida.

    Honneth mostra como esses trs padres de reconhecimento (amor, ordem legal e

    solidariedade) garantem a dignidade dos indivduos e sua auto-realizao. E so

    construdos dentro de uma concepo formal de boa vida que assegure que sempre que

    encontrarem em qualquer sociedade esses padres de reconhecimento, os indivduos

    podero se relacionar entre si nas formas positivas da autoconfiana, do autorrespeito e

    da autoestima. Dessa forma, o autor pretende demonstrar como, por meio desses trs

    nveis de reconhecimento, se garantem no s o reconhecimento das especificidades de

    cada povo e cultura como a distribuio igualitria, na medida em que se associam a

    estima social.

    A base da anlise de Honneth o sentimento de injustia associado privao do

    amor, de direitos e da autoestima. Por isso, Honneth afirma que as sociedades seriam

    injustas quando seus cidados (todos ou alguns) fossem vtimas de humilhaes fsicas

    torturas, estupros... toda forma de violncia ao corpo que os impedissem a autonomia

    corporal e perdessem a autoconfiana ou o amor prprio; seriam injustas quando seus

    cidados (todos ou alguns) tivessem seus direitos negados ou fossem impedidos de buscar

    novos direitos ou ainda fossem vtimas de excluso social que os impedissem a

    participao por meio do reconhecimento legal padecendo em sua dignidade por no

    terem concedidos os direitos morais e as responsabilidades de uma pessoal legal plena em

    sua prpria comunidade; seriam injustas quando seus cidados (todos ou alguns) fossem

  • 24 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    vitimas de depreciao do valor social das formas escolhidas por eles para sua

    autorrealizao, no permitindo que os sujeitos se relacionem com as habilidades

    adquiridas por eles ao longo de sua vida e, neste caso, importante frisar o vnculo entre

    injustia e desvalorizao do trabalho como forma de autoconservao de todos os

    cidados.

    Seguindo a lgica de Honneth, haveria enorme desrespeito e injustia ao no

    considerarmos com a mesma dignidade as formas escolhidas por diferentes povos e

    culturas no s para sua conservao e autoconservao como tambm para divulgarem

    os seus conhecimentos. Sabemos que, ao longo da histria do Brasil, o ser negro foi

    vinculado a uma srie de fatores negativos: o negro era o escravo, ou seja, ser desprovido

    de humanidade, coisa, instrumento de trabalho, propriedade cujo corpo poderia ser

    violentado de todas as formas. Vemos, ento, como o amor, o direito (ou ordem legal) e a

    solidariedade (ou estima social) eram negados por meios de violncias fsicas e

    simblicas, criando barreiras para o florescimento da autoconfiana, do autorrespeito, da

    autoestima.

    Prximo do final da escravatura, conhecida a grande discusso travada entre

    intelectuais e polticos acerca do destino do Brasil em funo da grande quantidade de

    indivduos de cor preta. Discutiam:

    Como construir uma nao se no h povo?

    Como garantir a presena de europeus por meio da imigrao formando o

    povo ideal para o Brasil?

    Como coibir o maior enegrecimento da populao brasileira?

    Como criar um cdigo penal prprio para lidar com uma populao de

    mestios, africanos, negros e brancos?

    Como identificar os criminosos antes mesmo que realizem qualquer ao

    criminosa, criando a identificao entre criminalidade e populao negra e

    mestia?

  • 25

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    Todas estas teorias foram construdas e discutidas em espao acadmico por intelectuais

    respeitados em suas pocas como Louis Couty, Nina Rodrigues, Cesare Lombroso, Silvio

    Romero entre outros.4

    Como agir de outra forma ao discutir direitos quando se percebe o desrespeito

    inerente a nossa prpria ao cotidiana, j que todos os conhecimentos mencionados

    anteriormente (a construo da racionalidade instrumental, as teorias racialistas e racistas,

    a construo das teorias segundo as quais as culturas europias brancas seriam superiores

    s demais resultando em xenofobias) tambm foram produzidos dentro das academias,

    por pensadores respeitados em suas pocas e pautaram polticas e aes que hoje

    questionamos como violaes de direitos? Como no sermos, hoje, autores e reprodutores

    de teorias e conceitos que tambm podem, de algum modo, ratificar e estimular modos de

    pensar que reproduzam violncias simblicas ou no?

    A lgica da branquitude perpassa a produo do conhecimento no somente pela

    forma como a racionalidade se define e a desrazo definida, mas tambm, conforme foi

    dito anteriormente, pelo modo como brancos e no brancos so vistos e tratados dentro do

    espao de produo do conhecimento como se a cor da pele, por si s, definisse a

    qualidade do conhecimento a ser produzido e sua aparente neutralidade e racionalidade.

    Os negros, necessariamente, seriam desviados do saber pelo comprometimento das causas

    pelas quais lutam e os brancos, isentos de ideologias, estariam aptos a produzir o

    verdadeiro e desinteressado conhecimento que, de fato, poderia contribuir para desnudar a

    alienao presente na sociedade. E deste lugar tambm racializado, mas que no se

    enxerga ou se afirma como tal que ataques e desqualificaes so feitas a intelectuais e

    acadmicos de grande valor que so negros e por serem negros so considerados

    incompetentes por quem se alega o direito de fala somente por estar em um lugar

    privilegiado, o lugar da brancura, j que no tem nenhuma qualificao intelectual que

    poderia chamar para si. Fala e escreve e ouvido por ser branco e nada mais do que isso.

    E deste lugar da brancura que pretende fazer crer que est isento de razes, ideologias e

    intenes polticas presentes naqueles aos quais ataca, levianamente.

    Quando orientamos e redigimos teses e dissertaes, seguimos estas orientaes

    porque sabemos, so elas que regem a lgica da formao acadmica nas universidades

    4 Para essa discusso, ver Santos (2001).

  • 26 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    do mundo. Ento, como podemos falar em diversidade cultural quando sabemos que ela

    solapada pela prpria forma que escolhemos para nos manifestarmos?

    Todas estas questes so bastante inquietantes porque lembram que o trabalho

    acadmico pode ser um modo de repor a lgica da supremacia do trabalho intelectual,

    orientado pela racionalidade instrumental sobre o trabalho considerado manual e no

    intelectual e no racional. E, como disse, isso soa muito mais grave quando se discute

    direitos considerando o direito diversidade das culturas, das expresses de modos de

    pensar, o direito a que o todo no seja reduzido no mesmo e o diverso no uno. Ainda se

    torna mais instigante quando consideramos que as demandas dos movimentos sociais e da

    sociedade chamam nossa ateno para possibilidades diferentes destas.

    CONCLUSO

    O que fazer diante desta realidade?

    Relembro a fala de um colega africano, angolano, que dizia que era preciso deixar

    as idias cozinhando at chegarem ao ponto certo. Essa metfora me faz lembrar da

    importncia de se aprender a cozinhar e sobre a importncia, alm da arte de cozer, da

    arte e do ato de comer. Ensinamos nossos filhos a apreciar a diversidade dos alimentos e

    consideramos sofisticadas as pessoas que sabem apreciar iguarias de diferentes culturas,

    mas no fazemos o mesmo com diversas formas de pensar. Aquilo que seria bom para o

    nosso corpo (a diversidade) no seria bom para a nossa alma.

    Considerar questes epistemolgicas como fazem as autoras do livro organizado

    por Seyla Benhabid e Drucilla Cornell (1987), que se propem a pensar, para alm das

    polticas de gnero, criticando os prprios conceitos com os quais pensamos como sendo

    engendrados por uma lgica masculina e machista por meio da qual se identificam

    racionalidade com masculinidade tambm uma forma de sugesto da diversidade. Esta

    discusso se d no campo da Filosofia e das crticas dos conceitos e idias criadas por

    muitos dos filsofos reconhecidos no Ocidente. As autoras enfatizam o quanto opressor

    o conceito de pblico, privado, impessoal e imparcial gerado pela filosofia. ris Marion

    Young afirma:

    Os novos movimentos sociais dos anos 60, 70 e 80 nos Estados Unidos,

    comearam a criar a imagem de um pblico mais diferenciado, que enfrenta

    diretamente o Estado dito imparcial e universalista. Movimentos de grupos raciais

  • 27

    Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    oprimidos, inclusive negros, americanos de origem mexicana, ndios americanos,

    tendem a rejeitar o ideal assimilacionista e afirmar o direito de vida e celebrar em

    pblico suas culturas e formas de vida caractersticas, bem como afirmar

    reivindicaes especiais de justia diante da supresso ou desvalorizao de suas

    culturas, ou compensao pela desvantagem em que a sociedade dominante os

    situa. Tambm o Movimento de Mulheres tem reivindicado desenvolver e

    fomentar uma cultura caracterstica das mulheres e que tanto as necessidades

    fsicas especficas das mulheres como sua situao na sociedade machista exigem

    soluo em pblico para as necessidades especiais e contribuies peculiares das

    mulheres (Young, 1987, p. 85).

    Eu discuti esta temtica em dois momentos (Santos, 2001 e 2004) quando

    apresentei a forma como se inventou, a partir da conjuno entre diferentes teorias a idia

    do negro e da mulher negra como inferiores. Sueli Carneiro (2003, 2005, 2005a) e

    Anthony Appiah (1994, 2004) tambm o fazem, de diferentes modos. O segundo, ao

    discutir filosofia africana, critica e renega a avaliao de que o pensamento africano no

    seria logicamente organizado e, por isso, no poderia haver filosofia em suas matrizes a

    no ser que fossem associadas ao pensamento rabe ou islmico ou s influncias

    judaico-crists. A primeira, ao denunciar o epistemicdio:

    contrato racial, biopoder e epistemicdio, por exemplo, so conceitos que se

    prestam como contribuio ao entendimento da perversidade do racismo. So

    marcos conceituais que balizaram a tese de doutorado que defendemos junto

    USP em agosto passado sob o ttulo A construo do outro como no-ser como

    fundamento do ser. Nela procuramos demonstrar a existncia no Brasil de um

    contrato racial que sela um acordo de excluso e/ou subalternizao dos negros,

    no qual o epistemicdio cumpre funo estratgica em conexo com a tecnologia

    do biopoder. o filsofo afro-americano Charles Mills quem prope no livro The

    Racial Contract que devemos tomar a inquestionvel supremacia branca ocidental

    no mundo como um sistema poltico no nomeado, porque ela estrutura uma sociedade organizada racialmente, um Estado racial e um sistema jurdico racial,

    onde o status de brancos e no brancos claramente demarcado, quer pela lei,

    quer pelo costume. Um tipo de sociedade em que o carter estrutural do racismo impede a realizao dos fundamentos da democracia, quais sejam a liberdade, a

    igualdade e a fraternidade, posto que semelhante sociedade consagra hegemonias

    e subalternizaes racialmente recortadas (Carneiro, 2005b).

    Todos estes momentos citados nos mostram que fundamental a transformao do

    pensamento por meio da transformao das categorias utilizadas para pensar. Contudo,

    seria ingenuidade acreditar que passaremos a trabalhar orientados por uma outra lgica

    nos rebelando contra os critrios que pairam nas produes consideradas qualificadas nas

    instituies acadmicas. Como professores, pesquisadores acadmicos, sabemos que ao

    fazermos isso estaremos, automaticamente, fechando todas as possibilidades de dilogo

  • 28 Gislene Aparecida dos Santos v.1, n.2 jul. out. de 2010, p. 7-30.

    por meio das quais tambm podemos questionar o mundo, propor reflexes, criar e

    sugerir novas formas de criao do espao acadmico. Ento, o que fazer?

    Do mesmo modo como tericos da justia propuseram a construo de uma noo

    ampliada de justia que pudesse considerar os aspectos da diversidade e da diferena de

    status sociais para se definir o que seria justo ou injusto como baliza para a correo das

    injrias morais, por que no pensarmos em uma noo de racionalidade ampliada

    segundo a qual nossas experincias vividas e multiplicadas fossem a base para a

    ampliao de nossas categorias de pensamento?

    Desta forma, seria necessrio acreditar que no se poder formar bons pensadores

    se no oferecermos a eles a oportunidade do exerccio da diversidade, transformando o

    espao de formao em local no qual se poder encontrar oportunidades diversas de

    dilogo com aquilo que reflete e repercute a diversidade social, aquilo que nos lembre de

    que o mundo maior do que o que est em nosso entorno. Assim, penso, mesmo nos

    empenhando para nos qualificarmos dentro dos padres que vigem nas universidades e

    que so endossados pelas nossas prprias produes, estaramos fazendo um pouco

    daquilo que tanto valorizamos em nossas vidas cotidianas: trazendo outros sabores e

    temperos para nossa reflexo.

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