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Ano 9 • n. 2 • jul./dez. 2009 - 7 ÁGORA FILOSÓFICA Filosofia e literatura entre abraços e socos: uma questão moral Prof. Dr. José Tadeu Batista de Souza 1 Resumo Filosofia e Literatura emergiram no cenário histórico ocidental constituindo-se pilares de sustentação da expressividade do pensar e do agir humano. O relaci- onamento que se concretizou entre elas, no entanto, ocorreu de modo diferenci- ado nas formas e conteúdos propostos por seus personagens. A pretensão deste texto é expor a postura de alguns personagens defensores da relação de aproximação e de afastamento, considerando a moral como um componente importante nessas relações. Dá-se ênfase à postura de Martha Nussbau, apre- sentando o gênero literário novela como potencial de pôr em movimento a ima- ginação e suscitar reações de pensamentos, sentimentos e práticas, capazes de interferir vigorosamente na vida privada e pública de uma determinada comuni- dade humana. A novela, enquanto gênero vivo, poderá colocar a vida em movi- mento no sonhar, desejar, fantasiar, imaginar e criar um sentido alternativo para a experiência do viver. Palavras-chave: filosofia; literatura; moral. Philosofy and literature between embraces and punches: a moral question Abstract Philosofy and Literature have emerged, risen out from the occidental , western historical scenery, setting, constituting them selves human thinking and acting expressivity upholding pillars (se optar pela forma analítica – com “of” – ficaria assim “Constituting themselves pillars of the human thinking and acting…) however, the relationship turned materialized between them has occurred unlikely in each other in the forms and in the contents proposed by their personages posture, attitude that are defenders, upholders regarding to approach and withdrawal relationship, considering morality as an important component in these relations. One emphasizes Martha Nussbau’s posture, attitude, presenting, showing up the literary gender, know as short novel – story as a great potential to put into movement imagination and to stir up thoughts, feelings and practices reactions, capable of interfering vigorously in a certain human community private and public life. The short novel, as lifely gender, will be able putting into movement dreams, wishes, fancies, imaginations and creations regarding to an alternative feeling for living experience. Key words: Philosopy – Literature – Morality.

Filosofia e literatura entre abraços e socos: uma questão moral

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Ano 9 • n. 2 • jul./dez. 2009 - 7

ÁGORA FILOSÓFICA

Filosofia e literatura entre abraços e socos:uma questão moral

Prof. Dr. José Tadeu Batista de Souza1

ResumoFilosofia e Literatura emergiram no cenário histórico ocidental constituindo-sepilares de sustentação da expressividade do pensar e do agir humano. O relaci-onamento que se concretizou entre elas, no entanto, ocorreu de modo diferenci-ado nas formas e conteúdos propostos por seus personagens. A pretensãodeste texto é expor a postura de alguns personagens defensores da relação deaproximação e de afastamento, considerando a moral como um componenteimportante nessas relações. Dá-se ênfase à postura de Martha Nussbau, apre-sentando o gênero literário novela como potencial de pôr em movimento a ima-ginação e suscitar reações de pensamentos, sentimentos e práticas, capazes deinterferir vigorosamente na vida privada e pública de uma determinada comuni-dade humana. A novela, enquanto gênero vivo, poderá colocar a vida em movi-mento no sonhar, desejar, fantasiar, imaginar e criar um sentido alternativo paraa experiência do viver.Palavras-chave: filosofia; literatura; moral.

Philosofy and literature between embraces and punches: a moral question

AbstractPhilosofy and Literature have emerged, risen out from the occidental , westernhistorical scenery, setting, constituting them selves human thinking and actingexpressivity upholding pillars (se optar pela forma analítica – com “of” – ficariaassim “Constituting themselves pillars of the human thinking and acting…)however, the relationship turned materialized between them has occurred unlikelyin each other in the forms and in the contents proposed by their personagesposture, attitude that are defenders, upholders regarding to approach andwithdrawal relationship, considering morality as an important component inthese relations. One emphasizes Martha Nussbau’s posture, attitude, presenting,showing up the literary gender, know as short novel – story as a great potentialto put into movement imagination and to stir up thoughts, feelings and practicesreactions, capable of interfering vigorously in a certain human community privateand public life. The short novel, as lifely gender, will be able putting intomovement dreams, wishes, fancies, imaginations and creations regarding to analternative feeling for living experience.Key words: Philosopy – Literature – Morality.

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Introdução

Desde os antigos gregos, filosofia e literatura são dois pilares desustentação da expressividade do pensamento no Ocidente. Elas

perfazem os cenários históricos com figuras de destaques: são dimen-sões constitutivas e modeladores da cultura humana ocidental. Cadauma, em sua especificidade, tem dado contribuições indeléveis à for-mação da mentalidade que ainda permanece viva e esplêndida de vi-gor em nossos dias.

Na trajetória percorrida por filosofia e literatura, podemosidentificar momentos fecundos de aproximações e distanciamentos.Ambas trouxeram contribuições significativas, que não podem ser ig-noradas por um olhar retrospectivo, sob pena de uma parcialidadeingênua.

A nossa pretensão nas linhas que seguem é considerar o as-pecto moral como um componente importante das complexas rela-ções entre filosofia e literatura. Tomamos, como ponto de partida, atítulo de exemplo, a posição de Alasdair MacIntyre. Em seguida, ex-pomos sumariamente, contribuições de Martha Nussbaum, acentuan-do o gênero literário novela como fonte de contribuição fundamentalpara a experiência moral.

O nosso esforço é mostrar que, na perspectiva de Nussbaum,a novela põe em movimento a imaginação e suscita reações de pensa-mentos e práticas capazes de interferir significativamente na vida públi-ca de uma determinada sociedade. Ela pode expressar formas deracionalidades que são mais condizentes com o estatuto do humano edesencadear procedimentos práticos alternativos à experiência consti-tuída.

Não pretendemos fazer um esboço histórico nem dos abra-ços nem dos socos que se fizeram frente na história do relacionamen-to. Contudo, tentamos dar ênfase às possibilidades dos abraços, semnos esquecer das diferenças. Pensamos que os abraços podem refletiro sentido de uma razão que amadureceu sob o calor de corações esentiu a necessidade de defender a possibilidade do acontecimento davida humana.

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1 A problemática

O tratamento da questão “filosofia e literatura” requer comocondição fundamental, a tomada de consciência do caráter deproblematicidade que está implícita em cada um dos termos tomadosisoladamente, e com grau de complexidade ainda mais acentuado,quando se tem a pretensão de postular uma relação entre eles. Naverdade, trata-se de uma questão que acompanha as aventuras e des-venturas do próprio pensamento que emerge na antiga Grécia e des-dobra-se no tempo e no espaço da denominada razão ocidental até osnossos dias.

Nesses desdobramentos no tempo e no espaço, muitas ques-tões foram levantados e perderam-se no tempo, muitas outras foramperpassando com vigor, encontrando um espaço de sobrevivência, enovas questões emergiram e somaram-se aos fios da rede de comple-xidade. O emergir e desaparecer, o nascer e manter-se vivo até a mortee das cinzas da “tumba” renascer indicam que o pensamento tem aforça viva de fazer a história como marca indelével de semelhanças ediferenças que podem ser vislumbradas na paciência da própria histó-ria do tema. São muitas as possibilidade que temos de nos aproximardo estatuto da questão, que já tem uma longa história. O percurso pelahistória desse assunto seria uma dessas possibilidades. Uma outra viaseria escolher um período ou um autor para nele tratar a questão. Umcaminho um tanto novo seria tratar a intriga da relação filosofia-litera-tura articulada a partir da dimensão moral. Qualquer uma das vias pos-síveis que forem assumidas terão de enfrentar as complicações dosfios que se tecem, se torcem e se entrelaçam na tradição da própriaquestão. Uma via de possibilidade também muito recente seria tomaro elemento da linguagem para articular a aludida relação filosofia-lite-ratura.

Ainda se podem aumentar os fios da complexidade da rede,se nos preocuparmos em delimitar qual é o lugar específico a partir doqual se vai proceder à disposição dos fios. Ou seja, a configuração daquestão terá necessariamente a marca imposta pelos limites do lugar apartir do qual se procederá o discurso: o lugar filosófico ou literário.

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Assumir um lugar para pensar na relação como problematem a vantagem de afastar, de início, a ilusão da neutralidade, por umlado, e por outro, o perigo do reducionismo. Filosofia e literatura po-dem cair nas velhas formas de reivindicação da nobreza do seu estatu-to e a desconfiança na fecundidade de uma profícua relação de apro-ximação. A tradição do problema expõe ocasiões em que a “vontadede reflexão” não passa da exposição de preconceitos, mal entendidosou mesmo um equívoco no uso que um dos domínios tende a fazer dooutro. Essa maneira de postar-se, na verdade, não se apresenta comoalgo produtivo e satisfatório. Muito pelo contrário,

as polêmicas que se enfrentam sobre o registro ‘filo-sofia e literatura’ produzem, no momento, uma pro-funda insatisfação. As vezes parecem referir-se asvirtudes ou deméritos dos textos filosóficos como tex-tos literários e outros apontam a estes comoaportações relevantes para a filosofia2.

Não podemos ignorar o mérito das reivindicações pelo re-conhecimento da especificidade dos saberes que estão em questão.Afinal a decência de uma relação produtiva só será possível à medidaque cada domínio tiver a clareza da sua especificidade e, portanto, dasua diferença. A partir dessa auto percepção, será possível o estabele-cimento de modalidades de relações que atendam satisfatoriamente,pelo menos em parte, a filósofos e escritores.

Da parte dos filosóficos, há um risco de considerar a literatu-ra como uma simples forma de embelezamento de seus discursos ouapenas um meio indispensável para a anunciação de seus conteúdos.Não se reconhece que se produz uma dicotomia entre forma e conteú-do que mantém, na sua base, um pressuposto que dá autonomia aambos os domínios, mas os impede de autoperceberem-se como ir-manados enquanto forma e conteúdo. A partir desse pressuposto, apa-rece, explicitamente, uma compreensão do que é próprio de cada do-mínio. Ou seja, a partir dessa compreensão se pensa que o próprio dofilosófico é produzir conteúdos, enquanto ao escritor compete produ-zir a forma. Compreender os domínios como instâncias com determi-nações próprias sem perceber as implicações vinculativas é, de algu-

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ma maneira, um limite que exprime uma redução da própria identida-de. A redução apresenta-se justamente no momento em que se atribuiao filósofo o poder de pensar conteúdos, e ao escritor, o poder decriar a forma ou meio de anunciação do que foi pensado. Dessa ma-neira reducionista de compreensão da relação dos domínios, podem-se vislumbrar as consequências danosas para ambos. Para o filosófi-co, a consequência é apresentar-se como alguém que sabe pensar e,às vezes, pensar de forma “profunda”, abstrata, mas não sabe comu-nicar seu pensamento. Nas palavras de Jeanne Marie:” no limite, issosignifica que os filósofos sabem pensar, mas não conseguem comu-nicar seus pensamentos, que não sabem falar nem escrever bem; e queos escritores sabem falar bem, sabem expressar-se, mas não têm ne-nhum pensamento próprio consistente3. Ora, considerar a literaturaapenas como um veículo de comunicação ou como um elemento deembelezamento do discurso filosófico tira a sua dimensão de serieda-de como produtora e enunciadora de verdades e lhe confere um esta-tuto meramente ornamental.

Essas formas de reducionismo muitas vezes, são consolida-das a partir da afirmação de uma concepção limitada de autonomia,que, no final, opõe filosofia e literatura como domínios de saberes ab-solutamente separados e que devem manter os seus campos bem de-limitados e protegidos das interferências alheias. Segundo MariaHerreira de Lima, esta é uma posição defendida por Ítalo Calvino:

para Ítalo Calvino a filosofia e a literatura são aguer-ridos adversários, porque nos diz: os olhos dos filóso-fos vêm através das opacidades do mundo, suprimin-do sua materialidade, reduzindo a variedade existen-te a uma teia de relações entre idéias gerais, fixandoregras para um número infinito de fichas no tabladoaté tentar esgotar as combinações que bem podiamser infinitas.Mas então entram os escritores e substituem as fi-chas e o tablado abstrato por jogadores de xadrez:reis e rainhas com castelos, todos com um nome, umaforma particular e uma série de atributos próprios asua condição, real, eqüina, ou eclesiástica. Em vez

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de um simples tablado, desenvolvem poerentos cam-pos de batalha ou mares turbulentos. De maneira queas regras do jogo se transformam e a ordem que semanifesta é muito diferente à dos filósofos4.

Na mesma linha defendida por Calvino, pode ser menciona-do o escritor Milan Kundera, que também tem reservas quanto a umaaproximação de filosofia e literatura. Ele teme que a filosofia faça umuso moral indevido da literatura; que sejam feitas interpretações exter-nas dos textos desrespeitando aquilo que é específico do discurso lite-rário. Defende, desse modo, uma autonomia e, de alguma forma, temeque a literatura seja usada ou subordinada a outros fins que não sejamcondizentes com a sua forma própria de ver o mundo.

A defesa radical da “pureza” da literatura poderá tambémesquecer os vários modos de relações dos dois domínios de saberesem absoluto respeito a suas particularidades. Não enxerga, portanto,que é possível considerar uma modalidade de relação, tomando comocaso específico as dimensões literárias do saber filosófico, consideraros estilos diferentes, o uso da retórica, a utilização da metáfora bemcomo o “uso da narrativa como uma forma de construção do sentidoque pode ser comum a ambas as disciplinas ou gênero de discurso”5.Em todo caso, defender a “pureza” das duas formas de saberes é, naverdade, obstruir as vias normais por onde passam os fluxos do pen-samento que não se preocupa com a pureza ou impureza da forma,mas simplesmente com o poder passar e manter viva a força que asse-gura a sua possibilidade de ir e vir como passagem que não se deixareter nas vias pelas quais passa.

Da mesma forma que encontramos defensores da pureza dosdiscursos, encontramos também aqueles que desconfiam de tal pre-tensão e preferem não acentuar a separação da visão de realidadeoferecida pela reflexão filosófica e pela criação literária.

Aqueles que não defendem a radical separação, percebemcertamente que os domínios são diferentes, e isso é fundamental serdefendido, mas, enquanto diferentes tem muitos elementos que podemser partilhados num sistema de trocas que enriquecem e complementamas insuficiências de cada um. Reconhecem, portanto, que a literatura e

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a filosofia são duas linguagens que têm a capacidade de dizer a mesmarealidade. Cada uma diz a partir do que lhe é próprio e pode oferecera outra, aquilo que ela não capta por causa da determinação do seulugar de ver, que não lhe permite ver nem dizer o todo.

Essa perspectiva admite que é possível o intercâmbio e valo-riza as diferenças como algo de dimensões positivas. Seus defensorescertamente são convictos que existem atividades significativas nas duasformas de saberes que são fundamentais na construção de seus res-pectivos ideários, como por exemplo, a construção do sentido da re-alidade nas suas variadas dimensões. Não obstante, a radical diferen-ça que há entre eles, podemos mencionar como adeptos dessa pers-pectiva: a Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e Richard Rorty, ErnstTugendhat.

Chama-nos a atenção que os mencionados autores, de algu-ma forma, tenham uma sensibilidade para questões morais. Muito pro-vavelmente é válida para todos a idéia de que

defendem uma versão mais moderada da filosofiamoral como uma forma de reflexão que continua atradição crítica ilustrada mas que renunciaram as suaspretensões excessivas e que não só tem nada a per-der (ou que temer) ao aproximar-se da literatura,senão que teria que aproximar-se dela como umafonte importante de imagens, metáforas, e constru-ções do sentido da identidade dos sujeitos, de suascapacidades e tarefas, entre outros campos, da vidamoral6.

Esses autores, certamente, perceberam a necessidade de tra-tar as questões da moralidade na fronteira da filosofia, ou seja, abrindoo espaço da conceptualização filosófica para o âmbito da literatura, noqual também se verifica a experiência da moralidade. Podemos imagi-nar que uma das motivações que os levaram a tomar essa perspectivatenha sido a constatação de que muitas propostas de consideraçãomoral não passam de formulações abusivamente abstratas e por de-mais genéricas, o que não dá conta do concreto da experiência moral.Em outros termos, perceberam a possibilidade de tratar as questões

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morais instrumentadas com elementos que lhes permitem atingir o con-creto da vida em seu respectivo contexto. Assim, pensam poder apre-ender a realidade moral como algo complexo, mas concreto. Na basedessas intuições, está a constatação da insuficiência e, por conseguin-te, a crítica de um modelo de pensamento abstrato e generalizadorpara dar conta das circunstâncias e particularidades, que vivem os su-jeitos morais.

2 A posição de Alasdair MacIntyre

A percepção dessa insuficiência levou MacIntyre não somentea recusar o modelo como também propor uma alternativa metodológicacapaz de suprir as deficiências. É nessa perspectiva que podemos con-siderar que ele pensou na possibilidade de usar a narrativa com umrecurso próprio para abordar devidamente a experiência moral. Demodo mais particular propôs formular com propriedade, o conceitode “unidade da vida na teoria moral”. Para ele, é possível fundar a suaidéia de unidade de vida em evidências empíricas. Na formulação deMaria Herreira, sua proposta é apresentada nos seguintes termos:“Alastair MacIntyre propôs uma maneira de abordar este tema da “uni-dade da vida” na teoria moral. Seu argumento repousa, em parte, emdemonstrar que a concepção de unidade de vida que defende podeapoiar-se em evidências empíricas e apresenta, além disso, uma ima-gem coerente de nossas intuições sobre a vida moral”7. O fato de re-correr a literatura para compreender a experiência moral não significaque ele defenda um único sentido de unidade de vida que possa sertomado de forma genérica por qualquer teoria moral. Muito pelo con-trário, ele tem consciência da pluralidade de sentidos que foram plas-mando-se no tempo, conformando uma diversidade de “sentidos daidentidade pessoal”. Seria muito estranho que ele não tivesse a clarezadas diferenças de concepções explicitadas pelas correntes diversasque compõem o cenário da disputa pela validade de seus postuladosenquanto teorias morais.

A partir da diversidade de configurações de entendimentosquanto a teorias morais, impõe-se a necessidade de se estabelecer

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uma certa prioridade no pôr em relações determinados tipos de textosliterários com determinadas compreensões de filosofia moral. A ne-cessidade de se estabelecer uma escolha impõe, por outro lado, aimportância de se ter presente “o problema não resolvido da validadeda literatura como ‘evidência’ das experiências vital e moral”8. Poroutro lado, tem-se a necessidade de considerar a problemática da “re-latividade dos pontos de vista, a partir dos quais se tentam constru-ções de sentidos dos textos literários uma vez que eles levam a conclu-sões diferentes sobre as relações que queremos estabelecer: entre ex-periência de vida e consciência moral, e entre experiência de vida me-diada pela construção do texto literário e reconstruções do sentido daexperiência moral”9.

Ambas as questões são, de fato, muito intrigantes, mas a quetem uma ressonância maior para MacIntyre é a que diz respeito a rela-tividade. Pois a sua concepção de vida requer que se entendam osatos individuais no interior de uma circunstância configurada por váriosfatores e não de forma isolada. Portanto, quando se quer saber o sen-tido da ação de um determinado sujeito, tem-se que perguntar: “quem,como e para quê”. Essas ações estão situadas numa teia de relações.O fator complicador está no fato de a narrativa poder ser lida de váriasmaneiras, o que redunda na possibilidade da formulação de vários sen-tidos. E aí, como fica a sua pretensão de unidade de vida? A sua alter-nativa é considerar que há uma tradição de pensamento moral quepode ser considerada superior em relação as outras.

No que concerne à concepção de unidade, poderíamos acen-tuar alguns elementos que nos parecem relevantes do ponto de vistamoral. Podemos acentuar a importância que ele dá à idéia de respon-sabilidade moral necessariamente vinculada à de continuidade física deum sujeito ligado a um corpo material. Corpo esse que pode, por suavez, ser membro de comunidades diferentes, desde a qual age e conecta-se com os outros sujeitos no decorrer da vida. Ora, a exigência deresponsabilidade por ações somente é consequente se se funda nacerteza da identidade do seu autor. Caso não se verifique a coincidên-cia da identidade do autor da ação e a cobrança da responsabilidade,cometem-se equívocos. Outro elemento significativo de sua concep-ção é: “o entender a continuidade de vida como um ordenamento

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teleológico dirigido pela busca do bem ou verdade dessa vida comouma totalidade”10. A questão aqui não é afirmar a paridade da unidadeda vida com a narrativa, mas supor que a referida continuidade sefunda, de alguma forma, num horizonte metafísico. Podemos mencio-nar ainda, a defesa de uma estabilidade dos atributos pessoais e comosustentáculo uma “estabilidade na estrutura de crenças e valores dascomunidades de referência”11. É importante salientarmos que a idéiade comunidade tem uma importância fundamental no pensamento deMacIntyre. Ela pode ser considerada como uma espécie de a prioripara podermos entender as formas de vivências reais e, portanto, con-dição necessária para se ter uma inteligibilidade da existência damoralidade. Neste particular, diz Maria Herreira:

... a idéia de comunidade como suporte de umatradição, quer dizer, de uma estrutura decrenças, valores e práticas coerentes erelativamente constante, serve não só decondição de inteligibilidade às crenças epráticas morais mas também se faz presentena comunidade mesma de sua existência, emsua capacidade de permanecer no tempo, navitalidade e produtividade de suas crenças (nasua força motivadora) como uma prova de seuvalor intrínseco12.

Mesmo que não se faça a defesa do caráter auto-evidentedo conceito de “unidade da vida”, pode-se reconhecer que as basesde apoio das intuições de MacIntyre encontram suporte nas crençasconsolidadas e têm sustentação tanto na tradição da literatura comoem outras construções simbólicas da experiência cultural. No entanto,é visível, nas sugestões de MacIntyre, a recorrência a instâncias sepa-radas dos atos que servem de parâmetros avaliativos dos própriosatos. Nessa recorrência a uma dimensão que transcendente as condi-ções dos próprios sujeitos dos atos, podemos atribuir um caráterdogmático às suas considerações. A idéia do bem, que certamente foitomada do ideário aristotélico, constitui essa instância avaliativa dasações morais. A partir dessa idéia do bem é que se poderia entrar na

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aventura da descoberta de um sentido para a ação moral. No nossomodo de entender, é a essa recorrência que se contrapõe MariaHerreira quando afirma: “essa idéia de unidade de vida que pode seravaliada desde uma concepção do bem moral que transcende as deci-sões existenciais dos sujeitos e suas concepções particulares, contémum elemento dogmático”13. De fato, a instituição de um âmbito fora dadinâmica interna do próprio sujeito que age, como referencial para aconstituição da identidade da vida de um indivíduo como um todo,leva-nos a supor que essa instância tem um caráter verdadeiramentesuperior. Dessa forma, a compreensão da totalidade da vida só acon-teceria, de modo satisfatório, na suposição de que é possível chegar aessa verdade referencial. Essa verdade, portanto, teria um carátertranscendental. Afirma Herrera : “O que MacIntyre postula é encon-trar uma verdade transcendente e só frente a ela se poderia medir, emúltima instância, tanto a validade das doutrinas morais, como o valordos atos individuais na busca dessa verdade”14.

A perspectiva de compreensão assumida pela autora é que arecorrência a uma dimensão metafísica ultrapassa os domínios nos quaismovem os suportes de coerência da idéia de “unidade de vida” defen-dida por MacIntyre. Em outros termos, ele atribuiria uma tarefa aotexto literário que está, para além de suas condições, um suposto cum-primento: “A tarefa que MacIntyre atribui à narrativa na defesa de umadoutrina moral específica resulta excessiva”15. Portanto, para ela, aconcepção de “unidade de vida”, como um possível sentido do tododa experiência de vida não implica assumir uma idéia de verdade trans-cendente e que é possível pensar numa outra perspectiva, ou seja, aprópria idéia de totalidade: “podemos pensar nessa totalidade comouma construção contingente, falível e, por conseguinte, aberta a revi-sões e questionamentos”16. Essa última perspectiva de pensamento,condiz melhor, ao concreto da experiência de vida e está mais de acordocom as condições que a literatura pode apresentar. De qualquer ma-neira, no momento em que se assume uma compreensão de totalidadecomo algo contingente, falível e, portanto, algo aberto, assume-se, porconseguinte, a condição de historicidade. Isso implica entender que aexperiência moral possível ocorrerá nos fluxos e contrafluxos dos pro-cessos que se verificam como algo sempre flexível. O contexto que o

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próprio MacIntyre reivindica para situar a experiência moral no mo-mento que é tomado como referência, para se compreender o sentidoda vida, tem que levar em conta o seu caráter de complexidade, dadojustamente pelas variáveis de flexibilidade que a realidade mesma com-porta. Em outras palavras, a inteligibilidade do sentido da experiênciamoral numa perspectiva de unidade, tem que ser entendida nas cir-cunstâncias de complexidade que são marcadas por dúvidas, perple-xidades e contradições.

Parece-nos que as considerações críticas que a autora faz àproposta de MacIntyre reside no fato de ele ancorar sua propostanum sentido de transcendência/dogmatismo e não se dar conta da di-mensão propriamente literária da narrativa que ele se propõe conside-rar na explicitação da realidade moral. Ela reclama uma espécie de usoimpróprio ou limitado que ele faz da literatura e, com isso, não conse-gue afastar-se de uma consideração tradicional da filosofia. Por isso,ela é enfática em dizer: “... MacIntyre não considera os aspectos lite-rários da narrativa nem pensa que esta constitua uma linguagem ouforma de descrição diferente da linguagem filosófica tradicional”17.

Se a crítica, por um lado, tem razão em reclamar dainadequação ou limite, do uso da literatura por parte de MacIntyre,por outro tem que reconhecer a diferença da sua postura de aberturapara uma possível relação proveitosa, em relação a outras posturasque radicalizam as diferenças e autonomias de ambas. É preciso, tam-bém, atentarmos para o fato de que se ele não conseguiu dar conta dadimensão literária da narrativa como recurso adequado para constituiro sentido da unidade da vida nas ações morais, isso não quer dizer queele defenda a moralidade como algo exclusivo da investigação da filo-sofia. Muito pelo contrário, assim como ele foi propenso a uma apro-ximação com a literatura como um âmbito possível de investigação eexplicitação da moral, também entende que ela ultrapassa os limites dafilosofia e se estenda a outros domínios. Nesse sentido, ele tem afirma-ções límpidas:

Quando falo de investigação moral, me refiro a algomais amplo do que se entende convencionalmente,ao menos nas universidades americanas, por filoso-fia moral, posto que a investigação moral se estende

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a questões históricas, literárias, antropológicas e so-ciológicas18.

Portanto, se a sua habilidade não nos convence da justiça dotrato da narrativa no que ela tem de especificamente literário, pelomenos se esforça para expor uma abertura de possibilidade deinterdisciplinaridade no trato de questões morais.

3 Martha Nussbaum: ética de novela impossível

Os intentos de aproximação da polêmica questão damoralidade e o âmbito da literatura tem várias vertentes, como anunci-amos antes, no interior da História da Filosofia. No pensamento con-temporâneo, poderíamos elencar uma enormidade de nomes e pontu-ar questões específicas de seus respectivos interesses. Um mapeamentodessas vertentes, com certeza, tornaria visível o complexo de questõese posições divergentes no trato de questões idênticas. Nos limites denossa pretensão, ou melhor, a título de exemplificação, poderíamosinvocar o nome de Martha Nussbaum e expor as suas contribuiçõesna configuração do mapa da relação filosofia e literatura. Não obstanteo caráter redutivo da nossa impressão, podemos dizer que a sua obraé um modelo exemplar da relação filosofia e literatura, no pensamentocontemporâneo, particularmente, a sua contribuição na questão daexperiência moral.

Numa perspectiva bastante diversa da de MacIntyre, comovimos antes, Nussbaum também admite que “a linguagem expressivadas narrações literárias é particularmente adequada para descrever aexperiência moral”19. Não seria a literatura apenas uma modalidadepossível da descrição do fenômeno da moralidade, mas um modo ade-quado autenticamente para esse fim. Na sua maneira de compreendera literatura, aparece uma dimensão de especificidade que lhe é própriapara anunciar questão da vida moral não perceptíveis por outras vias.Ou seja, as questões já tradicionais do racionalismo formalista egeneralizador deixam na sombra dimensões da experiência moral, quesomente a literatura é capaz de torná-la visível. Ela tem presente, demaneira muito forte, que as investigações do fenômeno moral, uma vez

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empreendidas a partir de uma perspectiva racionalista que se pretendepromover uma precisão conceitual na forma da universalidade, deixaas particularidades da experiência inatingíveis. Ora, como já é bemsabido, o que se chamou de filosofia moral na tradição da filosofiasempre foi formulada nos parâmetros da racionalidade objetivante eabstrata. A constituição de princípios generalizadores, postos comocabides ancoradores das práticas particulares, tiveram, de certa for-ma, a hegemonia nas considerações da filosofia moral. O domínio daracionalidade conceitual fundada na coerência lógica e na pretensãode objetividade, nas considerações de Nussbaum, não conseguempenetrar nas regiões de profundidade que tem a experiência humana,onde acontece a trama da vida moral.

A partir da intuição da insuficiência do racionalismo abstratoe universalista, ela propõe uma alternativa. A literatura, na sua particu-laridade de gênero, como a novela, pode ser uma alternativa com con-dições de atingir o âmago da realidade moral. Não se trata de instituira novela como uma disciplina a mais nas investigações da moralidade.Trata-se de implementar um recurso capaz de atingir a complexidadeda trama da moralidade que acontece na enigmática tessitura do hu-mano. A novela, segundo ela, tem a capacidade de chegar ao humanotentando vislumbrar um sentido de vida e de ação que se concretizamnum emaranhado de relações que escapam a uma pretensãosimplificadora como a razão conceitual.

O humano além de sua materialidade corpórea, de sua formali-dade abstrata de pensar, é também sonho, desejo, fantasia, imaginação,crenças; elementos esses que se configuram de forma entrelaçada na vidaconcreta de cada ser humano. E, por conseguinte, são elementos que es-tão presentes de forma determinante nos fluxos e contrafluxos das dinâmi-cas da moralidade. Para ela a novela é apropriada para acercar-se dessarealidade e dar-lhe uma expressão mais consequente. A vida, enquantoacontecer essencialmente prático, que se constitui no fluir da experiênciade si mesmo, da natureza e das relações com os outros, é um corpo espe-cífico onde a novela pode interferir, reforçando e exprimindo a experiênciamesma de vida. A novela, portanto, entra na dinâmica do acontecimentoda vida fazendo perguntas e oferecendo respostas conforme as ocorrênci-as concretas da experiência humana.

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É impressionante a reflexão que Nussbaum faz da força daimaginação literária na vida das pessoas em sua dimensão coletiva nasociedade contemporânea. O próprio sentido de coletividade podeser, segundo ela, constituído, adequadamente, a partir da literatura,sobretudo a novela. Na clara intenção de combater a perspectiva deinteligibilidade do utilitarismo, ela afirma, num artigo cujo título já é aexpressão da sua posição, “a imaginação literária na vida pública”, oseguinte:

A literatura e a imaginação literária podem ter umefeito subversivo frente à idéia de racionalidade ex-pressa habitualmente pela ciência econômicautilitarista. Por isso a literatura deve formar parte deuma educação a favor de uma idéia de racionalidadepública mais ampla que a idéia de indivíduo comomaximizador de utilidades. Através da análise da no-vela de Dickens ‘Tempos difíceis’, se chega à con-clusão de que só a imaginação proporcionada pelasnovelas – e não pelos livros de economia política –pode ser a base para governar adequadamente umpaís de pessoas livres e iguais ou para desenvolvernossa vida cotidiana como cidadãos20.

O texto é de uma riqueza extraordinária e, por conseguinte,pode ser realçado em múltiplos aspectos. Chama-nos a atenção, demodo especial, a idéia de imaginação como um componente capaz deinterferir na configuração de uma forma de racionalidade. Racionalidadeque ela contrapõe à outra por seu caráter objetivante. Como aponta-mos antes, a sua proposta visa a resgatar uma compreensão deracionalidade compatível com a “natureza” diferenciada do humano,que, evidentemente, está para além do meramente “coisico” damaterialidade econômica. Essa dimensão objetiva que prima pela exa-tidão lógica exprime devidamente as realidades quantitativas, umas fi-cam muito longe de atingir o sentido antropológico do humano.

O diagnóstico que a autora faz da sociedade contemporâneatem, a nosso ver, a intenção de denunciar exatamente a ausência dadimensão qualitativa, que nunca aparecem nos quadros da racionalidade

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da lógica de quantificação. A essa carência ela se refere dizendo: “Navida política de nossos dias, com frequência carecemos da capacida-de para vermos uns aos outros como inteiramente humanos, comoalgo mais que sonhos e defeitos”21.

A sua reivindicação tem, a nosso ver, a vantagem de trazerpara o centro das preocupações a possibilidade de uma aproximaçãoao humano diluído nas dispersas engrenagens da sociedade que primapelo esfacelamento e anonimato. Ela sugere que pensemos na socie-dade como um conjunto de relações produzidas pelas pessoas, cadauma com sua particularidade, e não como uma multiplicidade de peçasde uma máquina que funciona em harmonia. Na verdade, um olharsobre o conjunto daquilo que as ciências sociais podem conceituarcomo “o social”, a “sociedade”, com as suas múltiplas instituições,tem, na sua base, não estruturas conceituais ou objetos duradouros notempo, mas particularidades pessoais com nome, cor, etnia, sexo, pre-ferências, desejos, esperanças, frustrações; cada uma com a sua ca-pacidade diferenciada de dizer sim e não a si mesmos e às coisas queelas constroem. Todas partilhando as dores, os sofrimentos, as mor-tes, os movimentos e, acima de tudo, a certeza de que são distintos doferro, do aço, da água, dos deuses, etc.

No meio dessa multiplicidade de diferenças, elas reconhe-cem que cada uma tem o mesmo olhar diferente em comum. E justa-mente por causa da diferença que cada um tem no olhar, emerge acapacidade de ver a necessidade e ser visto na sua diferença. Assim, amultiplicidade dos olhos refletem os horizontes inabarcáveis do huma-no que se recusa a ser reconhecido como uma peça eminente de umamáquina anônima que funciona perfeitamente.

Desde essa perspectiva, a pergunta o que é o ser humano seapresenta imprópria, porque já o insere nos horizontes das coisas e nadimensão da generalidade. Ao invés de o que, é mais condizente per-guntar quem é, e ter presente que, quaisquer que sejam as respostas,ficam muito a quem de dizer o seu verdadeiro sentido, que permanecevivo e inapreendido no olhar que enxerga e se ofusca, na voz que gritae cala, no ouvido que ouve e ribomba, no cérebro que pensa e esque-ce, no corpo que se faz presença e ausência de si mesmo e dos outros,um sinal que apenas indica uma direção mas não mostra nenhum pon-

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to; sentido que se sente humano, que se pensa humano, que se fazhumano, nunca uma tecnologia de conceitos humanos.

Nussbaum tem presente a riqueza das tecnologias daracionalidade que são capazes de inventar formas de literatura que sepõem a serviço da própria racionalidade técnica, reforçando as políti-cas dos “homens coisas”, reproduzindo, de formas variadas, a pobre-za da intuição que acredita que “é sempre bom mais do mesmo”22. Osquadros conceituais, com muita competência, criam e recriam recur-sos de manipulação da realidade e conseguem apresentá-las ampla-mente, como “novas alternativas de compreensões”, sem nunca sedarem conta do ridículo de sua farsa. É assim que as denominadas“novas racionalidades” apresentam, em novos embrulhos, o seu con-teúdo do mesmo, que elas não conseguem dispensar. Não queremosdizer com isso que ela faça uma opção pela literatura como fonte daimaginação que necessariamente tem que opor-se à racionalidade. Asua oposição é a um certo tipo de racionalidade que se apresenta comoverdade total e não se dá conta de suas insuficiências e sua presteza`as manipulações, sobretudo, a dimensão do humano. Muito pelocontrário, ela mesma esclarece: “... a narração de histórias e a imagi-nação literária não se opõem à discussão racional, senão que podemproporcionar ingredientes essenciais para a dita discussão racional”23.

É importante essa consideração, para não cairmos na tenta-ção de nos envolvermos em polos de reducionismos, ou fazermos adefesa da irracionalidade pura e simples como certas linhas deesteticismo, como acusa Carlos Pereda. Trata-se de reconhecer quehá racionalidades diferentes que podem dialogar entre si ou igualarem-se. No caso de nossa autora, aqui, como ficou bem explícito em suaspróprias palavras, trata-se de possibilidades de discursos que podemdiscutir, de forma produtiva e, portanto, enriquecedora, numa pers-pectiva de complementariedade. Todavia, ficou bem claro que a formade racionalidade defendida pelo utilitarismo economicista é recusadotaxativamente.

As razões da recusa já foram de alguma maneira apontadas,mas, é preciso pontua-las cuidadosamente, porque elas evidenciammelhor os contornos da proposta defendida pela autora.

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Pensamos que é possível lançarmos luzes sobre as razõesdas críticas ao “utilitarismo econômico”, justificando o poder da imagi-nação literária, sobretudo a novela, na dinâmica do viver em socieda-de. Podemos tomar como ponto de partida a formulação da própriaautora das seguintes questões: “Porque novela?” Ela mesma diversifi-ca a pergunta: “por que novela e não outras formas de narrativas comohistórias, biografias, sinfonias, filmes, tragédias, comédias ou poemaslíricos?” Antes de deter-se na resposta às questões que se põe, fazuma interessante colocação bem precisa a respeito de porque novela enão histórias, fazendo uma evocação a Aristóteles. Considerando quea questão que lhe importa é a “capacidade de imaginar o que é viver avida de outra pessoa ela evoca Aristóteles e responde a pergunta:

...minha resposta a pergunta da história – sai direta-mente de Aristóteles. A arte literária simplesmentenos mostra ‘o que ocorreu’, enquanto que as obrasde artes literárias nos mostram ‘as coisas do modocomo poderiam ter ocorrido na vida humana. Em ou-tras palavras, a história simplesmente registra o quede fato ocorreu, quer represente ou não uma possibi-lidade geral para as vidas humanas’24.

A diferença radical que aparece na sua resposta está entre aobjetividade e a possibilidade da imaginação. A objetividade do fatoocorrido já é dado, é irreversível. Ao passo que a possibilidade é umaabertura à concretude. Evoca vontades, decisões, desejos, determi-nações. Aqui podemos vislumbrar a implicação da literatura e na vidamoral. A narração da história, ao apresentar o ocorrido, pode exibir ossujeitos dos fatos como sujeitos mortos, enquanto a literatura apontapara o possível, podemos imaginar como plausível os agentes comosujeitos vivos, provocados simplesmente pelo desafio de pensar e de-cidir agir. Se não nos equivocamos, aqui está um dos elementos dejustificação da literatura como via possível de influência na vida daspessoas como indivíduos enquanto sujeitos de relações coletivas. Aatuação no âmbito do possível suscita a ideia de que são os humanosos instituidores das possibilidades dos sentidos mesmos e das configu-rações concretas da vida pública. A dimensão do possível, portanto,aparece como uma questão central na sua compreensão:

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A literatura se centra no possível, convidando a seusleitores a perguntar-se sobre si mesmos. Ao contrá-rio da maioria das obras históricas, as obras literáriasconvidam a seus leitores a pôr-se no lugar de agen-tes de muitos diversos tipos e a assumir suas experi-ências25.

Explicita-se com isso que as potencialidades da imaginaçãosão acionadas justamente quando se tem uma abertura para o possí-vel. Imaginar que as determinações da vida cotidiana não são resíduoscongelados pela natureza, nem apenas efeitos de forças externas, mui-tas vezes fantasmagóricas, é de fato sentir a existência como uma tare-fa da qual não podemos nos livrar. A existência se descobre assim,como algo dado num movimento permanente que a cada instante evo-ca a tomada de decisão sobre ela mesma. Isso tem, como consequência,tornar todas aqueles que se sentem existentes chamados a assumir a simesmos e tudo o que se refere a sua condição de ser relacional. Avida, portanto, torna-se um encargo do qual o indivíduo não podeconstituir substitutos.

O fato de cada um ter que viver a sua vida abre horizonteséticos fundamentais, no que diz respeito à liberdade e à responsabili-dade. São horizontes estes que dizem respeito a cada indivíduo en-quanto ente particular e aos múltiplos outros de seus circuitos de rela-ções. Na obrigatoriedade de ter de “assumir suas experiências” é quese faz primordial o poder da imaginação. Não como algo que vempara as experiências, mas como algo que se origina na experienciamesma, abrindo brechas para elementos novos. Ela acontece à medi-da que cada vivente leva a sério a experiência de ir vivendo a vidanaquilo que ela vai exibindo de prazeroso ou horroroso, de desejávelou detestável. Como ideal ético desejável é a “vida boa”, que vemdesde os gregos, a tomada de consciência dos instantes que se vive vaiidentificando o desagradável e indesejável, e já fazendo emergir a ima-ginação na elaboração de uma alternativa. Elaborar alternativas impli-ca necessariamente na imaginação. Envolve de certo, o conjunto dasdisposições de sonhar, desejar. Exatamente dimensões da vida que searticulam mais propriamente com as emoções. É justamente essa di-mensão que entra no interesse de Nussbaum enquanto contributo à

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vida pública. Diz ela: “As emoções e a imaginação do leitor, emconsequência, permanecem ativos, e é a natureza dessa atividade esua relevância para o pensamento o que me interessa”26.

A novela, nesta perspectiva, cria um elo de relações entrepersonagem e leitor a ponto de influir nas emoções e sentimentos quemarcam a sua maneira de agir concretamente. Por causa desse relaci-onamento que acontece entre leitor e personagem, suscitando esseúltimo as reações, é que Nussbaum, percebe a novela como um gêne-ro vivo. É claro que ela reconhece que outros meios como música,filme, e outros gêneros de literatura também provocam as emoções eoutras formas de expressões, mas a novela tem a sua preferência, tal-vez por causa do potencial de força viva: “... a questão porque novelae não outros gêneros: porque a novela é, desde meu ponto de vista,uma forma viva”27.

O fato de ser a novela o que ela chama de “forma viva” adiferencia de outros gêneros; portanto, tem a sua preferência. A nove-la, assim, apresenta-se como algo bem concreto, que segue as varia-ções das manifestações diferenciadas da vida mesma. Essa caracterís-tica é muito importante, porque permite articular devidamente as gene-ralidades e as particularidades conforme vão acontecendo na experi-ência de cada um. Essa concretude da novela é marca específica queela não reconhece em outros gêneros: “A novela é concreta até umponto com frequência sem paralelo com outros gêneros”28. Isso podeexplicar, por outro lado, o predomínio que tem a novela nas culturascontemporâneas. Não é o puro fato de ser concreta, mas a capacida-de de trabalhar o que ocorre na vida das pessoas. Vida essa que,como já dissemos antes, não acontece somente como materialidadede atos, fatos e situações, mas também como sonho, fantasia, desejos,etc. Nisso nossa autora tem muita clareza:

a interação entre aspirações gerais humanas e for-mas particulares de vida social que ou bem permitemou bem impedem suas aspirações, e que conformampoderosamente no processo. As novelas (pelo me-nos as novelas realistas...) apresentam formas per-sistentes de necessidades e desejos humanos, talcomo ocorrem em situações sociais concretas29.

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Podemos supor que a novela apresenta situações que sãobem diferentes das vividas pelos seus leitores (ouvintes), mas, sobre-tudo, situações que entram no imaginário e corresponde a desejos, elafigura como um contra modelo a sua própria situação. É nesse sentidoque a sintonia entre personagem e leitor pode desencadear, no último,um processo de atividade conforme suas convicções. No nosso modode ver, aqui está um dos núcleos fundamentais da problemática damoralidade: a sua importância para a vida coletiva. A excelência danovela está, para Martha Nussbaum, exatamente nesta dinâmica comoparte constitutiva:

Este ir e vir entre o geral e o concreto está construídona estrutura mesma do gênero. Desse modo, a nove-la elabora um paradigma de um estilo de raciocínioético que é específico a respeito do contexto, semchegar a ser relativista, no qual obtemos prescriçõesconcretas; potencialmente universalíveis ao transfor-mar uma idéia geral de prosperidade humana em si-tuação concreta30.

É preciso termos em mente a importância do modelo, comojá nos referimos, principalmente quando eles dizem respeito à vidacoletiva. A ideia de imaginação pública, está de alguma maneira, vincu-lada à possibilidade de modelos plausíveis. Principalmente a modelosque configurem uma vida pública correspondente aos desejos de umasociedade onde a vida humana seja o critério fundante e, portanto, oelemento articulador das dimensões da economia, da política das ins-tituições administrativas, etc. Vemos, portanto, que, na perspectiva dea autora apresentar a novela, é possível se realçarem vários elementos,que não somente constituem críticas a modelos fundados nas lógicasracionalista e tecnicista, mas apontar também para a necessidade oupossibilidade de desenvolvermos formas criativas de considerar a vidaem sociedade. Na verdade, trata-se de levar a sério a capacidade quetodo ser humano tem de inventar, de projetar, de transcender os dadosdo real e a si mesmo.

As considerações feitas acima justificam, suficientemente,segundo nosso modo de ver, o porquê de novelas e não outro gênero.

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Não somente o porquê, mas, de alguma forma, que novelas, pois vi-mos que, na visão da autora, a própria estrutura da novela propicia ainteração entre leitor e personagem pela capacidade de provocar rea-ções ou produzir no leitor um efeito que o põe em atividade, por issomesmo pode constituir-se um magnífico elemento de interferência navida pública que pode muito bem conformar-se com uma vida públicacidadã. É claro que não são todas as novelas que têm essa estrutura deinteração voltada para questões da vida coletiva, sobretudo no queconcerne ao poder, à questão econômica, a questões sociais. Ela fazquestão de pontuar que há novelas que se prestam mais e outras me-nos para implementar um processo criativo e fazer emergir a imagina-ção capaz de determinar comportamentos morais. No texto que estamosconsiderando, por exemplo, ela toma como modelos uma novela in-glesa de Charles Dickens, “Tempos Difíceis”. Para ela, não obstante,as reservas que faz, na novela de C. Dikens, aparecem de forma signi-ficativa as questões que levantamos e, sobretudo, “considerações va-liosas sobre o poder da imaginação em política; considerações queestão relacionadas com a riqueza metafórica e linguística da novela”31.Isso não quer dizer que ela defenda a novela como o veículo capaz deoferecer soluções para todos os aspectos da vida privada e da vidapública. Conforme já nos referimos, a novela oferece possibilidadesde concretização de determinadas convicções. Por isso não podemosimaginar que ela sugere a novela como solução para tudo. Nesse sen-tido, é importante estarmos atentos para o que ela diz: “a leitura denovelas não nos proporcionará uma visão completa da justiça social,mas pode servir como ponte entre uma visão da justiça e a realizaçãosocial de tal visão”32.

Ora, se tomássemos como elemento articulador, de uma de-terminada sociedade, a justiça, e, a partir dela, refletíssemos o queimplicaria termos concretos a sua efetivação, veríamos que várias facetasseriam evocadas. Poderíamos perguntar-nos como a novela poderiaparticipar de forma contundente nessa discussão. Pelo que já foi ex-posto, poderíamos dizer que um elemento de alta importância seriagarantir a presença da própria idéia de justiça no nível do concreto quese vive. Haveria o deslocamento do nível de abstração intelectual parao terreno da experiência. Aqui, neste nível, ela perderia a sua feição de

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“conceito”, que se adequa à inteligibilidade, rigorosamente lógicas eentraria numa dimensão mais de vibrações emotivas. Entraria nos so-nhos, nas fantasias das pessoas como sentimentos de nobreza que pro-duz prazer a cada vez que se sente. Em segundo lugar, poderíamospensar que haveria a descoberta de que a justiça concerne a todos osviventes que se fazem perceber na ocupação de um espaço determi-nado enquanto indivíduo particular e que tem em comum com os ou-tros indivíduos a pertença a uma teia de relações delimitados tambémpor espaços determinados. Haveria uma justiça da qual alguém fossecapaz de dizer: eu senti a justiça. Ou eu fiz a justiça. Até mesmo dar anotícia: fulano ou cicrano, José ou Maria praticou a justiça. Ela assumi-ria uma feição de efetividade, de concretude que alguém poderia, afi-nal, dizer: sou testemunha por viver uma experiência de justiça. Seriaentão uma justiça de todos, para todos e que se concretiza em e comalguém. E não uma justiça que é para todos e não atinge ninguém.

Haveria evidentemente instâncias de operacionalização dajustiça, mas não seriam reconhecidas como portadoras ou responsá-veis por ela. Ou seja, todos individual e institucionalmente, seriam seussujeitos e seus beneficiados. Ela estaria como dimensão constitutiva davida de modo imprescindível e não como um aspecto regular de con-flitos ocasionais. Talvez até pudesse perder o seus status de virtude eprincípio que lhe foi conferido até hoje na tradição do Ocidente. Po-deria até ser desvinculada dos códigos de leis que impõem suaobrigatoriedade formal para uns em detrimento de outros. Tambémpoderia perder seu caráter lógico, seu nome de invocação, seu símbo-lo de balança. Ela poderia até perder sua identidade, ser invisível e nãodita, mas viva na atuação, no testemunho e na imaginação de quemtem a possibilidade de “julgar, legislar”, gerir os “bens públicos, ensi-nar, noticiar, cantar, dramatizar, poetar, pintar-viver a “vida em carne eosso”.

Pensada nessa perspectiva, a justiça seria bem mais condi-zente com uma imaginação que pensa o conjunto da vida como umacontemplação estética do que com os tratados jurídicos e ético-políti-cos. Seria uma espécie de fome que o alimento não sacia e não háreparação de quem cometeu uma infração qualquer; seria mais umsonho que se partilha acordado, do que o desabafo aliviado de quem

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diz: o culpado foi punido, fez-se justiça. Uma vida pública modeladapor uma forma de percepção de justiça como a sugerida, provavel-mente anuncia uma outra compreensão de racionalidade como a quejá apontamos. Principalmente a tão cara racionalidade da ciência mo-derna que prima pela objetividade, a quantificação e a exatidão mate-mática. E, por conseguinte, rejeita toda dimensão do subjetivo, doqualitativo e do inexato. Essa forma de racionalidade científica é re-presentada no texto pelo personagem Tomas Gradgrind, que Nussbauncapta nos seguintes termos:

Tomas Gradgrind, senhor. Um homem de realidades.Um homem de fato e de cálculos. Um homem queprocede mediante o princípio de que dois e dois sãoquatro, e nada mais, e ao qual não deve-se tentarconvencer de que pode haver algo mais. TomásGradgrind senhor; sim, senhor-peremptoriamenteTomás-Tomás Grandgrind. Com uma regra na mãoe uma par de balanças, e a tabuada de multiplicarsempre sempre em seu bolso; sim, senhor; prontopara pesar e medir qualquer pedaço de natureza hu-mana e dizer-lhe exatamente a que se reduz. É umamera questão de números, um caso de simples arit-mética33.

Dessa breve descrição que ela faz da figura de TomasGrandgrind como representante da concepção de racionalidade queC. Dickens quer combater, evidenciam-se alguns elementos que me-recem uma consideração pela força que têm na determinação do sen-tido da realidade. Ser um homem de fato, de calcular, que procede porprincípios, aponta para a quantificação que pode ter medidas exatas.Assim, todo o que pode ser medido entra como um ente semelhante; ocaráter de unicidade e diferença se esvai. No caso da quantificação danatureza humana, ela se objetiva e perde a sua diferença de ser subje-tivo, entra na generalidade da abstração e passa a ser uma quantidadeabstrata muito geral. A autonomia que cada pessoa tem e que nãopode entrar numa generalização quantitativa dispõe a diferença huma-na ao manuseio dos úteis. O sentido das relações que cada indivíduo

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estabelece com os seus próximos se perde no anonimato da abstraçãodo dado matemático. Segundo Nussbaum:

O indivíduo não chega sequer a ser tão único comoum inseto, já que o cálculo do senhor Gradgrind seconverte em simples ‘imput’ dentro de uma comple-xa operação matemática, que trata a unidade socialcomo um único sistema, onde as preferências e sa-tisfações de todos se combinam e fundem34.

Essa forma de racionalidade aplica-se facilmente no mundoda economia e até da política. Encontra muito facilmente as soluçõesexatas para os problemas humanos, que foram cuidadosamente cata-logados e somados. As soluções se avizinharam com clareza, de modoque se pode contar quantos são os problemas, quanto tempo têm,quantas consequências podem ter, quantas pessoas são necessáriaspara resolvê-las, quanto custa exatamente. Tudo se resolve pelas me-didas, pelas quantidades calculadas. Tudo tem solução. É uma ques-tão de encontrar a medida certa. Até para o desespero de alguém queentra em profundos prantos num momento de extrema instabilidadeesse modo de proceder vê as medidas. Temos o exemplo da filha doSenhor Gradgrind que aos prantos lhe diz:

“Pai, descobri que a vida é muito curta”. Ele respon-de: “sem dúvida é curta, minha querida. Porém estácomprovado que a duração média da vida humanafoi incrementada nos últimos anos. Os cálculos devárias companhias de seguro e caixas de pensão,entre outros cálculos que não podem equivocar-se,notou este fato. “Eu falo de minha própria vida, pai”.“Ah! Sim? Pois ainda assim, respondeu o senhorGradgrind, “não preciso assinalar-te Louisa, que [tuavida] está governada pelas mesmas leis que gover-nam as vidas em seu conjunto”35.

Esse modo de pensar, com certeza, não consegue enxergardimensões da vida como a dor, o sofrimento, a tristeza, as alegrias, asesperanças, os desejos e sonhos que, misteriosamente, plasmam mo-

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dos de vida. É, portanto, um pensar que até pode dizer muito bem assuperfícies da vida como aparece, mas nunca tem acesso a interioridadena forma como acontece. Pesar e “medir os pedaços” da vida humanaficam longe do olhar desinteressado daqueles que enxergam os risosdas crianças que esperam manter-se vivas no dia seguinte, ver o voardas pipas e dizer: que lindo! Não passa perto do sentimento daquelesque veem pessoas disputando lixeiras com os insetos e são capazes dedizer: que horror. Jamais entenderão a infinitude da confiança daquelesque, a cada dia, sentem náusea de ver mais um morto pelas ruas vítimada violência, mas seguem acreditando: viver tranquilamente é possível.

A dimensão do interior do humano fica, pois, invisível aracionalidade que reduz tudo ao cálculo. Recomenda-se como bomprocedimento de rigor manter-se bem distante das dimensões subjeti-vas, pois elas são enganadoras, dão-nos somente aparências, levam-nos ao relativismo, ao erro. O que concerne ao mundo da vida quenão entra no cálculo matemático deve ser visto, portanto, como sus-peito. O que essa racionalidade objetiva, genérica abstrata,quantificadora, uniformizadora das diferenças, com soluções exataspara tudo não enxerga é que os olhos com os quais vê a realidadenunca poderão ver o brilho do olhar de alguém que transborda dealegria; nunca, sequer, poderá desconfiar que a lágrima que inunda orosto de alguém poderá ser expressão de uma dor profunda. Paraessas dimensões do humano, os fazeres científico e filosófico são semsujeito humano. Se, por acaso, puder ser chamado de humano ou éoutro, ou tem deformações graves, pois não sente, não ouve, não cho-ra, não vê. O que anunciam como “visão de” não passa pelo olho quevê o misterioso da vida humana. A essa cegueira que a novela emquestão quer denunciar ela diz:

Mas a novela nos mostra que, em sua determinaçãopor ver o que cabe nos cálculos utilitários, a menteeconômica está cega: cega ante a riqueza qualitativado mundo perceptível; cega a respeito daseparatividade de seus agentes, as suas mais íntimasprofundidades, nas esperanças, seus amores e seusmedos; cega ante tudo o que supõe viver uma vidahumana e tratar de conferir-lhe um significado hu-

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mano. Cega, por cima de tudo, ao fato de que a vidahumana é algo misterioso e às vezes insondável; algoque exige ser tratado com faculdades mentais e re-cursos da linguagem que sejam adequados a expres-são dessa complexidade36.

Parece-nos que o que foi posto acima retoma e resume, ade-quadamente, o núcleo das considerações da autora quanto à novelacomo instância criadora de uma possível imaginação que pode ser al-ternativa à racionalidade científica. Sobretudo, para orientar práticasconcretas de condutas morais e formas de vida pública. Não se trata,como mencionamos antes, de fazer simplesmente a crítica àracionalidade científica – que é bem apropriada pela ciências particu-lares como a economia e a política –, mas apontar para uma insuficiên-cia e mesmo uma impropriedade para tratar dimensões antropológicasdo humano. A novela, portanto, não é apresentada como substitutalegítima e nova forma mais própria de racionalidade, mas como umaalternativa possível que, com maior propriedade, consegue atingir re-giões da pessoa que não se deixam tolher pela razão calculadora. Alémdo mais, a novela propõe uma interação com o leitor que o remete àreflexão e o acionamento de disposições de suma especificidade dainterioridade humana, levando-o a tomar posição e assumir a sua pró-pria experiência como algo que brota das entranhas da interioridade. Énesse horizonte que a novela se insere e, a partir dele, a imaginaçãopública pode configurar compromissos arraigados na qualidade e nãona quantidade. Podemos pensar que a configuração de uma vida soci-al pensada a partir das entranhas humanas seja mais consequente con-sigo mesma e menos contraditória. Segundo Nussbaum, a novela temexatamente compromissos com essa parte imperceptível à racionalidadedas aparências:

A novela tem um compromisso para com a riquezado mundo interior, maior inclusive que em outros gê-neros narrativos, assim como um compromisso mai-or para com a relevância moral de seguir uma vidaao longo de todas suas aventuras concretas na tota-lidade de seu mundo concreto37.

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A experiência moral encarada desde a interioridade e comoum elemento constitutivo da vida humana e não como uma referência acódigos externos, pode ser instituída como horizonte indicador de prá-ticas pessoais e públicas. A idéia de fazer aos outros o que gostariaque fizessem comigo bem pode ser componente fundamental dessehorizonte. Teríamos, assim, uma sensibilidade para pensar a vida comorede complexa de relações na qual sentir-se eu implica referir-se aosoutros. Afinal, o destino de cada um é tarefa de cada um e de todos.No caso das sociedades contemporâneas que têm dimensões globais,a percepção dos excluídos se tornaria fundamental como possibilida-de mesma de garantir sua existência como ser humano:

A novela nos convida a preocuparmos pelos destinosde outros como nós, aos quais nos ligamos tanto poruma amizade compassiva como por uma identifica-ção empática. De modo que quando a novela nosalerta ao final a pensar o que vamos fazer, nossaresposta natural será, se tivermos lido bem, fazer paraos outros homens e mulheres correntes como paranós, e vendo inclusive nas circunstâncias de vida maissólida e correntes em uma lugar onde, na imagina-ção, construímos nossa própria morada38.

A novela tem, na sua própria estrutura, elementos que, aointeragir com os leitores aciona também pulsações que lhe trazem mui-to prazer. E isso torna o enfrentamento da própria experiência algoagradável e prazeroso. Entra como um tipo de oxigênio que alivia o arpoluído. Ao prazer bem podemos relacionar a alegria. Na verdade, anovela pode ensinar que a vida é feita de prazer e de alegria e tem queser assumida como tal:

porque expressa em sua forma artística, o desejo deque o leitor viva uma vida de gozo, de fantasia gene-rosa e liberal, (...) ‘E ao formar com o leitor umarelação rica em prazer, assumem reflexo moral, en-sina ao leitor um estilo de relação humana onde areflexão se nutre com a plenitude do caprichoso, e asatitudes morais mais amáveis e generosas quando aimaginação intervém’”39.

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O gozo e a alegria humana podem ser articulados com outrasriquezas da interioridade, e ajudar a pensar, desejar e atuar para cons-tituí-los em bens de alto valor que devem ser partilhados por todos.Seguramente são ingredientes imprescindíveis para fazer emergir sen-timentos de amorosidade, e, portanto, a habilitar as pessoas a verem oreal a partir do coração. Isso, com certeza, pode ajudar a fazer acon-tecer a fantasia, concretizar as ilusões e reconstruir o mundo. “O olharao interior, ou fantasia, a grande caridade no coração, contribui parauma construção generosa do mundo”40, onde se possa viver a vida ever o humano do humano.

Conclusão

O nosso esforço teve como pretensão apresentar, de formaabreviada, uma velha e disputada questão: A relação entre filosofia eliteratura. Foi nossa intenção particularizar o problema fazendo umaespécie de torsão para articular com a questão moral. A partir dessaótica, apresentamos as posições de Alasdair MacIntyre e MarthaNussbaum.

Tentamos enfatizar algumas questões desta última porque nospareceu mais tentadora a ideia de imaginação literária vinculada à vidapública. Como nos nossos dias atuais, percebemos cada vez mais aimportância da ética nas gestões públicas, e cada vez maior o númerode novelas que disputam a preferência do telespectadores; pensei quetentar explicitar os mecanismos inerentes à estrutura do gênero novela,como a compreende Nussbaum, poderia contribuir para uma possívelreorientação na maneira de considerar novela e construção dacidadania.

Na perspectiva que apresentamos, tentamos acentuar a no-vela como um âmbito possível de elaboração da imaginação criadoracapaz de interferir de forma incisiva nas dinâmicas das experiênciasdas pessoas. Vimos que se trata de uma forma de racionalidade bas-tante diferente da racionalidade científica, onde impera a pretensão deobjetividade, o rigor lógico, o caráter abstrato, a generalização e oapego ao fato como única dimensão do real. Exatamente por causadessas características, manifesta-se limitada para tratar realidades que

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estão além dessas características. O ser humano, com sua dimensãode interioridade e uma estrutura complexa de elementos como pensa-mento, corpo, desejos, sentimentos, sonho, fantasias, alegria, dor, etc.,não seria devidamente atingido por essa forma de racionalidade. Anovela, portanto, desenharia uma maneira mais adequada para essasdimensões. Atentando-se às características da sociedade contempo-rânea na qual as pessoas funcionam de forma objetiva e utilitária, anovela pode ser uma crítica segura da utilidade objetiva dos humanos.Por outro lado, enquanto interage com o leitor/espectador, ela podeacionar-lhes a imaginação e ajudar a formular modelos alternativos devida coletiva mais condizente com a realidade da vida humana, quenão pode ser reduzida a meros fatos, a simples coisas, a realidadesmensuráveis. À medida que ela cria empatia, desperta a imaginação,motiva desejos, pode transbordar em reflexões profundas e tomadasde decisões capazes de marcar a experiência de vida. Assim, a novelapode ser uma linguagem que fala a totalidade do ser humano, que seconcretiza no mundo como corpo e estrutura complexa. Para isso,requer uma racionalidade que lhe trate de forma flexível, que dê contado sentido geral do humano que ocupa um espaço único.

À medida que a novela toca as pessoas no seu concreto,atingindo sua interioridade onde se elaboram e se diluem os sentimen-tos e as convicções das práticas, podemos imaginar a sua importânciapara imaginarmos uma sociedade toda pensada a partir do sentidohumano. Ela poderá ter, portanto, uma força mobilizadora de ações,pensamento, sonhos e desejos, promotores da ilusão de que o mundopode ser um lugar para se viver. Um viver a vida no seu acontecermaravilhoso, no seu dançar a alegria, no seu festejar a bondade, na sua“razão sentinte; cada um inventando e reinventando a melhor maneirade superar as dificuldades, simplesmente para que cada um possa ex-perimentar o seu viver até o limite do seu final.

A novela, nas considerações de Nussbaum, figura como umelemento de cunho eminentemente educativo, que pode contribuir sig-nificativamente na educação de inteligências e vontade, práticas mo-rais, gestão política, participativa e solidária, na configuração de umacultura capaz de imaginar a história como um processo aberto nainfinitude do tempo que guarda os segredos do humano.

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Notas

1 Doutor em Filosofia pela PUCRS, professor do Curso de Filosofia da UNICAP.2 THIEBAUT, Carlos. Filosofia y literatura: de la retórica a la poética. Isegoria

- Revista Filosofía Moral y Política. Madrid, n. 11, 1995, p. 82.3 MARIE, Jeanne. As formas literárias da filosofia. [S.l.]: [s.n], 2002, p. 2.

Mímeo.4 LIMA, Maria Herrera. El punto de vista moral en la literatura. In: LOPES DE

LA VIEJA, M. T. Figuras del logos: entre la filosofia y la literatura. México:fundo de Cultura Econômica, 1994. p. 40.

5 Ibid., p. 42.6 Ibid., p. 43.7 Ibid., p. 45.8 Ibid., p. 46.9 Ibid., p. 46.10 Ibid., p. 47.11 Ibid., p. 48.12 Ibid., p. 49.13 Ibid., p. 49.14 Ibid., p. 50.15 Ibid., p. 50.16 Ibid., p. 50.17 Ibid., p. 51.18 MACINTYRE, Alasdair. Tres versions rivales de la etica. Madrid: Ediciones

Rialy, 1992, p. 25.19 LIMA, [s.d], p. 51.20 NUSSBAUM, Martha C. La imaginación literaria en la vida pública. Isegoria

- Revista Filosofía Moral y Política. Madrid, n. 11, p. 42, 1995.21 Ibid., p. 43.22 PEREDA, Carlos. Sueños de vagabundos: un ensayo sobre filosofia moral y

literatura.. Madrid: Visor, 1998, p. 27.23 NUSSBAUM, 1995, p. 44.24 Ibid., p. 44.25 Ibid., p. 44.26 Ibid., p. 45.27 Ibid., p. 45.28 Ibid., p. 46.29 Ibid., p. 46.30 Ibid., p. 46.31 Ibid., p. 46.32 Ibid., p. 48.33 Ibid., p. 53.34 Ibid., p. 54.

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35 Ibid., p. 55.36 Ibid., p. 58.37 Ibid., p. 62.38 Ibid., p. 64.39 Ibid., p. 64.40 Ibid., p. 68.

Referências

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