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Filosofia no Trabalho
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FILOSOFIA NO TRABALHO
Jean Bartoli
Publicado na Revista de Marketing Industrial Ed. 39, ano 13, 2007 p. 46-50
Bem no início da história da filosofia ocidental, Heráclito de Éfeso critica o
pensamento mítico: segundo ele, os mitos da Grécia Antiga serviriam para
esconder a dureza da realidade enfrentada no dia a dia pela sociedade do seu
tempo. Sem rodeios, ele escreve: “O combate é de todas as coisas pai, de todas
rei, e uns ele revelou deuses, outros homens; de uns fez escravos, de outros
livres.” Bom começo para falar de filosofia no mundo em que vivemos: a volta aos
mitos e a uma certa pasteurização religiosa não significaria uma certa dificuldade
em identificar e, depois, lidar com os problemas do mundo em que vivemos?
Heráclito de Éfeso fala do combate como pai de todas as coisas: parece que isso
continua verdadeiro! Quais são, então, os combates que modificam nosso
ambiente e nossas relações com os outros? Procedem de três grandes rupturas
que transformam nossa visão do mundo e de nos mesmos.
A primeira dela é com a natureza e o universo. O tão falado problema da
sustentabilidade parece despertar em nós a consciência do fato que não estamos
somente na natureza mas que somos, sim, parte dela! Cuidar da natureza
significa, portanto, cuidar de nos mesmos. Na esteira dessa constatação vem um
convite a reconsiderar e, quem sabe, reorientar nossa visão e nossa prática
tecnológicas e científicas.
A segunda ruptura se dá na nossa relação com os outros: na concepção
guerreira da vida que brota de uma competitividade exacerbada e com cada vez
menos limites, o outro é um concorrente ameaçador que, nem poucas vezes,
acaba sendo encarado como um inimigo perigoso. A vida é considerada como um
combate e a morte como um fracasso. Qual convivência esperar de tais
pressupostos? Não seria necessário repensar os fundamentos de tal concepção
da vida?
A terceira ruptura diz respeito a nos mesmos. Estamos num freqüente
conflito ou vazio interiores: vivendo muito na tensão (corrida, estresse, rivalidade),
nos tornamos incapazes de atenção, principalmente de atenção interior, essa arte
de viver intensamente o presente. A falta de valores mais claros e a apreensão,
muitas vezes o medo, em relação ao futuro atrofia em nós a capacidade de criar
projetos e acaba esvaziando o futuro tanto pessoal como coletivo. Afinal, o que
podemos esperar de uma vida que renuncia a qualquer projeto individual e/ou
coletivo por incapacidade de se opor à fatalidade de um tempo dominado pelos
imperativos de curto prazo dos interesses de poucos?
A partir do momento em que essas rupturas se tornam conscientes e
incomodam, podemos buscar tranqüilizantes ou transformar o mal estar em
perguntas. Escolhendo esse segundo caminho, ingressamos no caminho não da
filosofia, disciplina intelectual e acadêmica, mas do filosofar, como exigência
interior e fonte de maturidade. As três rupturas nos levam, então, a perguntas
radicais: o que faremos do nosso planeta? O que faremos da nossa espécie? O
que faremos da nossa vida? Como pensar nossa vida fora da “sociedade de
mercado” e reaprender a “travessia da vida”? É difícil escapar delas nesses
tempos conturbados e, por isso, cheios de grandes oportunidades!
O que seria, então, o ato ou, por que não, o hábito de filosofar? É uma
tentativa de enfrentar o problema humano do significado, perene, pessoal e
universal. Por isso, embora estejamos enraizados numa família, numa cultura,
num país, numa época e, talvez, numa religião, filosofar significa aceitar o encargo
de abrir a mente para outros universos, outras lógicas, aceitar o dialogo e cruzar
fronteiras. Filosofar nada é senão lutar corpo a corpo com nossas paixões e refletir
sobre questões como o sentido da vida, da tragédia, da morte, nossa noção de
nós mesmos. Nesse sentido, filosofia e espiritualidade não deixam de ter
afinidades e, em determinados momentos, é difícil não confundir as duas!
Portanto, a filosofia não pode ser encarada como uma especialidade, uma
profissão, nem como a atividade de um clube exclusivo com suas própria regras e
senhas.
Podemos considerar então que filosofar significa trilhar um caminho lindo,
cheio de paz e de serenidade? Infelizmente, não! Segundo Berdiaev: “As
contradições que aparecem em qualquer sistema filosófico são as que nascem da
luta espiritual: são inerentes à própria existência e não se deixam dissimular por
baixo de uma aparente unidade lógica. A verdadeira unidade do pensamento, de
fato inseparável da unidade da pessoa, é uma unidade existencial, não lógica. E a
“existencialidade” é contraditória” ou, permito-me acrescentar, paradoxal! Daí a
dificuldade, não intelectual mas existencial, que espera toda pessoa que quiser
filosofar. Num ambiente tão conturbado como o nosso, é difícil aceitar mais
desestabilização, mesmo sabendo que dela pode, afinal, brotar mais liberdade,
maior consciência e, portanto, decisões mais maduras e mais sábias.
E os filósofos, Sócrates, Platão e outros Leibniz, Spinoza e Nietzsche? Eles
são nossos prepostos e nossos conselheiros para ajudar a organizar mais
metodicamente nosso esforço de pensar, oferecendo um espelho que deixa
transparecer somente o que importa verdadeiramente. Sua leitura pode ser de
grande ajuda, mas tomo a liberdade de dizer que ela não é condição necessária
ao exercício do filosofar. As verdadeiras ameaças para a busca filosófica são
outras. Nietzsche cita a crueldade e a pequenez como obstáculos fundamentais.
Trata-se de “patologias éticas” e não intelectuais! Isso explica porque encontramos
tantos sábios grandes pelas suas virtudes embora sem nenhum carimbo
acadêmico! O nosso autor acrescenta mais uma doença: a preguiça! Para quem
acha que preguiça não combina com grande atividade vai outro recado do filósofo
alemão: “Acho que cada pessoa deve ter uma opinião própria sobre cada coisa a
respeito da qual é possível ter opinião (...). Mas a indolência que há no fundo da
alma do homem ativo impede o ser humano de tirar água de sua própria fonte.”
Ele acrescenta: “Por falta de tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa
nova barbárie. Em nenhum outro tempo os ativos, isto é, os intranqüilos, valeram
tanto. Logo, entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade
está fortalecer em grande medida o elemento contemplativo.” É interessante notar
que a vida contemplativa, ou seja o exercício da reflexão e da meditação, é
considerado como fundamental para uma verdadeira vida humana. O que
surpreende hoje é a leviandade de certas decisões, tomadas precipitadamente,
sem muitos critérios, porque faltou treino e tempo para a reflexão. A desculpa mais
usada e não, por isso, menos esfarrapada, é de que precisava decidir logo! Urge
“treinar” para a vida contemplativa e retomar o controle do tempo antes que ele
acabe nos dominando completamente.
Gostaria de terminar essas reflexões relembrando as três dimensões
fundamentais do trabalho segundo Hanna Arendt.
- O ser humano produz para sobreviver: a filosofia tem muito a dizer sobre
o que significa e o que ameaça a nossa sobrevivência individual e
coletiva. Ela pode nos ajudar a ficar mais críticos em relação a
determinadas percepções. Por exemplo, o que pensar da crescente
escassez dos recursos econômicos? É uma fatalidade ou é o resultado
de escolhas individuais e coletivas repetidas e não reavaliadas?
- O ser humano é construtor do mundo: a filosofia pode nos ajudar a
encontrar o significado que queremos dar ao mundo que estamos
construindo. Existe um projeto além do desenvolvimento econômico e do
progresso tecnológico? Onde está o limite da transformação da natureza
em objeto? O que significa afinal criar? Existe ainda um lugar para a
gratuidade da admiração e da beleza?
- Enfim, pelo seu trabalho, o ser humano constrói a si mesmo por meio do
seu relacionamento com o outro: filosofar é um exercício de meditação
que pode fundamentar um projeto de comunhão humana verdadeira.
Para que isso aconteça, é necessário desmascarar a armadilha criada
por um tipo de convivência cujo único intuito é a instrumentalização e a
utilidade. Afinal, a existência humana é um mistério de gratuidade, um
dom não escolhido e cada um de nós não admite por muito tempo ser
usado. Bem diferente é a escolha, a mais nobre de todas, de servir os
outros!
Pois é! É preciso filosofar!