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1 Capítulo II Educar para a Diversidade: viver diferenças e tensionar desigualdades na escola Célia Elizabete Caregnato 1 Carla Beatriz Meinerz 2 A escola ocupa um lugar central na instrução das pessoas a partir da modernidade. A Sociologia da Educação já mostrou há algum tempo que ela é um lugar no qual passamos um tempo significativo de nossas vidas. Aprendemos conteúdos organizados a partir de propostas curriculares e aprendemos também a conviver com pares, tendo como base valores e comportamentos sociais adquiridos no ambiente, os quais cada um de nós assumimos claramente. Quando temos o desafio de pensar o tema da Educação para a Diversidade, tendo a escola brasileira como lugar de referência, é indispensável recorrer a noções históricas sobre esta instituição e sobre os contextos que a envolvem. Paralelamente precisamos esclarecer a ideia de diversidade e sua relação com questões de diferenças e desigualdades. Nosso objetivo é problematizar o ambiente escolar para enfrentar preconceitos e discriminações existentes e muitas vezes tomados como naturais. 3 A compreensão estabelecida requer que pensemos a escola como espaço de sociabilidades e como núcleo de ação a partir dos novos aprendizados na relação com a comunidade. Assim, familiares, grupos e comunidades estão também no foco do trabalho desenvolvido no sentido da Educação para a Diversidade. Esse é o propósito dos elementos que propomos nas três unidades desse capítulo. A primeira unidade aborda a escola como espaço de composição mais ou menos integrado de diversas culturas. Discute a noção de cultura, procurando situar relações de poder e desigualdades reproduzidas e também produzidas, afirmadas no espaço escolar. Mostra a escola como espaço público, lócus na sociedade, lugar de promoção de pensamento crítico, de trocas culturais, portanto, com capacidade para propulsão de outros tipos de relações sociais, para além daqueles que reproduzem desigualdades, preconceitos e discriminações. Também a ressalta como espaço para a valorização das 1 Célia Elizabete Caregnato, mestre em Ciência Política e doutora em Educação, é docente na FACED/UFRGS. E-mail: [email protected]. 2 Doutora e mestre em Educação, docente na FACED/UFRGS, coordenadora do PIBID/UFRGS. E-mail: [email protected]. 3 Este texto vincula-se aos estudos no âmbito da pesquisa intitulada Diversidade cultural e políticas do estado brasileiro junto ao sistema de escolarização, coordenado pela profa. dra. Célia Elizabete Caregnato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na qual a profa. Carla Beatriz Meinerz é pesquisadora.

Final Cap II

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Capítulo II – Educar para a Diversidade: viver diferenças e tensionar

desigualdades na escola

Célia Elizabete Caregnato1

Carla Beatriz Meinerz2

A escola ocupa um lugar central na instrução das pessoas a partir da

modernidade. A Sociologia da Educação já mostrou há algum tempo que ela é um lugar

no qual passamos um tempo significativo de nossas vidas. Aprendemos conteúdos

organizados a partir de propostas curriculares e aprendemos também a conviver com

pares, tendo como base valores e comportamentos sociais adquiridos no ambiente, os

quais cada um de nós assumimos claramente. Quando temos o desafio de pensar o tema

da Educação para a Diversidade, tendo a escola brasileira como lugar de referência, é

indispensável recorrer a noções históricas sobre esta instituição e sobre os contextos que

a envolvem. Paralelamente precisamos esclarecer a ideia de diversidade e sua relação

com questões de diferenças e desigualdades.

Nosso objetivo é problematizar o ambiente escolar para enfrentar preconceitos e

discriminações existentes e muitas vezes tomados como naturais.3 A compreensão

estabelecida requer que pensemos a escola como espaço de sociabilidades e como

núcleo de ação a partir dos novos aprendizados na relação com a comunidade. Assim,

familiares, grupos e comunidades estão também no foco do trabalho desenvolvido no

sentido da Educação para a Diversidade. Esse é o propósito dos elementos que

propomos nas três unidades desse capítulo.

A primeira unidade aborda a escola como espaço de composição mais ou menos

integrado de diversas culturas. Discute a noção de cultura, procurando situar relações de

poder e desigualdades reproduzidas e também produzidas, afirmadas no espaço escolar.

Mostra a escola como espaço público, lócus na sociedade, lugar de promoção de

pensamento crítico, de trocas culturais, portanto, com capacidade para propulsão de

outros tipos de relações sociais, para além daqueles que reproduzem desigualdades,

preconceitos e discriminações. Também a ressalta como espaço para a valorização das

1 Célia Elizabete Caregnato, mestre em Ciência Política e doutora em Educação, é docente na

FACED/UFRGS. E-mail: [email protected]. 2 Doutora e mestre em Educação, docente na FACED/UFRGS, coordenadora do PIBID/UFRGS. E-mail:

[email protected]. 3 Este texto vincula-se aos estudos no âmbito da pesquisa intitulada Diversidade cultural e políticas do

estado brasileiro junto ao sistema de escolarização, coordenado pela profa. dra. Célia Elizabete

Caregnato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na qual a profa. Carla Beatriz

Meinerz é pesquisadora.

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experiências sociais (Dubet, 1994) e para experimentação de novas práticas na relação

com comunidades, onde o plural e o intercultural acontecem.

A segunda unidade conduz a uma reflexão de natureza histórica, analisando a

escola como instituição moderna, constituída dentro de contextos socioeconômicos e

objetivos socioeducativos específicos, instigada a transformar-se a partir da

contemporaneidade que incorpora a diversidade e a desigualdade. A história da

educação escolar no Brasil é pensada na relação com a pobreza e a desigualdade

socioeconômica que caracteriza essa sociedade, assim como a partir das práticas sociais

que se vinculam ao reconhecimento ou negação da diferença e da diversidade numa

sociedade marcada pelas trocas culturais intensas evidenciadas no sincretismo e na

miscigenação.

Na terceira unidade refletimos sobre possibilidades para a construção da

convivência ética baseada na diversidade presente na sociedade e na escola brasileira.

Pensamos, além da instrução, um tipo de formação comprometida com relações sociais

que promovam a dignidade humana, reconhecendo os anseios dos alunos e de suas

comunidades. Conhecer a comunidade de origem destes sujeitos é um primeiro e

importante passo nessa proposição, que deseja fazer da escola um observatório do seu

entorno, incidindo em ações capazes de enfrentar preconceitos e discriminações

presentes nas relações cotidianas dentro e fora da escola.

1 Educação escolar, trocas culturais e enfrentamento de preconceitos e

discriminações

A educação escolar surgiu com o propósito universalista (Sacristán, 2000),

constituído a partir do período entendido como modernidade (Hall, 1997; Santos, 1989;

Santomé, 1998; Martins, 2000). Entretanto, a escola, a modernidade e seus valores

mostraram limites importantes para a efetivação do sentido universalista da educação

escolar, especialmente na sua dimensão contemporânea de direito social. A

desigualdade social e os valores e comportamentos tradicionais são marcas que se

mantêm e com as quais nos deparamos quando analisamos o tema da educação para a

diversidade. A escola como espaço social e educacional pode ser base para superação de

relações discriminatórias que impedem o reconhecimento da diversidade e a construção

de relações sociais mais democráticas.

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3

O conjunto de estudos sociológicos da educação, dos anos 1980 no Brasil,

mostrou que a desigualdade da sociedade está presente na escola. Com eles, aprendemos

a ver que a desigualdade na escola não se limitava a refletir de maneira passiva aquilo

que tinha origem externa, ao contrário, os estudos explicitaram seu papel ativo como

instituição social que dava continuidade a desigualdades. Seja por meio da noção de

Aparelho ideológico do Estado (Althusser, 1985), seja da noção de Capital Cultural

(Bourdieu e Passeron, 1975), esses estudos mostraram que a instituição escolar cumpre

papel ativo na reprodução da sociedade e de suas hierarquias.

Os professores são sujeitos importantes nesse cenário, pois atuando nos

processos pedagógicos, utilizam como referenciais, para além da sua formação

profissional, seus parâmetros sociais constituídos subjetivamente. Estes se manifestam,

por exemplo, em momentos de classificar ou estabelecer juízo sobre atividades dos

estudantes (Bourdieu e Saint-Martin, 2005). Para além das suas contribuições, as teorias

crítico-reprodutivistas revelaram-se insuficientes para dar conta da complexa realidade

que cerca a escola, suas comunidades e seus sujeitos. A contribuição analítica que

destacamos aqui é o questionamento à ideia de educação universal. Vimos que em

período histórico anterior nem todos tinham acesso à escola e que, na atualidade, o

acesso não significa inclusão ou participação com base em condições similares àqueles

que já compunham os quadros escolares desde um primeiro momento.

Pierre Bourdieu, no livro A miséria do mundo (1997), mostra que os indivíduos e

camadas sociais marginalizadas, mesmo estando no interior da escola e percorrendo

todos os anos escolares, não participam com as mesmas condições e não obtêm os

mesmos benefícios da escola. Ele afirma que a escola “mantém no próprio âmago

aqueles que ela exclui, simplesmente marginalizando-os nas ramificações mais ou

menos desvalorizadas” (Bourdieu, 1997, p. 485). No dia a dia da escola é possível

verificar vários tipos de exclusões ou marginalizações – formas de discriminar –, as

quais são praticadas a partir de diversos critérios sociais e culturais. O critério

socioeconômico é recorrente, mas outras distinções associadas a essa fazem parte dos

processos de exclusão praticados na/pela vida escolar das crianças, jovens e adultos.

A ampliação do ingresso à escola é um fator importante e insuficiente do ponto

de vista da qualificação do trabalho escolar e do desenvolvimento das pessoas e da

sociedade. No caso da sociedade brasileira, com seu histórico de escolarização desigual

e excludente, é possível verificar a ampliação de ingresso, por meio da ampliação de

vagas vinculadas a políticas estatais nos diversos níveis educacionais.

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MATRÍCULAS EDUCAÇÃO BÁSICA DA REDE PÚBLICA

Anos4 Ensino Fundamental Ensino Médio Total

1991 25.585.712 2.753.324 28.339.036

1995 28.870.418 4.210.346 33.080.764

2000 32.528.707 7.039.529 39.568.236

2009 27.927.139 7.023.940 34.951.079 Fonte: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC, 1991 a 2009.

O aumento do ingresso na escola ocorre no contexto de situações complexas,

seja na educação básica, seja na universidade e/ou ensino superior.

MATRÍCULAS ENSINO SUPERIOR

REDE PÚBLICA REDE PRIVADA TOTAL

2000 887.026 1.807.219 2.694.245

2009 1.351.168 3.764.728 5.115.896 Fonte: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC, 2000 e 2009.

O tema da diversidade na educação e na escola nos faz questionar quem são

esses novos ingressantes e como eles convivem no ambiente escolar. A democratização

do acesso com a presença desse expressivo contingente de pessoas, historicamente

alijado das instituições escolares brasileiras, evidencia a composição de novas questões

para a educação escolar e especialmente para o ensino público em nosso país. Esse

acesso ampliado intensifica as trocas culturais no interior do espaço escolar e torna

necessário o reconhecimento de identidades e culturas, antes invisíveis, hoje

explicitadas em novas sociabilidades. É nesse contexto escolar que aparecem mais

intensamente os temas da diversidade cultural e do tipo de relações que ocorrem na

escola.

Quando se diz que a escola exclui estudantes que a frequentam, se está

chamando atenção para o papel ativo dessa instituição na manutenção de relações de

poder e de desigualdades. Não se trata de um processo maquinado por atores sociais do

seu interior, entretanto, esses atores, dos quais – como professores – fazemos parte,

atuam colaborando para a existência desse tipo de relações discriminatórias. A tabela a

seguir mostra uma situação de desigualdade que certamente não tem origem na escola,

porém diante da qual a mesma não consegue oferecer condições de igualdade entre

crianças e jovens separados por questões étnicas e de gênero.

4 As matrículas no Ensino Fundamental Público em 2000 tiveram aumento de 27% em relação a 1991 e

aumento de 13% em relação a 1995. Em 2009 houve redução de 12% nas matrículas do Ensino

Fundamental; houve aumento no número de matrículas em instituições privadas no Ensino Fundamental

(+19%); e houve redução nas matrículas no Ensino Médio privado maior que na rede pública (18% contra

menos de 0,22%). Fonte dos dados: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC,

1990, 1995, 2000 e 2009.

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Fonte: Paixão (2012, p. 238).

Os dados da tabela anterior registram o desempenho dos alunos com base nas

provas aplicadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) do

Ministério da Educação para o ano de 2005.

Certamente há uma variedade de fatores que determinam o fato. O estudo de

Paul Willis (1991), realizado na Inglaterra entre alunos trabalhadores, nos aproxima de

um dos fatores que auxilia na interpretação. Ele mostra que a escola é refratária à

cultura de origem dos alunos marginalizados pela sociedade, e diante disso os alunos

criam alternativas de sobrevivência, desvalorizando conhecimentos que são objeto de

trabalho da escola, por exemplo. Nesses casos, os estudantes são vistos pelos

professores como alunos não típicos e são objeto de aversão pela gestão escolar.

Evidentemente que os estudantes localizados socialmente à margem de condições de

vida dignas, ou mesmo aqueles que precisam trabalhar, enfrentam condições de estudo

que em geral determinam desempenhos inferiores. Porém, além disso, as suas histórias

de vida, seus modos de lazer, seus gostos e comportamentos muitas vezes são vistos

como não desejáveis pela escola e por seus integrantes. Há a marca da condição social,

assim como há a marca étnico-racial e/ou de opção sexual.

Nesse sentido, Grignon (1995, p. 180) afirma que a “escola conduz

espontaneamente ao monoculturalismo”, reforçando valores de culturas dominantes e

sendo incapaz de levar em consideração diferenças entre seus estudantes. A pretensão

universalista tem como referência aquilo que a sociedade passou a considerar válido e,

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desse modo, aquilo que sai do comportamento e dos códigos dominantes historicamente

passa a ser considerado como não válido.

O exemplo claro é o do uso da língua: “o sentimento hierárquico da língua

escrita repercute sobre a língua oral: o sotaque dominante é percebido, ou melhor, não

percebido, é sotaque zero, o sotaque em relação ao qual outros sotaques, populares e

regionais, se fazem ouvir [...]” (Grignon, 1995, p. 180). A escola possui importantes

limites para o reconhecimento da diversidade cultural e social em suas práticas

curriculares e para a integração equilibrada da diversidade existente no seu interior. Ela

pratica discriminação por meio de suas práticas cotidianas. Os seus atores ou sujeitos –

professores, funcionários e alunos – são agentes nesse processo.

No interior da escola e da educação escolar há relações de poder relativas, não só

quanto à origem socioeconômica, mas também quanto à condição de origem étnica,

faixa de idade, gênero, sexualidade, entre outras. Assim, é indispensável pensar a escola

nos seus aspectos de reprodução daquilo que existe na sociedade. Também é necessário

pensá-la como espaço de produção de relações diante da desigualdade e de diferenças

culturais.

A desigualdade social na escola

No contexto escolar da rede pública de ensino no Brasil tem sido comum o

enfrentamento de situações de grande dificuldade na execução de projetos educativos

qualificados, devido a vários fatores, com destaque para a precariedade socioeconômica

de grande parte das comunidades atendidas e do seu entorno. Diante disso, tem sido

importante recorrer e valorizar modos de produção da subsistência e alternativas de

organização domésticas e comunitárias, como recursos e temas que mobilizam o ensino-

aprendizagem nas escolas.

O problema da desigualdade continua presente na escola e tem íntima relação

com as questões de diferença e diversidade. Conforme José de Souza Martins (2009), a

desigualdade tende a estar presente em nossas consciências como diferenças. Quando os

baixos desempenhos evidenciam-se, e em geral são atribuídos às incapacidades

individuais, desconsideram-se as condições socioeconômicas e socioculturais

interconectadas a comportamentos de falta de concentração, indisciplina ou dificuldades

de aprendizagem entre crianças e jovens na escola. Conforme Martins (2009), as

diferenças significativas – de gênero, étnicas, geracionais, etc. – tendem a chegar a nós

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como diferenças superficiais, ou seja, são ignoradas na sua expressividade e percebidas

apenas através de manifestações exteriores. Nesses casos, elas são interpretadas a partir

de valores morais predominantes. Isso pode ser visto por meio do exemplo de assédio

ou abuso sofrido por mulheres. Muitas vezes elas são responsabilizadas por tais atos

devido ao uso de vestuário considerado propício a gerar o ato de violência sobre si: foi

ela quem provocou!

Nas sociedades complexas, as desigualdades ficam muitas vezes veladas, mas

não deixam de existir. Na situação de intensa pobreza, entretanto, a desigualdade social

e a diversidade cultural aparecem como elementos indistintos. François Dubet (1994)

mostra que as experiências sociais dos indivíduos formam base no processo de criação

de sentido e interpretação da vida em sociedade. O distanciamento da própria

experiência de socialização é necessário para elaborar significados e sentidos que

conduzem os alunos a projetar-se nas relações sociais como sujeitos. Em situação de

extrema pobreza, as crianças e jovens, tornados alunos pela escola, encontram grandes

dificuldades de distanciarem-se de suas experiências de vida como única possibilidade

de interpretar o real. Assim, tornam-se facilmente objeto de preconceitos e

discriminações variadas na escola, e tendem a reproduzir ao longo das suas vidas tais

experiências.

Freitas (2006), em estudos a partir de observações da infância e da juventude,

analisa a situação de extrema pobreza e destaca a necessidade de aproximação dos

locais de vida dessas pessoas, a fim de conhecer os modos que encontram para se

organizarem e se distinguirem dos juízos que fazemos delas. O autor mostra que alunos

classificados a partir de categorias sociais marginais podem ser mais bem visualizados e

interpretados na medida em que nos aproximamos de seu cotidiano.

A proximidade começa a demonstrar que mesmo em locais muito pobres há

um esforço contínuo por parte das pessoas visando distinguir-se dessas

imagens que pairam sobre os lugares onde estão e que são redesenhados

diariamente nos mais variados instrumentos de comunicação. O trabalho de

campo conduz ao encontro com essas personagens que só ganham

visibilidade quando associadas aos predicados da sua rua. É o primeiro passo

para conhecer alunos considerados “em situação de risco” ou em “situação de

vulnerabilidade” (Freitas, 2006, p. 27).

Situações de alta desigualdade exigem que conheçamos e saibamos lidar com o

modo de vida das crianças e jovens, alunos na escola, para explorar possibilidades de

fortalecimento de relações que valorizem a dignidade humana. Reconhecer a

desigualdade e a diversidade, em algumas de suas nuanças e a partir do lugar onde as

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pessoas extremamente pobres fazem sua vida, pode ser o primeiro passo para enfrentar

preconceitos e discriminações que ocorrem no cotidiano escolar.

Discriminação e preconceito caminham juntos, embora se diferenciem entre si

nas práticas sociais. O preconceito diz respeito às ideias e percepções que desvalorizam

o sujeito diferente, enquanto a discriminação relaciona-se às ações que implicam

segregação, negação ou exclusão de outrem, considerado valorativamente inferior em

função de sua diferença. A partir de práticas desse tipo, além do mote socioeconômico,

a sociedade brasileira e a escola precisam enfrentar desigualdades afirmadas a partir de

diferenças de etnia, gênero, religiosidade, entre outras, as quais negam a convivência

democrática com a diversidade. Para tanto, um recurso importante é a escola valorizar a

interpretação das culturas e o seu reconhecimento no cotidiano escolar.

Diferenças e diversidade cultural como possibilidades para a educação escolar

Para explorar o tema da diversidade na escola e da educação para a diversidade,

a partir das relações comunitárias e do cotidiano dos alunos, é indispensável recorrer à

compreensão sobre o que seja a cultura e as relações entre distintas experiências

culturais. A abordagem antropológica esclarece a diversidade de culturas, a tendência a

disputas e ao não reconhecimento da cultura do outro. Ela nos instiga a relativizar

nossos pontos de vista, a fim de compreender distintos códigos culturais.

A cultura não é um dado, mas uma construção variável no tempo e no espaço.

Ela é herança que se transmite de geração em geração porque “é uma produção

histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história e mais precisamente na

história das relações dos grupos sociais entre si” (Cuche, 2002, p. 143). Uma vez que

cultura é produção histórica e que cria padrões de comportamento a partir dos quais os

indivíduos e grupos sociais expressam suas trajetórias de vida, teremos tantas culturas

ou traços culturais distintos como a diversidade de experiências humanas em grupo é

capaz de produzir.

O antropólogo Roque de Barros Laraia (2009), apresentando a noção de cultura,

afirma que aquilo que é apreendido através de gerações, a nossa herança cultural, nos

faz agir de forma depreciativa em relação aos que praticam comportamentos distintos

daqueles da nossa comunidade. Todavia, as trocas culturais e as práticas sociais tornam

essas heranças dinâmicas, capazes de se alterarem e serem alteradas ao longo da

história.

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Podemos falar em diversidade cultural como elemento de destaque da sociedade

contemporânea. Há vários aspectos históricos que definem a alta complexidade desse

tempo social e que fazem emergir a percepção de identidades antes não reconhecidas.

De fato, diferenças sempre existiram, porém nem sempre foram ou são reconhecidas,

problematizadas. O reconhecimento atual decorre de transformações sociais e

paradigmáticas importantes.

As trocas culturais são potencializadas por variadas razões: pela grande

concentração humana em centros urbanos que define espaços heterogêneos em

convivência; pelas vias de comunicação em ritmo e em possibilidades de acessos que

intensifica redes; e pela coexistência de camadas e grupos sociais não reconhecidos

como tal até então. Tais trocas permitem a afirmação de diferentes identidades e um

maior reconhecimento da diversidade.

[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,

estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o

indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim

chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo

de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das

sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos

indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall, 1997, p. 7).

As diferenças, sendo acolhidas ou obtendo maior espaço para manifestação nas

sociedades complexas, tornam as disputas muito mais intensas. Se as diferenças fazem

parte do mundo social e dos processos históricos, é necessário considerar mudanças e

evoluções que dinamizam essa noção. Os assim considerados diferentes pela sociedade

hoje expressam identidades que surgiram em expressão com o novo momento histórico.

São, entretanto, passageiros, pois suas questões tendem a ser tratadas socialmente e

superadas por outras. Isso, entretanto, não significa que sejam necessariamente

resolvidas com base em padrões ético-sociais esperados.

Constatada em determinado momento e sociedade, qualquer diferença é, ao

mesmo tempo, um resultado e uma condição transitória. Resultado, se

consideramos o passado e privilegiamos o processo que resultou em

diferença. Mas ela é igualmente um estado transitório, se privilegiamos a

continuidade da dinâmica, que vai necessariamente alterar este estado no

sentido de uma configuração posterior (Semprini, 1999, p. 11).

A admissão de novas identidades e de diferenças entre segmentos que compõem

a vida social, mesmo que transitórias, é fruto de novos arranjos históricos e tem

importante relação com a noção de diversidade. A resolução de demandas e problemas

vinculados a preconceitos e discriminações depende de posturas ativas de sujeitos

sociais atuantes com esses propósitos.

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Portanto, é a partir da ideia de cultura e de diversidade cultural que

reconhecemos a variedade de modos de vida, de histórias e de identidades de grupos

com origens comunitárias próprias, os quais estão presentes na escola. Reafirmamos que

as dimensões de desigualdade social e de diversidade cultural precisam ser tratadas pela

escola por meio do reconhecimento de seus alunos na condição de crianças e jovens que

possuem múltiplas histórias a partir de suas condições e seus modos de vida.

É possível constituir ambientes de trocas culturais, nos quais a diversidade pode

manifestar-se como elemento que fortalece espaços públicos desde a compreensão e

valorização do modo de vida comunitário, sendo indispensável que a escola e seus

sujeitos desenvolvam práticas desse gênero para melhor lidar com a diversidade em seu

interior.

A seguir pensaremos a escola numa perspectiva histórica, como instituição

moderna, instigada a transformar-se a partir da contemporaneidade que incorpora a

diversidade e a desigualdade. Reconheceremos as especificidades da história da

educação escolar no Brasil, compreendida no contexto de desenvolvimento de uma

modernidade diferenciada, marcada pela pobreza, pela desigualdade socioeconômica e

pelas trocas culturais intensas.

2 Escolarização no Brasil: múltiplas histórias contadas a partir da desigualdade e

da diversidade

Hoje em dia, a escolarização, a que é obrigatória, em particular, é um aspecto

que se universalizou nas diferentes sociedades e culturas. É-o enquanto

realidade prática institucionalizada, mas também enquanto construção mental

(Sacristán, 2000, p. 8).

Falar em educação em nosso país requer análises que impliquem seu

entendimento dentro da dinâmica das relações sociais marcadas pela desigualdade por

um lado e pela pluralidade por outro. Exige igualmente a busca de explicações

históricas para as políticas e para as práticas educacionais mais recentes. Isso significa

selecionar e construir possíveis leituras tanto do passado quanto do presente. Aos

historiadores convergem perguntas sobre quando ou em que situações a escola criou

possibilidades de mudança crítica, deixando de ser preponderantemente um espaço de

reprodução das desigualdades, preconceitos e discriminações. Podemos dizer que os

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vestígios deixados através dos tempos nos permitem falar ou calar sobre determinados

temas ou grupos sociais. A presença de temáticas relativas à presença e ao

enfrentamento de preconceitos e discriminações na escola, através de políticas públicas

ou de práticas pedagógicas, é recente nos estudos do campo da história da educação no

Brasil. Porém, não é recente a presença da pluralidade cultural em nosso país. A

convivência entre diferentes e desiguais atravessa as ações de homens e mulheres ao

longo dos tempos e, nesse sentido, podemos afirmar que as mudanças são relativas aos

processos de disputas por espaços, e resultam tanto de pressões dos movimentos sociais

organizados quanto da implementação de políticas públicas de democratização e da

constituição de novos paradigmas científicos e culturais. Podemos destacar momentos

importantes na democratização e no acesso à educação escolar, a partir do final do

século XX, no Brasil, mas igualmente devemos apontar que as mudanças estão em

curso e nos colocarmos como protagonistas ao privilegiarmos a vida cotidiana como

lugar onde a sociedade adquire existência concreta, lugar onde se dão as transformações

sociais.

A escola laica e estatal não surge apenas no vazio deixado por outras instituições

de educação, como a família e a igreja, mas seus defensores tiveram que produzir seu

lugar travando conflitos e diálogos com outras organizações da vida social. A

escolarização obrigatória universalizou-se como imaginário e como prática presente na

maior parte das sociedades contemporâneas, mas sua história recente tem mostrado

mudanças nas maneiras de pensar e de agir nos espaços escolares. A observação e

análise dessas transformações pode nos ajudar a compreender a escola como criação

humana, envolta em jogos de poder e resistência, capaz de reinventar-se em processos

dinâmicos de interação entre os sujeitos que nela transitam e que dela se apropriam em

suas práticas sociais.

No caso específico da história da escolarização no Brasil, podemos questionar a

ideia de educação universal, uma vez que o acesso à escola não tem significado

processos de inclusão saudáveis no sentido da construção de perspectivas sociais

diferenciadas e igualitárias, assim como na perspectiva da construção de relações

libertárias, capazes de experimentar eticamente a pluralidade de experiências culturais,

geracionais, étnico-raciais, religiosas, ambientais e de gênero presentes hoje e na

historicidade de nossas comunidades de convívio.

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Ao ingressar no espaço escolar, o sujeito traz consigo a herança das tradições,

que são os caminhos dos saberes e fazeres educativos, além de guiar-se por práticas

socioculturais construídas dentro e fora dessa instituição. A escola é o espaço

institucional de um legado histórico-cultural intenso, onde insistem modelos diversos de

como, para que, para quem e o que ensinar ou aprender, desenvolvendo-se de forma

diferenciada conforme os contextos sociais e históricos em que se produz.

No Brasil, a história da educação escolar deve ser problematizada a partir do

cenário de pobreza e de desigualdade socioeconômica que caracteriza nossa sociedade,

assim como das práticas sociais que se vinculam ao reconhecimento ou negação da

diferença e da diversidade. Uma leitura sobre as produções acerca da dimensão histórica

da educação brasileira, a partir do período da colonização, pode nos alertar para dois

traços marcantes que insistem de alguma forma na nossa organização em termos

políticos: a inclusão precária e a dimensão elitista da escola. Nos últimos quinhentos

anos sucederam-se autoridades religiosas ou estatais, importaram-se e desenvolveram-se

propostas educativas e curriculares, aumentaram-se as redes de ensino, o número de

professores e os projetos de formação docente, mas ainda temos dificuldades de manter

os jovens na escola e de tornar a escolarização uma experiência rica em aprendizagens

significativas.

Com base na contribuição analítica das teorias crítico-reprodutivistas, citadas

anteriormente, podemos afirmar que a escola, em alguns momentos históricos mais do

que em outros, tendeu a reproduzir não apenas a desigualdade socioeconômica, mas

também os valores das elites, expressos em movimentos de racismo e intolerância

diante das diferenças. Talvez um dos exemplos mais clássicos dessa expressão de

desigualdade histórica é a negação da presença de grupos étnicos como os indígenas e

os negros nos processos de escolarização brasileiros. A construção recente de leis,

políticas e ações afirmativas no campo das relações étnico-raciais na educação

brasileira, resultantes da pressão de grupos outrora ignorados, demonstra a necessidade

de reparação histórica e de construção de novos espaços equitativos no contexto da

democratização em nosso país. Espaços que recuperam eticamente a pluralidade de

experimentações históricas presente em nossa trajetória de uma pretensa nação.

Múltiplas histórias e variadas experiências marcadas pela presença de diferentes

etnias, crenças e costumes, produtoras de sincretismos e mestiçagens singulares,

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compõem o que podemos chamar de uma nação plural. O modo como o moderno e os

símbolos da modernidade se incorporam nas relações sociais e na cultura popular ajuda

a compreender essas singularidades em nosso país. Trata-se de uma cultura arraigada,

capaz de integrar e conciliar o que é oposto, como forma de resistir à inovação e à

transformação, na qual a presença surpreendente da televisão e até mesmo do telefone,

mesmo nas casas onde não há o que comer, ou a ostentação de roupas com frases e

palavras em inglês, em geral desconhecidas por quem as utiliza, são exemplos

reveladores. O pobre busca também aderir ao sistema e busca formas de incluir-se. Para

Martins:

O pobre ostensivo, mal vestido ou esfarrapado, estereotipado, que havia há

algumas décadas, foi substituído pelo pobre para o qual a aparência e o

aparente e, portanto, o disfarce, tornam-se essenciais (Martins, 2002, p. 37).

A multiculturalidade, dessa forma, convive com os traços marcantes de uma

sociedade desigual. Eduardo Galeano atenta para o fato de que

Nunca el mundo ha sido tan desigual en las oportunidades que brinda, pero

tampoco ha sido nunca tan igualador en las ideas y las costumbres que

impone. La igualación obligatoria, que actúa contra la diversidad cultural del

mundo, impone un totalitarismo simétrico al totalitarismo de la desigualdad

de la economía [...] (Galeano, 1996, p. 1).

A desigualdade não é um fenômeno natural, mas construída nas relações sociais

e nos modelos econômicos historicamente consolidados. O Brasil, por exemplo, não é

considerado um país de economia pobre, mas ainda convive com o paradoxo da miséria

no seu cotidiano, constituindo-se como um espaço muito desigual, onde a concentração

de renda nas mãos de alguns grupos estabelece a marginalidade e a exclusão de grandes

camadas populacionais em relação aos benefícios do desenvolvimento da nação.

Martins (2000, 2002) discute conceitos de exclusão e de modernidade no caso

específico do desenvolvimento da sociedade brasileira. Para o autor, a experiência da

modernidade, no Brasil e nos países latino-americanos em geral, tem características

específicas e diferenciadas daquelas da experiência europeia, configurando-se como um

processo incerto e inacabado, produzido pelo desenvolvimento capitalista dependente e

marcado pelo acirramento da desigualdade social. É uma modernidade constituída por

distintas temporalidades que se combinam, em realidades nas quais a industrialização

tardia convive com a permanência de estruturas tradicionais, assim como a emergência

de requintados processos tecnológicos convive com a miséria, o desemprego, o

subemprego, ou até mesmo a persistência do trabalho escravo. Nessa espécie de

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modernidade anômala, constituída sob o signo da desigualdade de possibilidades de

escolha, o tema da exclusão social ganha outros contornos. Ele não concerne apenas à

pobreza ou às condições materiais, embora esteja delas indissociado, mas diz respeito

também a “[...] uma multiplicidade de dolorosas experiências cotidianas de privações,

de limitações, de anulações e, também, de inclusões enganadoras [...]” (Martins, 2002,

p. 21).

A sociedade que exclui é a mesma que integra, mas de forma precária,

patológica, gerando processos que atingem a todos nós independentemente do grupo

social em que nos constituímos. E o discurso da exclusão social, tão utilizado por

militantes e pensadores críticos, revela-se como um discurso desconectado dos anseios

daqueles que dele são vítimas e, teoricamente, diz mais respeito a uma ideia de

manutenção do que de crítica da realidade vigente, pois acaba defendendo as relações

sociais existentes, questionando apenas a inacessibilidade de uma parte da sociedade.

Nas palavras de Martins,

[...] a exclusão moderna é um problema social porque abrange a todos: a uns

porque os priva do básico para viver com dignidade, como cidadãos; a outros

porque lhes impõe o terror da incerteza quanto ao próprio destino e ao

destino dos filhos e dos próximos. A verdadeira exclusão está na

desumanização própria da sociedade contemporânea, que ou nos torna

panfletários na mentalidade ou nos torna indiferentes em relação aos seus

indícios visíveis no sorriso pálido dos que não têm um teto, não têm trabalho

e, sobretudo, não têm esperança (Martins, 2002, p. 21).

Essa situação de inclusão precária está presente nos processos de escolarização

que desenvolvemos, uma vez que observamos a presença recente dos grupos

historicamente empobrecidos e negligenciados acompanhada das dificuldades de

inclusão nos processos de aprendizagem da cultura escolar de uma forma ampla.

Sujeitos que entram na escola, mas vivem cotidianamente em suas corporeidades os

limites das diferenças explicitadas em suas maneiras de aprender, de viver, de vestir, de

relacionar-se, marcadas pelos traços geracionais, de etnia, gênero, religiosidade, renda,

entre outros.

Destacamos que a escola é uma instituição contingente e histórica surgida na

modernidade, e que os processos educacionais atuais são uma resposta às necessidades

de complexificação das sociedades contemporâneas, resultantes das demandas da

industrialização, da urbanização e da informatização. A escola como instituição laica,

estatal e gratuita, surge historicamente no contexto da modernidade europeia, tendo

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como um dos deveres a transmissão dos fundamentos da ciência e seu ensinamento.

Enquanto na Europa do século XIX nascem os sistemas públicos de educação de

massas como base comum de cidadania e formação do ideário de nação, no Brasil não

experimentamos essa correlação entre construção de sistemas educacionais para todos e

formação de nação, uma vez que nos formamos em bases escravistas e em projetos de

desenvolvimento desiguais.

Vai longe a ideia de que temos no Brasil uma identidade nacional ou um jeito

único de ser brasileiro, e poucos são os que acreditam que a mistura étnica e a

pluralidade cultural explicam nossa situação de pobreza e desigualdade socioeconômica.

Já avançamos no sentido de compreender que nossa pluralidade cultural é inventiva e

positiva, e que as desigualdades são resultantes de escolhas históricas realizadas por

grupos comprometidos economicamente com os interesses do capital.

A construção de um ideário de nação brasileira, homogeneizante e fundado nas

concepções de grupos socialmente privilegiados, é tardia em nosso país e mostrou-se

precária em termos de propiciar acesso universal à educação de qualidade. O momento

posterior à Independência, por exemplo, é rico em debate sobre instrução, quando parte

da elite se interessa pelo tema, motivada pelo ideal iluminista civilizatório. O período

imperial apresenta uma variedade de propostas para a escolarização nas províncias, não

há um sistema educacional centralizado e nem uma forma única de pensar a educação

escolar; por outro lado, o investimento estatal em educação escolar é ínfimo. O período

republicano acentua o debate, incorpora os novos movimentos políticos e educacionais,

instaura o acesso da maior parte da população à escola. No entanto, a democratização e

qualificação da escola não é obra apenas do sistema de escolarização, e é impossível

vislumbrar melhorias nesse campo sem que os sujeitos sejam ativos nesse processo cujo

início está na sociedade e em seus movimentos sociais, obtém legitimação nas políticas

estatais e efetiva-se nesse espaço privilegiado para a problematização de questões

sociais, que é a escola. A escola e seus agentes ainda estão em fase de aprendizagem

sobre como lidar de forma pertinente com a diversidade de segmentos sociais e culturais

presentes na escola, a fim de ampliar relações democráticas no espaço público.

Nessa perspectiva podemos pensar a função social da escola como espaço

coletivo, de sociabilidades, de aprendizagens, de diferenças e de convivência entre

múltiplas histórias, culturas, misturas e sincretismos. Ao ingressar na escola integramos

e construímos pautas de socialização e sociabilidade. Os processos de escolarização

modernos e contemporâneos estão relacionados com os processos civilizatórios e com

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os de socialização, que incluem a adaptação do indivíduo à sociedade vigente ou

emergente, conforme sua origem social. Norbert Elias (1994b), em suas pesquisas,

dispostas na publicação da obra O processo civilizador, demonstra que os tipos de

comportamento considerados próprios do homem civilizado ocidental são resultado de

uma trajetória de longo prazo, através de mudanças lentas e graduais. Sentimentos como

vergonha e delicadeza, medo e desagrado sofreram mudanças específicas, assim como a

diferenciação entre a experiência desses sentimentos vivida por crianças e adultos. Com

isso, o autor destaca as ligações entre mudanças na estrutura da sociedade e mudanças

na estrutura do comportamento e da constituição psíquica do indivíduo. Segundo Elias,

[...] o processo específico de ‘crescimento’ psicológico nas sociedades

ocidentais, que com tanta frequência ocupa a mente de psicólogos e

pedagogos modernos, nada mais é do que o processo civilizador individual a

que todos os jovens, como resultado de um processo civilizador social

operante durante muitos séculos, são automaticamente submetidos desde a

mais tenra infância, em maior ou menor grau e com maior ou menor sucesso

(Elias, 1994b).

Tal compreensão está relacionada com a concepção inédita de sociedade,

construída teoricamente por esse sociólogo alemão. Para Elias (1994a), os seres

humanos individuais ligam-se numa pluralidade, configurando algo novo: a sociedade.

A indissociabilidade de ambos e, ao mesmo tempo, a singularidade de cada um, é o que

desafia a nossa compreensão. Ambos só podem ser entendidos se investigados como

entidades em mutação e evolução. As atitudes humanas, conforme o autor, são

desenvolvidas na interação social, que inclui a família e a escola, entre outros espaços

educativos, como agências civilizadoras, corresponsáveis nos processos de

socialização.

A família, as mídias, a comunidade e suas organizações, cumprem igualmente

esse papel social, incidindo sobre a socialização do indivíduo e construindo redes de

sociabilidade. Igualmente estabelecem relações com a escola que incluem hábitos

sociais construídos, saberes e fazeres que incidem nos processos de escolarização de

seus membros, por isso é fundamental compreender a escola como um observatório da

comunidade.

A seguir trataremos das possibilidades educacionais constituídas a partir da

compreensão da escola como espaço sociocultural, observatório da comunidade, capaz

de criar movimentos para além dos seus muros, incorporando as múltiplas histórias e

criando oportunidades que possam tensionar a sociedade desigual em que se insere.

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3 A escola como espaço sociocultural e observatório da comunidade

A escola vive um processo de crise de sua função social na sociedade brasileira.

Vários projetos e imaginários convivem num mesmo espaço e cotidiano, especialmente

no que se refere a sua tarefa em relação à formação de seus cidadãos. Vivemos ainda o

paradoxo de uma instituição que abre suas portas a um contingente populacional jamais

visto, mas convive com a precariedade material e pedagógica em muitos casos. Tudo

isso implica a necessidade de desacomodação dos mais variados segmentos escolares,

no sentido de reconhecer a diversidade, bem como as possibilidades de convivência e de

relações interculturais organizadas na valorização das trocas públicas.

Com a entrada de um contingente populacional historicamente alijado das

instituições escolares de nosso país, novas práticas culturais consolidam-se no espaço

escolar. As tendências e perspectivas da abordagem dos temas da diversidade cultural

num projeto de nação mais plural e igualitária estão na pauta de movimentos sociais, de

políticas públicas e também de práticas cotidianas. Todavia, vivemos ainda o paradoxo

entre discursos legais, sociais e pedagógicos, relativamente a práticas possíveis no

cotidiano escolar. De um lado, os movimentos sociais demandam atenção às não tão

novas questões sociais que envolvem etnias, gênero, sexualidade, ambiente natural,

entre outros, e que ainda não são devidamente consideradas no cotidiano escolar. De

outro lado, especialmente nos últimos anos, as políticas estatais têm procurado

regulamentar e definir atenção sobre esses temas. Mais complexa é a tradução dessas

demandas por reconhecimento social e educacional nas práticas educacionais e nos

ambientes cotidianos das escolas, seja a escola básica, seja a universidade. Porém, um

grande desafio é ampliar a afirmação de caráter público da educação e, ao mesmo

tempo, cumprir sua função social incorporando as questões problematizadas a partir da

desigualdade e da diversidade. O foco deixa de ser o privilégio dos títulos escolares e

passa a ser o trabalho com os conhecimentos formais contextualizados, exercitando uma

formação de base necessária para o indivíduo enfrentar os desafios da sociedade,

paralelamente ao desenvolvimento de sua capacidade crítica. Entre os desafios a serem

enfrentados estão todos aqueles relativos à temática da diversidade cultural, expressos

na forma de preconceitos e discriminações variadas.

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O fenômeno do acesso da maioria dos jovens à escola é recente no Brasil e vem

igualmente acompanhado pelas dificuldades de permanência e rendimento escolar. Hoje

temos o acesso consolidado, mas as experiências da evasão, do analfabetismo funcional

e da baixa qualidade da educação brasileira5 permanecem instigando nossas análises.

6

Na atualidade, é um fato o acesso de crianças e jovens, marginalizados

historicamente por sua condição social, à escola pública. A escola, nessa situação, torna-

se um espaço de sociabilidades novas, tornando-se referência para trocas comunitárias

que evidenciam uma apropriação singular dessa instituição centenária. Inspirados em

Dayrell (2001), caracterizamos essas crianças e jovens como atores sociais de formas

frágeis e insuficientes de inclusão.

Para entender a situação desses novos atores na escola, precisamos considerar

que eles têm pouca perspectiva social, com dificuldades de adaptação na escola,

limitados em suas formas de lazer, de participação no mercado de consumo e de

possibilidades de vivenciar sua própria condição juvenil. Diante disso, já não usamos

mais o conceito de exclusão, mas sim o de inclusão precária,7 implementada no modelo

de desenvolvimento presente na sociedade brasileira. Esses jovens, muitas vezes,

formam uma espécie de exército de reserva,8 aguardando vaga nas atividades

relacionadas com o comércio ilegal de drogas. Imersos nessa realidade social, por outro

lado, constroem-se como atores sociais que possuem motivações para a vida e

mobilizam-se em torno de seus grupos, de suas músicas, de seus encontros no pátio da

escola, apontando para novas formas de sociabilidades, para as quais devemos estar

cada vez mais atentos como investigadores e como educadores.

5 Algumas dessas análises estão presentes no relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre

Educação para o Século XXI (Delors, 1998). 6 A situação pode ser visualizada, na atualidade, para além da ampliação da escolarização, em dados

como os expostos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), indicativos das possíveis

causas da redução das matrículas no ensino médio regular, ocorrida em nível nacional a partir de 2005. Os

dados demonstram que há uma diminuição do número de concluintes do ensino fundamental, assim como

uma redução da distorção idade-série no ensino médio; há, além disso, um aumento das matrículas no

ensino médio, na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Os dados encontram-se disponíveis

em Corbucci (2009). 7 Conceito já citado a partir de José de Sousa Martins. Para o autor, “[...] as políticas econômicas atuais,

no Brasil e em outros países, que seguem o que está sendo chamado de modelo neoliberal, implicam a

proposital inclusão precária e instável. Não são, propriamente, políticas de exclusão. São políticas de

inclusão das pessoas nos processos econômicos, na produção e na circulação de bens e serviços,

estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário a mais eficiente (e

barata) reprodução do capital” (Martins, 1997, p. 20). 8 Expressão originalmente marxista e, na atribuição aqui recebida, retirada do artigo de Maria de Nazareth

Agra Hassen (2003).

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A escola tem uma função tradicionalmente socializadora vinculada ao objetivo

de difusão dos conhecimentos sistematizados pela humanidade. Essa socialização

tradicional pressupõe o ato de adaptação e varia a partir das práticas sociais. A escola é

também lugar de sociabilidades, entendidas como processos relativos às interações

grupais que se estabelecem por opção individual e que tem a ludicidade como aspecto

importante. Assim, por exemplo, nos pátios escolares, ou seja, dentro do espaço

institucional, mas fora do ambiente em que se produz sua função prioritária, a sala de

aula, alguns jovens podem construir sociabilidades que subvertem a lógica escolar. Para

eles, tal processo vivido nesses espaços pode ser prioritário na sua relação com a escola.

Se, na perspectiva institucional, os processos de socialização têm presença

marcante ao orientar o indivíduo para a vida social, uma vez que entendemos necessário

repensar a função social da escola, é fundamental visualizar outras formas de trocas

culturais e sociabilidades no seu interior. Isso propicia que vislumbremos novas

possibilidades para a função social da escola. É nessa brecha que se encontram as

potencialidades para viver a diversidade e tensionar a desigualdade! Para tanto, é

necessária a conexão entre as ações da escola e os movimentos comunitários e culturais

de seu entorno, sejam eles compostos por grupos organizados ou não.

Finalmente defendemos a escola como lócus de investigação e ação junto às

questões da diversidade, no seu espaço socioinstitucional e no seu entorno, capaz de

tornar-se um observatório ativo da comunidade da qual faz parte. Dessa forma,

focalizamos movimentos mais amplos que buscam transformar as maneiras de ser e de

fazer da instituição escolar, criando ações que tentam conectá-la às redes sociais

caracterizadas pela pluralidade e diversidade das experiências cotidianas, capazes de

contribuir na superação dos preconceitos e discriminações ainda presentes em nosso

país. Obviamente, não é somente responsabilidade da escola a construção de ações

educativas nessa perspectiva, mas reconhecidamente sua participação é fundamental.

Qual o papel do professor diante dessa proposição? Para Cury,

Nisso o múnus do professor é insubstituível, no sentido de estar preparado

para enfrentar a questão da alteridade na diferença. Também não se pode

deixar de apontar que a importância da educação escolar ainda não conseguiu

chegar a ponto de mobilizar agressivamente a sociedade civil em prol de sua

dignidade e valor. É preciso que essa bandeira chegue à população e que ela

possa injetar novo ânimo aos educadores identificados com a cidadania e

com os direitos humanos e possa cobrar dos governos o devido empenho para

com um direito que deve conjugar a igualdade jurídica com a igualdade

substantiva (Cury, 2005, p. 29-30).

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20

O professor que entende que pesquisa e docência são indissociáveis facilmente

aderirá à ideia da escola como observatório da comunidade, a fim de conhecer e

problematizar relações sociais marcadas pela desigualdade e pela diversidade.

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