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ordem dos enfermeiros | Número 20 | Janeiro 2006 Número 20 | Janeiro 2006 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629 VI Seminário do Conselho Jurisdicional Final de vida

Final de vida

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Número 20 | Janeiro 2006 | www.ordemenfermeiros.pt | ISSN 1646-2629

VI Seminário do Conselho Jurisdicional

Final de vida

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i informação

e conf idenc ial idade

i i Questões ét icas da

Prát ica de enfermagem

i i i Questões ét icas das

r e lações Prof iss iona is

i V dod ire i to ao cu idado

V ét ica de enfermagem

Conselho JurisdiCional 2.º CiClo de deBaTes

"Cuidados seGuros"

na sequência da actividade desenvolvida em 2005, de debate nas regiões, ,

o Conselho Jurisdicional entende levar a cabo o 2.º CiClo de deBaTes, que decorrerá em Fevereiro e Março de 2006. está subordinado ao tema "Cuidados seGuros", centrando-se numa problemática actual e relevante, no âmbito ético-deontológico.

PonTa delGada29 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)

audiTório da esCola suPerior de enFerMaGeM de PonTa delGada

seCção reGional da r. a. açores

fax: 296281848 / [email protected]

insCreva-se PreviaMenTe Por e-mail ou Fax

FunChal23 de Fevereiro de 2006 (14h 30M - 17h 30M)

audiTório da Casa da luz seCção reGional da r. a. Madeira

fax: 291237212 / [email protected]

BraGa11 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)

audiTório do hosPiTal de são MarCosseCção reGional do norTe

fax: 225072719 / [email protected]

CoiMBra18 de Março de 2006 (9h 30M - 12h 30M)

audiTório do CenTro de ConGressos dos h.u.C. seCção reGional do CenTro

fax: 239487819 / [email protected]

Faro24 de Março de 2006 (14h 30M - 17h 30M)

audiTório CaMPus de GaBelas da universidade de Faro

seCção reGional do sul

fax: 213815559 / [email protected]

São agendadoS

cinco debateS,

um em cada Região,

e pRetende-Se

ReflectiR em

conjunto SobRe

oS aSpectoS

da pRática de

cuidadoS que Se

Relacionam com

a peRSpectiva

ética da geStão

do RiSco e oS

caminhoS paRa

cuidadoS

SeguRoS.

©antó

niofreitas

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ordem dos enfermeiros

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editorial – Bastonária �

cara(o) colega

Mesmo estando ciente das dificuldades que en-

volvem o juízo em causa própria, considero que

o Seminário de Ética, organizado anualmente

pelo Conselho Jurisdicional, é já imprescindível,

no panorama da enfermagem nacional. Muitos

são os argumentos que sustentam esta minha

convicção, mas, se mais não houvesse, bastaria

a extraordinária adesão que sempre tem por

parte dos enfermeiros para confirmar e privile-

giar este espaço de reflexão e debate no plano

nacional da Ordem.

Inscreveram-se este ano mais de mil enfermei-

ros e muitos mais foram os que manifestaram

interesse em nele participar. Embora lamente

que muitos não tenham tido a oportunidade

de assistir a tão relevantes comunicações e de

partilhar experiências e dúvidas com os seus

autores, bem como de lhes colocar questões

ou solicitar opiniões, a Ordem não consegue

ultrapassar as barreiras que os tempos e os

espaços impõem. Mas é nosso dever propor-

cionar a todos os membros o acesso ao acervo

documental do que todos partilharam.

É, pois, com enorme satisfação que a Ordem

dos Enfermeiros lhe disponibiliza, mais uma vez,

através da Revista que hoje lhe chega e graças

à amabilidade dos autores, os textos de todas

as comunicações proferidas no VI Seminário de

Ética sobre o Final de Vida.

Recordo que, já em 2004, a Revista da Ordem dos

Enfermeiros dedicou integralmente um número

à divulgação das comunicações do V Seminário

de Ética dedicado ao aprofundamento da Ética

de Enfermagem. Gostaria de vos dizer que as

inúmeras manifestações de agrado que recebe-

mos e a elevada procura que este número con-

tinua a ter legitimam esta opção editorial, que é

também um serviço prestado aos membros.

O tema escolhido para o seminário deste ano

– final de vida – é um tema de especial interesse

para a maioria dos enfermeiros. Sendo sempre

de difícil abordagem pela enorme carga emo-

cional que, na maior parte das vezes, transporta

ou desperta em cada indivíduo, os enfermeiros

têm dedicado muito tempo ao estudo de assun-

tos e aspectos especialmente relevantes para

melhor lidarem com pessoas em final de vida,

nos contextos em que exercem a profissão.

As escolhas do Conselho Jurisdicional, que

cuidadosamente preparou esta actividade,

revelam-nos perspectivas diferentes sobre

realidades que julgamos conhecer bem. Ao

longo das intervenções que foram feitas e dos

textos que agora poderá ler, podem encontrar-

-se tratadas desde a problemática ético-legal às

questões da morte ao longo do ciclo vital, isto é,

nas diferentes etapas da nossa vida: a infância,

a adolescência, a juventude, a idade adulta e a

velhice. Mas também as questões mais abran-

gentes foram abordadas, como as relacionadas

com o sentido da vida e o sofrimento humano,

com o suicídio e com a eutanásia.

São contributos de enfermeiros e de outros

profissionais que se têm dedicado a aprofundar

questões que nos inquietam a todos. É justo

aqui manifestar o nosso agradecimento pela

riqueza com que todos nos brindaram e que

todos partilhámos.

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ordem dos enfermeiros

Ordem dos Enfermeiros – Sede: Av. Almirante Gago Coutinho, 75 – 1700-028 Lisboa – Tel.: 218 455 230 / Fax: 218 455 259

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Bissaya Barreto, 191, c/v – 3030-076 Coimbra – Tel.: 239 487 810 / Fax: 239 487 819 – E-mail: [email protected]

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Director: Maria Augusta Sousa

Coordenador: António Manuel

Conselho editorial: Amílcar Carvalho,

Élvio Jesus, Graça Machado, Jacinto

Oliveira, Sérgio Gomes, Margarida

Filipe, Nelson Guerra, Teresa

Chambel, Teresa Oliveira Marçal

Colaboraram neste número:

Aaldert Mellema, Abílio Oliveira,

Armandina Antunes, Filipe Almeida,

Lucília Nunes, Lurdes Martins,

Manuela Amaral, M.ª Isabel Renaud

Norberto Silva, Pedro Ferrari,

Rogério Gonçalves, Rui Nunes,

Sérgio Deodato e Susana Pacheco.

Secretariado: Tânia Graça

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Periodicidade: Trimestral

Tiragem: 49 000 exemplares

Distribuição gratuita aos membros

da Ordem dos Enfermeiros

Depósito legal n.º 153540/00

Duas das comunicações apresentadas trouxe-

ram-nos os resultados de estudos realizados.

Um aborda alguns aspectos da forma como os

enfermeiros vivenciam a morte, e o nosso colega

holandês deu-nos conhecimento dos resultados

de outro, numa comunicação que problematiza a

questão da eutanásia no seu país. Os resultados

de ambos falam por si. Sem querer fazer inter-

pretações, não posso deixar de me inquietar com

as consequências que uma tão grande exposição

ao final da vida de quem cuidamos e uma tão

grande proximidade naquele momento têm na

vida profissional e pessoal dos enfermeiros.

Durante o Seminário, foi afirmado:

“O enfermeiro é habitualmente considerado

como alguém que a tudo resiste. É bem verdade

que as suas vivências profissionais quotidianas

o expõem a situações-limite que, muitas vezes,

nem em cenários de guerra se encontram. São

grandes os impactes emocionais e estes não são

só causados por imagens de violência física....”

Com estas notas, gostaria de deixar aqui tam-

bém expressa a minha certeza de que o tempo e

o espaço de partilha que o Seminário proporcio-

nou àqueles que puderam estar presentes, bem

como aquilo que aqui fica escrito tornar-se-ão

num importante instrumento de trabalho indi-

vidual e colectivo, capaz de gerar outros tempos

e espaços de partilha. Pertencerão estes aos

nossos quereres e às nossas dificuldades, rela-

cionados com o apoio prestado a cada pessoa

de quem cuidamos e que é portadora de uma

Vida em fase final.

Precisamos de ser cada vez mais capazes de

lidar com a realidade que recusamos dentro de

nós, para podermos garantir, assumindo uma

postura profissional, que vivenciamos com o

outro a sua realidade.

Este tempo de trabalho das nossas próprias

vivências, na prática dos cuidados de en-

fermagem em final de vida, é um tempo de

investimento na melhoria da qualidade dos

cuidados que os enfermeiros devem oferecer

aos cidadãos, porque lhes permitirá, estando

melhor consigo próprios, assumir melhor a sua

responsabilidade profissional.

Façamos o caminho para que este seja um es-

paço de respeito pelas vontades e liberdades.

Saudações amigas da vossa Bastonária

Maria Augusta Sousa

editorial – Bastonária

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SumárioN.º 20 | Janeiro 2006

Sumário

04 Palavras de apresentação

06 Autonomia e morte

14 A morte no ciclo vital – Morte em pediatria

16 Olhar inquieto. O jovem perante a morte

31 A morte no ciclo vital: perspectiva da enfermagem

35 A morte no ciclo vital – Comentário de Rui Nunes

38 A morte no ciclo vital – Comentário de Jacinto Oliveira

41 Cuidado no final de vida – Dos deveres para com o doente terminal

46 A morte vista da Urgência

53 Final de Vida

57 Lidar com a morte na equipa de enfermagem

62 O papel dos enfermeiros nas decisões de fim de vida

66 Cuidado no final de vida – Comentário de Delfim Oliveira

70 Cuidado no final de vida – Comentário de Lucília Nunes

71 Da finitude e fragilidade humana

78 VI Seminário CJ – Final de vida. Conclusões

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ordem dos enfermeiros

Palavras de apresentação

Lucília Nunes

Presidente do Conselho Jurisdicional

Com periodicidade anual, o Seminário tem o propósito geral de

responder a necessidades expressas ou a temas considerados

pertinentes e relevantes para a prática profissional, procurando

contribuir para o aprofundamento e para a divulgação do Có-

digo Deontológico do Enfermeiro. Neste VI Seminário (Porto, 11

de Outubro, 2005), o Conselho Jurisdicional pretendeu conti-

nuar a promover a reflexão ético-deontológica, numa temática

relevante e ao encontro do definido no Artigo 87 do Código

Deontológico do Enfermeiro, relativo aos “deveres para com o

doente terminal”. Sendo certo que aos enfermeiros compete a

prestação de cuidados ao longo do ciclo vital, decorre, também,

o acompanhamento das pessoas, das famílias e dos conviventes

significativos nos processos de morrer. Escolhemos, para este

seminário, o tema Final de Vida pela pertinência, pela relevância

e pela importância que lhe é atribuída nas questões colocadas

face a esta circunstância de prestação de cuidados. Foi, em

2005, coincidência feliz que decorresse na Semana Nacional

de Cuidados Paliativos, a que nos associámos.

A morte acontece ao longo do ciclo de vida, e abordámos di-

ferentes perspectivas, em painel multidisciplinar designado “A

morte no ciclo vital”, considerando a perspectiva pediátrica, do

adolescente e jovem adulto e da intervenção de enfermagem.

Em relação ao “Cuidado no final de vida”, foram debatidos os

temas relacionados com os deveres para com o doente termi-

nal, a morte vista da Urgência, os cuidados paliativos, a tríade

enfermeiro-família-doente terminal, o lidar com a morte no

seio da equipa de enfermagem e o papel dos enfermeiros nas

decisões de fim de vida. Neste tema, destaca-se a participação

de Aaldert Mellema, enfermeiro holandês, membro de uma

organização nacional, a propósito da vivência da eutanásia

entre os enfermeiros.

As conferências inicial e final foram momentos de explicita-

ção em relação à autonomia e morte e à fragilidade e finitude

humana. As Conclusões sintetizam e reúnem os tópicos mais

relevantes das actividades do dia.

Como ocorreu com o seminário de 2004, entendeu-se relevante

a publicação dos textos por forma a ampliar a partilha e a

promover a continuação do debate e da reflexão; neste sen-

tido, uma palavra de especial agradecimento aos prelectores e

comentadores por esta (mais uma) colaboração.

A exemplo de anos anteriores, o Seminário teve elevada adesão

por parte dos colegas. Num balanço geral, contou com 972

participantes: 881 enfermeiros, 80 estudantes de Enfermagem

e 11 profissionais de outras áreas.

Destes, 163 fizeram avaliação escrita no questionário fornecido

– da análise dos questionários, verifica-se que a maioria possui

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o título profissional de enfermeiro (83%), 9% são enfermeiros

especialistas e 7% estudantes de Enfermagem. Relativamente

à idade dos participantes, a maioria encontra-se na faixa

etária dos 20-29 anos (51%), 29% na faixa dos 30-39 e 11%

na dos 40-49 anos. Quanto ao local de trabalho, verifica-se

a predominância do hospital (66%), havendo 9% a trabalhar

em centros de saúde e 7% em escolas superiores de saúde /

enfermagem.

A avaliação dos trabalhos foi globalmente muito positiva, pois a

maioria considerou a metodologia, os conferencistas, os meios

audiovisuais, o secretariado e o espaço físico adequados, com

valores superiores a 90%. Das sugestões dadas, destacam-se a

proposta de mais tempo para o debate e o cumprimento dos

tempos das comunicações. Dos comentários, os mais referidos

são, pela positiva, a participação do enfermeiro holandês e, pela

negativa, o apoio precário da restauração (bar).

Uma nota relevante, que o Conselho Jurisdicional se apraz em

registar, relaciona-se com o preenchimento e com a entrega

dos questionários de avaliação, onde, além de ajuizarem sobre

o evento em si, os colegas foram generosos em sugestões e

comentários, contributos preciosos para o desenvolvimento

de um trabalho que procurará responder às necessidades, aos

interesses e às expectativas. A todos, um bem-haja!

Consideramos que este VI Seminário foi mais um passo no cami-

nho por ora percorrido e, naturalmente, encontramos aspectos

a melhorar e a promover, designadamente no que se reporta

aos espaços de debate e à partilha de experiências vividas e de

reflexões, em contextos de trabalho. Neste aspecto, esperamos

que o Ciclo de Debates nas secções regionais, iniciado em 2005

e que nos propomos continuar em 2006, possa potencializar a

partilha de experiências e a reflexão conjunta sobre os aspectos

que mais preocupam na prática diária.

O enquadramento ético e deontológico da profissão filia-se, em

primeira instância, no desígnio de uma prestação de cuidados

de enfermagem de qualidade que respeita os direitos das pes-

soas, bem como as responsabilidades próprias da profissão. Os

caminhos a percorrer dependem de todos nós, do que souber-

mos, pudermos e formos capazes de realizar: a bem daqueles

a quem prestamos cuidados, a bem da profissão, a bem de um

agir reflectido de ser enfermeiro. oe

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Sérgio Deodato

Vogal do Conselho Jurisdicional

A proposta para esta conferência inicial do VI Seminário de Ética

é a de reflectirmos um pouco sobre a ligação – ou, talvez mais, a

confrontação – entre o exercício da autonomia e a morte.

Tentaremos olhar a morte à luz do exercício da autonomia in-

dividual, questionando-nos, nomeadamente, sobre um eventual

direito a morrer.

Pretendemos seguir este olhar na dupla perspectiva ética e jurí-

dica, na convicção de que se relacionam com o agir do enfermeiro

e concorrem para a deontologia profissional.

Seguindo a ideia de Paulo Ferreira da Cunha, no seu livro O

Tímpano das Virtudes, reflectiremos desta forma transdisciplinar,

trazendo também a arte a esta conferência.

Neste livro, o autor discute as relações entre a ética e o direito a

partir da apreciação dos frescos pintados por Rafael (um pintor

renascentista) numa sala do Vaticano: a Stanza della Segnatura

(cujo nome deriva do facto de aí ter funcionado um tribunal

eclesiástico – Tribunal della Signatura Gratiae). O pintor chamou

aos seus frescos a Filosofia, o Direito, a Teologia e a Poesia e

pintou-os nas paredes e no tecto desta sala.

É à luz desta transdisciplinaridade que, para falar de autonomia

e morte, vos convido a entrar na Stanza della Segnatura e sobre

o seu interior lançar alguns olhares. É que estes frescos, pela sua

beleza e pelo seu sentido, poderão ajudar-nos a reflectir sobre

a morte, enquadrada no exercício dos direitos em resultado da

autonomia individual, exactamente porque sugerem olhares

diferentes para o tema em análise.

Para começar, olhemos o tecto da Stanza, onde está pintada a

Justiça que, tal como a autonomia, constitui um princípio ético.

A autonomia

A autonomia da pessoa é hoje aceite (pelo menos no espaço socio-

político e geográfico onde nos inserimos) como um princípio ético

basilar. Notemos que o conceito actual de autonomia deve muito

ao pensamento de Kant. Para este filósofo, só sendo autónoma

a pessoa pode agir como ser moral, escolhendo e respeitando a

lei moral. Contrapõe a autonomia à heteronomia, ou seja, a um

agir de forma obediente sem reflexão crítica. O crescimento e

o desenvolvimento pessoal devem conduzir à maturidade que

permite o exercício desta autonomia1. Ou seja – numa primeira

nota, ou numa primeira pincelada –, diriamos que a autonomia

resulta do processo de desenvolvimento pessoal e que nos permite,

concretamente, o exercício da nossa cidadania.

Como corolário da autonomia individual de cada pessoa, ou na

essência desta autonomia, encontra-se o autogoverno sobre

si próprio, traduzido na liberdade de tomar decisões sobre si e

sobre a sua vida.

Contudo, segundo Michel Renaud, esta liberdade está “longe de

se limitar a ser pura possibilidade de escolha; a liberdade humana

1 THOMPSON, Ian; E. MELIA, Kath M.; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem. 4.ª ed. Loures: Lusociência, 2004. ISBN 972-8383-67-3. p. 184.

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autonomia e morte

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é a realização do espírito na humanidade do ser humano”2.

Isto significa que, quando exercemos a nossa autonomia, não o

fazemos para um fim qualquer, escolhendo o que nos apetece

simplesmente, mas escolhemos com um fim humano. E, assim,

existem, a priori, hipóteses de escolha que não são sequer equa-

cionadas para tomar uma decisão.

Lembrando o filme A Ilha, se tenho uma doença grave no fígado,

não escolho retirar o fígado a outra pessoa para ficar curado.

Não me realizaria como humano esta decisão. Na escolha para

o meu tratamento, poderia considerar múltiplas hipóteses, mas

nunca equacionaria esta.

Michel Renaud considera que “o sentido filosoficamente mais

rico da liberdade não é o da liberdade de escolha, mas o da

liberdade enquanto realização de si mesmo”3. Estamos, assim, a

enquadrar a autonomia e, concretamente, a exteriorização dela

numa reflexão mais profunda, assente

no sentido da vida.

Na abordagem ética do tema da morte

(como noutros, de resto), a autonomia

individual deve ser discutida tendo

como pano de fundo o sentido da vida.

Isolar a liberdade de agir daquilo que

fundamenta o próprio agir pode condu-

zir-nos a caminhos desviantes do objecto essencial da reflexão. A

abordagem do eventual direito a morrer, enquanto titularidade

individual para livremente decidir matar-se, não tendo em conta

o sentido que damos à vida humana, pode levar-nos a conclu-

sões que contemplem o exercício deste direito, com base numa

liberdade sem fundamento verdadeiramente humano.

Vasco Magalhães4 considera que o sentido da vida reside na

própria pessoa. A pessoa que encontra na transcendência “o ir

2 RENAUD, Michel – A “Dignidade Humana”. Reflexão retrospectiva e prospectiva. «Ca-dernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 23 (Ago. 2000) 29.

3 RENAUD, Michel – Liberdade e consenso. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 36 (2004) 42.

4 MAGALHÃES, Vasco – O sentido da vida. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 30 (2002) 115.

de si para o outro”5, o sentido para a vida. É este encontro com o

outro que nos permite, através da relação estabelecida, perceber

o sentido que fazemos para o outro e logo descobrir que a nossa

vida faz sentido (só faz sentido) com o outro. Parece-nos, assim,

que a reflexão sobre uma decisão que ponha fim à nossa vida

terá sempre de incluir a dimensão do sentido da vida.

Analisar um possível direito de dispor da vida (utilizando a

eutanásia ou o suicídio assistido), sem equacionar esta dimen-

são, distorce a reflexão, limitando-a ao subjectivismo isolado

– aquilo que cada um poderá pensar livremente, mas não hu-

manamente.

De outra perspectiva, diríamos, portanto, que o agir livremente

no âmbito da autonomia individual consubstancia-se numa

liberdade responsável. Os actos decididos livremente na cons-

ciência de cada um originam consequências para o próprio e

para os outros, na medida das relações

estabelecidas. Deste modo, o exercício

da liberdade não ocorre de forma

ilimitada, mas sim tendo em conta os

limites impostos pela desumanidade

das consequências que estes podem

originar.

É a este propósito que alguns autores

falam em autarcia, definindo-a como a “autonomia da pessoa

enquanto cortada de todas as suas ligações com os outros”6.

Se falamos de uma autonomia cujo exercício se desenvolve

afastado da normal relação com os outros, sem ter em conta as

consequências nos outros com os quais vivemos, então não será

uma verdadeira autonomia.

Pelos actos que praticamos e, nomeadamente, pelos efeitos

produzidos nos outros e em nós, temos de responder ou assumir

5 MAGALHÃES, Vasco – O sentido da vida. «Cadernos de Bioética». Coimbra: Centro de Estudos de Bioética. 30 (2002) 117.

6 RENAUD, Isabel – Comentário. In: PRESIDÊNCIA do Conselho de Ministros – Tempo de Vida e Tempo de Morte. Conselho de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa, 2001. ISBN 972-8368-20-8. p. 61.

... a autonomia individual

deve ser discutida tendo

como pano de fundo

o sentido da vida.

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ordem dos enfermeiros

a responsabilidade pelo acto praticado. É este fundamento que

preside aos diferentes tipos de responsabilidade que assumimos

na vida em sociedade todos os dias.

Aqui é próxima a passagem ao domínio jurídico, onde a res-

ponsabilidade se encontra dividida conforme o tipo de acção

praticada e, sobretudo, tendo em conta o resultado que pro-

duziu. É assim que falamos em responsabilidade civil, penal ou

disciplinar. Responsabilidade civil, se provocamos um dano em

alguém; penal, se praticamos um crime; e disciplinar, se violamos

um dever profissional.

Se passarmos à deontologia, a liberdade responsável constitui

uma dimensão essencial do agir ético. Por isto se entende que “a

liberdade responsável” surja como um valor da prática ética, no

respeito pela dignidade da pessoa cuidada e tendo em atenção

o bem comum. Assim se encontra no nosso código deontológico7

como valor universal a observar, no Artigo 78, n.º 2, alínea b.

Mas, para além da dimensão heteronómica da liberdade res-

ponsável, interessa-nos igualmente a vertente pessoal das

consequências dos actos que praticamos. Ou seja, discutir se a

autonomia individual permite a tomada de decisões que, não

tendo consequências (aparentes) para os outros, podem preju-

dicar ou terminar a vida. É neste âmbito que se inclui a reflexão

sobre os actos que provoquem a morte, como o suicídio, o

suicídio assistido ou a eutanásia. Ou seja, é nesta perspectiva

da autonomia e da liberdade do agir que pretendemos reflectir

sobre um eventual direito a morrer.

O ambiente acolhedor da Stanza della Segnatura permitir-nos-á,

com toda a certeza, reflectir com tranquilidade. Proponho um

olhar para os frescos alusivos ao Direito, que Rafael pintou em

ligação com as virtudes e com a justiça de forma destacada (hie-

rarquizando justiça – virtudes – direito, pintando nesta ordem do

tecto para as paredes, ou seja, de cima para baixo). Tentaremos

reflectir a ligação entre a autonomia e o exercício dos direitos

7 CÓDIGO Deontológico do Enfermeiro. Incluso no Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril. Artigo 78, n.º 2, alínea b.

na tentativa de clarificar uma posição sobre a forma como a

autonomia pode fundamentar um eventual direito de decidir

sobre o fim da vida.

Autonomia e direitos humanos

A autonomia individual, sendo inerente à condição humana, mani-

festa-se ou exterioriza-se através dos direitos. Trata-se dos direitos

inerentes à condição humana: os direitos humanos, consagrados

na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em outras con-

venções internacionais, na Constituição e em diversas leis.

A nossa deontologia profissional, exposta no Código Deontoló-

gico e em diversos pareceres emitidos pelo Conselho Jurisdicio-

nal, consagra como valor profissional o respeito pelos direitos

humanos. De resto, seguindo o pensamento de Lucília Nunes8,

os deveres do enfermeiro previstos no Código têm correlação

com os direitos consagrados aos cidadãos nossos clientes, na

medida em que a cada dever corresponde um ou mais direitos das

pessoas cuidadas. O enfermeiro assume deveres para proteger e

salvaguardar os direitos do cidadão a quem presta cuidados.

Como pano de fundo, ou como fundamento ético, o Artigo 78 do

Código Deontológico prevê, no seu n.º 3, alínea b, “o respeito pelos

direitos humanos na relação com os clientes” como um “princípio

orientador da actividade dos enfermeiros”. E, nos artigos 81, 82 e

83, prevêem-se, em concreto, os direitos que o enfermeiro deve

proteger no seu exercício profissional: como o direito à vida, os

direitos da pessoa idosa, os direitos da criança, entre outros.

Da mesma maneira, quando reflectimos sobre a ética de en-

fermagem (como o fizemos no seminário do ano passado),

inclui-se, naturalmente, a dimensão do respeito pelos direitos

humanos, nomeadamente como um valor “em relação à Pessoa

assistida”9.

8 NUNES, Lucília – Equacionando direitos humanos e necessidades em cuidados. «Revista da Ordem dos Enfermeiros». 4 (Nov. 2001) 21-25.

9 NUNES, Lucília – A especificidade da Enfermagem. In: NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Desafios. COIMBRA: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 972-603-326-8. pp. 33-48.

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ordem dos enfermeiros

De todos, o direito à vida assume um especial destaque por ser

a vida humana que permite o exercício dos outros direitos. Só

faz sentido falar em direitos humanos ou direitos de persona-

lidade como direitos ligados à vida10, cuja titularidade e cujo

exercício dependem da vida. E o enfermeiro, de acordo com a

alínea a, do Artigo 82 do Código Deontológico, “assume o dever

de defender a vida humana em todas as circunstâncias”.

É neste contexto, em que reflectimos sobre autonomia e di-

reitos humanos, que talvez valha a pena levantar a seguinte

questão: a liberdade de decidir sobre si como corolário da

autonomia poderá, então, justificar a prática de actos que

comprometam seriamente ou ponham fim à vida? Ou, de

outro modo, encaramos como possível a existência de um

direito a morrer?

Dois caminhos poderemos seguir neste ponto da nossa reflexão:

ou consideramos que a autonomia de cada um é absoluta, o que

permite que o exercício da liberdade justifique o direito de decidir

morrer; ou, de outra forma, encaramos a vida humana como valor

supremo, o que exige respeito e protecção por todos, incluindo

10 Mesmo que alguns se dirijam à memória da pessoa depois de morta, só existem por que houve vida.

o próprio. E, perante estas possibilidades de escolha, assumimos,

deliberadamente, uma posição.

Começamos por discutir o conceito de ‘direito a morrer’ no

confronto com o de ‘direito à vida’. Olhando agora, na mesma

sala onde nos encontramos, o fresco Tímpano das Virtudes,

onde Rafael pintou as virtudes e encontrando-se na parede,

acima do fresco do Direito ou das leis, poderemos entender,

como Paulo Ferreira da Cunha, que as virtudes presidem às

leis, o que significa que no exercício dos direitos pessoais que

são atribuídos ou reconhecidos pelas leis, a mediação é feita

pelas virtudes.

Direito à vida versus direito a morrer

O direito à vida é um direito de personalidade, portanto, inerente

a cada um, pelo ‘simples’ facto de se ser pessoa. Está consagrado

no Artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no

Artigo 24 da Constituição da República Portuguesa e com especial

protecção no Código Penal. No nosso código deontológico, está

salvaguardado no Artigo 82, como vimos.

Sendo um direito de personalidade, inclui um conjunto de

características que lhe dão um estatuto próprio no mundo

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jurídico, com uma posição de superioridade face às outras

categorias de direitos.

Das diversas características dos direitos de personalidade,

destacamos o carácter absoluto e a indisponibilidade. Sendo

absolutos, impõem-se erga omnes, o que significa que são

respeitados por todos. A indisponibilidade significa que não

podem estar disponíveis no comércio jurídico, sendo também

irrenunciáveis, ou seja, indisponíveis também para o próprio.11

Sendo a vida um direito de personalidade, numa perspectiva

jurídica, podemos considerá-la indisponível, inclusive para o

próprio. Se é um direito que integra a própria personalidade e

que suporta todos os outros direitos, não fará sentido pensar

em liberdade de exercício, até porque não se trataria de liber-

dade, porque este é um conceito ligado à vida, que só existe

nas pessoas vivas. Assim, sendo indisponível, não pode cada

pessoa extinguir a sua titularidade.

Há direitos dos quais podemos extinguir a respectiva titulari-

dade: se eu oferecer a minha caneta, extingo o direito de pro-

priedade que tenho sobre ela, sem qualquer problema jurídico,

ético, moral ou disciplinar. Mas querer extinguir a titularidade

do direito que tenho sobre a minha vida… pensamos tratar-se

de um domínio diferente.

Nesta perspectiva, actos como o suicídio, o suicídio assistido

ou a eutanásia, não configurando um agir ético, não poderão

ser aceites pela ordem jurídica, nem pela nossa deontologia

profissional, exactamente porque implicam dispor da vida,

extinguindo a titularidade do direito à vida. É, de resto, o que

se passa entre nós, no nosso ordenamento jurídico e deonto-

lógico.

A eutanásia não está prevista na lei, pelo que qualquer acto

que provoque a morte de outro é considerado homicídio, nos

termos dos artigos 131 a 133 do Código Penal.

11 ASCENSÃO, José de Oliveira – Teoria Geral do Direito Civil. Vol. I. Lisboa: FDL, 1996. p. 95.

No plano deontológico, no “enunciado de posição” de 2002,

também a Ordem dos Enfermeiros recusa a eutanásia, con-

siderando-a como uma “posição extremada”. O suicídio, não

podendo, naturalmente, ser penalizado relativamente ao agente,

está criminalizado para quem incita ou ajuda, nos termos do

Artigo 135, e para quem o publicita, nos termos do Artigo 139

do Código Penal.

Leva-nos, assim, a crer que a nossa ordem jurídica e a nossa deon-

tologia protegem a vida humana, não através de cada ser humano

em particular, mas protege-a em geral, como uma comunidade

humana. De tal forma, que mesmo em consequência de um acto

de vontade, como o suicídio, o nosso Direito condena-o, por via

indirecta, relativamente a terceiros intervenientes. Ou seja, não

consagra, no nosso entendimento, um direito a morrer.

De outra perspectiva, podemos discutir se esta indisponibilidade

terá ou não fundamento na ‘propriedade’ da vida. É que, se acei-

tarmos a disponibilidade da vida e, como consequência, a prática

de actos que lhe ponham fim, estamos a transformar a vida

humana num bem negociável e a colocá-la ao nível dos direitos

de propriedade. De resto, é este o raciocínio seguido por quem

defende o direito a morrer: dispomos da nossa vida porque somos

donos de nós (lembram-se que anteriormente tínhamos concluí-

do que dispor da propriedade – da caneta ou de qualquer outro

bem do qual se é dono – é juridicamente possível, normal).

O Padre Feytor Pinto considera (a este respeito, e marcando uma

posição católica) que a indisponibilidade da vida pelo próprio

deriva do facto de não termos sobre ele propriedade, uma vez

que ela “é de uma humanidade em crescimento…”12. Esta é a

perspectiva da vida como um bem supremo, com valor que supera

a vontade de cada um. É a sacralidade da vida entendida como

fora do domínio da pessoa, porque atribuída por Deus. E, portanto,

não sendo escolhido o início por cada um de nós, também não

fará sentido que possamos decidir do seu fim.

12 PINTO, Feytor – O direito de morrer: Perspectiva teológica e ética. In: ASSOCIAÇÃO dos Médicos Católicos Portugueses – Da Vida à Morte. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1988. pp. 203-218.

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Ao contrário, a defesa da vida como valor subalterno rela-

tivamente à liberdade13 (como defende a posição oposta)

permite concluir pela disponibilidade da vida, uma vez que

a liberdade, sendo o bem supremo, autoriza a prática de ac-

tos que ponham fim à própria vida. Para os defensores desta

tese, é a liberdade que é a “condição suficiente para que o

homem exista como homem”, sendo a vida apenas “condição

necessária”14.

Sou pessoa porque sou livre…para ser livre e ser pessoa preciso

de ter vida, diriam.

Mas, sem questionar o carácter essencial da liberdade na

condição humana, fará sentido pensar em liberdade destacada

da vida? Que sentido terá a liberdade se se destinar a pôr fim

à vida? Assim, e neste contexto, consideramos que aceitar a

morte como um direito coloca, desde logo, diversas questões

de ordem ética, deontológica e jurídica. É estando vivo que a

pessoa é titular de direitos e pode exercê-los. Ora, não faz assim

sentido existir na nossa esfera pessoal um direito que elimina

todos os outros, porque extingue a vida.

Por outro lado, colocava-se a questão da protecção jurídica

que todos os direitos têm. Se houvesse um direito a morrer,

a ordem jurídica teria de mobilizar meios que permitissem o

exercício deste direito. A ser exercido, seria o último dos direitos

a ser concretizado.

Depois, sendo o direito a morrer um direito de personalidade,

gozaria das características inerentes a estes direitos. E, assim,

como vimos anteriormente, seriam absolutos, o que significaria

que todos teriam o dever de respeitar. Ou seja, todos teríamos

o dever de respeitar que uma pessoa, no momento em que

decidisse, tivesse os meios para pôr termo à sua vida.

13 PIEPER, Annemarie – Argumentos éticos em favor da liceidade do suicídio. In: POHIER, J. [et al.] – Suicídio e Direito de Morrer. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 1970. pp. 49-60.

14 PIEPER, Annemarie – Argumentos éticos em favor da liceidade do suicídio. In: POHIER, J. [et al.] – Suicídio e Direito de Morrer. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 1970. p.56.

Por outro lado, uma questão ainda se levantaria no que se

refere ao exercício do direito por terceiro, como, por exemplo,

dos pais relativamente aos filhos. Considerando a titularidade

do direito a morrer como universal, incluímos também aquelas

pessoas que estão incapacitadas de decidir sobre si, tal como os

menores ou outros considerados incapazes, a quem a lei atribui

o “poder” do exercício dos seus direitos a outrem.

Concebemos como legítimo que uma pessoa possa exercer o

direito de morrer de outra? Será legítimo que os pais possam

decidir sobre a morte de um filho só porque exercem o poder

paternal? Portanto, assumido como um direito, a morte teria

obrigatoriamente de gozar de tutela jurídica, e teríamos um

confronto permanente entre a protecção da vida e a defesa

da morte. Os tribunais passariam a julgar, tendo em conta o

respeito pela vida e também em defesa do direito à morte. E

havendo conflito? Como decidiria o juiz?

Podemos imaginar alguém que seria acusado de não fornecer

os meios para uma pessoa exercer o seu direito de morrer. O

tribunal condenaria pelo facto de uma pessoa ter evitado que

outra pessoa morresse. Continuando a ficção, podemos imagi-

nar um cenário possível, em que de manhã o tribunal condenava

alguém por não ter prestado auxílio a uma vítima mortal e de

tarde, condenaria uma outra pessoa porque, prestando auxílio,

não permitiu que a pessoa morresse.

Talvez este exemplo nos aproxime da clarividência necessária

para abordar a questão, tornando possível a análise de todas

as vertentes do problema. Nesta, como porventura em todas

as questões éticas, a maior falácia poderá ser a de olhar apenas

numa perspectiva, sem abrir os horizontes da razão. Quando

reflectimos seriamente, muito provavelmente conseguimos

olhar mais profundamente e vislumbrar problema onde parecia

existir apenas solução.

E as questões que se levantam prolongam-se também para

o domínio da operacionalização do exercício a um eventual

direito a morrer. Para que alguém pudesse exercer este direito,

teria de existir uma estrutura profissional ao nível da saúde,

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ordem dos enfermeiros

concretamente, que permitisse este exercício. Seriam necessários

profissionais de saúde habilitados e competentes para realizar

os procedimentos.

Nos serviços de saúde e nos profissionais de saúde envolvidos no

acto de morrer de alguém, colocar-se-iam diversos problemas de

ordem ética, deontológica e de ordem prática. O paradigma da

vida humana que constitui um eixo estruturante das formações

em saúde passaria a incluir uma vertente relacionada com a

decisão de morrer.

Do ponto de vista ético, que valores e que princípios seriam invo-

cados para aceitar e operacionalizar a decisão sobre o momento

da morte de uma pessoa? Qual o fundamento ético para normas

deontológicas que impusessem ao profissional de saúde o dever

de respeitar essa decisão? E em termos práticos organizacionais?

Faz sentido utilizar recursos que são escassos para eliminar vidas

humanas? Ou, de outro modo, poderá a gestão e a economia

vir a discutir o custo-benefício dos cuidados paliativos versus

praticar a morte? Assim, e trazendo outro olhar, consideramos

que a perspectiva diferente de analisar o problema é a reflexão

do direito a morrer com dignidade.

A esta altura, imagino que nos frescos da Stanza della Segna-

tura, tal como nos quadros da escola de feiticeiros onde Harry

Potter estuda, algumas personagens estejam a mexer-se muito,

indignadas com a conversa. Por isso, talvez valesse a pena um

olhar atento sobre o fresco com Platão e Aristóteles, tentando

encontrar a serenidade do pensamento.

O direito a morrer com dignidade

A discussão sobre o direito a morrer é muitas vezes colocada na

perspectiva do direito a ter uma morte digna. A morte digna é

tida como aquela que ocorre sem sofrimento, ou pelo menos,

com o menor sofrimento possível.

Os adeptos da eutanásia, por exemplo, refugiam-se sobretudo

nesta linha de argumentos, defendendo que toda a pessoa tem

direito a morrer, livre da dor ou da incapacidade causada pela

doença. E é porque se pretende pôr termo ao sofrimento que se

assegura o exercício a um direito de dispor da vida, matando-se

ou pedindo a outros que o façam.

Esta reflexão parece-nos enviesada, porquanto uma coisa é ter

direito a decidir sobre o momento da sua morte, outra coisa é

ter o direito a morrer com dignidade.

Morrer com dignidade, considerando nomeadamente a compo-

nente do sofrimento, parece-nos de facto constituir um direito

individual, desde logo, legitimado pelo direito à vida. Se consi-

deramos a morte como a última etapa da vida e só entendemos

esta com a dignidade que lhe é inerente, então, até ao final, a vida

humana realiza-se em dignidade. Assim, consideramos que pro-

porcionar uma morte serena, com o menor sofrimento possível,

em que a pessoa se mantém inserida no seu meio familiar ou,

pelo menos, não afastado dele, constitui uma exigência ética.

Os cuidados paliativos, como forma de o sistema de saúde res-

ponder às necessidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais da

pessoa que vai morrer, cuidando-a de forma holística, concreti-

zam o respeito pela dignidade na fase terminal e na morte.

Actualmente, os cuidados paliativos constituem uma preocu-

pação dos cuidados de saúde e multiplicam-se entre nós os

projectos para a sua implementação no seio das organizações

de saúde, que nem sempre tiveram em consideração a pessoa

em fim de vida.

Temos hoje conhecimento científico bastante e a experiência

técnica necessária para desenvolver os cuidados paliativos como

forma de diminuir a dor e o sofrimento. Ou seja, já vivemos, no

presente, um tempo que permite o respeito pela morte com

dignidade.

Portanto, também pela riqueza da experiência adquirida neste

domínio não fará mais sentido colocar o problema da legitimação

para o direito de morrer, no sofrimento do final de vida, porque

corre-se o risco de ficar limitado ao redutor argumento do caso

particular.

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ordem dos enfermeiros

Parece-nos, assim, como Serrão, que o “direito a morrer é uma

expressão sem sentido”15, pelo simples facto de ser contradi-

tória na sua essência. Não pode haver um direito que elimine

todos os outros. Não pode a morte, etapa certa do final da vida,

ser considerada como um direito, até porque, parafraseando Frei

Bernardo, uma vez que vivemos, temos o “dever de morrer”.

Se me permitem um olhar final pela Stanza della Segnatura,

terminaria dizendo que, sem excluir outros olhares, à luz da

transdisciplinaridade e trazendo a poesia também presente nos

frescos da Stanza, só conseguimos vislumbrar, não o engenho de

MORRER mas a ARTE DE VIVER (onde naturalmente a morte se

inclui e os cuidados paliativos se inscrevem).

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I. Lisboa: FDL, 1996.

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15 SERRÃO, Daniel – Eutanásia. In: ARCHER, Luís [et al.] – Novos Desafios à Bioética. Porto: Porto Editora, 2001. ISBN 972-0-06036-0. pp. 249-254.

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ordem dos enfermeiros

Prof. Doutor Filipe Almeida

Médico, especialista em Pediatria

A morte em pediatria leva-nos a pensar a morte no tempo de ser

criança – ou seja, entender o “tempo de acabar” como o “tempo

de começar”.

Estranho conceito este: como se tivesse de começar a escrever uma

sinfonia pela coda, pelo trecho final, pelo seu epílogo. É propor-me

transformar a densidade da vida

em algo de muito fugaz,

em algo que rapidamente desemboca no fim,

em não mais que o prelúdio da grande realidade humana que é

a morte, esta sim aqui apresentada como o primeiro momento

solene de uma realidade definitiva.

É parafrasear Joseph Autran na sua poética interrogação:

“O que é a nossa vida senão uma série de prelúdios a este canto

estranho de que a morte entoa o primeiro e solene canto?”

Colocada assim a questão, não me parece importante falar da

morte. Centrar-me-ei, sim, no tempo de morrer. De facto, a morte

biológica não comporta em si mesma qualquer especificidade

pediátrica. Ao contrário, o tempo de morrer aporta, com certeza,

alguma especificidade pediátrica.

À morte são inerentes três conceitos:

a irreversibilidade (algo de permanente),

a não-funcionalidade (todas as funções que definem a vida

cessam com a morte),

a universalidade (tudo quanto vive morrerá).

Este conceito de universalidade transforma a morte numa inevitabi-

lidade, portanto, numa banalidade (se nascer e viver são privilégios

de apenas alguns biliões de seres humanos, morrer é a certeza de to-

dos quantos vivem, é a certeza da totalidade, é um determinismo).

E “este corpo prometido à morte” – na poesia de Florbela Espanca

– faz desta realidade uma efectiva banalidade.

O tempo de morrer, esse sim, é uma especialidade. Com especifici-

dade, já que o tempo de morrer irrompe no tempo de ser criança,

isto é, o tempo de morrer surge no tempo que é ainda o de nascer.

Tempo que pede, assim, para ser analisado sumariamente em

três vertentes: a da criança, a dos seus pais e a dos profissionais

de saúde.

I – Da criança

1. Abaixo dos cinco anos de idade, a criança não tem consciente a

noção de finitude; morre-se apenas.

2. Acima dos cinco anos de idade, este conceito torna-se presente

e a criança confronta-se com a experiência do fim, quando o pai

ou o amigo morre. E intui este conceito de forma muito curiosa,

por vezes com mais clareza e frontalidade que os próprios adultos.

Pelo que urge desmitificar os nossos medos reais, indevidamente

transportados para a “incapacidade” da criança.

II – Dos pais (para quem a morte dos filhos é o maior dos absurdos)

1. Antecipação cronológica de um tempo natural longínquo.

2. O nosso filho nasce para viver, não (nunca) nasce para morrer, mas

para me continuar; o meu filho é a minha imortalidade (“os pais

retiram à vida o direito de se apagar na pessoa do seu filho”).

3. Se eu, enquanto adulto, não penso na minha própria morte, neste

a morte no ciclo vital – morte em pediatria

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ordem dos enfermeiros

meu determinismo biológico, jamais terei oportunidade, disponi-

bilidade mental e emocional para pensar na morte do meu filho,

tal é a “irracionalidade” de uma tal arquitectura de pensamento.

Assim, perante o anúncio da morte do seu filho, os pais fixam-se

maximamente na negação deste tempo de morrer (E. Kubler-Ross):

não! Não! Não! Não pode ser! E logo a revolta, a negociação, a de-

pressão (reactiva ou preparatória) assumem tremenda intensidade.

E, na mesma medida, no mesmo plano de intensidade, a aceitação

deste tempo de morrer é – vai ser – não poucas vezes, a expressão

máxima de um surpreendente encontro com a vida, na sua pleni-

tude, capaz de assumir este tempo de morrer

como um tempo de finalidade e de totalidade;

como um tempo de comunhão do dia de ontem, do dia de hoje

e do dia de amanhã;

como um tempo que fará desmoronar a estanquicidade do

compartimento biológico da vida.

Este tempo de morrer do meu filho é, assim, plenamente, não o meu

tempo de morrer, mas “o meu tempo de morrer” também, já que é

uma extensão do “meu tempo de viver” que agora se acaba.

Estranha forma de vida esta que me não deixa distinguir do ser que

de mim se distinguiu! Estranha forma de vida esta que, no meu

“eu” feito “distância e projecto”, agora se finda!

São este pai e esta mãe que, nesta tecitura, se acabam enquanto

“ser relacional” do filho que agora se consome, são este pai e esta

mãe que hoje me desafiam, profissional de saúde, para uma atenção

desmesurada de humanidade.

III – Profissionais de saúde

1. Só é possível acompanhar devidamente os nossos meninos no

seu tempo de morrer quando sabemos acompanhá-los devida-

mente no seu tempo de viver.

2. “Nós não sabemos morrer!”, lembra-nos o poeta. Mas poderemos

e deveremos estar “lá” neste tempo único que é o tempo de

morrer.

3. Mas só poderá estar “lá”, no acompanhamento adequado ao

tempo de morrer, quem, no tempo de viver, soube igualmente

“lá” estar e “lá” tenha sabido conquistar e garantir espaço para

poder habitar condignamente.

4. Estamos, os profissionais de saúde, muito marcados por uma

cultura de glória que se atém às vitórias médicas no domínio

tecnológico. Mas esta cultura está também profundamente

marcada por um sentimento de vergonha no que se relaciona

com a morte e com o tempo de morrer dos nossos doentes.

5. Os curricula profissionais.

6. As estatísticas das instituições.

É tempo de fazer morrer, sim, este pudor que se vai exibindo sempre

que o cheiro a morte humana invade os nossos serviços. É tempo de

afirmar, no remanso deste encontro único com a vida que, porven-

tura acabada de nascer, já morre, é tempo de afirmar, dizia, o direito

à dignidade que lhe é agora devido. É tempo de entender porque

“rebento no interior da morte como o grão de trigo” (a expressão

doce com que Daniel Faria vê na morte a primavera da vida).

Caros profissionais de saúde, que tendes o privilégio de “tocar” e

serdes tocados quotidianamente pelo corpo das crianças doentes:

seja na intensidade terapêutica farmacológica com que procu-

ramos pôr fim à dor,

seja na intensidade terapêutica com que perseguimos a reali-

dade do sofrimento humano,

seja na determinação terapêutica da limitação ou supressão

farmacológica ou tecnológica que visa bem fazer ou não mal

fazer,

seja na afirmação inequívoca de uma recusa da obstinação

terapêutica,

seja na disponibilidade ou até na indisponibilidade para uma

doação de órgãos,

seja no olhar cintilante de um rosto ético,

à criança que vive o seu tempo de morrer, como a seus pais, não

devemos prodigalizar atitudes enfadonhas de epidérmico de-

vocionismo. Devemos sim prodigalizar posturas de inequívoca

novidade, epifania de uma incontornável eticidade, posturas

que sejam a roupagem humana de um encontro de reais e

singulares dignidades. oe

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olhar inquietoo jovem perante a morte

Abílio Oliveira

Eng. Informático e Psicólogo Social

Professor Auxiliar no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. Autor dos livros O Desafio da Morte, Olhar Interior, SobreViver e Dar e Amar ([email protected]).

Introdução

“Epá... depois de ter saltado veio-me à ideia que a vida é perfeita, que a vida é o melhor que há.A vida está recheada de magia, beleza,oportunidades e televisões.E surpresas, imensas surpresas, sim.E depois há aquilo que toda a gente desejamas que só sente quando já passou o tempo.Ocorreu-me isto tudo.Acho que isto não se vê tão claramentequando se está... percebem... vivo.”

Tom Tom, The Million Dollar Hotel, Wim Wenders & Bono (1999)

“Qual é o significado da vida e da morte? Esta é a mais impor-

tante e complexa pergunta que a nós próprios temos a possibi-

lidade de formular. Alguém consegue imaginar um desafio maior

do que perceber a magnitude da sua existência?” (Oliveira, 1999,

p. 19). Para além do imenso fascínio e apreensão que nascer e

morrer desde sempre nos suscitam, o mistério primordial que

em nós encerramos, é igualmente a certeza de que nos poderá

levar mais intimamente e mais longe: a evidência de SER. Ao

enfrentarmos a morte, olhamo-nos a nós mesmos. Mais do que

morrer... receamos viver plenamente. Ao reconhecermos a rea-

lidade da (nossa) morte, podemos ser afastados, quase violen-

tamente, da mundaneidade do nosso pequeno universo privado

de ideias, emoções, sentimentos... ilusões, relações e de práticas

familiares, sociais e profissionais. Teremos seguramente maior

consciência da vida se estivermos conscientes da morte.

Diziam os Antigos, no sentido de Sábios, que temos em nós os

maiores segredos do Universo. “Como é em cima, assim é em

baixo”, refere um conhecido princípio hermético. A verdade é que

não conseguimos imaginar o nada. “Há sempre qualquer coisa,

algo que pulsa, que vive. Mas se o vazio não existe, porque é

que para muitas pessoas a morte é o fim inexorável, é o ponto

a partir do qual nada mais existe?” (Oliveira, 2001, p. 94).

A verdade é que nem sempre reparamos ou valorizamos o

que temos, o que fazemos, o que somos (e quem ousa tentar

descobrir "quem É?"), quem está perto de nós ou o que existe

em nosso redor, ao alcance de um olhar, um toque, uma acção.

Tal como o Tom Tom na história que introduz este texto, nem

sempre nos apercebermos claramente das coisas, das pessoas,

dos factos,... da Vida de que somos parte integrante, em toda a

sua beleza, magia e magnificência. Por vezes, nós só reparamos

no mais importante... “quando já passou o tempo”, quando a

vida que anima(va) um corpo jazente ou enfraquecido após

uma dura viagem anseia por se libertar e passar mais uma

curva no Caminho. Por vezes, encontramos jovens como o

Tom Tom, que presos ao remoinho em que a sua existência se

tornou, na ânsia de encontrar um novo rumo para uma forma

de vida tornada intolerável, no desespero por alcançar algo que

os faça sentir que estão vivos e lhes dê uma razão para pros-

seguir, arriscam morrer, não por pensarem que vão encontrar

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a sua própria morte, mas sim por sonharem poder sobreviver...

numa outra forma.

“O suicídio é a única saída quando uma pessoa está num mundo desconhe-cido e quando a única ‘música’ que ouvimos é a da solidão.”

(rapariga de 17 anos citada por Oliveira, 2004)

Qualquer criança ou adolescente, desde a mais tenra idade,

pensa frequentemente na morte. E depara-se com ela nas mais

diversas situações e nos mais diversos contextos. No familiar que

deixou de ver, na folha de árvore no chão, no peixinho que deixou

de nadar,... no brinquedo estragado, no programa de televisão

ou, tantas vezes, na refeição que lhe é dada. A ideia de morte

reflecte sobretudo o interesse crescente que a criança, e mais

tarde o adolescente, tem sobre si mesma, o seu crescimento e

o facto de estar viva. Não seria natural isso ser também comum

num adulto?

A percepção da morte na infância

“Disseste-me que o pai foi viajar e a avó disse-me que ele foi para o céu... mas eu sei que ele morreu... e não volta, nem pode apanhar o meu pa-pagaio de papel, quando ele voa no vento. Mas olha que às vezes estou a dormir e ele vem visitar-me, diz que gosta muito de mim, corre comigo, pega-me ao colo e dá-me um beijinho para eu dormir melhor... ah, e diz que gosta muito de ti também, e pediu-me para eu te dizer para tu não chorares, e eu sei que tu choras às escondidas mamã, e o papá também sabe, mas olha que o papá não nos esquece e está aqui [fala pondo a mão no peito da mãe] bem juntinho a nós e vê-nos todos os dias... e eu também o vejo... às vezes.”

André, com cinco anos, citado por Oliveira e Araújo (2002, p. 14)

Encarar a morte, sem iludir, ignorar ou maltratar... sem fugir nem

fingir... seremos capazes de responder a este tremendo desafio

que todos os meninos e todas as meninas como o André nos

lançam continuamente?

Podemos não saber exactamente o que uma criança pensa e

sente sobre a morte, mas estamos certos de que cada uma, à

sua maneira, sofre sempre com a separação e a perda. O que

quer que pensemos ou façamos, digamos ou deixemos por dizer,

influi decisivamente no processo evolutivo de um ser humano

sensível e inocente. Porquê menosprezar ou ignorar as suas

questões, impelindo-o a falar de outra coisa, repreendendo-o

ou silenciando-o? Por vezes, a criança é enganada, perturbada

com banalidades ou inquinada pelas dúvidas, pelos fantasmas,

pelos medos e pelas inseguranças dos adultos. Uma sociedade

que disfarça a morte cultiva também, desde cedo, a opressão,

a culpabilidade e o terror pela dor, pela morte e, em rigor, pela

vida e por viver.

Ao longo do tempo, as crianças vão tendo diferentes noções

sobre a morte, conforme a sua capacidade de entendimento,

a experiência pessoal, o contexto social e a educação recebida.

Consideram-se, em geral, quatro fases sucessivas, do nascimento

à adolescência.1

“É possível que a criança comece a entender o significado da

morte física (como irreversível) antes dos seis anos, se consi-

derarmos que ela apercebe-se das várias mortes que observa e

que as suas ideias podem ser influenciadas pelas tradições cul-

turais de suas famílias e seus companheiros de escola” (Oliveira

e Pires, 2005, p. 7). Por volta dos seis anos, começa a olhar a

morte como permanente e comum a todos os seres vivos. Mas,

de alguma forma, crê que ela e os seus familiares são imunes,

por se portarem bem ou por terem várias vidas... a morte é

personificada, representada como um monstro, um papão ou

um fantasma, provocando medo, angústia e, com frequência,

terrores nocturnos – e quem contribui mais para isso? É também

frequente a criança interessar-se pelas causas e pelo processo

de decomposição decorrente da morte, o que aprende na escola

em relação às plantas e animais.

Na verdade, muito do que somos enquanto adolescentes e em

adultos resulta do nosso desenvolvimento cognitivo, afectivo,

moral, psicossocial e social, desde o início, num dado contexto,

da instrução recebida, da educação e das interacções estabe-

lecidas com quem nos é próximo, antes de mais, com os pais

e educadores. As crianças e os adolescentes, na sua maioria,

1 Desenvolvemos e sintetizamos as representações típicas da morte e as diferentes fases pelas quais habitualmente passam as crianças (do nascimento à adolescência), associadas ao seu desenvolvimento físico, psicológico e social, num outro artigo (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2002) e na tese de doutoramento (OLIVEIRA, 2004).

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preocupam-se não só com a morte, mas, também, com a vida,

Deus e a vida após a morte. Antes do processo de socialização

em que são envolvidas, numa sociedade castradora e redutora,

é-lhes naturalmente fácil aceitar a morte. Se repararmos bem,

do ponto de vista do ciclo vital, as crianças estão mais próximas

da morte do que nós, adultos. É interessante perceber o que

elas nos conseguem dizer sobre isso... Quais os limites da sua

imaginação? E da nossa ilusão?

Perspectivas predominantes face à morte

A morte assusta e parece estilhaçar as relações humanas. Por

isto, é dissimulada ou desprezada. Contudo, a vida desdobra-se

em múltiplas formas e situações. E “quanto mais o ser humano

se apega às aparências das formas, às obrigações e aos prazeres

mundanos, mais obnubila ou tão só adormece a morte [...] ele

desdiz a realidade interdita e alimenta a quimera da imortalidade

física. Ilude-se de novo e desgasta-se inutilmente” (Oliveira,

1999, p. 137).

A morte biológica encontra-se amplamente estudada e, tal

como o nascimento, faz parte da existência humana. Mas seria

estranho afirmar que nada mais existe além do corpo físico, sem

o admitir cientificamente, pois tal iria contrariar as evidências

que a Natureza nos oferta, com a qual aprendemos que nada se

perde, tudo se transforma e renova, e que isso implica nascer,

desenvolver, morrer, nascer... uma vez que todos os fenómenos

são cíclicos. Se a morte fosse a aniquilação, “o fim”, os ciclos

da vida seriam absurdos, o que não é verdade. Contudo, é “um

fim”, como afirmam muitos jovens na investigação que temos

realizado (e. g., Oliveira, 2004).

Hoje em dia coexistem três perspectivas predominantes face à

morte e ao morrer: científica (ou das ciências em geral), religiosa

(essencialmente judaico-cristã) e ocultista (ou das grandes tra-

dições filosóficas e espiritualistas).

A perspectiva científica tem como verdadeiro somente o que é

observável e de algum modo quantificável. Numa visão mecani-

cista, considera a morte como a extinção do ser individual. Sabe-

-se que o corpo será decomposto, desagregado e os seus átomos

dispersados e reutilizados, num processo em que intervêm uma

multiplicidade de seres vivos. Olha-se a morte do outro mas

não a própria e questiona-se: Temos mesmo de morrer? Com os

prodígios alcançados na biomedicina, na engenharia de tecidos e

de órgãos, na física quântica, na manipulação genética, na inte-

ligência artificial, na tecnologia biónica e criónica… os cientistas

sonham com a imortalidade física e acham que a nossa geração

poderá vir a medir a sua existência em séculos e não em décadas

(e. g., Oliveira, 1999). Entretanto, “poderemos chegar a um mo-

mento em que a nossa sociedade se terá tornado tão insensível

a ponto de se autodestruir a si mesma, à vida que a sustém e

ao sonho da (neste caso, néscia) imortalidade” (Oliveira, 2001,

p. 99). Apenas a morte nos oferece uma visão de continuidade,

repõe em circulação os átomos (cujo número se mantém cons-

tante desde o início dos tempos), as moléculas e os sais minerais

de que a Natureza necessita para se desenvolver, para todos os

seres se poderem regenerar. A morte é uma necessidade da vida.

Será a imortalidade física possível ou desejável? Qual o risco

que assumimos e que custo nos dispomos a pagar? O Homem

inteligente sempre gostou de ver mais além. O transcendente

que a ciência tentou varrer do horizonte racional aparece agora

como o postulado final das ”ciências de ponta”2 investigando-se

o que é ”invisível”.

Uma outra formulação genérica, comum nas igrejas fundadas

em três (das doze grandes) tradições religiosas – cristã, judaica

e islâmica –3, associa ao ser humano uma alma individual

imortal, que é eternamente punida ou recompensada em

função das acções cometidas aquando da sua única passagem

pela Terra. Esta ideia é frequentemente apoiada em dogmas,

sistemas de crenças e em noções de pecado, mistério, culpa,

medo e julgamento. Inúmeros problemas (e incongruências)

são dificilmente contornáveis pela razão... Quais os critérios

2 Como a astronomia, a cosmogonia, a química orgânica, a bioquímica, a biologia molecular, a nanotecnologia, a engenharia genética, a física quântica, a inteligência artificial ou a biomedicina.

3 Embora nestas tradições se encontrem ramos que defendem e sustentam leis como a reencarnação, respectivamente, os cristãos esotéricos, os cabalistas e os sufis; até ao século V, o cristianismo aceitava as teses do teólogo Orígenes que defendia a reencarnação (e. g., LUZ, 1988; OLIVEIRA, 1999).

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que irão determinar o destino de um ser humano e quem os

julgará? O que é ser condenado a um inferno ou recompen-

sado com o céu, por toda a eternidade?! O que fazer com uma

criança que morre com tenra idade, não tendo a oportunidade

de realizar algo? Etc.

A terceira hipótese refere também existir uma alma imortal,

mas como reflexo de um princípio espiritual imperecível, e

perspectiva a sua viagem ilimitada no espaço e no tempo,

através de inúmeras formas e contextos, de existência (ou

personalidade) em existência humana, num percurso evolutivo,

mudando de corpo tal como um actor muda de papel, fato e

cenário. Segundo a teoria da reencarnação ou do renascimento,

pela experiência assimilada em vidas sucessivas, o Homem vai

ampliando os seus níveis de consciência e evolui, ultrapassando

as suas limitações, falhas e defeitos, e

manifestando cada vez melhor as qua-

lidades divinas que em si dormitam.

A maioria dos povos e das grandes

civilizações da Antiguidade (Egipto,

Grécia, Roma etc .) defenderam a

reencarnação. Actualmente, muitos

milhões de pessoas e povos continuam

a atribuir-lhe uma coerência lógica.

Assim sucede entre os grandes movimentos de espiritualidade

orientais, as principais religiões e filosofias hindus, o Budismo,

o Zoroastrismo, o Taoismo e outras tradições religiosas (como

os sufis islâmicos, os cabalistas judeus e os cristãos esotéricos),

entidades e grupos ocidentais (e. g., Anacleto, 2002; CLUC,

1995; Luz, 1988; Oliveira, 1999, 2001).

Da aceitação geral à actual interdição da morte

Nas sociedades modernas (ditas) ocidentais, as representações

dominantes da morte oscilam, sobretudo, entre a perspectiva

científica e a tradição judaico-cristã marcadamente católica (e.

g., Ariès, 1989, 1992; Bradbury, 1999; Kastenbaum, 2001; Oliveira,

1999; Parkes [et al.], 2003; Morin, 1988; Vovelle, 1983). Resulta-

dos de uma nossa pesquisa recente mostram-nos que os jovens

adolescentes adoptam e partilham representações diversas ou

transculturais, englobando traços das três perspectivas, sendo,

igualmente, os que mais encontram forte fundamentação e

razões lógicas na dimensão espiritual do ser humano e na reen-

carnação (Oliveira, 2004).

Interditou-se a morte. E morrer tornou-se indigno, sobretudo por

suicídio. Evita-se partilhar ou abordar sentimentos, especialmente

associados a dor. A medicina e as novas tecnologias oferecem-nos

maior esperança de aqui viver mas não nos ‘salvam’. Eis um outro

paradoxo: tememos morrer mas o que na verdade mais receamos

é viver. “Temo a morte, mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei

a correr na sua direcção” (Peixoto, 2003, pág. 60). Vivemos com

pressa, impelidos para o prazer, a acumulação de bens e títulos,

a actividade, a beleza (aparente) e a juventude, envoltos em

preocupações e obrigações, escondendo, adiando ou renegando o

encontro com o que nos afronta, e nada

nos incomoda mais do que a morte,

impiedosa e repelente. Mas ela acena-

nos, perversa, num apelo à reflexão e

à autodescoberta. Enquanto podemos,

hesitamos em parar e aquietar-nos

para a olhar e agimos como se fosse-

mos imortais. O silêncio e a solidão,

que deveríamos cultivar naturalmente,

surgem por imposição a quem quer abordar aquilo sobre o qual

não se deve falar. A cultura ocidental isola a pessoa que, por si

mesma ou através de um ente querido, se aproxima da morte.

Como chegámos a esta situação?

Na baixa Idade Média, todo o ser humano reconhecia facilmente

a sua mortalidade e queria preparar-se antecipada e serena-

mente para o seu momentum, deitado convenientemente na

sua cama, em casa, rodeado de amigos e familiares, conforme

se descreveu na “arte de bem morrer”. A morte ‘desejada’, tão

ou mais importante do que o funeral e o luto, era celebrada

publicamente. A familiaridade assumida sem temor, desprezo,

orgulho ou desespero, revelava a aceitação de um destino

comum a todas as pessoas (e. g., Ariès, 1989; Oliveira, 1999).

Do século XII ao século XIV, a morte converteu-se no mo-

mento em que todas as particularidades da vida humana eram

A medicina e as novas tecnologias

oferecem-nos maior

esperança de aqui viver mas

não nos ‘salvam’.

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analisadas, pesadas, escritas... e julgadas, daí resultando a sal-

vação ou a condenação da alma. Existe assim uma ponderação

mais pessoal, interior e consciente da própria morte ou da

“morte de si próprio”.4 A partir do século XVIII, apesar de se

manter quase todo o cerimonial tradicional, a morte é aliada

ao imagético-simbólico e ao erotismo, exprimindo a ruptura

da ordem habitual. “A Humanidade começou a distanciar-se da

morte em si mesma e esta assumiu uma expressão dramática,

tensa, exaltada, contestada, espectacular” (Oliveira e Amâncio,

1999, p. 214). Desde então, o que mais se receia é a separação

inadmitida do próximo ou da pessoa amada, a “morte do ou-

tro”, tal como Ariès (1989) referiu. No século XIX, ela parecia

estar em todo o lado, no luto, no culto da recordação ou nas

peregrinações aos grandes cemitérios, mas talvez essa pompa

ocultasse o afrouxamento das antigas familiaridades. Com os

progressos das ciências, a todos os níveis, dos cuidados médicos

e das tecnologias, ia sendo cada vez mais afastada da família.

No século XX, a revolução de ideias e sentimentos foi de tal

ordem que a morte tornou-se vergonhosa e foi escondida5. Per-

cebeu-se claramente que ela não diferencia estatuto, posição

ou classe. Todos nós somos iguais... como mortais. Todos nós...

tão longe... e tão perto. Observamos em todo este percurso uma

forte influência das crenças, atitudes, medos, tabus e dogmas

típicos da igreja (católica apostólica romana) ocidental predo-

minante. Mas, entretanto, percebemos que nem a igreja nem

a medicina – apesar dos seus dignos esforços em prol da vida

humana e dos cuidados proporcionados – nos podem “salvar”

ou evitar a mortalidade.

Agora, arriscamo-nos muito a morrer no leito de um hospital

ou de uma instituição afim, sozinhos, na sequência de um

qualquer acidente – forma de morrer mais comum entre os

jovens, seguida do suicídio –, doença ou velhice. Ainda que

na maioria dos casos suceda num contexto público, a morte

transformou-se num fenómeno técnico, não cerimonial, por

4 Cercado por mortes horríveis (em particular devido à peste), o Homem procurava então atingir uma morte boa, pagando antecipadamente missas e encenando cerimónias fúnebres.

5 Ocupando o lugar antes destinado ao sexo.

vezes ocultado pelos profissionais de saúde, até à sua consu-

mação, vivido pelo próprio como um acto privado... solitário. A

pessoa que perscruta a morte é escondida dos olhares, cuidados

e sentimentos alheios, é isolada. E é habitual que ninguém

(doente, familiar, médico...) queira referenciar a morte ou quem

está a morrer, imperando um silêncio sepulcral que trespassa

a equipa hospitalar, a família, os amigos... a sociedade... e que

não ajuda ninguém.

Como pode um jovem adolescente (não) reagir ou ficar alheio a

esta situação? Como pode ele tranquilizar o seu olhar inquieto

e compreender a realidade em que se envolve?

A morte entre os jovens futuros profissionais de saúde�

Pensar na morte implica pensar em questões sociais ao nível

dos valores, das crenças, das atitudes, das culturas e das ideolo-

gias – e em nós próprios, no modo de ser, posicionar e agir no

quotidiano.

Numa outra investigação (Oliveira, 1995, 1999) em que ana-

lisámos a forma como a morte é representada entre jovens

estudantes universitários de medicina, enfermagem e biologia

(com idade média de 20 anos), verificámos que são os futuros

enfermeiros que revelam maior mal-estar e se mostram mais

emocionalmente envolvidos com a morte. Ao contrário dos

futuros médicos que, embora sentindo-se sós, revoltados e im-

potentes, se mostram quase indiferentes perante a morte (em

si e) de si próprios. Os aspirantes a biólogos, habituados a tentar

estudar a vida através de mortes, mostraram-se observadores e

curiosos, mas também emocionalmente distantes. Observámos

uma forte semelhança entre as representações das jovens e as

dos estudantes de enfermagem, e entre as dos jovens e as dos

estudantes de medicina. As mulheres salientaram mais uma

dimensão emocional face à morte do que os homens.

6 Para um aprofundamento do planeamento, dos métodos e dos procedimentos seguidos, bem como dos resultados da investigação que aqui abordamos muito sinteticamente, pode consultar Oliveira (1995, 1999) e Oliveira e Amâncio (1998, 1999).

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Entre muitos outros aspectos, a generalidade dos sujeitos nesta

população revelou medo da morte ou de morrer e, na ausência

de qualquer estímulo adicional, mostrou tendência para a ocul-

tar, vivenciando ou respeitando o interdito. Ou seja, na ausência

de contexto experimental, ao contrário do que verificámos nas

condições experimentais, a morte foi olhada de soslaio, com

afastamento emocional, como algo que se reconhece existir

mas, para os outros, representada de modo abstracto, simbólico,

impessoal e não personalizado, como uma possibilidade remota,

controlável e improvável ou adiável – num cenário típico de

“morte interdita”.

A maioria salientou fazer muito sentido existir uma qualquer

forma de vida para além da morte, bem como uma alma e um

espírito humanos. Revelou também que não costuma assistir

a serviços religiosos e não deu absolutamente nenhuma (ou

deu pouca) importância à exibição de sinais exteriores de luto,

mas mostrou-se muito ou muitíssimo incomodada perante a

possibilidade de outra pessoa lhe mostrar pesar ou sofrimento

pela perda de um ente querido. Quando questionados acerca do

modo como prefeririam morrer, se pudessem optar, a maioria

escolheria morrer a dormir e, entre várias outras hipóteses

possíveis, ninguém optaria por morrer rodeado de enfermeiros

e médicos, o que não deixa de ser bastante significativo.

A importância da ressocialização da morte

Posteriormente, verificámos que as representações destes jo-

vens diferem muito pouco das dos profissionais de saúde. O

que se pode explicar, ao menos em parte, pelas motivações

pessoais, sociais e pelos processos de socialização em que os

jovens estudantes se encontram envolvidos. Doentes, familiares

e profissionais de saúde seguem caminhos paralelos quando se

aproxima um final de vida. Independentemente do estatuto,

da posição ou da profissão, todos somos humanos e a crise da

morte revela as dificuldades com que nos deparamos ao tentar

mudar o mundo (e. g., Kübler-Ross, 1991). Desnuda os grandes

conflitos (psicos)sociais da nossa sociedade que observa na

morte o fracasso do seu “projecto de modernidade”. O que nos

leva a salientar a premência dos cuidados continuados e da

ressocialização da morte.

“Não podemos esperar que sejam os médicos, os psicólogos ou

quaisquer outros grupos sociais a resolver, sozinhos, esta com-

plexa questão: um problema que a todos nós respeita e abrange

e em que todos nos deveremos empenhar. Só assim se tornará

possível ultrapassar uma crise tão profunda e enraizada no nosso

âmago” (Oliveira, 1999, p. 25). Técnicos de saúde, cientistas

sociais, teólogos, espiritualistas, todos, num esforço conjunto,

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solidário e organizado, poderão dialogar com os pacientes e os

seus familiares, socializando um momento único e tornando

mais fácil o superar de medos comuns, rumo a uma paz interior,

na certeza de que a vida, em cada ponta final, atinge toda a sua

beleza e plenitude. Os momentos anteriores à morte podem

suscitar transformações profundas. A morte, mais do que um

tempo de paragem, é um tempo de transição. E nada é mais

importante do que a dignidade na VIDA e na MORTE.

A morte distante

Apesar de algumas experiências ainda pontuais, a ressocializa-

ção da morte ainda está longe. Quer no hospital, quer em casa.

Em Portugal, não subsistem hoje mais do que vestígios da ars

moriendi, em raras e dispersas pequenas localidades do interior,

sendo, por isto, desconhecida ou estranha para uma grande parte

dos jovens (e. g., Coelho, 1991). A morte tornou-se estranha, me-

donha e arredou-se.... As crianças já não ficam perto da pessoa

que está a morrer e são afastadas do contacto com o morto;

não raras vezes, os adolescentes também são “aconselhados”

a manter uma certa distância. As cerimónias fúnebres e muitas

formalidades são geralmente entregues a profissionais da morte.

Idealizamos que certos factos apenas sucedem aos “outros” e que

morrer bem é, antes de mais, morrer a dormir e sem dor (e. g.,

Oliveira, 1999, 2004).

A morte continua a ser profundamente sentida no seio familiar,

mas perdeu-se o direito de o afirmar. As conhecidas manifestações

de luto, antes obrigatórias e agora “desaconselhadas”, vão desapa-

recendo. Temos enorme dificuldade em entender ou, até, aceitar,

que alguém, mesmo que seja nosso familiar ou amigo, nos mostre

emoções e reacções de sofrimento, pesar ou luto após a morte

de uma pessoa próxima (Oliveira, 1999, 2004; Oliveira e Amâncio,

1999). Este silêncio contrasta com o ruído de alguns media e da

Sétima Arte (p. e., nas ‘guerras em directo’, nos noticiários ou em

‘séries enlatadas’), onde se privilegia a morte como espectáculo

ou como banalização. Por paradoxal que pareça, no caso de uma

figura pública ou de um ídolo, em particular se morrer jovem, a

morte é glorificada ou deificada e nela revemo-nos facilmente.

Também o risco juvenil é socialmente aceite e glorificado (como

em certos desportos ‘radicais’), não apenas no círculo de colegas e

amigos, mas, amplamente, nesta sociedade obcecada pela juven-

tude e a imortalidade física. “E este é um facto particularmente

relevante no decorrer da adolescência, enquanto cada jovem está

a construir uma identidade e tanto se questiona sobre a morte e a

vida, e como, num movimento de autonomia, procura incessante-

mente referenciais, na família, no grupo, nas figuras que conhece

e nos ídolos que admira, por exemplo, no desporto, no cinema

ou na música. [...] Entre a glorificação desmedida e a interdição

irracional generalizada, estas representações ambivalentes da

morte não deixarão de o influenciar e ter alguma repercussão”

(Oliveira, 2004, pp. 103-104).

O adolescente tende a abordar questões como a morte e o suicí-

dio, em primeiro lugar, com os familiares mais próximos, antes de

o fazer com os amigos ou algum professor (Sampaio [et al.], 2000;

Oliveira [et al.], 2001). Em muitas situações percebe não poder

falar sobre isso e nem o dever tentar, mas também percebe que,

“na vivência intensa das dúvidas e pressões inerentes a crescer,

na busca dos valores e limites, um modo de se experimentar,

conhecer, apelar aos outros e a uma sociedade envergonhada na

sombra da morte é testar-se, arriscar além daquilo que é norma

social, transgredir a sua própria segurança para ver até onde

consegue chegar, nomeadamente através de comportamentos

de risco” (Oliveira, 2004, p. 93).

A morte por suicídio, em particular, converteu-se no nosso maior

tabu (e. g., Shneidman, 1996). “A morte expõe-nos a incontro-

labilidade do destino, numa sociedade que tende a renegar a

imaginação, instigar ao prazer, felicidade e glória efémeras, e onde

mais importa parecer do que ser” (Oliveira, Sampaio e Amâncio,

2004, p. 73).

Representações e reacções perante a morte e a perda na adolescência

Para génios como Platão ou Pitágoras, tudo o que observamos

quando estamos despertos é a morte... que não é mais do que

uma outra forma de sondarmos a vida. Tal não passa desperce-

bido ao adolescente que deseja ardentemente conhecer-se.

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Na verdade, os adolescentes pensam muito na dor, na morte e no

suicídio (e. g., Crepet, 2002; Frankel, 1999; Marcelli, 2002; Pom-

mereau, 2001; Sampaio, 2002). Os seus conceitos acerca destas

questões existenciais estão intimamente ligados às suas ideias e

imagens de morte na infância. As crianças e os adolescentes em

geral preocupam-se não só com a morte, mas também com Deus

e a vida após a morte, relacionando estes três conceitos entre

si. Qualquer criança já pensa com grande frequência na morte e

na perda (e. g., Bowlby, 1998; Clerget, 2001; Kastenbaum, 2001;

Strecht, 2002), podendo eventualmente ser confrontada com a

falta de algum familiar próximo muito cedo, logo aí emergindo

uma das faces negras da interdição, pois, como afirmámos an-

tes, muitos adultos “evitam o tema, na esperança de as manter

afastadas da dor e, principalmente, das suas próprias dúvidas,

inseguranças, fantasmas e medos”

(Oliveira e Araújo, 2002, p. 15).7

Qualquer jovem, ao tentar respon-

der às grandes questões psicos-

sociais, envolve-se num processo

de (des)construção e criação que

implica, por um lado, os pais,

colegas e amigos e, por outro, os

ídolos e todos os que, directa ou

indirectamente, contribuem para

a conquista de uma autonomia, a

definição de valores e de uma identidade (e. g., Bouça, 1997;

Fleming, 1993; Geldard e Geldard, 2000; Sprinthall e Collins,

1999). Nesta habitualmente longa travessia que liga o ‘ser

criança’ ao ‘ser adulto’, é preciso ‘morrer’ para a ‘criança que se

tem sido’ e ‘nascer’ para o ‘adulto que se há-de ser’, fortalecer

a autoconfiança e a auto-imagem. Ao dominar as operações

formais, o jovem aprende a elaborar pensamentos abstractos,

raciocínios lógicos, gerar hipóteses, manipular variáveis, relacio-

nar conceitos, abordar questões sob diversas perspectivas e en-

contrar estratégias para as entender (e. g., Papalia [et al.], 2001;

Piaget, 1977, 1978; Sprinthall e Sprinthall, 1993). O adolescente

olha a morte como irrevogável, enquadra-a como etapa natural

7 Ver nota1.

do ciclo de vida fisiológico, mas não domina o conceito em si,

não pensa nem admite a hipótese dele mesmo morrer, o que

encontra correspondência no anseio humano de imortalidade

(e. g., Laufer, 2000; Oliveira, 1999, 2001, 2004; Pommereau,

1998; Sampaio, 1991, 1999).

Num extenso trabalho de investigação8 que realizámos recen-

temente com adolescentes escolarizados, de ambos os sexos,

entre os 15 e os 18 anos (Oliveira, 2004), verificámos que entre

as principais representações sociais da morte salientam-se os

pensamentos e sentimentos de mal-estar, associados a perda,

saudade, dor, medo, tristeza, isolamento, solidão ou desespero,

o ritual funerário e a vivência de proximidade com ‘o outro’.

A morte é, ”em muito, representada pelos ‘sentimentos’ que

desperta e objectivada em ‘causas

concretas’, como «um fimΩΩΩ» e não

como «o fim», esperando-se existir

‘continuidade’, ‘vida’ para além do

desconhecido” (Oliveira, 2004, p.

318), que não se pode controlar.

Encontramos representações so-

ciais que congregam dimensões

presentes nas três perspectivas

dominantes actualmente sobre

a morte e a perda, com saliência

para as que remetem para a con-

tinuidade ou a reencarnação.9 Quanto às representações mais

significativas do suicídio, salientaram sobretudo o mal-estar, a

tristeza, a infelicidade e o medo, a compaixão perante o suicida

e a debilidade que a ele se associa, as causas do suicídio, bem

como o suicídio como resolução ou morte violenta. O gesto sui-

cida destaca-se como um apelo, uma solução, saída ou fuga face

às dificuldades ou problemas, um reencontro, uma desistência

ou negação da vida, um acto desesperado e de sobrevivência

(Oliveira, 2004).

8 Numa tese de doutoramento em psicologia social realizado no ISCTE, intitulado Ilusões: A Melodia e o Sentido da vida na Idade das Emoções – Representações sociais da Morte, do Suicídio e da Música na Adolescência, e concluído em 2004.

9 A maioria dos jovens que questionámos afirmou que para si fazia muito ou mui-tíssimo sentido a existência de uma qualquer forma de vida para além da morte, bem como de uma alma e de um espírito (OLIVEIRA, 1999, 2004).

Nesta habitualmente longa travessia

que liga o ‘ser criança’ ao ‘ser adulto’,

é preciso ‘morrer’ para a ‘criança

que se tem sido’ e ‘nascer’ para o ‘adulto

que se há-de ser’, fortalecer a

autoconfiança e a auto-imagem.

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As reacções de um adolescente à perda de uma pessoa impor-

tante para si, em especial se já houve outras perdas, dependerão

do seu percurso pessoal, familiar e (psicos)social; e são difíceis de

tipificar, pois os sintomas de dor, sofrimento e o processo de luto

podem diferir do que é mais habitual num adulto (e. g., Clerget,

2001). O choque, a descrença ou negação, a tristeza ou angústia,

a ira, raiva, zanga ou revolta, a culpa e a depressão (ainda que

esta possa não ser a ordem precisa) são as reacções ou fases

mais comuns que precedem uma reorganização interior e uma

nova forma de viver, quando a ansiedade vai cedendo lugar a uma

relativa tranquilidade e à aceitação da perda. A “morte próxima”

gera um tremendo sofrimento e uma sensação de ruptura asso-

ciada à difícil e inevitável desvinculação. Qualquer adolescente

depara-se ainda com uma série de perdas, fantasmáticas e reais,

comparáveis ao processo de luto, que o remetem sempre para

um confronto simbólico com a morte (e o morrer) e as formas

de a representar. Ainda que as representações da morte realcem

as ambivalências ou oscilações emocionais e de comportamento

típicas neste período (e. g., Bossa, 2000; Braconnier e Marcelli,

2000; Campos, 2000; Clerget, 2001; Crepet, 2002; Marcelli, 2002),

podem ser confundidas com aparente indiferença, lentidão,

sintomas depressivos, agressividade ou hiperactividade. Porém,

qualquer das reacções possíveis mascara ou expõe um profundo

mal-estar interior.

Num percurso feito de constantes desequilíbrios, sempre em

busca de um novo equilíbrio... desequilibrador, o adolescente

dirige-se da família para o grupo... e mais tarde ruma para uma

nova família, sem deixar de ter e cultivar momentos de solidão

essenciais. A morte leva-o a pensar no enigma da finitude e na

inefável intangibilidade da própria vida, o que gera inúmeras

dúvidas, suposições e reflexões. Na procura de si mesmo, do que

deve pensar, sentir e fazer, e de algum sentido para tudo, como

poderia um jovem não precisar de falar sobre si e do que o rodeia?

Como poderia aceitar que nada se passa se continua inquieto,

sôfrego por informação, e o seu corpo, em constante transfor-

mação, ainda não desistiu de querer viver, nem se conforma a

uma vivência monótona, insensível e oca? Como poderia deixar

de tentar, de dialogar? Como reage a sociedade ao seu apelo? A

dissimulação, o silêncio ou as banalidades dificultam ainda mais o

desenvolvimento adolescente e não ajudam a “evitar que muitos

jovens se isolem e desistam de viver ao tropeçar nos problemas,

nas desilusões e nas dificuldades que, inevitavelmente, surgem”

(Oliveira, Amâncio e Sampaio, 2001, p. 519). A desesperança está

intimamente ligada à depressão, à ideação suicida e, ainda mais,

à intenção suicida e às tentativas de suicídio, como mediadora

entre a depressão e o suicídio (e. g., Velting, 1999).

A morte de uma pessoa próxima, particularmente por suicídio,

pode revelar-se um factor de risco na adolescência e, nalguns

casos, um factor precipitante para graves comportamentos paras-

suicidas ou suicidas (e. g., Laufer, 2000; Macfarlane e McPherson,

2001; Saraiva, 1999).

O adolescente suicida

“A morte é certa, não é possível evitá-la, temos é que a aproveitar todos os segundos o melhor possível.Se resolvermos optar pelo suicídio, se não temos vontade de viver, então para quê estar cá mais tempo. Às vezes a realidade é demasiado má. (...) Que sentido tem vivermos e sabermos que vamos morrer?!?”

(Rapariga de 17 anos citada por Oliveira, 2004)

O gesto suicida veicula sempre uma intolerável dor interior,

de quem não suporta mais a tensão, perdeu a esperança e não

encontra uma alternativa válida pela vida. Revela um fracasso

individual, familiar e social (e. g., Shneidman, 1981). “A autodes-

truição surge após múltiplas perdas, fragmentos de dias perdidos

ao longo dos anos, rupturas, pequenos conflitos que se acumulam

hora a hora, a tornar impossível olhar para si próprio. O suicídio é

uma estratégia, às vezes uma táctica de sobrevivência. Quando o

gesto falha, tudo se modifica em redor após a tentativa. E quando

a mão, certeira, não se engana no número de comprimidos ou no

tiro definitivo, a angústia intolerável cessa naquele momento e,

quem sabe, uma paz duradoura preenche quem parte. Ou, pelo

contrário e talvez mais provável, fica-se na dúvida em viver ou

morrer, a cabeça hesita até ao último momento, quer-se partir

e continuar cá, às vezes deseja-se morrer e renascer diferente”

(Sampaio, 2000, p. 152).

O gesto suicida “permite encarar a morte como refúgio, como

local de encontro com alguém que se perdeu, como forma de

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destruir uma parte de si próprio sentida como incontrolável;

noutra dimensão, o suicídio aparece como desafio ou vingança

face a alguém a quem se está profundamente ligado; em der-

radeira análise (...) o gesto suicida adolescente é uma tentativa

de triunfo sobre as limitações humanas” (Sampaio, 1999, p. 12).

O adolescente sem esperança vê no suicídio uma solução ou a

fuga para uma situação insustentável, mas... quer morrer e viver

ao mesmo tempo. No fundo, gostava de desaparecer, transformar

a situação noutra melhor.

“Em busca de reparação para uma identidade destruturada, esti-

lhaçada ou gravemente ferida [...] quando as representações da

vida e da morte se confundem, na orla do desespero, do desânimo,

os adolescentes podem tornar-se suicidas ou, numa primeira fase,

ficar mais distraídos (e propensos a acidentes), tentar aliviar a

tensão que os oprime magoando-se a si mesmos ou procurar,

quiçá de modo algo inconsciente, actividades de risco. [...] As

ideias de morte, as ideias de suicídio, os parassuicídios, a intenção

suicida e as tentativas de suicídio, como numa escala sequencial,

progressiva, sucedem-se no tempo, ainda que nem sempre sejam

percebidos ou relacionados, com repetição de actos ou ocorrên-

cias cada vez mais graves” (Oliveira, 2004, p. 78).

Os parassuicídios10, que incluem os comportamentos de risco e

os de auto-agressão, são cada vez mais frequentes nas nossas

sociedades (e. g., Saraiva, 1999). Aqui, o adolescente não visa a

morte, mas, conforme a gravidade da situação, pode arriscar-se

a morrer. Num estudo que realizámos com adolescentes de

Lisboa, verificámos que cerca de metade já pensou em suicídio

(30% dos quais pensou bastantes vezes), perto de 35% já teve

comportamentos de auto-agressão ou automutilação e cerca de

40% já teve vários comportamentos de risco (Oliveira, 2004).

Crescer implica arriscar, testar-se, encontrar novos limites, ul-

trapassá-los, aprender e ampliar a consciência. Mas a busca de

emoções fortes, onde o jovem pode rapidamente debater-se

entre morrer e viver, revela um carácter predominantemente

simbólico de aproximação à morte e suscita um sentimento de

10 Aprofundámos este tema em Oliveira, 2004 e Oliveira, Amâncio e Sampaio, 2001.

identidade renovado. “É como se uma pessoa que desafia a morte

ficasse com o direito a viver e com mais razão para sobreviver”

(Sampaio, 1997, p. 98), então “encontrando uma forma de afir-

mação, valorização e reconhecimento social, em especial junto

do seu grupo de pares e de conquistar auto-estima, conferindo

algum sentido à vida” (Oliveira, 2004, p. 81). Os riscos demasiado

perigosos correm-se na batalha pela identidade e autonomia.

E decorrem de uma noção incorrecta da (própria) morte, vista

como muito improvável. Em suma, os jovens vêem no suicídio ‘o

fim’ temido, a resolução do desespero, e acentuam o profundo

mal-estar que a morte suscita, representando-a como ‘um fim’

distante, incontrolável e desconhecido, esperando que a vida, de

algum modo, continue (Oliveira, 1999, 2004).

Em nenhum caso a ‘conspiração do silêncio’ face à morte é útil ao

jovem que, por vezes, recorre a actos ‘limite’, de risco crescente,

para implorar a atenção de alguém que se disponha a escutá-lo

mesmo. É como que um derradeiro apelo no limiar do precipício

que convida à autodestruição. “Por vezes os adolescentes sofrem

em silêncio em casa pelas atitudes dos pais, que não compre-

endem que o adolescente tem as suas necessidades e utilizam

a argumentação de que «são fases» e nunca nos deixam contra-

-argumentar” (rapaz de 16 anos citado por Oliveira, 2004).

Desafia-se a morte e arrisca-se morrer para se conseguir

(sobre)viver e ter ânimo para prosseguir. Um(a) jovem morre por

suicídio quando não vislumbrou razão nem estímulo para viver,

não suportou as preocupações nem foi capaz de perceber a vida

ou não encontrou quem o auxiliasse a equilibrar-se. E então, ainda

que morra a sós, um pedaço de nós morre também com ele, pois

“ninguém morre sozinho” (Sampaio, 1991, 2002).

A importância da educação para a dor, a morte e o suicídio

“Todo o ser humano é diferente de mim e único no universo; não sou eu, por conseguinte, quem tem de reflectir por ele, não sou eu quem sabe o que é melhor para ele, não sou eu quem tem de lhe traçar o caminho; com ele só tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever: o de o ajudar a ser ele próprio”

Agostinho da Silva, em Educação de Portugal (1996, p. 8)

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Estejamos certos do seguinte: um dia, a criança ou o jovem que

nos é próximo vai abordar-nos, implícita ou explicitamente,

sobre a MORTE; e a nossa reacção será determinante para a

sua formação, para a sua noção de VIDA, o que é especialmente

premente no caso de uma criança, ainda demasiado maleável,

inocente e receptiva. Podemos contribuir para o seu correcto

desenvolvimento, apoiando-a na descoberta do melhor que (já)

existe no seu íntimo, educando-a para a compreensão do que é

o ser humano (nas suas várias “esferas” de manifestação), e para

uma visão serena e libertadora da morte, como um momento

natural da vida, que não cessa, mas que se transforma e revela

de várias maneiras, em diferentes contextos.

“Entre fomentar a ignorância, a astúcia e a mentira, ou educar

para a vontade de saber, a simplicidade e a autenticidade, não

podemos vacilar. Para que as crianças cresçam sem o estigma

da perda, sem o sufoco do desconhecimento e da vergonha

por serem órfãs ou filhos únicos. Elas têm direito à felicidade,

a prosseguir o seu caminho em harmonia. Ninguém, jamais,

poderá substituir quem partiu, mas os frágeis corações destas

crianças anseiam por receber atenção, afecto e carinho daqueles

que as rodeiam. E se elas nos disseram que estiveram com o

ente amado num qualquer laivo da sua imaginação ou no canto

de um sonho redentor, quem somos nós para as contradizer

ou, pior, repreender? Tentemos respeitá-las, sem as agrilhoar

ou impingir aquilo que nós mesmos não entendemos. Deixemo-

-lhes espaço para a sua sensibilidade e inteligência, deixemo-

las ganhar asas, voar e recordar as imagens que em si mesmas

perduram. E teremos muito a aprender com elas” (Oliveira e

Araújo, 2002, p. 18).

É tão fundamental proporcionar a oportunidade de diálogo so-

bre a dor, a morte e o suicídio, como permitir que quem passa

por uma experiência de (algum tipo de) morte, em especial um

jovem, sinta poder deixar fluir a tristeza, chorar se tiver vontade,

mostrar a sua revolta, exprimir a dor e revelar o luto... sem ser

criticado, silenciado ou ignorado. O sofrimento pode constituir

uma oportunidade de aprendizagem, e as perturbações psicoló-

gicas podem ter uma repercussão física ou somatização. Porque

não escutar e fomentar a proximidade?

Após a fase em que as emoções afloram abruptamente, pode

entender-se o que estas ocultam sobre nós e os outros. A cons-

ciência da morte leva-nos à auto-reflexão, torna-nos mais fortes,

valorosos e corajosos. “Ao olharmos para muitos adolescentes

e ao investigarmos as representações que cada um nos relata e

comunica, parecemos ver ainda por vezes uma criança que, no

seu íntimo, continua a desbravar a maturidade, titubeante face às

novas realidades com que se debate, mas sôfrega por se enten-

der e despertar adulta” (Oliveira, 2004, p. 111). Podemos ajudar

qualquer pessoa, começando pelas crianças e pelos jovens em

geral, a desenvolver a sua imaginação, a descobrir e a enriquecer

o seu fantástico mundo interior.

“Que os homens que guardam da sua infância a experiência

inédita, que interiorizam o movimento, o sentir, o amor, que

construíram um mundo seu, o abram aos outros, que o abram

às crianças. Para que haja AMOR, para que haja DIÁLOGO. [...]

Apelamos para que os Homens que sabem que NASCER, VIVER,

MORRER são apenas aspectos de uma forma de pensar que ilude

a fantasia, de uma forma de sentir que ilude o pensar… ajudem

as crianças que ainda o são AGORA a enriquecer o seu mundo

interior com vivências que tornem menos dura e menos só a hora

da morte. Para que as crianças nasçam como seres humanos e

vivam como pessoas, antes que as matem ou que se matem como

seres sensíveis e inteligentes” (Santos, 1991, pp. 317-318).

Para que exista verdadeira paz e amor, para que se respeite a

Vida e as crianças se tornem adultas responsáveis e esclarecidas.

A educação11 é o mais firme apoio para a criança que atravessa

a adolescência se ir autodescobrindo até se tornar um jovem

adulto que compreende a plenitude de ser humano. O que é

educar senão uma forma de comunicar e de amar?

11 O termo ‘educar’ tem a sua origem etimológica no verbo latino ‘educare’, derivado de ‘educere’ ou ‘eduzir’, isto é, conduzir para o exterior, despertar na pessoa os ele-mentos positivos que nele se achavam dormentes, como sejam, a verdade, a justiça, o amor, a tolerância, a solidariedade etc. Também o real educador precisa ser um ‘eduzido’, que se compreende, aceita e realiza integralmente. Ele é um edutor que eduz do seu educando o que nele dormita de melhor e mais puro. Educar não é injectar, impingir, impor, obrigar, mas sim desenvolver o que já existe em latência no educando. Assim, educação difere de instrução; a primeira visa o sujeito e a segunda refere-se aos objectos. A aquisição de conhecimentos e a descoberta de factores externos, fora de nós, é instrução, e torna o Homem erudito.

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A educação para a morte e o suicídio é urgente e vital, e o espaço

escolar é essencial para a prevenção (e. g., Oliveira, Amâncio e

Sampaio, 2001; Sampaio, 1996), pois é aí que os jovens passam

grande parte do seu tempo. Encontram-se também aí os outros

elementos essenciais neste processo: os professores e os pais. “É

no convívio com os companheiros de escola que muitas vezes

se partilham os segredos e se comunicam ideias de morte. É

também na escola que frequentemente aparecem os primeiros

sintomas de depressão” (Santos e Sampaio, 1997, p. 193).

Morte... a ilusão da separação

Vivemos uma época agitada e ‘desmorteada’. Procuramos encon-

trar “terra firme” enquanto navegamos por entre uma neblina de

ilusões e desilusões. “Precisamos de contactar e conhecer, pro-

funda e afectuosamente, a Vida” (Oliveira, 1999, p. 182). O que

passa por encararmos cada situação, problema, dificuldade, [...]

satisfação, surpresa ou dor. Se não temermos o que vai suceder

a seguir, connosco, com a outra pessoa ou com tudo o que nos

envolve, se formos atentos e lúcidos e não calculistas, se não

recearmos viver nem dar sempre o melhor de nós a cada pessoa,

ocasião ou projecto, como poderemos recear morrer?

“Quando alguém de quem eu gosto [...] desaparece do ‘ângulo

de visão’ com que o observava e da ‘esfera de contacto’ que me

permitia tocar-lhe, quando deixo de escutar a sua voz e contar

com a sua presença, é que eu verdadeiramente me apercebo

do vazio arrasador que fica, do silêncio que me queima, das

lágrimas que se soltam na solidão que me invade, da memória

que rasga o espaço dorido da mente incomodada, da tristeza

sombria que parece me arrebatar a alma, da insignificância das

nossas impertinências e discussões, do quanto o aprecio e do

muito que ficou por lhe dizer, ou por fazer… só então eu consigo

intimamente compreender o que esse ser humano significa para

mim e, eventualmente, o quanto eu realmente o amo!” (Oliveira,

1999, p. 162). E pode ser tarde.

“Quanto mais estudo e observo as coisas, mais me convenço de

que o desgosto pela separação e pela morte é, talvez, a maior

ilusão. Compreender que se trata de uma ilusão é obter liberdade”

(Gandhi). Só a morte consegue amplificar tanto o hiato pesaroso

da (sensação de) separação e amargar uma dor indisfarçável.

Nós somos poeira das estrelas, ínfimas parcelas humanas. Mas

qualquer “parte desinserida do Todo é filosoficamente inexis-

tente. A parte só existe, só tem realidade, se (ou porque) não

isolada e destacada desse Todo – Único, por definição” (CLUC,

1995, pp. 51-52). As nossas vidas estão interligadas (Sagan,

1998). E “só podem ter um significado (e uma existência) real,

se não estiverem apartadas daquilo que verdadeiramente (é e)

nos dá sentido, que está bem para além do prodigioso cérebro

que ainda mal sabemos utilizar ou da maravilhosa e complexa

estrutura biopsicossocial que nos permite vivenciar e comunicar

aquilo que designamos por Vida. Se negarmos a nossa essência,

então sentir-nos-emos, ilusoriamente, afastados desse todo

[...]. E, então, a morte não pode deixar de ser vista como uma

implacável cessação, nossa ou daqueles que amamos” (Oliveira,

2001, p. 96).

Se não souber de onde veio nem para onde vai, então como é

que pode estar seguro de que se encontra aqui? Como não su-

portamos muita realidade, uma boa parte das nossas formas de

pensamento social são ilusões. Das quais muito dificilmente nos

conseguimos libertar. A morte não nos impede de sonhar nem de

dar ou amar, mesmo quem não vejamos por muitos anos. O que

é forte e verdadeiro fortalece-se, realça a imortalidade. Como

poderíamos apartar-nos de quem amamos? As emoções, os

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sentimentos e as ideias são, em si mesmas, substanciais. Sabemo-

lo intimamente. O que se pensa e sente é tão ‘real’ quanto o que

se pode observar no espaço limitado que enxergamos. O amor é

continuidade de consciência e prevalece sempre (e. g., Anacleto,

2005; CLUC, 1989, 1995). Tal como a vida sobre a morte.

“Transforma-se o amador na cousa amada”, escreveu sabiamente

Camões. A saudade e a dor da separação física podem transcen-

der-se e dar lugar a uma compreensão mais ampla e profunda

dos mundos nos quais e pelos quais efectivamente existimos.

Aquele(a) que amamos nunca nos pertenceu nem pertence

– outra das ilusões a clarificar. Mas, pela ligação que nos une,

quando oportuno, temos sempre meio de comunicar. Eis o que

muitos jovens nos transmitem.

Viver... e abraçar a vida

“A sombra das tuas vestesFicou entre nós na Sorte.Não ‘stás morto, entre ciprestes. Neófito, não há morte”

Fernando Pessoa em Iniciação

“Mais do que crente, o Homem moderno é muitas vezes carente.

Tem a inteligência e os meios adequados para a utilizar, mas nem

sempre os aplica no melhor sentido. As emoções que exterioriza

nem sempre são as que sente no seu sagrado mundo interior.

Falta-lhe por vezes o bom senso, o sentido ético, a lucidez a

curto e a longo prazo, a ‘espontaneidade de criança’, a vontade

determinada pelo e para o bem, a paz … o amor. Sente-se des-

crente e nem sempre admite que o mundo pode ser melhor.

Ao perder a esperança, entrega-se mais facilmente ao que o

afasta de si e dos ‘outros’. Como pode pensar na morte, se no

escuro do seu quarto, ao fechar os olhos, não sente que a ‘vida’

o realize?” (Oliveira, 1999, p. 120)

Esta é uma situação bem evidente num jovem insatisfeito e

ávido por explorar e se conhecer a si e ao mundo. A morte

expõe-nos face aos nossos limites, aos nossos medos e às

nossas fraquezas, incita-nos a superarmo-nos, no sentido

evolutivo, qual história interminável no dia-a-dia de uma

existência arredia da realidade que preferimos manter con-

fortavelmente longe. Admitindo a (nossa) morte, poderemos

atenuar e transformar a tristeza, perceber e superar a dor e

o sofrimento advenientes, reconhecer um nobre sentido na

Vida. Para nos dedicarmos ao presente, para melhor comunicar,

aprender e ensinar sem recear o destino. “E assim entregar-nos,

livre e plenamente, ao mais sublime desafio, com aptidão não

só para viver e sermos socialmente mais úteis, como para

morrer dignamente e saudar a morte, como quem proclama

um nascimento, quando a sentirmos aproximar-se, ou quando

a observarmos em qualquer pessoa a quem [...] damos a mão,

e, em tudo o que nos rodeia, permeado de energia vivificante”

(Oliveira, 1999, p. 240).

A consciência da morte e do morrer leva-nos a uma vida mais

intensa, tranquila, aprazível, plena de sentido, valor e solidária

com todos os seres. “Podemos abraçá-la e integrar a beleza

sumptuosa da nossa preciosa existência, da Existência. E pro-

ceder, em relação a cada coisa e a cada ser, sem adiamentos

nem receios infundados, respeitosamente, e sempre da forma

que pensamos ser a mais adequada. Cada momento, por mais

ínfimo que pareça, é único, irrepetível e inolvidável. E cada ser

humano é também único, insubstituível e incomparável. Tudo

aquilo que não se der perde-se. Podemos expressar o melhor

possível o que pensamos e sentimos a cada pessoa que nos é

próxima. E ajudar, especialmente os mais novos, a abordar a

morte e a vida com simplicidade, integridade e autenticidade”

(Oliveira e Pires, 2005, p. 8).

Perante uma realidade que lhe é adversa, num mundo de imper-

manência e ilusões, qualquer jovem precisa de tomar decisões

importantes, e procura, constantemente, resposta para as suas

incertezas. De olhar inquieto, em pulsante crescimento interior,

hesitante em seguir a sós, “face a familiares, colegas e amigos,

com os quais mantém cambiantes processos de socialização,

pode sentir grande dificuldade em encontrar pontos de equi-

líbrio, em alcançar uma sinfonia interior, sem que deixe de

arriscar, por vezes de mais, até ao limite de uma desarmonia.

[...] Talvez apenas no seu íntimo possa encontrar algo de seguro.

Talvez tenha de arriscar para se conhecer, também através do

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que o circunda. Ao conquistar uma maior consciência da vida,

por vezes pelo contacto próximo com a morte, o indivíduo pode

entender que o suicídio não é mesmo uma solução” (Oliveira,

2004, pp. 401, 417). Apenas a cooperação e a comunicação, com

afectividade, o pode auxiliar a reerguer-se após os inevitáveis

tropeções, incentivar a prosseguir e amparar na difícil (mas

fantástica) caminhada que não pode deixar de realizar consigo

mesmo.

Ainda que a tentemos disfarçar ou repelir, a morte mantém-se

sempre demasiado perto. Alguns jovens aproximam-se perigo-

samente dela... e, por paradoxal que pareça, pensam na morte e

desafiam-na para a afastar, sem querer morrer, para sentir que

estão a viver e a conquistar (esperança para) a vida. O que nos

impede de escutarmos esses sinais, de fixarmos esses olhares

inquietos que tímida, agressiva ou ansiosamente nos perscru-

tam, de neles nos revermos a nós mesmos, de criarmos laços de

proximidade, darmos alguma atenção e dialogarmos? A morte

fascina. Mas não mais do que a Vida!

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divulgação ��

ordem dos enfermeiros

Susana Pacheco

Enfermeira Especialista

Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem de Ponta Delgada

Reflectir sobre a morte ao longo do ciclo vital numa perspectiva

da enfermagem significa dedicar uma atenção muito especial ao

que pensam, sentem e vivem os enfermeiros perante a morte de

alguém. Exige, também, tentar estabelecer algumas diferenças

entre os sentimentos e os comportamentos dos enfermeiros

quando acompanham a morte de uma pessoa nas diferentes

etapas da vida, como, por exemplo, a morte de um bebé que

acabou de nascer, a de uma pessoa jovem ou a de um idoso. Re-

flectir sobre a morte ao longo do ciclo vital numa perspectiva da

enfermagem implica, ainda, perceber qual o papel do enfermeiro

perante a pessoa que está a morrer e a família que está a viver

esta enorme perda.

Deste modo, começarei por fazer uma reflexão sobre o que a morte

representa para cada um de nós enquanto pessoas; prosseguirei

reflectindo sobre alguns sentimentos e comportamentos dos en-

fermeiros quando se vêem confrontados com o morrer; continuarei

relacionando as atitudes dos enfermeiros com a idade da pessoa

que morre; e, finalmente, dedicar-me-ei um pouco ao papel do

enfermeiro no acompanhamento do doente e da família.

1. Significado da morte na vida das pessoas

A morte é sempre um acontecimento que perturba a vida das

pessoas, na medida em que representa o desconhecido. Lembra-

nos a nossa finitude e, além disso, é o que temos de mais certo

na vida.

Como afirma Fernando Pessoa, “a morte é a curva da estrada”,

e é o facto de não sabermos o que está para além da curva que

nos causa apreensão e até um certo medo. São muitos e diversos

os sentimentos que nos percorrem quando pensamos na morte,

como são variadíssimas as questões que colocamos a nós mesmos

ou aos outros. O que está para além da morte? Será o nada? Será

uma vida eterna? O que nos vai acontecer afinal? Será que nos

vamos reencontrar com todos aqueles de quem gostamos e que

de formas diferentes marcaram a nossa vida? Para estas questões,

bem como para muitas outras, não encontramos qualquer resposta

concreta, e elas continuam a atormentar-nos, porque tudo é des-

conhecido para nós. Por isso, e como afirma Marie de Hennezel,

a morte “não deixa de continuar a ser um imenso mistério, um

grande ponto de interrogação que transportamos no mais íntimo

de nós” (1997, p. 11).

Porém, deparamo-nos quase constantemente com a morte e

sempre que vemos alguém morrer, consciente ou inconsciente-

mente, lembramo-nos de que também nós iremos morrer um dia,

que somos todos mortais e que não podemos de forma nenhuma

impedir que a morte aconteça.

De facto, a morte é a única certeza que temos na vida e, por mais

que a tentemos afastar das mais variadas maneiras, ela estará

sempre no final e é a única meta do caminho que estamos a

percorrer. Neste sentido, Filipe de Almeida afirma: “Se nascer e

viver foi o privilégio de apenas alguns biliões de seres humanos,

morrer é a certeza de todos quantos nasceram. Uma vez nascidas,

todas as criaturas têm uma probabilidade de morrer de 100%”

(1997, p. 47).

a morte no ciclo vital: perspectiva da enfermagem

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ordem dos enfermeiros

Estes pensamentos, sentimentos e medos estão, pois, muitas vezes

presentes em todas as pessoas; mas, quanto mais lidamos com

a morte e com o morrer, mais frequentemente nos recordamos

que ela existe. Assim sendo, se o pensar na morte pode ser mais

ou menos frequente em cada pessoa, é quase uma constante na

vida dos enfermeiros que presenciam quase diariamente a morte

de alguém.

2. Os enfermeiros e o morrer

Os enfermeiros vêem-se frequentemente confrontados com a

morte, sobretudo aqueles que desenvolvem a sua actividade em

hospitais, serviços de internamento, serviços de urgência, unidades

de cuidados intensivos, unidades de cuidados paliativos, entre

outros. Porém, também são pessoas que não estão, nem podem

estar, descontextualizadas da cultura e sociedade em que estão

inseridas, sofrendo, assim, as influências da sua evolução.

Como sabemos, se a morte era anteriormente vivida com alguma

naturalidade, a partir do momento em que fomos assistindo aos

enormes avanços científicos e tecnológicos no âmbito das ciências

biomédicas, as atitudes dos profissionais de saúde também foram

gradualmente mudando. Assim, a morte é hoje muitas vezes pen-

sada e vivida como um fracasso, como um erro, como um engano

e não como o limite natural da vida. Deste modo, os enfermeiros

têm ainda alguma dificuldade em lidar com o processo de mor-

rer. Quando se deparam com um doente em fim de vida, têm a

tendência de adoptar atitudes extremas, tais como afastar-se do

doente ou, pelo contrário, envolverem-se emocionalmente e de

forma muito intensa. De facto, ainda não é raro encontrarmos

enfermeiros que prestam cuidados ao doente em fase terminal de

uma forma rotineira e fria, que evitam o contacto e o diálogo com

o doente e com a família e que rodeiam a sua cama de biombos

de modo a evitar a permanência da visão de alguém que está

a morrer. Por outro lado, os mesmos enfermeiros envolvem-se

muito emocionalmente em determinadas situações particulares

de alguns doentes.

Estas atitudes de afastamento ou de um envolvimento demasiado

dependem de inúmeros factores que condicionam a forma como

encaramos e vivemos a morte, nomeadamente, o tipo de morte

e a idade da pessoa que morre. Efectivamente, vivemos senti-

mentos diferentes perante uma morte que acontece no final de

uma doença prolongada, uma morte que acontece subitamente,

uma morte por acidente ou uma morte por suicídio. Sentimos e

vivenciamos também de uma forma diferente a morte de uma

criança, de um jovem ou de um idoso.

3. Os enfermeiros e a idade da pessoa que morre

De um modo geral, podemos dizer que a morte é normalmente

inesperada nos jovens e que, pelo contrário, é previsível, esperada

e sentida como natural nas pessoas idosas. Com efeito, o acon-

tecimento da morte é, desde sempre, muito mais frequente em

pessoas que já atingiram uma certa idade do que nas pessoas mais

novas. Este facto tem vindo a acentuar-se cada vez mais com as

novas descobertas da medicina e hoje morrem realmente muito

mais velhos do que jovens. Deste modo, apesar de ser sempre

uma situação que gera sentimentos de tristeza, a morte é, de um

modo geral, sentida e vivida de formas diferentes quando estamos

perante uma pessoa jovem ou uma pessoa idosa. Sendo assim,

as atitudes dos enfermeiros perante a pessoa que está a morrer

e a família também vão depender em grande parte da idade da

pessoa que morre.

Podemos, pois, concluir que a aceitação da morte por parte dos

enfermeiros está intimamente relacionada com a idade da pessoa

que está a morrer. Apesar de o acontecimento da morte ser sem-

pre muito difícil, por vários motivos que já foram referenciados,

os enfermeiros conseguem, de um modo geral, conviver mais

facilmente com uma situação de morte de uma pessoa idosa, não

só porque eles próprios a aceitam melhor, mas também porque

os familiares também estão normalmente mais preparados para

viver aquela morte.

Com efeito, a morte nos idosos é um acontecimento relativamente

frequente para quem trabalha com doentes, e todos aceitamos que

uma pessoa, a partir de determinada idade, já cumpriu a sua missão

na vida, já viveu e já concretizou muitos dos seus objectivos. Os

enfermeiros conseguem aceitar com alguma naturalidade a morte

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ordem dos enfermeiros

de alguém que já atingiu uma idade avançada, o que lhes torna

mais fácil o acompanhamento do doente e da própria família. Esta

também encara, geralmente, a situação com alguma aceitação e

serenidade – apesar de acompanhada de uma enorme tristeza

–, sobretudo quando a morte sobrevém no final de uma doença

prolongada e acompanhada de algum sofrimento.

Porém, a morte de um jovem ou de uma criança já não é sentida

da mesma forma, uma vez que na maioria das vezes não é aceite e

pode gerar até uma grande revolta. Como diz Cícero, no seu texto

“De Senectute”, “Assim como a morte de um adolescente me faz

pensar numa chama viva apagada sob um jacto d’água, a de um

velho se assemelha a um fogo que suavemente se extingue. Os

frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os car-

rega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente.

Da mesma forma, a vida é arrancada à força aos adolescentes,

enquanto deixa aos poucos os velhos quando chega a sua hora”.

A morte de uma pessoa jovem pode ser comparada a uma luz que

se apaga subitamente ou a um fruto arrancado à força de uma

árvore, por ser normalmente inesperada, gerar sentimentos muito

fortes e provocar muita tristeza, raiva e até um maior ou menor

grau de revolta. Estas reacções surgem provavelmente, em grande

parte, precisamente pelo facto de pensarmos que é uma vida que

se apaga antes do tempo. De forma idêntica, acontece no que

se refere à morte de uma criança ou de um recém-nascido. “[…]

Se ela ainda nos pode aparecer como companheira inevitável da

idade adulta ou da velhice, quando a morte interrompe a vida no

seu começo é o grande absurdo, porque surge num momento a

que desde sempre esteve reservado um futuro terreno.” Afirma-o

Jorge Biscaia (1996, p. 47).

Todavia, os enfermeiros têm de continuar a defrontar-se com a

morte em qualquer idade, e, com maior ou menor aceitação, com

maior ou menor sofrimento, com maior ou menor dificuldade,

deverão estar preparados para apoiar quer o doente quer os seus

familiares. Este é, aliás, um aspecto contemplado no Artigo 87 do

Código Deontológico do Enfermeiro e que passo a citar:

“O enfermeiro, ao acompanhar o doente nas diferentes etapas da

fase terminal, assume o dever de:

a) defender e promover o direito do doente à escolha do local e das

pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da vida;

b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas

pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe

sejam próximas;

c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte”.

4. Papel do enfermeiro no acompanhamento do doente e da família

O enfermeiro é o elemento da equipa de saúde que mantém

uma relação mais íntima com o doente e com a família, não só

por permanecer nos serviços de saúde durante um período mais

longo, mas também porque é ele quem presta mais cuidados

directos. É ele que, geralmente, conhece melhor o doente como

pessoa e todo o contexto familiar, o que faz com que tenha maior

possibilidade de perceber as suas necessidades específicas e saber

qual a forma de lhes dar a resposta mais adequada. Cabe-lhe, pois,

um papel decisivo no apoio e acompanhamento a dar ao doente

e aos familiares durante todo o processo de morrer, pelo que se

torna fundamental que seja capaz de demonstrar a sua disponi-

bilidade para ajudar.

É fundamental que o enfermeiro tenha sempre o cuidado de

manter o doente e / ou a família informados, respondendo a todas

as perguntas colocadas e repetindo tantas vezes quantas as que

eles o solicitam. É importante, acima de tudo, nunca mentir e ter

o cuidado de fornecer a informação de acordo com o que o doen-

te e os familiares querem e podem saber, bem com ter sempre

atenção às suas reacções.

O enfermeiro deve ter sempre o cuidado de respeitar os sentimen-

tos quer do doente quer da família e a forma como os manifestam.

É importante saber dar espaço para todas as manifestações de

perda, medo ou revolta.

Saber ouvir, estar presente, compreender a dor nas suas mais

variadas manifestações e também saber ficar em silêncio são

virtudes essenciais para a prática de cuidados humanizados. To-

dos os momentos devem ser acompanhados com compaixão,

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ordem dos enfermeiros

humanidade e atenção às necessidades do doente e da família. Em

muitos momentos é difícil encontrar palavras de conforto, embora

nem sempre seja necessário dizê-las. A simples presença pode signi-

ficar tanto ou mais do que muitas palavras e o facto de o enfermeiro

demonstrar a sua solidariedade é muitas vezes o suficiente.

E, quando a morte acontece, há que respeitar o corpo e a família

enlutada, de modo a conferir a dignidade intrínseca a que qualquer

pessoa tem direito, mesmo após a sua morte.

Gostaria, a este propósito, de relatar uma situação descrita por

Maurice Abiven no seu livro Para uma morte mais humana, que

nos elucida muito bem sobre o respeito com a pessoa depois da

morte:

“Agnès acaba de morrer rodeada da filha e do marido… Na sua

cama… está toda vestida de branco…o seu rosto aureolado de uma

coroa de cabelos negros… Nas suas mãos, um pequeno ramo de

flores brancas trazido pela sua filha, e nos seus cabelos uma flor

branca… O seu rosto, os seus cabelos, as suas mãos cheiram bem,

estão perfumados com o seu perfume, o que ela usava todos os dias.

Quando os membros da sua família se debruçam para a beijar…é

o seu cheiro que eles respiram, e é muito importante porque na

memória deles, Agnès está intimamente ligada a esse perfume.

Tudo o que foi símbolo de doença desapareceu do quarto… há

um tempo para tudo. Nesse preciso momento já não há espaço

para a doença…perante tanta beleza o marido começa a chorar…

o desgosto liberta-se e nós deixamo-lo chorar tanto quanto de-

seja…” (2001, p. 127).

Todavia, como já foi referido, os enfermeiros são também pes-

soas, pelo que necessitam de ser apoiados neste domínio. Seria

importante que nos serviços onde se vive com frequência a morte,

houvesse espaço e tempo para reuniões regulares, onde todos os

profissionais de saúde pudessem falar, partilhar experiências e

reconhecer ansiedades e sentimentos face à morte. Ou não terão

também eles o direito de fazer o luto dos seus doentes? Em nossa

opinião, é primordial contribuir para o bem-estar dos profissionais,

o que certamente fará com que sejam mais capazes de apoiar

os doentes no final da vida e os seus familiares. O ideal seria

que fossem programadas reuniões periódicas, propositadamente

para debater as vivências de cada profissional. Além disso, esses

momentos também poderiam ser aproveitados para reflectir em

conjunto sobre tudo o que de bom existe na vida e a que muitas

vezes não damos qualquer importância.

De facto, é também pensar na morte e conviver com a mesma que

nos faz perceber que a vida deve ser vivida. Marie de Hennezel,

num determinado ponto do seu livro Diálogo com a Morte, lem-

bra-nos precisamente disto quando escreve: “Após anos e anos

de assistência a pessoas que vivem os seus últimos momentos,

não sei muito mais sobre a morte em si mesma, mas a minha

confiança na vida não tem senão aumentado. Vivo, sem dúvida,

mais intensamente, com uma consciência mais aguda, aquilo que

me é dado viver, alegrias e tristezas, mas também todas essas

pequenas coisas quotidianas, que são óbvias, tal como o simples

facto de respirar ou de andar” (1997, p. 11).

A morte lembra-nos a vida e ajuda-nos a apreciá-la melhor, tal como

depois de uma tempestade apreciamos mais um dia de sol. É por isso

que os enfermeiros que se confrontam mais frequentemente com

a morte podem ter momentos muito tristes, mas são também eles

que olham mais à sua volta, “sentem” mais tudo o que a natureza

nos oferece, e se sentem felizes por poderem estar vivos.

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ordem dos enfermeiros

Prof. Doutor Rui Nunes

Médico

Director do Dep. de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina do Porto

É para mim um privilégio e uma honra estar nesta magnífica

reunião. Felicito a Ordem dos Enfermeiros e, em particular, a

Senhora Bastonária, que queria cumprimentar com particular

veemência.

Começo por dizer que todas as comunicações que tive a opor-

tunidade de ouvir foram excelentes. Já tinha tido o prazer de

conhecer alguns dos interventores, outros conheci na manhã de

hoje e, neste sentido, vou comentar as duas últimas interven-

ções na perspectiva da bioética. Mais do que fazer uma síntese,

porque, obviamente, isso seria pouco relevante, vou referir-me

àquilo que a bioética pode acrescentar em relação aos temas

propostos. Ou seja, a morte no ciclo vital, a perspectiva do

jovem adolescente, por um lado, e da enfermagem, por outro.

Neste sentido, dividirei esta curtíssima intervenção, em jeito de

comentário, em três partes distintas. Em primeiro lugar, a pers-

pectiva do utente, do doente dos serviços de saúde. Em segundo

lugar, a perspectiva estritamente profissional e, finalmente, vou

referir-me à dimensão social e familiar da morte e à necessidade

de acompanhamento espiritual na fase final da vida.

No que respeita ao doente, ao utente, ao utilizador dos serviços

de saúde, a bioética tem reforçado, sobretudo ao longo dos últi-

mos vinte anos, o conceito de autonomia individual estruturada

em torno do direito à autodeterminação pessoal. Se estamos

a falar muito concretamente do adolescente e da criança, a

situação tende, portanto, a complexificar-se substancialmente.

Ou seja, se estamos de acordo com o facto de, numa sociedade

plural e secular, como a nossa, numa sociedade solidária e coesa,

como a sociedade portuguesa pretende ser, reconhecermos e

afirmarmos o primado da autodeterminação, deduz-se, logica-

mente, que, quando estamos a falar de crianças e adolescentes,

este conceito deve ser reequacionado. Pelo menos de acordo

com duas linhas directrizes. Por um lado, aquilo que tem a ver

com os limites da autodeterminação individual – por exemplo,

o suicídio e o comportamento parassuicida. Ainda que filosofi-

camente pudéssemos levar muito longe a discussão em torno

do suicídio racional, devemos, a priori, procurar os motivos que

levam um jovem a procurar o suicídio e tentar, obviamente,

controlá-los e dirimi-los. Por outro lado, e no que diz respeito

à criança, a sua autonomia terá que ser reportada ao futuro.

Trata-se do conceito – hoje universal – de direito a um futuro

aberto. Este direito, básico, fundamental e inalienável, pretende

salvaguardar a vida e a integridade física da criança, para que,

no futuro, esta possa exercer a sua autonomia. Portanto, com-

pete aos seus pais (ou legítimos representantes), desde que

defendam o melhor interesse da criança, proteger a especial

vulnerabilidade dos seus filhos.

Assim, termino este primeiro comentário chamando a atenção

precisamente para a importância do exercício da autonomia

a morte no ciclo vital– comentário de rui nunes

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ordem dos enfermeiros

individual, para os seus limites e para o modo como ela se

pode exercer no quotidiano dos profissionais de saúde. Muito

em particular, no quadro daquilo que hoje se designa pelos

“Novos Direitos dos Doentes” e que afirmam um em espe-

cial – que é matricial para este seminário – que é o direito a

morrer com paz e com dignidade. Portanto, ficava esta nota

preliminar, que dada a medicalização da morte e do processo

de morrer, qualquer ser humano tem o direito a morrer com

paz e com dignidade no exercício responsável da autonomia.

É, não apenas um direito, mas essencialmente uma grande

conquista civilizacional.

Do ponto de vista profissional queria salientar o papel fun-

damental das equipas de saúde. Hoje não se deve falar em

médicos, enfermeiros, farmacêuticos ou psicólogos a trabalha-

rem isoladamente, mas sim de verdadeiras equipas de saúde,

nas quais todos os profissionais de

saúde trabalham em conjunto para

alcançar um objectivo comum que

é, naturalmente, o bem-estar do

doente, o alívio do seu sofrimento,

a promoção da sua qualidade de

vida, designadamente, na fase ter-

minal. Ou seja, a bioética pretende

reinterpretar uma prática milenar

– a ética hipocrática que todos conhecemos –, nomeadamente

os princípios éticos da beneficência e da não-maleficência,

enquadrados em critérios claros de evidência científica. Isto é,

tornando este último ponto mais claro, beneficência já não é

apenas aquilo que decorre da experiência individual, mas sim

aquilo que a ciência vai determinando, à escala global, como

sendo o melhor curso de actuação possível. Trabalho em equipa

e prática baseada na evidência são, então, a marca genética

desta nova ética em cuidados de saúde.

Por estes motivos, não é de estranhar que os enfermeiros se

dediquem sobretudo a cuidar do doente. Esta postura tem uma

base ético-filosófica muito sólida – a ética do cuidar (the ethics

of care) – como sugere, aliás, Carol Gilligan. Mas esta ética do

cuidar e esta procura do melhor interesse do doente devem ter

em atenção, também, o carácter desproporcionado (heróico,

extraordinário) de algumas intervenções biomédicas junto dos

doentes. Fica para reflexão ulterior, no contexto da doença

terminal, aquilo que foi, aliás, teor de um parecer do Conselho

Nacional de Ética para as Ciências da Vida que é a suspensão ou

abstenção de meios desproporcionados de tratamento em doen-

tes em Estado Vegetativo Persistente (EVP) e em que condições

são legítimos estes tratamentos. Nestas circunstâncias, o papel

do enfermeiro é fundamental, se calhar ainda mais importante

que o dos médicos. Por outro lado, esta suspensão ou abstenção

de meios desproporcionados de tratamento remete-me para

outro domínio que é o das “Ordens de Não Ressuscitar” (Do

Not Resuscitate Orders). Trata-se de um tema da maior actuali-

dade dado que, cada vez mais, as decisões clínicas devem estar

compaginadas com as decisões éticas, devendo estas decisões

ser tomadas, em uníssono, por toda a equipa de saúde. Mais

uma vez, médicos, enfermeiros e

técnicos superiores de saúde devem

falar a mesma linguagem, a uma só

voz, para atingir o melhor interesse

do doente.

Finalmente, termino com a perspec-

tiva social e familiar da morte, que

foi aliás reiteradamente afirmada

pelos diversos palestrantes. Neste contexto, deve realçar-se o

facto de que a nossa matriz ideológica, com tradução constitu-

cional, reconhece um direito à protecção da saúde, portanto, um

direito de acesso aos cuidados de saúde, sendo mesmo consi-

derado como uma expressão da eminente dignidade da pessoa

humana. Também o Tratado Constitucional Europeu, que acabou

por não ser sufragado em Portugal, reconhece no seu Artigo

II-35 a existência de um direito humano básico à protecção da

saúde, devendo, em meu parecer, ser interpretado no contexto

da prestação de cuidados na fase final da vida humana. Assim,

duas pistas de reflexão, que aliás emergem das intervenções bri-

lhantes dos dois prelectores que me antecederam: em primeiro

lugar, a importância de uma rede social e familiar de apoio, que

de algum modo tente contornar o obstáculo que todos nós co-

nhecemos, e que é por demais evidente, que é a medicalização,

Nestas circunstâncias, o papel

do enfermeiro é fundamental,

se calhar ainda mais importante

que o dos médicos.

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ordem dos enfermeiros

a hospitalização da morte, esse fenómeno recente que tem a

ver com a evolução da nossa sociedade. De facto, hoje em dia

as pessoas saem de casa para ir morrer no hospital, com todos

os inconvenientes que esta prática encerra. Esta circunstância

poderá ser mitigada se for criada uma rede de apoio firme com

base em princípios sérios de solidariedade humana. Nomeada-

mente, solidariedade intergeracional.

Por outro lado, queria também chamar a atenção para o im-

perativo da criação de uma rede de cuidados continuados e,

sobretudo, de cuidados paliativos. Sei que é um tópico hoje

muito propalado. Alguns dias atrás celebrou-se, pela primeira

vez, o dia mundial dos cuidados paliativos, devendo salientar-se

aqui, aliás, o papel do XVI Governo Constitucional quando, em

Julho de 2004, propôs e aprovou o Plano Nacional de Cuidados

Paliativos. Foi um importante passo para o sistema de saúde, mas

podemos progredir neste domínio dado que diversos estudos

evidenciam que apenas 5000 doentes em fase terminal de vida

(e que carecem de cuidados paliativos) têm acesso efectivo a

este tipo de cuidados. Deve, então, fazer-se um apelo para que

a nossa sociedade vá mais longe na implementação concreta

deste tipo de cuidados junto de doentes terminais, criando, em

todo o País, unidades de cuidados paliativos, em plena articula-

ção com as redes de cuidados de saúde primários e de cuidados

diferenciados.

Por fim, chamava a atenção para aquilo que hoje se reconhece

como um direito básico dos cidadãos, sobretudo daqueles que

se encontram e declaram doentes, e que é o direito ao acompa-

nhamento espiritual. A consagração deste direito implica alguma

reformulação do modo como está organizado o nosso sistema de

saúde. Trabalhando em conjunto com as pessoas vocacionadas

para o efeito, está em causa, também, um acompanhamento re-

ligioso para aqueles que o desejarem. Note-se que, por exemplo,

a Nova Carta dos Direitos dos Utentes dos Serviços de Saúde,

que tive a honra de ajudar a redigir quando era presidente da

Entidade Reguladora da Saúde, consagra claramente este direito

e propõe medidas eficazes para a sua concretização em todas

as unidades de saúde.

Termino como iniciei, felicitando novamente o Conselho Jurisdi-

cional pela excelência deste evento e a Ordem dos Enfermeiros

pela capacidade notável de que dispõe de mobilizar tantos pro-

fissionais, sobretudo tantos jovens, para reflectir sobre um tema

desta natureza, reflexão esta que vai contribuir sobremaneira

para uma verdadeira humanização dos cuidados de saúde. oe

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ordem dos enfermeiros

Jacinto Oliveira

Vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros

Antes de mais, à semelhança do que fez o Sr. Professor Rui Nu-

nes, deixem-me felicitar o Conselho Jurisdicional da Ordem dos

Enfermeiros, por mais uma vez ter levado a cabo este Seminário.

A vossa participação é a prova de que faz sentido estarmos aqui

a reflectir sobre um tema que, apesar de eventualmente sobe-

jamente discutido, nos deixa sempre uma enorme margem de

discussão e espaço de aprendizagem.

Deixem-me cumprimentar todos os elementos desta mesa e

dizer-vos o quanto me sinto pequeno para ousar comentar tão

brilhantes intervenções.

Mesmo assim, farei uma tentativa. Mas antes, deixem-me dizer-

-vos que o meu comentário reside no facto de ter atingido há

pouco tempo a maioridade profissional no Centro Regional de

Oncologia de Coimbra. Refiro-me ao facto de trabalhar há mais

de 18 anos naquele centro. Ao longo deste tempo, cuidei de

muitas pessoas em fase terminal e creio ter ajudado muita gente

a morrer com dignidade. É um pouco sobre esta experiência que

o comentário será feito.

Tenho um outro privilégio: ajudei a construir um dos serviços de

cuidados paliativos deste país, e, já agora, posso afirmar-vos que

não foi tarefa fácil. Hoje está perfeitamente assumido que os

cuidados paliativos devem estar presentes. Na altura em que esta

construção se iniciou, tal não era nítido, havendo mesmo alguns

que consideravam tratar-se de uma despesa inútil. Reparem bem

no percurso que fizemos!

Acrescentar qualidade à fase terminal da vida e ajudar a morrer

com dignidade devem ser desideratos tão importante quanto

qualquer um dos outros do Serviço Nacional de Saúde.

Procurarei agora centrar-me em cada uma das intervenções.

O primeiro orador, o Sr. Professor Filipe Almeida contava a his-

tória de Susana – retive a primeira frase logo que entrei na sala.

Se bem me lembro, dizia ele: “ela pedia apenas que eu estivesse

ali, queria apenas a minha presença”. Creio que este é um apelo

sempre presente em qualquer fase terminal, independentemente

da fase do ciclo da vida de que estejamos a falar. As crianças,

os jovens, os adultos, quem quer que seja, apreciam, tenham a

idade que tiverem, a nossa presença; melhor, têm necessidade

dela. Em silêncio ou acompanhando o fino fio das últimas pala-

vras, a nossa presença testemunha o último momento sublime

de uma vida humana.

Vou contar-vos uma história. Um dia, trabalhava eu no serviço de

cirurgia, um doente em fase terminal tocava incessantemente à

campainha. Nessa altura, tínhamos o hábito de isolar os doentes

em fase terminal no quarto do fundo (porque seria?...) – era o

quarto mais pequeno, lembro-me bem. Sempre que ele tocava,

dirigia-me ao seu quarto e procurava saber se haveria algo mais

que pudesse fazer. Ele respondia-me invariavelmente “Só queria

a morte no ciclo vital– comentário de Jacinto oliveira

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saber se estava aí…” A dado momento, decidi permanecer junto

dele e a campainha tocada por aquela trémula mão calou-se para

sempre... Era muito jovem, e demorei demasiado tempo a desco-

dificar a mensagem... Aprendi nesse dia que a minha presença era

o algo mais que aquele ser humano necessitava. Estar presente é

a última dádiva que a ninguém pode ser negada – lembrem-se!

Em relação às crianças, disse também o primeiro orador, é

importante estarmos atentos ao que elas são capazes de intuir

acerca da vida e da morte. Provavelmente, o modo como eles

vivenciam a morte tem a ver com esta sua capacidade. Se o

soubermos descobrir, ficaremos mais capazes de as ajudar.

E o problema dos pais? Perder um filho talvez seja o mais abso-

luto absurdo, disse-o também o primeiro orador. Não há dúvida

nenhuma de que qualquer mãe ou pai, perante a iminência da

morte de um filho, trocaria esse momento. Não hesitaria, se

tal fosse possível, em restituir o curso

natural dos acontecimentos, ou seja:

primeiro morrem os pais e só muito

mais tarde os filhos. Mas, por mais que

queiramos, tal não é possível.

Então, o que fazer? O que se espera

de nós? A nossa arte está em fazê-los

compreender que esse momento não é passível de ser trocado.

Partilhar esse momento respeitando o sofrimento que ele inflige.

Creio que esta nossa atitude não deixará de contribuir decisiva-

mente para a abordagem que aqueles pais hão-de fazer da morte

do seu filho e do processo de luto que se lhe seguirá.

Gostei também de ouvir que era importante percebermos que

a morte é um tempo de finalidade mas simultaneamente de

totalidade. À primeira vista, podem parecer coisas idênticas,

quando na realidade não o são. Finalidade, mas também de

totalidade. É muito importante que os enfermeiros interiorizem

esta diferença e lhe dêem conteúdo.

Faço daqui uma ponte para o segundo orador, o Professor

Doutor Abílio Oliveira, e centrava-me, porque o tempo

escasseia, em algo que eu não gostaria que entendessem como

uma atitude corporativista – aliás, cingir-me-ei aos resultados

apresentados. Dizia ele que, num estudo que fez, observou que

os enfermeiros se mostravam emocionalmente mais envolvi-

dos e que evidenciavam pensamentos de mal-estar perante

a morte mais vincados que os outros profissionais de saúde.

Fiquei contente. Sou enfermeiro e fiquei muito contente.

Saber que o envolvimento emocional é um dos elementos

distintivos da nossa prática deixa-me feliz. Devia deixar-nos

a todos felizes. Estar mais próximo do outro sempre e em

qualquer circunstância é um dos principais desideratos da

nossa profissão.

O desafio é saber o que podemos ainda fazer mais. O que

podemos construir quotidianamente para que, a cada dia

que passa, valorizemos mais a singularidade da pessoa e do

momento que ela vivencia. Sou enfermeiro porque amo as

pessoas, independentemente da fase

do ciclo de vida em que se encontrem.

Ninguém, do meu ponto de vista, con-

segue ser bom enfermeiro se não amar

verdadeiramente o outro.

Uma outra coisa me chamou a atenção

neste estudo do professor Abílio. Diz

respeito à inexistência de reacção na ausência de um estímulo.

Ou seja, quando não havia filme que invocasse o acontecimento

– a morte – parecia que ela não existia, parecia que a morte

estava longe. Não acontecia. Trata-se de um tópico que nos devia

obrigar a reflectir. Será que estamos num tempo em que só os

estímulos nos acordam para a realidade, a este e a outros níveis,

mas a este em particular? É bom este tempo em que é preciso

um estímulo para que nos possamos lembrar que algo existe, é

real? Porque será que só na presença de estímulos assumimos,

entrosamos a realidade?

Do meu ponto de vista, talvez fosse importante perceber porque

chegámos a este tempo e a esta fase do caminho. A maior parte

dos colegas são muito jovens, perdoem-me, mas deixo-vos esta

inquietude para as horas que hão-de vir...

Estar presente é a última

dádiva que a ninguém pode

ser negada – lembrem-se!

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ordem dos enfermeiros

Já agora, outro tópico daquela comunicação: a sociedade pre-

fere fugir ou fingir? É interessante esta frase... também para

reflectir.

Creio que na exacta medida em que cada um de nós conseguir

colocar o assunto na ordem do dia, mais preparado estará para

lidar com a morte dos outros e com a sua própria morte. É muito

importante que saibamos ajudar a sociedade a não fugir e muito

menos a fingir. Este é um contributo que cabe a cada um dos

enfermeiros, que cabe a cada um de nós…

Quanto à terceira comunicação, escrevi aqui uma redundância

que me surgiu quando ouvia a colega Susana Pacheco a dizer “a

morte é a única certeza”, (e eu coloquei reticências!): “certa”.

Ocorreu-me, e espero que nenhum de nós se esqueça, que a

morte é a única certeza, e a única certeza que todos vivenciare-

mos. E que vivenciaremos de modo próprio e também prestando

cuidados aos que se encontram em fase terminal.

A questão é saber se estamos verdadeiramente preparados para

prestar cuidados aos outros quando eles se encontram em fase

terminal, quando a morte está iminente.

Creio que cada um de nós tem o dever de colocar essa ques-

tão a si próprio e, sempre que a resposta não for convincente,

procurar todos os dias preparar-se melhor para poder prestar

cuidados de melhor qualidade nesta fase tão importante da

vida dos outros.

Disse-nos também a Enfermeira Susana Pacheco que os enfer-

meiros têm tendência a adoptar atitudes extremas perante a

morte, e estas atitudes dependem do tipo de morte e da idade

de morte, ou da idade da pessoa que morre. Mas disse-nos algo a

seguir que eu considero absolutamente central: a morte é sempre

um acontecimento significativo, nunca uma banalidade, nunca!

A morte é sempre um acontecimento relevante.

E, por falar nisto, lembrei-me de evocar um dos meus livros

de mesinha de cabeceira – O Principezinho – que me ensinou

que “foi o tempo que dediquei à minha flor que a tornou tão

importante para mim”. Já todos leram o Principezinho? Se não

leram, ainda vão a tempo.

Também nos ensina muitas coisas sobre a morte e o modo como

somos capazes de a vivenciar.

A colega Susana Pacheco relembrou-nos também o Artigo 87 do

estatuto da OE, que me escuso aqui citar. Faço-vos, porém, um

pedido encarecido: quando forem daqui, porque já se esqueceram

do slide que esteve ali, porque foi um dia em que se falou da

morte, não deixem de voltar a ler ou a reler o Artigo 87.

Uma última nota, para dizer que é importante retermos que

os enfermeiros,(bem como outros profissionais), atendendo a

tantas exigências que eu lhes fiz aqui neste comentário, tam-

bém necessitam de que alguém olhe por eles, de alguém que

esteja atento aos seus momentos de vulnerabilidade. É um facto

que necessitamos de criar estruturas para apoiar aqueles que

prestam cuidados, não só a doentes em fase terminal ou onde

a morte se anuncia, mas também noutros momentos e em ou-

tros contextos de trabalho. Este deverá ser um salto qualitativo

sobre o qual devemos pensar maduramente, num futuro muito

próximo. Hoje todos estamos aqui com uma força enorme, mas

é preciso reconhecer que todos tropeçamos diversas vezes no

nosso quotidiano profissional e é preciso criar uma estrutura que

nos possa apoiar nesses momentos.

Última frase: os enfermeiros nunca deviam esquecer-se de que a

última imagem retida por um ser humano em fase terminal é, na

maior parte das vezes, a prestação de cuidados de enfermagem.

Esta imagem pode ser divulgada alhures... A ser assim, eu ficaria

mais tranquilo se, em qualquer outro local onde possam divul-

gar a imagem da minha profissão, a minha imagem enquanto

prestador de cuidados, pudessem dizer algo do género: aquele

enfermeiro do bigode e voz áspera esteve sempre presente. Inde-

pendentemente do que aconteceu, ele esteve sempre presente.

Oxalá todos saibamos estar presentes sempre que os outros

necessitem de nós. oe

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ordem dos enfermeiros

Norberto Silva

Vogal do Conselho Jurisdicional Regional Secção Regional do Norte

Falar de final de vida e de deveres para com o doente terminal não

se me afigura tarefa fácil, pelo que espero que esta minha inter-

venção não resvale para uma tendência mórbida ou fúnebre.

A história natural e implacável de muitas doenças, a agressividade

que a vida moderna provoca sobre as pessoas, especialmente

ligada aos acidentes rodoviários e aos acidentes de trabalho, e o

envelhecimento aproximam muitos seres humanos do final de

vida.

Quando falamos do final de vida, referimo-nos a uma inelutável

mas penosa realidade, que muitas vezes se pretende minorizar,

abafar e esquecer: a morte, o fim da vida é a morte.

Nos dias de hoje, colectivamente, se não se pode recusar a reali-

dade da morte oculta-se, suprime-se do ideário e do imaginário,

lançando-se sobre ela o “tabu de um quase obsceno aconteci-

mento” (Osswald, W., 1999).

Assim, quando nos referimos ao doente terminal estamos a falar

daquelas pessoas para quem que já não há recursos terapêuticos

disponíveis capazes de parar a marcha da doença, tornando-se a

morte previsível a mais ou menos curto prazo. Estamos perante a

situação de um padecimento que desliza para a senescência avan-

çada, com progressiva perda de forças e capacidades e que conduz

inexoravelmente à morte. Teremos, então, um hiato temporal que

pode ir de horas ou dias a semanas ou meses.

Estas situações apresentam problemas específicos de grande com-

plexidade que se revestem de grande importância para a ética e

deontologia dos profissionais de saúde.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no pa-

recer sobre aspectos éticos dos cuidados de saúde relacionados

com o final de vida (11/CNECV/95), considera que a prestação

de cuidados de saúde no período final da vida se reveste de um

exemplar carácter ético.

O que resta fazer quando nada mais há a fazer? O que muda?

Em que sentido se há-de redefinir condutas e posições nestes

momentos difíceis em que profissionais de saúde, doentes e

famílias se defrontam com esta realidade?

Alguns, certamente, julgarão que a sua tarefa terminou

quando nada mais se pode fazer pela unidade orgânica viva.

Mas é exactamente esta a ocasião para lembrar que, além

dos aspectos biológicos que condicionam a fatalidade do fim

do organismo, estamos, sobretudo neste momento, diante

de uma pessoa e diante da experiência limite da existência.

(Silva, F., 2005)

Nestas circunstâncias, os valores que alicerçam a cultura ético-

-deontológica individual e institucional assumem um especial

relevo.

cuidado no final de vida – dos deveres para com o doente terminal

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ordem dos enfermeiros

Os valores são critérios segundo os quais valorizamos ou desva-

lorizamos as coisas e nesta medida justificam as nossas acções e

as nossas escolhas. (Nunes, L., 2005)

Pieper (1991) refere que não há moral sem as ideias de liber-

dade, igualdade, justiça e dignidade humana. Estas ideias são

assumidas pelo direito (em sentido normativo, traduzido no

ordenamento jurídico de cada país) ou pelos direitos, no plural

– direitos humanos – , senão vejamos, a título de exemplo: a

Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) refere, logo

no primeiro parágrafo do seu preâmbulo, que “o reconhecimento

da dignidade inerente a todos os membros da família humana

e dos direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da

liberdade, da justiça e da paz no mundo” e também a Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), quando, no seu

preâmbulo, considera que a União Europeia se baseia “nos valores

indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade,

da igualdade e da solidariedade” colocando “o ser humano no

cerne da sua acção”.

Também no ordenamento jurídico português encontramos con-

sagrados na Constituição da República Portuguesa os direitos e

deveres fundamentais da pessoa humana, dos quais destacamos:

os princípios da universalidade e da igualdade (artigos 12 e 13, res-

pectivamente), o direito à vida (Artigo 24), o direito à integridade

pessoal (Artigo 25), o direito à identidade pessoal, à capacidade

civil, à cidadania, ao bom nome e à boa reputação, à imagem, à

palavra, e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (Ar-

tigo 26), o direito de livre expressão do pensamento e o direito

à informação (Artigo 37) e a liberdade de consciência, religião e

culto (Artigo 41).

Estes direitos (fundamentais) são naturais e universais, imprescri-

tíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis, indivisíveis, efectivos

complementares e interdependentes.

Neste sentido, devemos focalizar a questão dos deveres para com

o doente terminal e dos direitos do doente terminal nos grandes

princípios éticos da:

beneficência, “fazer o bem”;•

não-maleficência, “não fazer o mal”;

integridade da vida, “inviolabilidade da vida humana”;

autonomia, “liberdade pessoal e autodeterminação”;

justiça, “igualdade de direitos”;

verdade, “não induzir em erro”;

fidelidade, “não violar a confidencialidade” (Roth, H.; Zierath,

M., 1999).

Estes princípios éticos materializam-se sob a forma de compro-

misso, de onde decorrem obrigações e deveres. Isto é, manifes-

tam-se sob a forma de injunções e interdições.

Daqui decorrem as obrigações de natureza deontológica. A deon-

tologia é a formulação de um dever de natureza profissional que

engloba um conjunto de normas (código deontológico), alicer-

çadas nos princípios éticos e do direito, que procuram definir as

boas práticas, de acordo com as características próprias de cada

profissão.

O Código Deontológico dos Enfermeiros é um instrumento legal e

vinculativo para todos os profissionais de enfermagem, em cujo

articulado encontramos um conjunto de normas assentes em

princípios éticos e do direito, relativas à profissão e ao seu exer-

cício. Estas normas exprimem o que é esperado dos enfermeiros e

assentam no compromisso que estes têm para com a sociedade,

que lhes reconhece capacidades técnicas, científicas e humanas

para desempenhar um conjunto de funções. (Santos, C., 2004)

Neste particular, o Código Deontológico dos Enfermeiros tem um

conjunto de artigos em que os deveres decorrem da salvaguarda

e da garantia dos direitos dos utentes. Nomeadamente, refere o

“Artigo 87 – do respeito pelo doente terminal – O enfermeiro,

ao acompanhar o doente nas diferentes etapas da fase terminal,

assume o dever de:

a) defender e promover o direito do doente à escolha do local

e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal da

vida;

b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas

pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe

sejam próximas;

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ordem dos enfermeiros

c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte”.

Esta referência específica ao dever de “defender e promover o

direito do doente [...]” e de “respeitar e fazer respeitar as mani-

festações de perda” coloca o enfermeiro como “advogado” do

doente, assumindo este o dever de assegurar, defender e vigiar

os seus direitos para que sejam respeitados.

A acção dos enfermeiros deve ser orientada no sentido de uma

preocupação efectiva em promover a qualidade de vida máxima

no tempo de vida que resta, em garantir cuidados básicos e

paliativos, com respeito pela dignidade de cada pessoa. A sin-

gularidade da situação terminal deve fazer emergir de forma

mais nítida a substância ética da relação enfermeiro-doente-

-família. O enfoque da nossa acção deve ser dado à valorização

da qualidade de vida e do acompanhamento do doente e da

família, isto é, intervir visando atenuar os sintomas da doença

(em particular a dor) e garantir o máximo de conforto possível,

sem agir sobre a causa. O objectivo, acima de tudo, é preservar

a dignidade humana.

Devem-se recusar todas as formas de obstinação terapêutica, não

recorrendo ao uso de recursos terapêuticos fúteis e inúteis, uma vez

que apenas conduzem ao arrastar do sofrimento dado que a cura

não é mais possível, tendo presente que a omissão de tratamentos

inúteis ou a interrupção de “meios artificiais” não são eutanásia.

Os enfermeiros são, muitas vezes, os interlocutores que mais

próximos se tornam do doente, naturalmente extravasando

as suas competências estritamente profissionais para criarem

laços de amizade, baseada na confidencialidade, no respeito, na

benevolência e na solicitude que devem sempre servir de norma

orientadora da relação com o doente. (Osswald, W., 1999)

Por isso, não raramente, no decorrer da nossa prática quotidiana,

somos confrontados com situações delicadas que exigem um

elevado sentido ético e deontológico. Assim, e para terminar,

vou abordar de seguida, a título de exemplo, duas situações, que

se calhar alguns de nós já vivenciámos e, provavelmente, nos

suscitaram dúvidas de natureza ética e deontológica.

A – Doente grave, hospitalizado, que entra em fase terminal. Será ético interromper tratamentos que se tornaram claramente ineficazes? Será eticamente aceitável não iniciar uma tentativa de reanimação?

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no parecer

11/CNECV/95, considera que se deve recusar a “obstinação tera-

pêutica por ser má prática, mas utilizando todos os meios neces-

sários para assegurar o conforto e bem-estar do doente, de modo

a que o processo de morte decorra com respeito pela dignidade da

pessoa humana” e acrescenta que é necessário um “atendimento

personalizado e constante, por parte da equipa de saúde, que deve

ser permitida a presença de familiares durante 24 horas ou outras

pessoas que o doente deseje ver, incluindo ministros religiosos, e

que seja facilitada a alta na fase final se o doente ou a família o

desejar”. Mais acrescenta que “é eticamente inaceitável […] que o

doente terminal hospitalizado seja isolado e abandonado até que

ocorra a morte na mais completa solidão”.

Também o Código Deontológico do Enfermeiro considera, como

atrás se disse, no Artigo 87, que “o enfermeiro, ao acompanhar o

doente nas diferentes etapas da fase terminal, assume o dever de:

a) defender e promover o direito do doente à escolha do local e

das pessoas que deseja que o acompanhem na fase terminal

da vida”, orientando a sua acção para a promoção da qua-

lidade de vida do doente e família, garantindo cuidados de

acompanhamento e de suporte, no respeito pela dignidade

da pessoa.

No Enunciado de Posição Sobre a Eutanásia, aprovado pelo Con-

selho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros em Junho de 2002,

afirma-se que “os enfermeiros assumem a defesa e protecção

da vida e da qualidade de vida, recusando posições extremadas

como o são a eutanásia e a distanásia (obstinação terapêutica)”,

considerando-se esta uma boa prática por se tratar da absten-

ção de tratamentos inúteis. Mais se acrescenta que não existe

diferença ética relevante entre não aplicar um tratamento que

pode prolongar artificialmente a vida e retirar um tratamento

que se tornou desproporcionado ou inútil (por exemplo desligar o

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ordem dos enfermeiros

ventilador), sendo estes, neste contexto, procedimentos etica-

mente aceitáveis.

Assim sendo, a omissão de uma acção, dentro de uma situação

terminal em que a morte ocorre (ortotanásia), por exemplo,

tentativa reanimação em caso de paragem cardiorrespiratória,

não é contrária à ética desde que tal ocorra por obediência à von-

tade competente e esclarecida do doente ou por razões de boas

práticas, isto é, o não-procedimento justifica-se eticamente pela

recusa de tratamentos “heróicos” ou despropositados (recusar a

obstinação terapêutica) que na maior parte dos casos provocam

sofrimento inútil ao doente.

B – Doente que sofre de dores intensas e é tratado com analgésicos e sedativos. Pode ser que estes fármacos tenham como efeito colateral a aproximação da morte ou a perda da consciência, parcial ou completa. Será eticamente aceitável utilizá-los?

Considera-se que o uso de tais fármacos pode ser lícito se se

cumprirem as seguintes condições, as quais são muito razoáveis

e de senso comum:

1) não há outra alternativa melhor (não há disponíveis outros

analgésicos que não tenham estes efeitos);

2) não há mais nada que se possa fazer;

3) trata-se de uma dor grave num doente terminal, e;

4) o doente já cumpriu ou pode razoavelmente cumprir com

seus deveres graves: “arrumar” assuntos familiares, receber

os sacramentos etc.

A intenção aqui não é “matar” o doente por meio de fármacos

para aliviar os seus sofrimentos, mas sim a de lhe aliviar os sofri-

mentos por meio de medicamentos adequados, ainda correndo

o risco de que a morte se aproxime mais rapidamente por isso

ou que perca a consciência, parcial ou completamente.

Muitos dos que estão a favor da eutanásia e do suicídio assistido

alegam falsamente que este argumento sobre os analgésicos é

hipócrita porque, dizem eles, é o mesmo acto de dar um fármaco

que em definitivo pode matar o doente e que a única coisa que

muda é a nossa intenção. A esses tais respondemos que não se

trata só da boa intenção, mas sim de proporcionar ao doente

uma dose adequada para tratar a sua dor.

Muitas vezes, a eutanásia ocorre quando os seus partidários

administram uma dose que eles sabem que matará o doente.

Mas quando aqueles profissionais que respeitam a vida propor-

cionam um analgésico cuja dose está encaminhada para aliviar A

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a dor, mas que ao mesmo tempo e infelizmente pode ter um

efeito ulterior não desejado de acelerar o processo da morte

e há motivos sérios para proporcionar tais fármacos (os que

mencionamos antes), então não há nenhuma razão para chamar

esse acto “eutanásia” nem “suicídio assistido”. Está claro que

não é um acto de hipocrisia, mas sim se fez o melhor que se

pôde numa situação difícil. Está claro também que se, aqueles

que são pró-vida, tivessem ao seu dispor fármacos melhores,

que não tivesse os efeitos mencionados, utilizariam esses e não

outros. (Castaneda, A., 2005)

A este propósito, o CNECV no parecer 11/95 – sobre aspectos

éticos dos cuidados de saúde relacionados com o final vida – diz

que é ética a aplicação de medicamentos destinados a aliviar a

dor do doente, ainda que possam ter, como efeito secundário,

a redução do tempo previsível de vida, atitude essa que não

pode ser considerada eutanásia.

O problema muitas vezes é que muitos profissionais não têm

a adequada formação no tratamento paliativo e por isso é que

se acredita que não há alternativas.

Para terminar, deixo-vos com uma das últimas mensagens de

Collière (2005) “a cada um, peço que se centre nas forças da

vida, na mobilização dos recursos vitais, respeitando o indiví-

duo e a humanidade para promover os cuidados e promover

a vida”.

Bibliografia

BARRETO, J – O consentimento informado e as doenças psíqui-

cas. «Cadernos de Bioética».Cérebro e Liberdade/Comentá-

rios e Notícias. Edições CEB. 20 (1999).

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direitdeve.html. Arquivo capturado em Setembro de 2005. oe

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ordem dos enfermeiros

António Manuel V. A. Silva

Enfermeiro Especialista

O contexto pessoal

Foi num serviço de urgência de um hospital central que fiz

praticamente todo o meu percurso profissional. Só nos últimos

dois anos não exerci no serviço de urgência, mas, se tivesse

dependido só de mim, ainda hoje trabalharia no serviço de

urgência.

Naquela unidade cresci como pessoa e como enfermeiro: fui

enfermeiro de nível I, enfermeiro graduado, especialista, chefe, e

durante dois anos também acumulei as funções de enfermeiro

supervisor. Isto é, vivi praticamente todas as situações profissio-

nais possíveis para um enfermeiro num serviço de urgência. Em

minha opinião, esta experiência possibilitou-me viver situações

muito semelhantes em posições profissionais completamente

diferentes, o que contribuiu decisivamente para a opinião que

hoje tenho sobre muitas questões. É nesta qualidade que faço

a presente reflexão.

Ver a morte da Urgência

Ver a morte da Urgência! Sem sequer pestanejar, aceitei de

imediato o convite para escrever este texto. Era uma hipótese

única de voltar ao SU. Ver a morte da Urgência, mas… em sete

páginas. É obra! Pensei longamente sobre a abordagem que

faria. As hipóteses eram tantas que me decidi por aquela que

me pareceu mais abrangente. Mas a abordagem que me pareceu

mais adequada poderá deixar-vos mais insatisfeitos, pois terei

de dedicar menos tempo a cada um dos assuntos. O que, bem

vistas as coisas, até nem será mau de todo pois poderá gerar

em vós a necessidade de pedir esclarecimentos, no período de

debate, que espero seja bastante vivo e participado1. Este tema

não pode deixar ninguém indiferente!

Dos nomes às coisas

A urgência: o que é e quem são os actores

Ao longo desta intervenção, quando me refiro ao serviço de urgên-

cia, não tenho em mente a unidade de prestação de cuidados que

aparece na literatura internacional, nem sequer a das definições

oficiais que vigoram em Portugal. Estou mesmo a falar daquela

unidade que tem sempre as portas abertas, onde, no mesmo mo-

mento, pode ser admitido o indigente que está sobretudo cheio de

fome e frio, e a vítima de um brutal acidente de viação. Refiro-me

àquele lugar onde ainda convivem, e por vezes em corredores sem

quaisquer condições de tratamento, os doentes com uma primeira

violenta cólica renal e o portador de uma dor crónica, em resultado

de uma neoplasia que lentamente lhe vai consumindo toda a força

vital. Falo daquela unidade onde encontramos o primo do amigo

da tia da sogra da lavadeira de um funcionário hospitalar, que re-

solveu a espera de três meses por uma consulta de especialidade

com uma ida particularmente combinada com um dos médicos

que estão de serviço. E por aí fora…

1 A possibilidade de solicitar esclarecimentos ou de comentar a refle-xão continua a ser possível através do endereço de correio electrónico [email protected].

a morte vista da Urgência

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ordem dos enfermeiros

Serão muitas as diferenças entre os SU de todo o País, mas a

minha experiência diz-me que, basicamente, todos eles têm as

mesmas características fundamentais. As diferenças resultam

sobretudo da dimensão e localização.

Não consegui encontrar dados relativos à realidade nacional.

Baseio-me por isso apenas na minha experiência e nas refe-

rências que encontrei: numa investigação feita no Reino Unido

constatou-se que, em 40% das unidades de urgência, ocorrem

duas a três mortes por semana; em 25%, ocorrem entre quatro

e cinco (Dolan, 2003). A minha experiência diz-me que esta seria

aproximadamente a realidade da unidade onde trabalhei. É certo

que, nos meus últimos anos de exercício no SU, o contacto com

a morte era menos frequente que no início. E eu atribuía este

facto a três principais razões:

a abertura de novas unidades de saúde na periferia;

a acção das VMER;

a alteração legislativa que deixou de exigir o transporte de

cadáveres da via pública para o hospital, para verificação do

óbito.

Mas o certo é que, mesmo que a frequência seja agora menor,

é nos serviços de urgência que a probabilidade de “ver a morte”

é mais elevada.

Nestes serviços de urgência trabalham:

médicos, geralmente uma vez por semana e apenas por

obrigação;

enfermeiros, todos os dias, vinte e quatro horas por dia; e a

maioria por opção consciente;

outros técnicos de saúde, igualmente relevantes para o re-

sultado global, mas menos determinantes quanto à questão

em apreço.

A morte: o que é e quem são os actores

Apesar de menos sujeita a outras interpretações, nesta reflexão

entendo por morte a cessação permanente de todas as funções

vitais, o fim da vida humana, um acontecimento e um estado

(Dolan, 2003). Morte súbita é a que acontece sem aviso, a

inesperada, mesmo que resulte de doença prolongada. Morrer

é o processo de chegar ao fim, que poderá ter uma duração

pequena, (isto é algumas horas), meses ou anos.

Mesmo sendo provavelmente do conhecimento geral e apesar

de ter decidido não me deter na sua análise, parece-me impres-

cindível lembrar aqui o trabalho de Elizabeth Kubler Ross. Esta

autora identificou cinco estádios que qualquer pessoa confron-

tada com uma situação violenta ou de perda atravessa ou pode

atravessar. São eles: o da negação, o da revolta, o da negociação,

o da depressão e o da aceitação. Citei-os pela ordem por que

são descritos e que é considerada a natural. No entanto, esta

ordem não é obrigatória e, por vezes, não é possível identificar

nenhum deles. Contudo, em minha opinião, quem trabalha na

saúde deverá ter o trabalho desta autora sempre presente.

Apesar de ser um fenómeno singular, a morte que eu vejo da

urgência tem muitos actores:

a pessoa que morre,

os seus conviventes significativos,

o enfermeiro que cuida da pessoa que morre e dos seus con-

viventes significativos,

os restantes profissionais da saúde;

o ambiente, no seu sentido mais lato.

Ver: modo de actuar

O objecto central

Quando queremos “ver” algo, concentramos a nossa atenção

num objecto particular. Se este objecto é inanimado, a questão,

na maior parte das vezes, é simples. Mas quando se trata de

algo que envolve seres animados e de relação, por excelência,

é praticamente impossível isolar o objecto central.

O(s) contexto(s) circundante(s)

O contexto em que observamos o objecto da nossa atenção in-

fluencia marcadamente a nossa experiência sensorial e cognitiva.

Contexto é o ambiente físico, é o ambiente emocional, é a inten-

ção com que fazemos ou que colocamos naquilo que fazemos.

E todos sabemos que duas ou mais pessoas que atravessem um

determinado lapso temporal em simultâneo têm uma percepção

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ordem dos enfermeiros

diferente destas variáveis. O que, no limite, torna este mesmo

momento em duas realidades completamente diferentes.

As tonalidades (pessoais)

Para o contexto contribuem decisivamente as tonalidades pes-

soais. Para interpretarmos aquilo que vemos, utilizamos sempre

os nossos cinco sentidos – audição, visão, olfacto, tacto e, em

muitas circunstâncias, também o paladar. Utilizamos as nossas

crenças e a nossa cultura, a forma como vivemos e encaramos

a vida e o mundo; a crença religiosa ou a nossa espiritualidade.

A nossa história prévia é igualmente relevante. As experiências

anteriores modelam sempre a forma como vivemos algo que

reconhecemos como familiar. Mesmo que, por vezes, nos enga-

nemos redondamente na apreciação inicial que fizemos. E este

engano, felizmente, virá, na maior parte dos casos, modelar o

nosso comportamento futuro.

Ver a morte da Urgência

Tentarei agora ilustrar as minhas afir-

mações com resumos de histórias que

vivi pessoalmente e, propositadamente,

não farei nenhuma referência especial

aos aspectos particulares que pretendo

realçar. Apesar de não ser possível de comentá-las de viva voz,

espero, contudo, que posteriormente o façam com outros colegas

ou mesmo comigo, se assim o desejarem2.

O homem, o doente e a vítima

Começo por contar uma história que vivi, já há muitos anos atrás.

A meio de uma manhã calma na Urgência, entra em grande alvo-

roço um grupo de pessoas transportando uma maca. Tratava-se

de agentes da PSP e de alguns cidadãos que traziam a vítima de

um assalto na Rua de Santa Catarina, a pequena distância do

hospital. Fomos imediatamente informados de que o homem

tinha sido esfaqueado durante o assalto. Aquilo de que me lembro

com maior nitidez é de que transportámos a vítima à sala de

2 A possibilidade de solicitar esclarecimentos ou de comentar a refle-xão continua a ser possível através do endereço de correio electrónico [email protected].

emergência com a maior rapidez possível e de que, quando eu ia

começar a desapertar o casaco do doente, para o despir, fiquei

completamente banhado em sangue. O doente tinha recebido

uma facada directamente no coração, e estava a expelir sangue

em grandes golfadas. Tentámos reanimar o doente, fazer o que

se podia, mas ele morreu em meia hora. Sem chegar sequer ao

bloco operatório.

“Acabei de beber isto”

Num turno da tarde, aproxima-se uma pessoa do porteiro, en-

trega-lhe um frasco para a mão e diz-lhe: “Acabei de beber isto”.

O porteiro, sem saber o que fazer, dirigiu-se já não sei se a um

médico ou a um enfermeiro, e entregou-lhe o frasco. Este não

deixava dúvidas. O cheiro que exalava era obviamente o de um

organofosforado – remédio do escaravelho! Tentámos saber qual

era exactamente o produto, iniciou-se o

tratamento, a situação clínica começou

a deteriorar-se e o doente morreu dois

dias depois.

“Vou morrer, não vou?”

Certa vez, entrei de serviço à noite e

recebi um doente transferido de um

hospital distrital. Trazia a indicação de

que era transferido para o hospital central por falta de cirurgião.

Tinha uma hemorragia digestiva alta abundante. Apesar da

drenagem nasogástrica, teve algumas hematémeses violentas.

Tentámos equilibrá-lo hemodinamicamente, durante o tempo

que foi possível. Os sinais de choque hipovolémico começaram

a notar-se. Pouco antes da uma hora da manhã fui informado

pelo médico da sala de que os cirurgiões de serviço tinham

decidido que o doente não tinha condições operatórias. Prosse-

guia o tratamento médico. Eu ainda continuo a ouvir o doente

perguntar-me: “Senhor Enfermeiro, eu vou morrer, não vou?” Eu,

infelizmente, não consegui responder. Morreu “nas minhas mãos”

poucas horas depois.

Os conviventes significativos

Sexo feminino sem fala

Num outro turno da tarde, por volta das cinco da tarde,

As experiências anteriores

modelam sempre a forma como

vivemos algo que reconhecemos

como familiar.

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ordem dos enfermeiros

os bombeiros transportaram para o serviço de urgência “um sexo

feminino sem fala” – a forma encontrada por quem trabalha nos

serviços de urgência para identificar pessoas inconscientes e sem

documentos ou outros elementos de identificação. Aparentava

trinta e poucos anos. Não havia qualquer história, sabia-se

apenas que tinha vindo de uma pensão. Os bombeiros tinham

sido chamados pela recepcionista que os informou de que uma

hóspede se sentia mal. Depois de se terem feito as primeiras

investigações diagnósticas, suspeitou-se de uma hemorragia

cerebral. Iniciou-se o tratamento possível. Cerca de duas horas

depois, um homem dirigiu-se ao serviço de urgência. Queria

saber informações sobre uma senhora que tinha sido trazida

nesse dia para a Urgência, cerca de duas horas antes e que estava

muito mal. Afirmava não saber o nome. Depois de conversarmos

mais um pouco com ele viemos a saber que eram vizinhos e

que tinham combinado um encontro

amoroso numa pensão. Durante o acto

sexual, a senhora deixou subitamente

de falar e ele viu-se confrontado com

aquela situação. Não conseguiu reagir.

Era amigo do marido. Só se lembrou da

possibilidade de a levar para o hospital

anonimamente. A senhora faleceu pou-

cas horas depois.

Última vontade

Recordo-me também de ter recebido, num outro turno noc-

turno, uma senhora idosa em estado agónico. A filha estava

presente e extremamente ansiosa. Disse-me que queria falar

com um médico. Levei-a junto do médico neurologista e assisti

à conversa. Dirigiu-se-lhe inquirindo: “Senhor Doutor, diga-me,

por favor, o que tem a minha mãe?” E o médico, ali no meio do

corredor, disse-lhe: “A sua mãe tem uma hemorragia do tronco

com inundação ventricular”. A senhora olhou para ele, por um

breve instante, e perguntou-lhe: “Mas o que lhe vai acontecer?”

A esta pergunta, o médico respondeu: “Estamos a tratá-la. Vamos

esperar pela evolução nas próximas horas.” O médico virou costas

e abandonou o local. Eu continuei o meu trabalho. Verificando

que a senhora continuava muito ansiosa, perguntei-lhe o que

se passava e ela disse-me: “Ó Senhor Enfermeiro, a minha mãe

vai morrer, não vai? É que… sabe, ela queria morrer em casa.” E

pediu-me por tudo que eu não a deixasse morrer no hospital. Eu,

sabendo que a mãe daquela senhora não teria muitas horas de

vida, fui ter com o médico neurologista. Informei-o do desejo da

doente que me tinha sido expresso pela filha e perguntei-lhe se

não seria possível arranjar forma de enviar a doente para casa. A

minha intervenção foi liminarmente rejeitada com o argumento

de que a morte naquela situação não era uma coisa certa e de

que a doente necessitava de tratamento. A alta da doente nunca

seria portanto autorizada.

Naquela altura, eu já não era um enfermeiro novato, já tinha

alguma experiência e sabia como proceder. Através de uma con-

versa verifiquei que a filha possuía as condições físicas mínimas

para receber a mãe inconsciente. Soube também que ela tinha a

capacidade económica necessária para

providenciar àquela hora as condições

necessárias ao tratamento de suporte.

Munido destas informações fui falar

com o chefe da equipa de urgência e

relatei pormenorizadamente a situação.

Cerca das duas horas da madrugada

– mais ou menos cinco horas depois

da primeira conversa – os bombeiros

transportavam a senhora para o domicílio, com “alta a pedido”.

Nunca mais soube nada dela. Mas naquela situação clínica, é

certo que acabasse por falecer em casa, como desejava.

Sozinho no mundo

Ainda num outro turno da noite, verifiquei que, no canto de um

corredor, estava um senhor de aspecto frágil. Aparentava cerca de

80 anos. Permanecia sentado ao lado de uma maca onde estava

deitada uma senhora: a esposa. Falei com ele e tentei fazer com

que percebesse que a esposa iria ficar internada. Informei-o de

que ele não poderia fazer muito mais e de que poderia ir para

casa. Mas ele pediu-me para o deixar ficar. Disse-me que, sem ela,

não sabia fazer nada. Eram só os dois, não tinham mais ninguém

no mundo e não saberia o que fazer quando chegasse a casa.

Pelo menos durante o meu turno, este senhor ficou comigo e

teve a companhia da esposa.

Eram só os dois, não tinham

mais ninguém no mundo

e não saberia o que fazer

quando chegasse a casa.

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ordem dos enfermeiros

Os outros (profissionais da saúde)

Os números nem sempre são frios

Há também outro tipo de histórias. Logo no início da minha

vida profissional, estava certo dia de serviço na pequena cirurgia.

Naquela noite, a médica de serviço do sector era uma jovem

profissional muito dedicada, activa e cheia de vontade de apren-

der. A noite decorria dentro dos parâmetros da normalidade.

Até que, cerca das três horas da manhã, começaram a chegar

os bombeiros com o resultado de um despiste de automóvel na

Avenida da Boavista. Em cerca de dez minutos, fomos confron-

tados com seis cadáveres de jovens. Pouco mais jovens que nós:

entre os dezoito e os vinte anos. Cumprimos o nosso dever, mas

aquela médica chorou convulsivamente várias vezes durante a

noite. Tenho a impressão de que estive mais tempo a cuidar da

médica do que dos restantes doentes.

“Os conhecidos”

Noutras ocasiões, recebemos doen-

tes e alguém diz:

– Este não é o doutor fulano de tal?

– Ele tentou matar-se? Mas o que é

que terá sido? Terá sido sida? Terá

sido um desgosto de amor?

Pode também acontecer estarmos a trabalhar e a curiosidade

levar-nos a espreitar os locais onde se tenta reanimar uma pes-

soa que acabou de ser admitida. Recordo-me de uma situação

em que um dos profissionais de serviço, numa outra área da

Urgência, lançou um olhar de relance à vítima de um atrope-

lamento que tratávamos na sala de emergência. Aquele olhar

identificou um seu sobrinho. Largou tudo, despiu a bata à nossa

frente e foi a correr ter com o sobrinho. Felizmente, dessa vez,

não era o sobrinho dele.

O enfermeiro (24 horas, sete dias por semana)

Sobretudo, há aquelas pessoas que estão lá 24 horas, sete dias

por semana: os enfermeiros. Há uma história que me marcou

especialmente, já eu era enfermeiro-chefe. Tratava-se de uma

senhora com uma condição neurológica indeterminada. Esteve

internada no serviço de urgência dois dias e, apesar de não ter

sido possível estabelecer um diagnóstico médico, foi-lhe dada

alta. A colega que cuidava dela, sabendo que a filha da doente es-

tava à espera, chamou-a para que a ajudasse a vesti-la. Enquanto

a ajudavam a vestir-se, no entanto, a senhora teve uma paragem

cardíaca. Caiu desamparada, apesar de estar acompanhada por

duas pessoas. As manobras de reanimação foram imediatamente

iniciadas. Sem sucesso. O óbito foi verificado cerca de trinta

minutos depois. Fiquei sem saber quem precisava mais de ser

amparado: a filha que só repetia “Como é que puderam dar

alta à minha mãe neste estado”; ou a nossa colega que de tão

chocada com a situação a revia vezes sem conta, procurando

saber o que poderia ter feito mal.

Uma outra imagem que, depois de todos estes anos, ainda me

acompanha é a de uma minha colega de serviço que se refor-

mou há dois ou três anos. Sempre foi

muito jovial e muito alegre. Depois

de uma noite em que trabalhámos

lado a lado, contudo, deixou de ser a

pessoa que era. Não conseguíamos

saber o que se passava. Conversando

com ela, vim a saber que não conse-

guia esquecer a imagem de um ca-

dáver que tínhamos recebido da cadeia. Tratava-se de um preso

que se tinha enforcado na cela. Como era obrigatório, naquela

altura, o cadáver foi transportado para o serviço de urgência

para verificação do óbito. A morte tinha ocorrido algumas horas

antes. O cadáver estava rígido na posição de sentado, os braços

estendidos como quem agarra algo. Mas as características que

fixavam o nosso olhar eram a marcada cianose central e uma lín-

gua edemaciada e protraída. E enorme. Era esta imagem que não

a abandonava e a impedia de dormir. Disse-me posteriormente

que, durante alguns meses, aquela imagem a acompanhou noite

e dia. Eu também não a esqueci.

Eu próprio, apesar de já se terem passado muitos anos, ainda

sinto neste momento o cheiro da massa encefálica que muitas

vezes nós tínhamos de tirar das macas dos bombeiros e acon-

dicionar junto de outros restos mortais que eram enviados para

o Instituto de Medicina Legal.

Sobretudo, há aquelas pessoas

que estão lá 24 horas, sete dias

por semana: os enfermeiros.

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ordem dos enfermeiros

Ainda me vejo atrapalhado, a tentar colocar a etiqueta de iden-

tificação num cadáver carbonizado que se resumia ao tronco.

Também não consigo esquecer o caso de um colega que morreu

em serviço. Estávamos a trabalhar e ele começou a sentir-se mal.

Apesar de o tratamento se ter iniciado imediatamente, faleceu

no dia seguinte, no mesmo serviço onde trabalhava.

Tratar a morte por tu

Considero que devemos tratar a morte por tu. A morte acontece.

Quantas mais vezes ela acontece, quanto maior a sua frequência,

maior obrigação nós temos de tentar melhorar a experiência e

influenciar o modo de ver as coisas. A nossa cultura diz-nos que

nós não devemos falar destas questões. No entanto, noutros

locais, noutras culturas, estas questões são abordadas como

um facto natural da vida. É natural que se morra e por isso nós

temos de falar destas situações.

Fiz alguma pesquisa internacional e verifiquei que, nestes con-

textos, neste momento, debatem-se as vantagens e os incon-

venientes de permitir que os familiares assistam à reanimação

dos doentes. Treinam-se frequentemente o modo de comunicar

más notícias. Preparam-se os ambientes: nos serviços de urgên-

cia existem salas destinadas a receber os familiares e onde os

familiares podem estar enquanto decorrem as tentativas de

reanimação dos doentes. Salas que têm café, revistas, telefone

à disposição das pessoas.

É importante que seja permitido aos conviventes significativos

a visualização do corpo. Há instruções sobre o modo como se

devem preparar os corpos, para que logo que acabam de falecer

possam ser vistos e tocados pelos conviventes significativos.

A visualização do corpo é um momento de enorme importância

para o processo de luto das pessoas que têm laços de maior

intimidade com o defunto. Eu próprio vivi uma situação familiar

em que verifiquei esta importância. Um primo meu faleceu num

serviço de urgência, na sequência de um acidente de viação. As

normas deste serviço não permitiam que os pais vissem o corpo.

Só a minha condição de enfermeiro possibilitou à minha tia a

visão do filho morto. Sei que, se ela não tivesse tocado o corpo

gelado, não teria superado a morte como superou.

Mas também encontrei referências que apontam para a

preocupação com as pessoas que trabalham nos serviços de

urgência e com o apoio que é dado aos enfermeiros. Encontrei

uma frase que ilustra bem esta necessidade de apoio e que

passo a tentar traduzir para português: “Para a maioria das

pessoas, os enfermeiros que trabalham no serviço de urgência

vivem experiências para lá do limite da razoável experiência

humana”.

O que podemos então fazer com aquilo que temos? Também

na literatura internacional sobre a saúde, os living wills são

assunto corrente. Ou seja, testamentos em vida. Os doentes

são aconselhados, durante o seu processo de doença, e mesmo

ainda antes, a pensarem, a reflectirem sobre aquilo que querem

ver feito quando um dia se aproximarem da morte. São acon-

selhados a comunicar a sua vontade aos profissionais da saúde,

mas sobretudo a comunicá-la aos familiares. É importante que

tenham coragem de discutir com eles estas questões, para que,

quando a situação se impuser, não haja hesitações. A verdade é

que não é no serviço de urgência, ou numa situação de urgência,

que estas hesitações se devem resolver.

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ordem dos enfermeiros

Contudo, mesmo nestas circunstâncias internacionais, em que

as questões são tratadas de outro modo, as coisas nem sempre

correm bem. Li uma história de um doente hispânico, em estado

terminal devido a uma neoplasia, que tinha tudo preparado.

Foi para casa para falecer e assim aconteceu. Só que as mani-

festações de dor da família foram tão ruidosas que os vizinhos

chamaram os paramédicos. Estes chegaram a casa da pessoa, ar-

rombaram literalmente a porta, entraram e iniciaram manobras

de reanimação. A filha contactou o médico de imediato que, pelo

telefone, disse aos paramédicos que interrompessem as mano-

bras. Estes, no entanto, disseram que tinham de cumprir ordens

e que não poderiam interromper a reanimação. Só na presença

do médico exibindo o registo da vontade do doente de não ser

reanimado, é que os paramédicos cessaram a intervenção.

Termino, convidando-vos a ler excertos de alguns artigos do

nosso código deontológico, que considero de enorme relevância

nestas situações. O enfermeiro deve reflectir sobre eles, antes

de actuar.

Artigo 86.º

– Do respeito pela intimidade

…assume o dever de:

a) r espeitar a intimidade da pessoa e protegê-la de ingerência

na sua vida privada e na da sua família;

b) salvaguardar sempre, no exercício das suas funções e na

supervisão das tarefas que delega, a privacidade e a inti-

midade da pessoa.

Artigo 87.º

– Do respeito pelo doente terminal

…assume o dever de:

a) defender e promover o direito do doente à escolha do local

e das pessoas que deseja o acompanhem na fase terminal

da vida;

b) respeitar e fazer respeitar as manifestações de perda expressas

pelo doente em fase terminal, pela família ou pessoas que lhe

sejam próximas;

c) respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte.

Artigo 81.º

– Dos valores humanos

…assume o dever de:

a) cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica,

social, política, étnica, ideológica ou religiosa;

e) abster-se de juízos de valor sobre o comportamento da pessoa

assistida e não lhe impor os seus próprios critérios e valores

no âmbito da consciência e da filosofia de vida;

Artigo 89.º

– Da humanização dos cuidados

…assume o dever de:

a) dar, quando presta cuidados, atenção à pessoa como uma

totalidade única, inserida numa família e numa comunidade;

Referências

DOLAN, B; HOLT, L – Accident & Emergency Theory into

practice. Baillière Tindall, 2003.

http://www.medscape.com/viewarticle/512477 oe

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ordem dos enfermeiros

Lurdes Martins

Enfermeira Especialista

Professora Adjunta da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, Mestre em Ética e Teologia da Saúde

Introdução

De que falamos quando falamos de cuidados paliativos? Falamos,

antes de mais, de uma “filosofia de cuidados”.

Procurando conhecer o significado, para melhor compreender-

mos o que nos querem dizer as palavras, vemos que “paliativo”

vem de “pallium”, cujo significado nos remete para “algo que

cobre, que tapa, que protege”; palavras que ilustram os actos que

realizamos quando prestamos cuidados paliativos.

O objectivo principal dos cuidados paliativos é assegurar qualidade

à vida quando as intervenções curativas já não têm resposta; é a

antítese do “já não há nada a fazer”, os cuidados paliativos cen-

tram-se na atenção global à pessoa, forma de cuidar tão presente

no quotidiano dos enfermeiros, não concebemos / prestamos

cuidados senão de uma forma holística. Assim, podemos afirmar

que os enfermeiros sempre prestaram cuidados paliativos.

Acompanhar um doente em fase terminal requer um outro

paradigma de cuidados, tecnicamente menos diferenciado mas

humanamente mais “sofisticado”.

Desenvolvimento

Os cuidados de saúde conseguiram, nos últimos anos, progressos

verdadeiramente espectaculares. A isto se deve que a esperança

de vida tenha aumentado significativamente. No entanto, chega

um momento em que, por muito que se faça, isso não chega,

não é suficiente, e a morte chega.

Quando trabalhamos / cuidamos de doentes em fase final

do seu ciclo de vida, somos confrontados com esta realidade

frequentemente, e também o doente sabe ou tem a intuição

de que vai morrer. O nosso cuidar deverá ser orientado para

uma avaliação da forma como cada um enfrenta este momento

e valorizar as alterações físicas e psíquicas que afectam a sua

qualidade de vida. O nosso grande objectivo seria proporcio-

nar-lhe

“um bem estar físico e uma serenidade para o ajudar a

bem morrer”1.

Esta ajuda a “bem morrer” não consiste numa atitude me-

ramente passiva. Vamos continuar a cuidar do doente, tanto

no aspecto físico (evitando a dor, a ansiedade etc.) como, e

sobretudo, cuidar do ser humano.

• Este “ajudar a bem morrer” é um dos objectivos, mas a inter-

venção em cuidados paliativos é mais ampla, podendo estes

ser encarados como uma atitude de prevenção do sofrimento.

Assim, devem iniciar-se antes da fase terminal da doença e

do período de agonia.

A concepção actual dos cuidados paliativos orienta a nossa

actuação para três áreas importantes, que são as indicadas

de seguida.

1 MONGE, Miguel Angel – Ética, Salud, Enfermedad. p. 120.

Final de Vida

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ordem dos enfermeiros

• Comunicação / informação ao doente e à família; respeito

pelos seus sentimentos e pelas suas manifestações.

• Controlo de sintomas / tratamentos e cuidados específi-

cos.

• Assegurar a satisfação das necessidades manifestadas pelo

doente e pela família2.

Só uma sólida formação permitirá praticas adequadas, com

a desejável repercussão na melhor e maior qualidade de vida

para os doentes.

Se todo o doente é um ser carenciado, inseguro, angustiado

em relação ao seu futuro, é-o de uma forma especial o doente

terminal. O doente terminal, citando um folheto do conselho

da Europa, tem três espécies de necessidades, tal como se

indica de seguida.

• Psicológicas – Confiança na competência do pessoal de

saúde, certeza de que não serão abandonados no momento

mais difícil. Informação compreensível da evolução do seu

estado, necessidade de uma presença que lhes fale, que os

ouça e que os apoie. Saberem que ainda pertencem a uma

família, porque continuam a precisar de amar e de serem

amados, de necessidade de compreensão e de serem consi-

derados como pessoas com dignidade.

• Físicas – São aquelas que estão ligadas às várias formas de

desconforto e à dor.

• Religiosas – De acordo com as convicções de cada um pe-

rante a perspectiva da morte, surgem com frequência as

grandes interrogações sobre a vida, para as quais as religiões

se propõem dar uma resposta. Têm processos espirituais de

comunicar paz, serenidade, força para a aceitação, sentido

para o momento doloroso que o doente vive.

O permanecer junto do doente em fase terminal, com uma

forma de estar que vai ao encontro das suas necessidades

físicas, psíquicas, intelectuais ou espirituais, é algo que para

além de tudo o que é ensinado durante o curso, só se adquire

à própria custa, pela experiência do vivido no dia-a-dia. Será o

2 MONGE, Miguel Angel – Ética, Salud, Enfermedad. pp. 125-127.

próprio doente o grande mestre. Ele o guiará se o enfermeiro

ao longo do internamento souber estabelecer uma relação de

franca reciprocidade, indispensável ponto de apoio nos últimos

momentos, quando a dor e o sofrimento do doente, o medo ou

a ansiedade forem demasiados fortes.

Nem sempre é fácil conseguir o equilíbrio desejável entre as

exigências da técnica e da terapêutica e a sensibilidade hu-

mana. É fruto de uma maturidade lentamente adquirida no

decurso da vida profissional com todos os seus percalços, as

suas incompreensões, o seu cansaço ou mesmo a alegria e as

satisfações, se ao mesmo tempo o enfermeiro mantiver pre-

sente e viva, a atenção à pessoa humana que é cada doente

um após o outro.

É imprescindível para a aquisição desta maturidade o conhe-

cimento dos diferentes estádios mentais que se sucedem

durante o evoluir para a morte, as consequentes alterações

do comportamento, assim como a diversidade de cuidados e

atenção que exigem.

É função do enfermeiro ajudar o indivíduo a viver o mais com-

pletamente possível no meio em que está inserido. Ao doente

terminal, devem ser assegurados os cuidados-base no que se

relaciona com o assegurar funções vitais e controlo eficaz de

sintomas; para além deste cuidado, o enfermeiro tem de ter

tempo para ouvir, para estar um pouco com o seu doente,

deixá-lo falar, exteriorizar o que tem necessidade de expressar.

A atenção que o enfermeiro prestar à descrição que o doente

faz do seu sofrimento pode igualmente contribuir para que se

sinta mais confortável e compreendido.

Qualquer acto de enfermagem pressupõe o estabelecer de

comunicação, uma interacção com o assistido. Comunicar é

relacionar-se. Junto do doente e especialmente do decorrer de

cuidar o doente em fase terminal, o enfermeiro é solicitado a

recorrer a várias formas de comunicação – falar, um gesto, um

olhar. Qualquer modo de comunicar é válido se estiver subja-

cente que o nosso objectivo é diminuir a ansiedade, atenuar a

insegurança, garantir uma presença reconfortante.

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ordem dos enfermeiros

Ficar longe do doente quando ele é irritável ou exigente, quando

o sofrimento é grande, é tentação grande. Mas é precisamente

o momento em que ele mais necessita de uma presença amiga.

Quando não há tempo, pequenos nadas podem suprimir a sua

falta, como o chegar-se com frequência ao doente, aconchegar-

-lhe a roupa, humedecer-lhe os lábios, simplesmente sorrir, ou

dizer “Como vai?”.

Há pormenores que dão um bem-estar cujo alcance desco-

nhecemos. Porque se ignora a sua importância, nem sempre

se recorre aos diversos meios de expressão não verbal. Para o

doente que pouco a pouco se encaminha para o desapego total

do mundo, das realidades sensíveis, tem valor inestimável o

sentar-se a seu lado, o segurar a mão, uma carícia, a expressão

de um olhar sereno. Todas estas formas

de comunicação poderão contribuir para

o estabelecer de uma relação preciosa

nos momentos mais difíceis, no mo-

mento da morte.

Trabalhar em cuidados paliativos não

é fácil, é um longo caminho a ser per-

corrido, que se faz à custa de muito

sofrimento, através das diferentes aprendizagens vividas em

diferentes situações até o atingir de uma maturidade plena

que permite acompanhar e proporcionar ao doente terminal

uma morte digna.

Ainda na área da comunicação, as competências subjacentes

à transmissão de más notícias, o apoio ao doente e à família

na negação ou no “muro” de silêncio são fundamentais para

uma resposta adequada às necessidades dos doentes e das

famílias.

Se a vontade e o gosto por esta área são fundamentais para

que a prática se desenvolva, não são contudo suficientes. Não

é suficiente dizer que se conhecem os princípios dos cuidados

paliativos; é necessário integrá-los, aplicá-los ao processo de

tomada de decisão adequado às necessidades dos diferentes

doentes e das famílias.

Acompanhar a família é importante, e nós, profissionais de saúde,

devemos estar atentos e saber actuar de forma a responder

também a este objectivo dos cuidados paliativos.

Acompanhar é fazer tudo para que haja interacção significa-

tiva. Devemos, assim, desenvolver atitudes que favoreçam este

acompanhar:

• ter em atenção as diferentes realidades do indivíduo – bio-

psicossociocultural – e o contexto do momento;

• saber ouvir as necessidades, os medos, o que o outro não diz;

• ser capaz de uma presença silenciosa, que é símbolo de segu-

rança, companhia;

• ter abertura e receptividade;

• estar atento às diferentes dimensões da pessoa que sofre no

corpo e no espírito.

Para além da atenção a dar à família

que sofre, atendendo aos aspectos atrás

mencionados, nós, profissionais, devemos

investir no desenvolvimento de potencia-

lidades desejáveis para bem acompanhar,

ajudando de forma mais efectiva quem

está em crise e também aprendermos,

nós próprios, a viver com situações que causam envolvimento

emocional.

Devemos procurar actuar tendo em consideração os seguintes

aspectos:

• capacidade de reflexão para ser capaz de dizer a palavra certa

no momento certo;

• capacidade de não ser rígido para discernir expectativas e

tomar as iniciativas que entender serem boas para responder

às solicitações – exige um clima de segurança psicológica que

só é possível se existir uma aceitação incondicional;

• autoconfiança para podermos ser capazes de nos distanciar-

mos o necessário de situações potencialmente invasivas;

• consciência profissional indispensável para inspirar confiança

e dar segurança à pessoa com quem estamos em relação;

• honestidade, sinónimo de transparência, fundamental ao

estabelecimento de uma relação autêntica.

Há pormenores

que dão um

bem-estar cujo

alcance desconhecemos.

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ordem dos enfermeiros

• Capacidades interpessoais:

– empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro e

de ver o mundo como ele vê;

– receptividade, que passa pelo saber ouvir, ser sensível às

palavras, ao que não se diz, ao peso do sofrimento, aos

desejos e às emoções;

– abertura à experiência do outro, capacidade de escutar e

ser escutado;

– aceitação e consideração pelas vivências.

• Capacidades sociais:

– estar à vontade com os outros;

– estar em harmonia consigo;

– manter diálogo / respeitar os silêncios;

– os silêncios. Os silêncios permitem fazer eco das emoções

que exprimem, perceber o significado que têm para si,

orientar-se a ritmo próprio para a etapa seguinte. Romper

o silêncio é arriscar a interromper um trabalho produtivo

que está a ser feito interiormente.

Nos momentos de grande tristeza, basta garantir a presença

na situação difícil.

Conclusão

Em cuidados paliativos temos a oportunidade de ir para além

dos cuidados técnicos, reencontrando, por vezes, toda a inten-

sidade da relação interpessoal; relação esta que representa um

dos mais belos aspectos da nossa profissão.

Os cuidados paliativos representam uma nova “descoberta”

para aqueles que acreditam na qualidade de vida e na quali-

dade do cuidar. Muitos anos após a criação do primeiro centro

de cuidados paliativos (St. Cristopher’s Hospice), assiste-se a

um crescimento progressivo do interesse por parte dos pro-

fissionais de saúde e do público em geral face às seguintes

questões:

ser urgente fazer qualquer coisa quando já não há mais nada

a fazer;

ajudar a pessoa doente incurável a viver no máximo conforto

físico e psíquico até à sua morte;

não aceitar a morte como uma falha da medicina, mas sim

como uma lei da natureza.

É essencial que esta tomada de consciência seja seguida de uma

intervenção organizada, eficaz e de qualidade, onde os cuidados

paliativos constituam uma estratégia global para que o doente,

seja qual for o lugar que escolheu para os seus últimos dias,

possa beneficiar de cuidados adaptados ao seu estado.

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ordem dos enfermeiros

Armandina Antunes

Enfermeira Especialista

Enfermeira-chefe do Hospital Santa Marta, Lisboa. Mestre em Ciências de Enfermagem

Sendo a morte algo tão natural quanto a vida, a maioria de nós

foi educado de alguma forma afastado da mesma. Tanto pais

como outros educadores, numa tentativa de protecção, afastam

as crianças e os jovens de situações menos bonitas ou mesmo

penosas, como são as situações de doença e morte.

Se temos certo que tudo o que nasce vem a morrer, também é

quase certo que, actualmente, mais depressa, e naturalmente, se

conversa sobre a concepção da criança que está para nascer do

que se aborda o tema sobre o avô que está perto da morte.

Se estas são as memórias da maioria da população, os enfer-

meiros, fazendo parte desta mesma população, muitas vezes

deparam-se, perto dos 20 anos e em plena formação de enfer-

magem, com a definição de que a morte é “apenas” uma fase

do ciclo vital e que morrer é tão natural quanto nascer. Para

além desta certeza que, afinal, parece que faz pouco sentido se a

ligarmos com a representação anterior da morte, este tema faz

parte do currículo escolar muito em torno da morte biológica,

havendo a noção de que na maioria das vezes pouco se vai para

além desta abordagem.

Ainda a referir que, numa grande parte dos casos, a imagem

que muitas vezes passa é de que a postura mais correcta para

um profissional de enfermagem é a de alguém que “não perde a

compostura”, não demonstra sentimentos. Passa a ideia de que

o enfermeiro é alguém muito “direito, com uma bata imacula-

damente branca” onde a pessoa não é tocada, alimentando-se

a imagem de que a expressão de sentimentos poderá estar

associada a imaturidade.

Assim se vai construindo um enfermeiro cujo objectivo é prestar

cuidados ao indivíduo e à família ao longo do ciclo vital, onde

naturalmente o final de vida constitui um período importante no

acompanhamento da pessoa. Acresce que este acompanhamento

deverá ser realizado com a pessoa e respectiva família que, na

maioria dos casos, estão muito pouco preparadas para esta vi-

vência, o que só aumenta as dificuldades para este cuidado.

Mais atentos a estas situações, verifica-se que, numa atitude

muitas vezes de defesa, se foge das mesmas, quer seja negando

a proximidade da morte da pessoa ou negando para si próprio

que determinado indivíduo morreu, quer seja afastando-se de

um cuidado mais próximo àquele que vive o seu final de vida

e respectiva família.

Assistimos ao longo do século passado, até aos nossos dias, a

um crescendo de situações de morte nos hospitais, longe da

família, afastados do seu meio natural, muitas vezes em grande

solidão, muitas vezes na ilusão de que a família do moribundo

está onde terá tudo o que precisa.

De referir que ainda existe a ideia de que o moribundo deverá

estar num local sossegado e também que os outros doentes

– “companheiros” de quarto – se sentirão incomodados pelo

facto de terem por perto alguém que poderá morrer a qualquer

momento. Daqui resulta que o moribundo é por vezes afastado

Lidar com a morte na equipa de enfermagem

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ordem dos enfermeiros

para um quarto onde pode estar mais sossegado, ou simples-

mente colocado atrás de um biombo, resultando que, na maioria

dos casos, a pessoa acaba por viver, talvez o mais importante

momento da sua vida, sozinha.

No que reporta à família e à gestão da situação, importa di-

zer que, aparentemente, tudo está sob controlo quando não

há choro, gritos, expressão de qualquer sentimento, portanto,

espera-se que a família seja informada por alguém que não eu

próprio e, de preferência, que não volte ao serviço.

Entretanto, nas equipas onde, por vezes, se vivenciam estas

situações, pelo menos alguns sentem-no e fazem-no de forma

muito intensa. Não é comum falar desta temática, nem de cada

situação em particular, o que aparentemente seria promotor de

uma gestão mais eficaz das situações.

Após este curto enquadramento ao tema, gostaria de apresentar

alguns resultados de um estudo de investigação feito a partir

dos seguintes pressupostos: (1) duma forma geral, lidamos mal

com as situações de morte; (2) se conseguirmos viver melhor

estas situações, cuidaremos melhor de cada pessoa doente que

está em final de vida e da respectiva família; (3) se conhecermos

como é que os enfermeiros pensam e vivenciam estas situações,

teremos mais ferramentas e mais disponibilidade para apoiar as

equipas num sentido de um menor sofrimento e melhor acom-

panhamento do doente terminal e família.

O estudo intitula-se Vivências da morte – Estudo sobre o nível de

ansiedade e os mecanismos utilizados nas situações de morte de

um doente, tendo sido definas duas variáveis dependentes: (1) a

ansiedade desencadeada pelas situações de morte de um doente

e o acompanhamento dos respectivos familiares, trabalhada

através de metodologia quantitativa e (2) os comportamentos

referidos perante situações de morte: em termos pessoais, pe-

rante a equipa, perante o corpo e perante a família, trabalhada

com metodologia qualitativa.

Foi aplicado um questionário a uma população de 301 enfer-

meiros (todos os enfermeiros da instituição) de um hospital

central, tendo sido devolvidos 161, o que corresponde à nossa

amostra.

Destes, 125 são do sexo feminino (77%) e 36 (23) do masculino,

com idades compreendidas entre 20 e 54 anos, apresentando

uma média de 31,7 anos, moda de 22 anos e desvio padrão de

9,2 anos. Este é um grupo muito jovem – 57% têm menos de 30

anos. Naturalmente e em relação ao tempo de profissão, 50,3%

têm até cinco anos de profissão, sendo a média de oito anos, a

moda de cinco anos e o desvio padrão de nove anos.

Relativamente à avaliação da ansiedade, foram aplicados: (1)

o questionário de auto-avaliação de Spielberger – STAI forma

Y-1, que avalia os níveis de ansiedade-estado e ansiedade-traço

e (2) a escala de auto-avaliação da ansiedade de Zung. Neste

instrumento, era feito apelo à memória, solicitando-se que in-

dicasse como se sente na maioria das vezes em que se depara

com a morte de doentes. Dos resultados, evidencia-se que os

níveis de ansiedade apresentados pela população, em qualquer

das formas de avaliação, situam-se maioritariamente – acima

de 53% – num nível de ansiedade média.

Na continuidade da análise, não foram provadas quaisquer

relações entre a ansiedade e qualquer das características da

população ou vivências anteriores, experiências pessoas ou

profissionais, como a idade e o tempo de profissão, os lutos

pessoais, a prática de religião ou outra.

De referir que o facto do instrumento de colheita de dados ter

sido aplicado fazendo apelo à memória foi considerado uma

limitação importante, sugerindo-se que, com a aplicação do

mesmo instrumento aquando da vivência de morte de um doen-

te e do acompanhamento dos familiares, viéssemos a observar

resultados bem diferentes.

No que respeita à representação da morte para este grupo

de enfermeiros, as suas respostas encerram afirmações que

sugerem a morte como o terminus – fim –, referindo, ainda, os

sentimentos desencadeados e a consideração da morte como

uma etapa do ciclo de vida. No que reporta ao terminus, este é

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ordem dos enfermeiros

sugerido como fim da vida, de um percurso, muito à semelhança

de um caminho que percorremos e que agora chegou ao fim,

mas também como o fim do sofrimento, ligado naturalmente

às nossas experiências enquanto enfermeiros, que acompanham

pessoas em grande sofrimento.

Relativamente aos sentimentos, estes são de perda, enquanto

privação de alguém de quem se gosta ou simplesmente de uma

pessoa, de dor ou de não-aceitação, enquanto incompreensível,

revolta e sensação de impotência perante o facto. Da mesma

forma, refere Savater, “Fatalmente necessária, perpetuamente

eminente, intimamente intransmissível, solitária… o que sabe-

mos sobre a morte é muito verdadeiro mas não no-la torna

mais familiar nem menos incompreensível”. Qualquer destes

sentimentos, e em conjunto, estão muito associados ao pro-

cesso de luto.

Enquanto etapa do ciclo de vida,

esta foi considerada como algo na-

tural, mesmo como condição essen-

cial e intimamente ligada à vida.

Quando questionamos os enfer-

meiros sobre as suas vivências

de morte em termos pessoais, (o

termo “pessoais” encontrava-se sublinhado), para além dos

familiares e amigos, 19% da população refere-se a doentes

também como perdas pessoais. De salientar que, se por um

lado, constituiu surpresa o facto de se descrever a morte dos

doentes como perdas pessoais, por outro lado, esta referência

pode ser um indicador de existência de relação estreita entre o

prestador e o destinatário dos cuidados. Tal suposição conduzirá

a sentir a morte do doente de uma forma um tanto inadequada

– ou seja, não consideramos como objectivo do Cuidar que o

envolvimento com os doentes seja de um nível transpessoal que

leve a considerar a sua morte como perda pessoal.

Quando questionados sobre o que pensa / sente perante o

corpo do doente, exprimem maioritariamente expressões de

perda, referindo-se às dificuldades sentidas e a sentimentos de

compaixão, sofrimento, tristeza e vazio. No que respeita a pen-

samentos, fazem-no acima de tudo no falecido, nomeadamente

nas suas vivências e tipo de vida que terá tido, mas também

na sua própria morte e na dos familiares, tal como é esperado

por qualquer revisão da literatura – a vivência da morte faz-nos

pensar na nossa própria morte, mas também nos traz à memória

aqueles que perdemos.

Perante a família, os enfermeiros designam em primeiro lugar

expressões de não-aceitação, onde a dificuldade é a palavra-

-chave, tanto no que se refere à informação como ao apoio

devido. Referem-se ainda ao respeito, tanto em relação à crise

que aquela família está a viver, como ao respeito por qualquer

demonstração de dor, como choro, gritos ou outros. Ainda nas

afirmações mais referidas, encontramos as que têm a ver com

constrangimento, pesar e pena, o

que nos encaminha para a esfera da

compaixão, do cuidar compassivo.

No que reporta ao que sente /

pensa em termos pessoais, à seme-

lhança das anteriores, referem-se

maioritariamente a sentimentos

de tristeza pela perda presente, de

impotência perante o inevitável,

de frustração por não se ter conseguido atingir o objectivo. É

comum os profissionais de saúde (Kubler-Ross, 1998) encararem

a morte como o fracasso dos seus esforços e, de certa forma,

da sua missão.

Na categoria sentimentos, relatam ainda o respeito pelo mo-

mento, mas também pela pessoa. Referindo-se a pensamentos,

descrevem afirmações que sugerem ser o melhor para o doente

e ter-se cumprido a missão, numa tentativa de racionalização

do sucedido, permitindo, assim, algum distanciamento, mas

também de um balanço que, associado ao sentimento de impo-

tência, poderá ser desculpabilizador. Por outro lado, também se

pensa nas vivências do doente, aparentemente numa tentativa

de realização de um balanço de vida (neste caso do outro), mas

que não surpreende nestas situações.

...a vivência da morte faz-nos

pensar na nossa própria morte,

mas também nos traz à memória

aqueles que perdemos.

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ordem dos enfermeiros

Perante a equipa, os enfermeiros referem sentir frustração e

tristeza, descrevendo afirmações onde clarificam que não tive-

ram capacidade para resolver a situação. Por outro lado, pensam

que também surgiu o fim do sofrimento para aquela pessoa,

pensando assim na morte como algo positivo.

Questionados sobre que factores interferem com o seu com-

portamento e de que forma o influenciam, dos relacionados

com o doente referem que a presença de sofrimento dificulta

o lidar com a situação de acompanhamento de alguém que

está a sofrer, mas também facilita a aceitação da morte por

pôr cobro a esse sofrimento. Em relação à idade, a morte de

uma criança, de um jovem ou adulto jovem, por serem sentidas

como perdas antes do tempo, são tidas como dificultadoras,

tanto para lidar com a situação como para aceitar a morte.

Por outro lado, a morte de alguém mais velho, dado este ser

considerado um estado de simpatia para a morte, facilita a

aceitação da mesma.

Dos factores relacionados com a família, a não-aceitação da

morte por parte destes naturalmente dificulta o lidar com a

situação. O facto de a família ter conhecimento anterior da

situação facilita a sua abordagem e gestão da mesma. Por

contraponto, o facto de não ter conhecimento anterior difi-

culta o lidar com a situação. Referem ainda que a existência

de relação anterior com os familiares foi entendida tanto

como facilitadora, permitindo utilizar ferramentas que advêm

do conhecimento da pessoa e família, assim como, em outras

situações, como dificultadora, pelo envolvimento com a família,

passando a ideia de um sofrimento conjunto.

No que respeita a factores relacionados com o próprio, à ca-

beça surgem afirmações que se referem a convicções pessoais

– aceitação ou não da morte –, assim como a formação tanto

pessoal como profissional, no sentido de se considerar que a

sua falta condiciona a dificuldade de lidar com as situações

de morte dos doentes. Também referidas são as vivências,

enquanto experiências pessoais e profissionais, assumindo-se

como uma necessidade o experimentar e a noção de se aprender

com a vivência e reflexão do vivido.

Dos factores relacionados com a equipa, estes enfermeiros refe-

rem, em primeiro lugar, o apoio dos colegas como facilitador para

lidar com a situação. Sendo os que estão mais próximos, melhor

compreenderão a situação, tal como refere um dos colegas: “Penso

que o diálogo com os elementos da equipa que vivem a “ocorrên-

cia” da morte de um doente é a forma mais “fácil” de cada um

libertar de si todos os medos, receios, todas as angústias e dúvidas

acerca da sua postura perante a morte do doente”. Por oposição, a

falta de apoio dos colegas e também a fuga da equipa ao assunto,

seja não se falando do mesmo ou fazendo “brincadeiras” em torno

deste, tornam mais difícil lidar com a situação.

Outro grupo de questões colocadas à população em estudo

diz respeito aos comportamentos adoptados. Assim, perante

o corpo, referem-se mais vezes ao respeito enquanto atitude,

seguindo-se de preparar o corpo, quer em relação ao aspecto

meramente instrumental – preparar o corpo; cumprir as normas

– até ao cuidado último àquela pessoa que também, nalgumas

situações, assume um valor primordial do cuidar. De acordo com

Hennezel (1999), os cuidados ao corpo – que incluem a prepara-

ção da múmia e a apresentação do corpo – têm relevo particular

para os profissionais: “têm um cuidado especial na preparação

do corpo e no tentar restituir à pessoa, que cuidaram com todo

o carinho e respeito de que são capazes, uma aparência tão

bela quanto possível”. O rito dos últimos cuidados constitui a

ocasião de prestar uma derradeira homenagem. Também foram

referidos comportamentos de afastamento, no sentido de se

entender que aquele corpo já não é a pessoa. Referem ainda

que perante o corpo rezam, quer seja em benefício do doente,

quer da família.

Dos comportamentos perante a família sobressai o apoiar,

enquanto o estabelecer de relação, permitindo perceber quais

as necessidades e responder em consonância. Bastante referida

é também a fuga, tentando que seja outro a ir falar com a fa-

mília, refugiando-se em “desculpas” como a carga de trabalho,

as funções etc., mas, acima de tudo, evitando o contacto com

a família. Perante esta, outro aspecto considerado reporta ao

esclarecimento, quer seja em relação à notícia da morte, quer

aos procedimentos a efectuar, que para a maioria das pessoas,

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ordem dos enfermeiros

nesse momento, são de grande complexidade. Ainda referida é

a demonstração de disponibilidade, no sentido do “estar com”.

Menos, mas ainda assim descrito, foi o proporcionar despedida

que, não sendo muito comum nas instituições hospitalares,

assume uma importância maior para a família, nomeadamente

na concretização da notícia da morte.

Em termos pessoais, os comportamentos mais referenciados têm

a ver com afastamento, quer no sentido do não envolvimento

– esta situação não é comigo –, quer esquecendo rapidamente

– não pensar no assunto. Associado a uma ideia do que é es-

perado do profissional, bastante referenciado é o autocontrolo,

mantendo a calma, e o agir com firmeza. Como é entendido por

Gameiro (1999) o autocontrolo corresponde à “capacidade de

a pessoa actuar no sentido de minimizar o impacto do aconte-

cimento stressante, reduzindo a sua intensidade ou diminuindo

a sua duração”. Referem ainda que há que encarar a situação

como natural, muito ligado à sensação de inevitabilidade do

acontecimento.

Dos comportamentos perante a equipa, referem–se ao apoio

através da discussão do assunto ou simplesmente dando apoio.

Na continuidade das respostas anteriores, mantém-se a ideia

do profissionalismo enquanto autocontrolo, claramente numa

tentativa de racionalização e afastamento da mesma, seguido

do evitamento do assunto e da importância de não demonstrar

sentimentos. A relação entre autocontrolo e não demonstrar

sentimentos faz-nos ressaltar o contraste com a perspectiva de

Lazure (1994), na construção da relação de ajuda – em que uma

das capacidades é a congruência (“ao progredir na expressão da

sua congruência, a enfermeira permite-se, cada vez mais, ser ver-

dadeiramente ela própria, isto é, viver e exprimir os seus próprios

sentimentos através da comunicação verbal e não verbal”).

Quando convidados a apresentar sugestões sobre actividades a

desenvolver para melhor lidar com a morte, surge inicialmente

a ideia da necessidade de incremento da formação, sugerindo

que deveria ser feita mais, em quantidade, mas também com

recurso a metodologias activas. Por outro lado, é sugerido o apoio

especializado, nomeadamente integrando psicólogos durante as

discussões em equipa, que constituem outras das actividades

sentidas como úteis. Referem ainda como importante reforçar o

apoio da equipa, promovendo a entreajuda enquanto expectativa

e, simultaneamente, uma obrigação solidária. Alguns enfermeiros

consideram que a gestão destas situações se fará, acima de tudo,

trilhando um caminho individual, recusando que qualquer apoio

/ ajuda externos venham a melhorar a forma como se lida com

a morte dos doentes.

Da experiência e das reflexões realizadas, acrescentaria que

muito temos caminhado, mas existe ainda um longo caminho

no sentido de melhor gerir os nossos sentimentos, por forma a

que o acompanhamento destes doentes e destas famílias seja

aquele que desejamos. Como nota final, gostaria ainda de deixar

outra reflexão. Na maioria dos nossos contextos hospitalares,

estamos aparentemente muito formatados para nos sentirmos

gratificados com as recuperações espectaculares, às vezes quase

“milagrosas”, a que assistimos e que a técnica proporciona.

Estas situações são faladas, divulgadas, amiúde até à exaustão.

Por outro lado, o acompanhamento de uma pessoa à qual foi

proporcionado o apoio devido, com a qual estivemos prestando

os cuidados que necessitavam, também nos gratifica. Atrevo-me

a questionar se estas experiências não poderiam, ou deveriam,

ser igualmente divulgadas, faladas em todas as reuniões, até no

sentido de “aprendermos” a sentir-nos mais gratificados, con-

trariando os sentimentos de frustração tantas vezes referidos

quando um doente morre. Fica o desafio. oe

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ordem dos enfermeiros

Aaldert Mellema*

Enfermeiro

Em primeiro lugar, deixem-me transmitir-vos as saudações que

trago da Holanda e agradecer à Ordem dos Enfermeiros o convite

para discutir as questões da eutanásia, que tantos problemas

levanta aos enfermeiros holandeses.

A minha apresentação divide-se em três partes: na primeira,

debruçar-me-ei sobre as questões que envolvem o fim de vida;

na segunda, abordarei a problemática da eutanásia e, na última,

falar-vos-ei sobre um estudo importante, feito na Holanda, sobre

o que pensam os enfermeiros da eutanásia.

Antes de avançar, é importante referir que, na Holanda, aceitamos,

há já muitos anos, que a eutanásia é uma realidade a encarar de

frente. Decidimos, por esta razão, que deveríamos ter uma posição

oficial legal sobre a questão e não apenas uma posição moral. Na

Holanda, pensamos assim: se algo realmente existe, temos de fazer

o possível para que exista de forma legal e temos de agir com o

máximo de cuidado para que tudo ocorra da melhor forma possível.

Não é portanto mais que uma questão de encarar a realidade.

Considera-se que a eutanásia é um assunto entre o doente e o

médico. Mas se os enfermeiros se envolvem de qualquer forma

nesta decisão, este envolvimento deve também ocorrer de uma

forma legal. Esta é uma base muito importante da discussão sobre

o assunto. Devo dizer-vos que, de acordo com os resultados da

grande investigação que fizemos o ano passado sobre o papel dos

enfermeiros nas questões do fim de vida, os enfermeiros não se

sentiam confortáveis com o papel que lhes estava reservado nesta

problemática que junta enfermeiros e doentes.

Não vou aborrecer-vos com os pormenores técnicos da investi-

gação. Basta dizer-vos que esta investigação foi encomendada

pelo governo e foi o resultado de pressões feitas pela minha

associação e por outra associação de profissionais da saúde.

Vou tentar dizer-vos muito brevemente qual é a história da

questão.

Conhecia-se um caso ocorrido no norte da Holanda, em 1973:

um médico de clínica geral praticou eutanásia com a sua própria

mãe de 95 anos que se encontrava em estado terminal. Depois

de o fazer, dirigiu-se à polícia para contar o que se passara. Claro

que a história se tornou depois num grande caso de tribunal,

captando a atenção mundial. Tudo isto se passou há mais de

30 anos. O médico de clínica geral foi absolvido, mas, em resul-

tado deste caso, um conjunto de pessoas muito importantes e

proeminentes na sociedade holandesa criou um grupo de luta

pela legalização da eutanásia.

A partir de então, este grupo tornou-se muito influente em todas

as decisões acerca da eutanásia. Provavelmente não ficarão sur-

preendidos se eu vos disser que não há enfermeiros envolvidos

neste grupo e que continuamos a tentar lidar com este facto.

Foi depois proposta uma lei sobre a eutanásia no parlamento e

as posições sobre o assunto chegavam à Assembleia da República

de cada vez que um caso era julgado em tribunal, de cada vez

que um profissional da saúde era absolvido.

o papel dos enfermeiros nas decisões de fim de vida

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* Delegado internacional da organização de enfermeiros holandesa NU'91.

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ordem dos enfermeiros

Estas questões foram debatidas a propósito de uma espécie de

referendo acerca das regras de cuidado que deviam ser tidas

em conta e deveriam ser muito rigorosas. Durante os anos

80, esta foi a discussão dominante. Como todos se lembrarão,

os anos 80 foram também marcados na Holanda pelo auge

da crise provocada pela sida. Nesta década foram discutidos,

portanto, muitos casos de eutanásia, sendo um dos critérios

apontados em defesa da mesma o facto de haver um sofri-

mento insuportável e sem fim previsível. A meio dos anos 90,

este critério foi alargado para incluir também o sofrimento

mental e esta foi uma alteração revolucionária. Um dos casos

famosos foi o de uma mãe que depois de perder os três filhos

ficou tão depressiva que solicitou a eutanásia. Eu imagino

que todos consigam fazer uma ideia do debate público que

se seguiu a este caso, na Holanda. Mas o sofrimento mental

insuportável – seja isso o que for – foi incluído nesta emenda

à lei e temos, desde 2001, uma lei formal sobre a eutanásia na

Holanda. Creio que fomos os primeiros do mundo a ter uma lei

sobre este acto e, durante todo o processo que a ela conduziu

, tivemos muito em atenção o que desejávamos, mas também

o que não desejávamos.

Há três partes nesta lei, incidindo uma delas sobre a existência

de um conselho regulador dos procedimentos e das formas de

actuação na eutanásia. Existem regulamentos muito rigorosos

para os médicos mas não existem regulamentos para os enfer-

meiros, uma vez que formalmente estes não eram envolvidos

no acto. Embora se considerasse ser esta uma questão que dizia

apenas respeito aos médicos e aos doentes, a realidade pro-

fissional era muito diferente. Se os enfermeiros não estavam

envolvidos no processo, estavam frequentemente muito pró-

ximos. Sobre regulamentos falarei um pouco mais adiante.

Claro que atraímos muita atenção internacional, especialmente

a da Itália e a da imprensa do Vaticano Esta chegou a falar de

práticas nazis na Holanda, o que não estimulou a compreen-

são mútua. Mas atraímos também a atenção moderadamente

positiva da Alemanha e da Bélgica. Na verdade, cerca de um

ano e meio depois, também a Bélgica se viu dotada de uma

lei sobre a eutanásia.

As reacções dos Estados Unidos e da Inglaterra (Reino Unido)

foram mistas. Mas em especial a do Reino Unido foi curiosa: além

de comentarem a questão, deram-nos uma espécie de conselho

segundo o qual deveríamos dedicar-nos mais aos cuidados pa-

liativos antes de nos virarmos para a eutanásia. Disseram-nos

que deveríamos expandir o conceito dos cuidados paliativos e

isto foi uma coisa que a associação de enfermeiros levou muito

a sério.

A eutanásia foi uma das razões de a Holanda não ter uma ima-

gem internacional muito positiva. Primeiro, foi a posição muito

leniente relativamente a drogas leves, depois a Holanda passou

a ser o país onde se praticava a eutanásia. Esta imagem não nos

impediu, no entanto, de seguir a realidade e acompanharmos a

parte diária.

Quando abordamos este assunto, confundimos frequentemente

duas questões diferentes: a eutanásia, que implica causar o fim

da vida com recurso a medicação; e o suicídio assistido, isto é,

a ajuda dada a um doente no sentido de este terminar a sua

própria vida. Existe, por outro lado, uma área cinzenta, que todos

conhecem através da prática profissional, provavelmente tão bem

quanto eu, que a conheci durante a minha prática de cuidados

intensivos. Refiro-me à administração de terapêutica analgésica

com o intuito de apressar o fim da vida. Não estou certo de já

terem falado sobre esta área cinzenta, como eu lhe chamo, mas A

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ordem dos enfermeiros

esta é uma área que causa muito descontentamento na nossa

comunidade de enfermeiros, na Holanda.

Como enfermeiros, têm de estar muito certos do que estão exac-

tamente a fazer. Devo dizer que encontrámos algumas surpresas

na investigação que fizemos.

Alguns aspectos são muito óbvios. Por exemplo, ninguém tem

dúvidas de que o processo tem de ser voluntário, de que, mesmo

havendo mais pessoas envolvidas, só o médico pode praticar a

eutanásia. Por outro lado, o doente tem de estar consciente e,

portanto, tem de estar a sofrer uma dor insuportável. Têm de

lhe ser dadas alternativas e o doente tem de tomar uma decisão

por si próprio.

Esta é uma questão muito controversa: o

que é realmente uma dor insuportável? O

mesmo acontece em relação aos cuidados

paliativos, pois como se define claramente

o que são cuidados paliativos? Como se

define o sofrimento sem previsão de fim,

sem esperança? O que significa isto para

um bebé? O que poderá ser um deficiente profundo? É por esta

razão que, mesmo existindo regulamentos, há muitos aspectos

que têm de ser discutidos e que têm de ser avaliados. Muitos des-

tes aspectos estão dentro do âmbito de competências próprias

dos enfermeiros porque, enquanto “advogados” dos doentes, os

enfermeiros podem explicar-lhes aquilo que se passa e aquilo

em que vão ser envolvidos.

Os regulamentos que mencionei incluem, por exemplo, doentes

que sofrem de Alzheimer, crianças e pessoas com deficiência

mental. É por esta razão que mesmo aqueles que são a favor de

uma lei da eutanásia muito aberta não estão satisfeitos com a

lei existente, pois há muitas situações que ficam fora do âmbito

da mesma.

A questão central é, portanto, qual o papel desempenhado pelos

enfermeiros nas decisões sobre o fim da vida, sobre a respectiva

implementação nos hospitais, em lares da terceira idade e nos

locais onde se prestam cuidados de saúde primários. Alguns dos

resultados são muito óbvios, mas outros são surpreendentes.

Como poderão ler, na maior parte dos casos, o enfermeiro não

é a primeira pessoa a quem o doente recorre. A pessoa a quem o

doente se dirige para solicitar a eutanásia é o médico. Nos lares

da terceira idade e nos hospitais, há geralmente uma consulta

mútua – os enfermeiros e os médicos falam acerca dos casos

que têm entre mãos.

Nos locais onde se prestam cuidados de saúde primários, que são

também os locais onde ocorre o maior número de pedidos de

eutanásia, a equipa é consultada em menos de 50% dos casos,

ou seja, esta prática é muito menos frequente. As questões mo-

rais foram levantadas e os enfermeiros mostraram-se mais per-

turbados por não concederem o desejo

de eutanásia do que pelo facto de este

desejo ser manifestado. Esta constatação

surpreendeu-nos muito, porque não fazia

parte da actividade profissional que nós

conhecíamos.

Mesmo na Holanda, a eutanásia não é um

direito legal do doente. O doente nunca pode forçar um médico

ou um enfermeiro a intervir em resposta a um pedido de eu-

tanásia. É concedido o desejo ao doente por alguém que esteja

disposto a fazê-lo, mas de acordo com as regras existentes. Numa

certa percentagem de situações, os enfermeiros administram os

medicamentos com vista à prática da eutanásia e, nestes casos,

eles são legalmente responsáveis pelo acto.

Consideramos esta percentagem – 12 por cento, se não estou em

erro – demasiado chocante, pois se um enfermeiro for submetido

a lei penal, ele ou ela serão condenados por não disporem de

uma base legal para o fazerem.

Que pensam então os enfermeiros? De acordo com a nossa in-

vestigação, a maior parte dos enfermeiros pensa que a consulta à

equipa não é necessária. Trata-se de um resultado surpreendente,

tanto mais que a investigação que fizemos envolveu um grande

número de enfermeiros. Ora, nós partimos do princípio de que

Como se define o sofrimento

sem previsão de fim,

sem esperança?

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os enfermeiros querem ser sempre consultados e, na verdade,

mais de 50% dos enfermeiros interrogados não quer.

Do grupo de enfermeiros abrangido pelo estudo, 12% admitiu

ter praticado eutanásia e 13,15% respondeu que a eutanásia

devia ser tarefa dos enfermeiros. A maioria entende que as

acções preparatórias não fazem parte das intervenções dos

enfermeiros, nem a preparação da seringa (54,1%) nem a pre-

paração da própria eutanásia. Uma minoria (45%) respondeu

que os enfermeiros deveriam fazer parte do comité nacional

de controlo dos procedimentos da eutanásia. Muitos afirmam

que, quando a enfermeira prepara e administra, a responsa-

bilidade é do médico. Percebemos assim que os enfermeiros

têm insuficiente conhecimento das leis e do sistema legal, das

orientações e das directivas institucionais relativas à eutanásia.

Percebemos também que nem sempre os médicos e os enfer-

meiros trabalham juntos.

Os doentes, por vezes, pressionam os médicos a agir, facto que

os enfermeiros consideram problemático. Tem-se a noção de que

os cuidados à família e aos amigos podem ser melhores.

De entre as conclusões, destaca-se a de que num em cada cinco

casos, os enfermeiros não concordam com a decisão do médico

em acelerar o fim da vida. A comunicação sobre as decisões

quanto ao fim da vida parece também insuficiente. As directivas

e protocolos sobre cuidados paliativos são igualmente insuficien-

temente desenvolvidos, o que causa opacidade relativamente à

medicação.

Recomendou-se que fossem clarificados critérios e protocolos e

que ficassem mais demarcadas as actividades dos enfermeiros.

Parece importante desenvolver a comunicação entre todos os

profissionais e aumentar os conhecimentos relativos a aspec-

tos legais, às directivas das instituições e aos actos e sistema

legais.

Involuntariamente, os enfermeiros estão envolvidos e podem

sempre recusar tomar parte na eutanásia. Mas têm de estar

informados sobre o procedimento e têm de estar envolvidos nos

processos de tomada de decisão. Não há, ainda assim, garantias

formais para os enfermeiros. Se o médico agir irresponsavel-

mente, os enfermeiros têm de dar conhecimento.

Não se trata de tomar posições pessoais sobre a eutanásia mas de

monitorizar o processo, atendendo ao papel e ao envolvimento

dos enfermeiros.

Foi igualmente recomendado que o governo procedesse a um

enquadramento legal, na convicção de que os enfermeiros têm

de estar legalmente protegidos quando estão envolvidos nos

procedimentos. É relativamente a este aspecto que a organi-

zação profissional tem de agir, de tomar posição. Também na

Holanda! oe

ordem dos enfermeiros

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ordem dos enfermeiros

Delfim Oliveira

Presidente do Conselho de Enfermagem

Começo por felicitar todos, sem excepção, pelas excelentes apre-

sentações, que nos permitem reflectir sobre o que fazemos, o que

não fazemos e o que no futuro deveríamos ser capazes de fazer

pela, e com a, pessoa em fase final de vida.

É-nos reservado pouco tempo para os comentários, o que nos im-

pede de fazermos uma apreciação de cada uma das intervenções.

Vou, portanto, deixar o comentário da apresentação do colega ho-

landês Aaldert Mellema para a Senhora Enfermeira Lucília Nunes, na

qualidade de presidente do Conselho Jurisdicional, reservando-me

para o eventual debate. É evidente que a problemática da morte,

que aqui quisemos, e muito bem, chamar de final de vida, não é

uma questão arrumada. É, pelo contrário, uma preocupação dos

enfermeiros, confirmada pelo elevado número de participantes.

Tal como afirmou o colega Noberto, há dificuldade em falar da

morte ou do final de vida – oculta-se, não se pensa nela. Esta

dificuldade é transversal à nossa sociedade, que só muito recen-

temente se abriu mais à discussão desta matéria. Mas a morte é

ainda uma questão tabu.

Somos o resultado desta educação, culturalmente validada, que

influencia a pessoa-enfermeiro. Por razões várias, entre as quais o

contexto cultural, uma socialização profissional marcada por uma

cultura biomédica, em que a morte significava o insucesso e, ainda,

o modelo organizacional vigente cujo centro foi, e ainda é nalguns

casos, a própria organização e não a pessoa-cidadão, tem sido difícil

aos enfermeiros dar o salto qualitativo, desejável e coerente com

o nosso mandato social, decorrente do Código Deontológico e que

aqui já nos foi recordado através da citação do Artigo 87.

Na sua intervenção, desafia-nos, individualmente e colectivamente,

pelas três questões iniciais que coloca: o que resta fazer quando

nada mais há a fazer? O que muda? Em que sentido há que redefinir

condutas e posições nestes momentos difíceis em que profissionais

de saúde, doentes e famílias se enfrentam esta realidade?

Os cuidados de enfermagem tomam por foco de atenção a pro-

moção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue,

do qual faz parte a fase final de vida. A boa prática de enfermagem

assenta no mais completo respeito pelos valores, costumes, pelas

religiões e todos os demais princípios previstos no código deonto-

lógico, particularmente na assistência às pessoas em fase final de

vida e respectivas famílias. Os enfermeiros têm presente que “bons

cuidados” significam coisas diferentes para diferentes pessoas, pelo

que se requer sensibilidade para lidar com estas diferenças, perse-

guindo-se os mais elevados níveis de satisfação dos assistidos.

Temos, contudo, vindo a evoluir paulatinamente no sentido da

mudança desejada. Abandonaram-se os quartos de isolamento

dos moribundos, mas falta ainda criar as condições para dar

dignidade ao momento final de vida, que ocorre cada vez mais

nas instituições (hospitais). Há que permitir a presença dos

conviventes significativos, que são também alvo dos nossos

cuidados.

cuidado no final de vida*– comentário de delfim oliveira

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* A escassez de tempo disponível condicionou o comentário proferido na ocasião. Este texto reflecte a natureza original do comentário que estava previsto ser apre-sentado.

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ordem dos enfermeiros

A colega Lurdes Martins, que abordou o tema dos cuidados pa-

liativos, referiu que o grande objectivo dos cuidados paliativos é

“proporcionar um bem-estar físico e serenidade para o doente

bem morrer”. Tal como o colega anterior, acentua a necessidade

de uma formação especial, reconhecendo como insuficiente a

que é ensinada na formação inicial.

Não poderia estar mais de acordo com a sua afirmação. Saliento

mesmo o que ela própria expressou: o doente é o grande mestre.

A verdadeira formação faz-se a partir dos contextos, preferen-

cialmente se as questões forem problematizadas e reflectidas

no seio da equipa. É este o palco privilegiado para aquisição

das competências necessárias para assistir estes doentes, até

porque cada caso é um caso.

O doente em fase final de vida (“doente terminal” – con-

forme está expresso no nosso código) e a respectiva família

têm necessidades acrescidas. Pela sua vulnerabilidade, ne-

cessitam de que os enfermeiros advoguem os seus direitos

e procurem assegurar a sua satisfação em relação ao seu

projecto de saúde. Para isso, é preciso conhecê-los, saber

como o vivenciam.

Cuidar da família faz parte integrante dos cuidados à pessoa

que está a morrer. Não pode haver “bons cuidados” sem a in-

clusão da família em todo este processo, porque o doente não

existe isoladamente.

Estas pessoas têm necessidades especiais e particulares. Pode

estar calmo, orientado e capaz de participar nas decisões e

no planeamento dos cuidados, ou, pelo contrário, pode estar

com dores, ter medo, ser incapaz de comunicar, pelas vias nor-

mais. Em qualquer caso, têm necessidades sociais, espirituais

e religiosas. Isto assume particular importância nesta fase da

vida, sobretudo quando a morte é entendida como mais um

momento de passagem.

Há sempre mais alguma coisa a fazer quando julgamos que está

tudo feito se respondermos à pergunta o que é que eu posso

fazer por si?...

Uma vez questionei-me acerca do que podia fazer por um do-

ente, meu conhecido, que viveu no hospital os últimos dias da

sua vida. Ocorreu-me logo “o que é que tu gostarias de fazer?

A resposta logo se fez ouvir “Gostava de ir ao cinema!”.“Que

tipo de filmes gostavas de ver?”, perguntei. “Filmes de guerra”,

respondeu.

Pudemos melhorar a sua qualidade de vida apenas com um

computador portátil e alguns DVD. Mais: na primeira sessão,

levamos uns chocolatinhos e gelados de miniatura, alegando que

substituíam as pipocas, o que permitiu que ingerisse algumas

calorias. O que foi importante porque como vomitava constan-

temente, não tinha vontade de se alimentar.

Desde essa altura que o recurso a um data show e a um portátil

são hipótese para ajudar a diminuir o isolamento e contribuir

para a satisfação de necessidades sociais e espirituais, que no

hospital pareciam difíceis de realizar. Afinal, é possível fazer me-

lhor. Não impedimos o desenlace, mas, certamente, oferecemos

mais qualidade vida.

É a vivência destas situações que vão determinar a opção

estratégia, os recursos a mobilizar na relação terapêutica, “a

nova descoberta” à qual se referia a colega, num processo de

formação permanente. O enfermeiro distingue-se pela forma-

ção e experiência que lhe permite compreender e respeitar os

outros. Procura abster-se de juízos de valor relativamente à

pessoa cliente dos cuidados de enfermagem.

A nossa colega Armandina Antunes começa por nos relembrar

que cada vez mais se morre no hospital e que os enfermeiros

ainda não lidam bem com as situações de morte. Deu-nos a

conhecer um estudo em que se media o nível de ansiedade dos

enfermeiros e analisava os respectivos comportamentos.

É de salientar que o seu estudo reafirma a ideia que os enfermei-

ros não são imunes à perda e ao luto. Necessitam tomar cons-

ciência disto e permitir a si próprios a oportunidade de “sofrer”

compreendendo melhor para ser capaz de prestar cuidados ao

doente e pessoas significativas, mantendo-se saudável.

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ordem dos enfermeiros

Para os jovens enfermeiros, estas vivências necessitam, certa-

mente, de ser discutidas com colegas mais experientes, com

a equipa de saúde, eventualmente até com um psicólogo, ou

mesmo um sacerdote. Mas os colegas mais velhos também não

são imunes. Porque viveram, ou estão a viver, a morte dos seus

familiares, pais, cônjuges… precisam também de ser ajudados,

para serem capazes de cuidar com o mínimo de sofrimento e

não responder fugindo ou negligenciando os cuidados, como

uma forma de defesa.

Há, ainda, outra história que gostaria de relatar, de uma doente

que padecia de uma doença do neurónio motor (Esclerose

Lateral Amiotrófica – ELA). Era uma doente que dependia de

suporte ventilatório que, mantendo íntegras a sensibilidade e

a consciências, não conseguia sequer deglutir a própria saliva.

Estava completamente dependente no plano físico, mas possuía

vontade e desejos de natureza individuais marcados.

Consciente da sua doença, não raras vezes verbalizou a sua

vontade de morrer. Passou por uma fase em que recusava os

tratamentos mais invasivos e medicamente recomendados

(por exemplo, cateter central, traqueotomia). Foi uma doente

que a todos marcou, mas também ajudou muito a reflectir e a

aprofundar a verdadeira natureza dos cuidados de enfermagem,

quer de manutenção e suporte, quer de compensação ou mesmo

estimulação. Provocou muito choro, muito desespero por não

sabermos como responder à sua situação singular, mas abriu

horizontes e gerou novas formas de cuidar.

Tudo começou com seu primeiro internamento, quando ainda se

deslocava numa cadeira de rodas, e foi estimulada a participar

numa festa para os doentes. Um simples pedido de um lápis

“para fazer um risco nos olhos” colocou-nos pela frente um

enorme desafio. Como fazer entender a equipa da necessidade

de entender a individualização dos cuidados?

De acordo com o nosso quadro conceptual, cada pessoa procura

o equilíbrio em cada momento, de acordo com os desafios que

cada situação lhe coloca. E cada pessoa deseja atingir o estado

de equilíbrio que se procura no controlo do sofrimento, no bem-

-estar físico e no conforto psicológico, emocional e espiritual.

Então, como fazer com que as intervenções de enfermagem

sejam individualizadas para uma pessoa, valorizando, em par-

ticular, os cuidados de manutenção do conforto, bem como

preservando a sua dignidade?

Esta doente 'viveu connosco' um ano e meio. Celebrou as bo-

das de prata do seu casamento, festejou o seu aniversário e

acompanhou os momentos particulares da sua própria família

e dos seus amigos. Foi homenageada, pela sua obra social, pela

sociedade civil, e ainda foi capaz de doar o seu corpo, num gesto

filantrópico pouco comum, sem poder falar ou escrever, socor-

rendo-se de um enfermeiro para, na sua presença, comunicar a

sua decisão à equipa, à família e às autoridades, apenas com o

movimento dos olhos. Após a sua morte, é a família que solicita

à equipa de enfermagem que a vá maquilhar, à semelhança do

que quotidianamente faziam, ao longo deste ano e meio, depois

de não ter sido compreendido o mesmo pedido que havia sido

feito no seu primeiro internamento.

A morte inesperada é um acontecimento diário num serviço de

urgência, não raras vezes violento, cujas imagens e cujos relatos

de experiências vividas pelo colega António Manuel tão bem

ilustram. Não deixa de ser inquietante a forma brutal como é

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vivida a morte nos serviços de urgência, por todos os actores

doentes, pelas famílias e pelos profissionais.

Ainda não há qualquer tipo de referenciação destas situações

para os centros de saúde, mas acredito que um dia os enfer-

meiros de família vão ser informados da morte de um membro

dessa família, para que possam acompanhar o processo de luto

evitando que este se transforme num processo de luto patológico

dos restantes familiares.

Contudo, é necessário agir para que se inicie um processo de luto

“normal”, já que a sua duração não é previsível no tempo, criando

as condições mínimas para tal. Neste sentido, deve garantir-se

a informação precisa e sincera às questões que a família coloca,

sobretudo se o doente está a ser reanimado ou foi para o bloco

fazer uma cirurgia.

Neste sentido, embora tenha feito referências apenas a reali-

dades internacionais, o que impede hoje os enfermeiros portu-

gueses de permitir, que os familiares ou pessoas significativas

se despeçam do corpo (para a família é sempre o pai a mãe, o

Ricardo ou a Joana, e não o corpo ou o cadáver, como por vezes

ainda se ouve) e perceber a dura realidade da morte? Numa

época onde já foram demonstrados os benefícios significativos

no processo do luto dos pais a quem foi permitido pegar ao colo

no corpo do seu filho morto! A entrega dos pertences, os objectos

pessoais do falecido, tais como, a aliança de casamento, chupeta

da criança ou algo que seja significativo, é um gesto que deve

ser instituído como uma boa prática.

Por último e porque julgo fazer todo o sentido para a enferma-

gem portuguesa deixo-vos com a Carta dos Direitos da Pessoa

Moribunda.

Tenho direito a ser tratado como um ser humano, até à hora da minha morte.

Tenho direito à esperança, independentemente de qual possa ser a sua direcção.

Tenho direito a ser cuidado por todos os que consigam manter um sentido de esperança, independentemente de qualquer

mudança que surja.

Tenho direito a expressar, à minha maneira, os meus sentimentos e emoções acerca da minha morte.

Tenho direito a participar nas decisões que digam respeito aos meus cuidados.

Tenho direito a esperar por um atendimento médico e de enfermagem continuados mesmo que os objectivos de “cura”

tenham que ser mudados para objectivos de “conforto”.

Tenho direito a não morrer sozinho.

Tenho direito a não ter dores.

Tenho direito a que me respondam honestamente a todas as questões.

Tenho direito a não ser enganado.

Tenho direito, bem como a minha família a sermos ajudados a aceitar a minha morte.

Tenho direito a morrer em paz e com dignidade. Tenho direito à minha individualidade, e a não ser julgado pelas minhas

decisões que podem ser contrárias às crenças de outros.

Tenho direito a discutir e aumentar as minhas vivências espirituais e/ou religiosas, independentemente do que isso possa

significar para outros.

Tenho direito a esperar que a inviolabilidade do meu corpo seja respeitada após a morte.

Tenho direito a ser cuidado por pessoas conhecedoras e sensíveis, que reconhecerão as minhas necessidades e que terão

alguma satisfação em me ajudarem a enfrentar a minha morte.

Esta Carta de Direitos foi criada em Lansing, num workshop sobre “O Doente Terminal e a Pessoa que o Ajuda”, patrocinado

pelo Southwestern Michigan Inservice Education Council, e orientado por Amelia J. Barbus, professora associada de enferma-

gem, Waine State University, Detroit.

* De Donovan, M. 1., & Pierce, S. G. (1976). Cancer care nursing. New York: Appleton-Century-Crofts, p. 33

Recordando que nas situações de fase final de vida, quando os outros chegam, os enfermeiros já lá estavam, e, quando os outros

partem, os enfermeiros continuam. oe

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ordem dos enfermeiros

Lucília Nunes

Presidente do Conselho Jurisdicional

Muito boa tarde. Acabámos de ouvir cinco comunicações, e, se

me permitem, consumirei cinco minutos, em torno de cinco pa-

lavras – ou seja, vou escolher uma palavra-chave para cada uma

das comunicações que foi realizada, partindo de expressões que

foram ditas em cada uma delas.

Para a primeira, relativa aos deveres para com o doente terminal,

do Enfermeiro Norberto Silva, escolheria a palavra “princípios”.

Os princípios que foram apontados da bioética, dos documentos

internacionais, da ética na enfermagem.

De entre os princípios, eu destacava a particular importância aos

princípios gerais da profissão, em geral, e ao princípio do respeito

pela dignidade da pessoa humana, em particular.

Na segunda comunicação, sobre a morte vista da urgência, do En-

fermeiro António Manuel, escolhi a ideia das “histórias”. Histórias

narradas, histórias do vivido, daquilo que nos toca, às vezes mais

pacíficas, outras vezes muito violentas. Histórias de que falamos,

contamos de testemunho, de tradição oral – e, já agora, porquê?

Porque é preciso pensar. É preciso pensar sobre os vividos, partilhar

e crescer. Não há outra maneira de se tornar mais pessoa, melhor

enfermeiro, do que pensar sobre o agido e sobre aquilo que virá

a agir, e a partir do pensado, melhorar a acção.

Da terceira comunicação, relativa ao final de vida e cuidado palia-

tivo, da Enfermeira Lurdes Martins, escolhia a ideia de “interrogar

sobre a vida”. Todos nós sabemos que a singularidade é complexa.

Não há relação directa entre o que é cientificamente sofisticado

e aquilo que é importante para as pessoas. O paliativo, que não

é necessariamente sofisticado do ponto de vista científico e

técnico, é muitíssimo diferenciado do ponto de vista humano,

existencial e pessoal.

Da quarta comunicação, sobre o lidar com a morte na equipa, da

Enfermeira Armandina Antunes, escolhi a palavra “bata branca”.

Tanto pelo sentido do estar por detrás do uniforme, de se sentir

protegido ou escudado pela bata branca, como pela ideia de que

a postura mais correcta é a de alguém que “não perde a compos-

tura”, não demonstra sentimentos, permanece “imaculadamente

branco”, sem ser tocado. Todavia, detrás, ou melhor, dentro da

bata, existem sempre pessoas profissionais, cuja vivência da

morte caminha para conseguir viver melhor e cuidar melhor de

cada pessoa em final de vida e da respectiva família.

Da quinta e última comunicação, da temática sobre a participa-

ção dos enfermeiros nas decisões do final da vida, do Enfermeiro

Aaldert Mullema, selecciono a ideia de “escolhas”. Escolhas no

final da vida, escolhas que significam recusas e opções de afir-

mação, que significam necessariamente procurar gerir o meu

agir ético em tolerância activa face às opções dos outros, que às

vezes não são as minhas, e se (ou quando) eu não puder aceitá-

-las, que utilize aquilo que o código e que o direito ao exercício

da objecção de consciência prevêem.

Muito obrigada aos cinco comunicadores. oe

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cuidado no final de vida– comentário de Lucília nunes

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ordem dos enfermeiros

Prof. Doutora Maria Isabel Renaud

Professora catedrática de Ética (1988) no Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

A fragilidade e a vulnerabilidade fazem parte da condição hu-

mana. Mas o que é que se entende por condição humana? A pala-

vra “condição” evoca a existência humana em geral. Esta maneira

de falar do homem “em geral” significa que o que se afirma nesta

generalidade abrange a existência de cada ser humano na sua

individualidade mais concreta, isto é, na sua singularidade.

A expressão “em geral” não quer dizer “mais ou menos”, “aproxi-

madamente” ou “para a maior parte deste seres humanos”, mas

para todos eles considerados na sua identidade singular.

Assim, inerentes à condição humana, dizem respeito a cada um de

nós, sem que ninguém lhes possa escapar. É isto que deveríamos

analisar mais de perto. Na verdade, poderíamos já parar aqui, porque

temos todos uma certa experiência da fragilidade humana; a fortiori,

enfermeiras e enfermeiros que lidam diariamente com a doença ou

o sofrimento já sabem por experiência o que é ser frágil.

Mas ter uma certa experiência concreta da fragilidade ainda

não é compreender o que ela é na sua extensão maior. É por

isso que, na base da experiência que enfermeiras e enfermeiros

têm – ou quê todos nós podemos ter – da fragilidade, convém

reflectir sobre ela.

Mas a reflexão implica uma certa distância dos factos. Comente-

mos esta afirmação com alguns exemplos. Viver um período de

luto dá a experiência do luto, mas não faz ainda compreender o

que o luto é; compreender o que acontece na experiência do luto

não é a mesma coisa que ter a experiência vivida do luto.

Do mesmo modo, fazer a experiência do amor e da amizade não

é a mesma coisa que compreender o que acontece psicologica-

mente nesta experiência afectiva.

E poderíamos multiplicar os exemplos antes de aplicar esta verdade

à questão da vulnerabilidade: podemos ter uma certa experiência

mais ou menos profunda da fragilidade sem compreender onde está

a sua raiz, o seu fundamento. É por isto que a filosofia e a ética são

necessárias. Na Grécia antiga, antes de Sócrates e de Platão, por

exemplo, a fragilidade era explicada com narrativas míticas: as três

Parcas estão, com os seus fios, a tecer a trama de cada existência

e quando o fio se rompe a mulher ou o homem morre.

Eis uma explicação que, embora mitológica para nós, não deixou

de ser uma explicação para eles válida. E hoje, será que são melho-

res as explicações das bruxas ou dos que interpretam as cartas?

Então para onde nos viramos para encontrar uma explicação mais

adequada?

A aposta da filosofia consiste em dizer que é do lado da razão que

se encontra a melhor garantia da interpretação da existência. Dizer

isto pode parecer banal, mas é-o tão pouco que assistimos hoje

à recrudescência das respostas irracionais, como se pode ver num

jornal qualquer, com todos os anúncios relativos às capacidades

– ou pseudocapacidades – dos videntes etc.

A resposta racional não significa, todavia, que as respostas do

mito não tinham sentido. No caso que nos interessa, os fios

da finitude e fragilidade humana

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ordem dos enfermeiros

que tecem as Parcas constituem a trama da existência. Ora, os

fios podem partir, isto é, fazer morrer os homens. A fragilidade

da existência humana está deste modo ligada, já no mito das

Parcas, à morte.

A morte está inscrita na condição humana e aparece como a

raiz da fragilidade desta. Ora, na experiência humana concreta,

a fragilidade evoca a possibilidade de receber ou perder algo de

importante, tal como a saúde, as capacidades intelectuais etc.,

o que mostra que, espontaneamente, não relacionamos ime-

diatamente a fragilidade com a morte, mas antes com os que

nos aparecem ligados à própria vida (a beleza de um rosto sem

rugas, um corpo elegante e ainda não marcado pela menopausa,

a força dos músculos bem treinados, a capacidade da memória

etc.). Noutros termos, a fragilidade é a fragilidade dos bens da

vida que podemos perder.

Além disso, não se trata somente dos bens da vida física, mas

de todas as formas de vida: a vida mental, a vida afectiva, a vida

psicológica (é, por exemplo, uma grande fragilidade poder perder

a capacidade da alegria), a vida ética, a vida em comunidade

(quando se rompem os laços do tecido social), a vida afectiva

(quando outros nos fazem sofrer), a vida espiritual (a qual está

de tão perto ligada à capacidade de dar sentido à sua vida).

Se existem tantos bens ligados à vida, se a fragilidade se delineia

no horizonte de todos estes bens, percebemos que a fragilidade

da condição humana adquire uma extensão inicialmente não per-

cebida nas experiências parciais que tínhamos dela. Além disso, ao

lembrarmo-nos de que a morte diz respeito a todas as formas de

vida, é a morte, como perda da vida e de todas as formas terrestres

da vida humana, que se situa no horizonte da nossa fragilidade.

O animal não sente a sua fragilidade; pode sentir-se ameaçado

e defender-se; ele vive, não a fragilidade da sua vida animal, mas

a percepção correcta ou incorrecta da ameaça, que o leva a fugir

ou a atacar.

Este exemplo faz-nos entender que a experiência da fragilidade,

como anterior ao risco ou às ameaças, implica a presença de uma

mente capaz de se distanciar da experiência imediata para se

projectar no futuro. É esta projecção de mim, mesmo num futuro

possível ou certo (quanto à morte), que distingue a vivência da

fragilidade de uma ameaça presente.

Uma das características mais profundas da mente humana reside

na capacidade de integrar conscientemente o passado no presente

e de projectar o presente no futuro; mas, também, acrescentar-

-se-á, justamente, a capacidade de interpretar o presente à luz

do passado e de antecipar o futuro no presente.

As instâncias do presente, do passado e do futuro desdobram a

consciência da fragilidade e da vulnerabilidade. Assim, não é a

mesma coisa fazer a experiência da fragilidade antes ou depois

de um violento acidente de viação.

Do mesmo modo, para os agentes da saúde, por exemplo, os

fisioterapeutas que tratam hemiplégicos ou tetraplégicos vítimas

de desastre, a consciência da fragilidade pessoal torna-se mais

aguda neste confronto não só com a fragilidade teórica do outro,

mas perante a sua efectiva perda de capacidades.

A doença ou a perda de capacidades que o outro apresenta diante

de mim reenvia-me para a consciência acrescida da minha própria

fragilidade. É por isso, aliás, que enfermeiras ou enfermeiros que

trabalham num serviço de medicina paliativa sofrem um desgaste

psicológico e afectivo tão marcado, que devem ser, eles próprios,

objecto de uma particular atenção para não sucumbirem psi-

cologicamente ao peso das dificuldades inerentes aos cuidados

que ministram.

Se o termo de fragilidade tem a mesma etimologia que a palavra

“fractura”, a fragilidade introduz a vertente da possibilidade: frágil

é aquilo que pode fracturar-se. Tal como vulnerável é aquilo ser

ferido (vulnus, vulneris, em latim).

Percebemos que a fragilidade humana implica pelo menos duas

coisas: a presença da mente humana, capaz de antecipar men-

talmente o que pode acontecer; em seguida, o saber quanto à

morte própria e à morte dos outros que constitui o horizonte

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mais largo de todas as experiências de fragilidade. Na verdade,

este saber acerca da morte transforma a dimensão de possibili-

dade inerente à fragilidade.

Quero dizer que se se tratasse só de uma possibilidade que nunca

acontece, não passaríamos nunca da possibilidade para a reali-

dade. Por exemplo, sinto-me frágil quando conduzo o carro por-

que sei que poderia ter um acidente; mas posso eventualmente

passar toda a minha vida a guiar sem nunca ter um desastre.

Trata-se, nesta experiência, de uma possibilidade que, felizmente,

não se traduz em realidade. Mas não se pode

dizer a mesma coisa do corpo humano; pode-

mos não apanhar nenhuma doença concreta,

poderei escapar à gripe das aves que se anun-

cia, com o seu cortejo de mortes esperadas,

mas sei que nunca poderei escapar às marcas

do envelhecimento (ainda que com todas as

operações plásticas possíveis, que só teriam

como efeito esticar a pele do meu rosto até já não poder sorrir).

Trata-se, portanto, de uma fragilidade (a caducidade) que se

transformará em realidade. Noutros termos, já sei agora que, a

viver muitos anos, me tornarei caduca, doente, dependente.

Estas reflexões preliminares permitem-nos traçar o caminho da

nossa análise, que começa por uma reflexão sobre o “saber” da fra-

gilidade ou a fragilidade conhecida e prevista, que continuará com

uma breve descrição da “experiência concreta” e pessoal da fragili-

dade, para acabar com o “acompanhamento” da fragilidade.

1. O saber da fragilidade

O que caracteriza esta fase ou esta maneira de viver a fragilidade

é o seu aspecto teórico. Está certo que, já na infância, a criança

faz uma certa experiência da morte e da fragilidade, quer ao ver

os pais adoecerem ou os avós desaparecerem definitivamente da

vista. É a inquietação e a incompreensão que afectam, então, a

eclosão deste saber. Onde está a avó? Onde está o avô? Porque

é que não volta? Isso supõe que, para as crianças, é normal que o

que está vivo continue a viver sempre. Não é a vida que levanta o

problema, mas a sua cessação. Na maior parte dos casos, a criança

toma conhecimento da existência da morte por causa da morte

do outro. Esta morte torna-se então objecto de um saber, saber

que a criança irá interiorizar, mas de modo teórico.

A teoria oferece, aliás, um certo refúgio contra a angústia, que não

deixaria de surgir pela transformação do saber numa experiência

de maior proximidade com a morte. Noutros termos, saber que

se vai morrer não é muito incomodativo quando se sabe que se

trata de uma verdade meramente teórica à qual não corresponde

nada de imediatamente previsível.

Do mesmo modo, o tempo da juventude é

marcado pela relativamente fácil aceitação

dos riscos, como se as ameaças contra a

integridade física não ocupassem a linha de

frente da consciência. A morte, isso é para os

velhos, pensa-se então, e velhos são já todos

os adultos que têm mais de trinta e cinco ou

quarenta anos. É notável, também, que os jovens tenham a maior

dificuldade em distinguir as diferenças de idade entre quarenta e

sessenta e cinco anos, como se todas essas faixas etárias consti-

tuíssem a única categoria: a dos adultos idosos.

Longe está o tempo em que os monges viviam com uma caveira

sempre presente na sua mesa de trabalho, como se vê, por exem-

plo, nas pinturas de São Jerónimo ou de São Antão. Este hábito

parece-nos mórbido, porque toda a cultura presente nos afasta da

ideia da morte, em proveito de uma vida que é preciso cultivar e

desenvolver em todas as suas dimensões. Em contrapartida, é-nos

muito difícil integrar a ideia da morte no nosso projecto de vida,

ainda que esta ideia se faça cada vez mais presente, à medida em

que nos aproximamos da terceira idade.

Uma dificuldade surge, então, para o adulto: como viver com a ideia

da própria fragilidade e da morte certa sem recalcar este saber,

mas também sem o tornar obsessivo? É estranho. Já se ouviram a

este respeito duas teses opostas. Por um lado, é porque a existên-

cia humana é finita que o tempo das realizações humanas é tão

precioso, como se fosse apenas sob o horizonte da sua finitude e

... mas sei que nunca poderei

escapar às marcas

do envelhecimento...

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mortalidade que a existência recebesse o seu preço, o seu valor

existencial e a sua dignidade; nesta perspectiva, é um além da

finitude que tornaria a existência incompreensível.

Em oposição a esta tese, existe a filosofia escolástica, assim como

o pensamento cristão. Consideram que sem a vida que, de um

modo ou de outro, permanece “depois” da morte, embora de um

modo absolutamente não representável, a finitude desta vida não

faz sentido. À primeira tese, podemos perguntar se é o carácter

caduco das nossas ligações afectivas – amizade e amor – que as

torna tão preciosas. Mas na morte de um ente próximo, não será

que a nossa primeira questão é, a seu respeito: onde está ela,

onde está ele agora? O que perdura das nossas relações afectivas

mais profundas? Aqui intervém a segunda tese: é a abertura a um

além da morte que constitui o preço mais elevado desta vida. O

que é suposto nesta afirmação torna-se então claro: o desejo de

viver só tem sentido se a morte não lhe põe um fim irremediável

e absoluto. Uma vez mais, é preciso dizer que entre estas ideias

meramente teóricas e o seu impacto efectivo na existência con-

creta existe uma distância que hoje já não é automaticamente

percorrida.

Se a ideia da morte traz consigo a da fragilidade no seu momento

mais radical, não é contudo verdade que todo o saber da fragi-

lidade se condensa exclusivamente no da morte futura. Mas é

quase necessário fazer uma experiência concreta de fragilidade

para que a consciência desta se torne efectiva. Ora, a experiência

concreta não se limita ao confronto com catástrofes ou acidentes.

Por exemplo, tantos sabem que fumar favorecerá o aparecimento

do cancro do pulmão, o que não afasta muitas e muitos jovens do

cigarro; ou o número e a gravidade dos desastres de motos não

parecem tornar mais prudentes os motociclistas.

A ideia está presente, mas não pensamos nela precisamente na

altura em que deveria ter um impacto sobre os comportamen-

tos concretos. Os antigos retiros religiosos insistiam, de modo

muitas vezes aterrorizador, no medo do inferno. A finalidade era

precisamente a de tornar eficaz a mera ideia do castigo, tendo

em vista afastar a pessoa da tentação. Enunciada nos nossos

termos, esta ideia devia operar, ao nível da imaginação afectiva,

a ligação entre a ideia e o comportamento. Ora, quando se trata

de fragilidade e de vulnerabilidade é preciso constatar que estas

ideias não possuem por si próprias, na maior parte dos casos,

a força suficiente para alterar os comportamentos, quer sejam

eles comportamentos de prevenção, de ajuda, de retenção ou de

intervenção.

2. A experiência da fragilidade

Para compreender realmente a experiência da fragilidade, seria

necessário descrever o que é uma experiência em geral, tarefa

primordialmente filosófica. A experiência está longe de se limi-

tar ao que se entende habitualmente por experiência diária. Do

ponto de vista da forma, a experiência modifica parcialmente a

Weltanschauung, a visão do mundo de quem a vive. É o olhar

sobre o real, sobre a natureza, sobre outros seres humanos, sobre

Deus, sobre o sentido da vida, que está em questão e em movi-

mento na experiência. É possível, portanto, que um determinado

acontecimento presenciado por várias pessoas constitua uma

experiência para alguns e que deixe outros indiferentes, nem se-

quer minimamente afectados. Entendida neste sentido filosófico,

a experiência transforma o nosso posicionamento interior face

aos grandes desafios da existência.

O que é que nos leva a “experienciar” mais do que experimentar

− a fragilidade? Não é possível determinar teoricamente quais as

situações existenciais que nos fazem passar da teoria à prática.

Para alguns, será uma experiência da doença, doença do corpo

ou da mente (por exemplo, uma depressão nervosa). Para outros,

será o lento caminhar para uma idade mais avançada ou a tomada

de consciência da perda das forças devido à idade. Mas também

pode ser o contacto próximo com a pessoa que está à beira da

morte que nos faz também sentir a nossa fragilidade, como se a

“simpatia” com esta pessoa − no sentido etimológico de simpatia,

que é um “sofrer com” – nos reenviasse para nós próprios.

Se a experiência da fragilidade é, então, uma “situação” que nos

afecta ou na qual estamos mergulhados quase involuntariamente,

surge o desafio: como é que vamos reagir? É preciso aqui distinguir

duas espécies de experiência de fragilidade: aquela que vivemos

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sob o impacte de um sofrimento próprio (físico, mental ou espiri-

tual) que nos atinge, por assim dizer, directamente, e a experiência

induzida em nós pelo espectáculo ou pelo acompanhamento do

sofrimento vivido por outros. Não há dúvida de que a vulnerabili-

dade e o sofrimento constituem uma experiência da finitude.

Quando fala da finitude, a filosofia coloca-se espontaneamente na

dimensão ontológica da existência, isto é, na análise daquilo que

faz com que a existência humana seja aquilo que ela é. Assim, a

existência é finita (e as várias metafísicas no decurso dos séculos

tentam compreender o fundamento da finitude. Mas hoje é mais

uma “ética” da finitude que parece necessário desenvolver. O

que pode ser uma ética que incide na experiência da finitude ou,

reciprocamente, como é que se apresenta a vivência da finitude

ao ser submetida ao olhar ético?

Se a ética se interessa pelos actos humanos, a primeira questão

que se nos depara é a incidência da finitude nesses próprios ac-

tos. Como é que o ser humano vai activamente situar-se diante

da sua finitude? É, portanto, a reacção da pessoa à descoberta

da sua atitude ou ao confronto com ela e, mais precisamente,

com a proximidade da morteque importa olhar de frente. Mas é

preciso distinguir entre a finitude de quem vive numa situação de

sofrimento e a do seu acompanhante.

A aceitação da própria fragilidade, da vulnerabilidade sentida, por

assim dizer, na própria carne, não se faz automaticamente; ela

requer um assentimento, um consentimento que constitui uma

verdadeira actividade. Mas, enquanto acto próprio, este consen-

timento exige a nossa liberdade. Pode, com efeito, ser recusado;

não é, então, a situação de fragilidade que desaparece, mas é o

acto de reconciliação com ela que não está presente.

A consequência directa não se faz esperar: é a transformação desta

experiência de finitude, de fragilidade ou de sofrimento numa

experiência do absurdo. Para tais pessoas, a recusa torna-se então

rebelião, revolta contra o absurdo de uma existência que, tudo

somado, não valia e não vale a pena ser vivida. Não queremos

assim dizer que a existência não contém zonas ou segmentos

marcados – aparente ou realmente – pelo absurdo, mas que é a

totalidade da existência que aparece sob o véu do absurdo quando

cada um de nós não consegue reconciliar-se com a sua finitude,

isto é, quando a descoberta viva e dolorosa da nossa finitude não

é objecto de um acto de aceitação interior. Este acto é um acto

de natureza espiritual, um acto interior e livre, difícil, que não se

realiza automaticamente e que pode ser recusado. Mas quem tem

a capacidade de pouco a pouco o efectuar, encontra, em geral, a

paz consigo.

Quais são as razões que nos levam a esta aceitação de uma situa-

ção existencial que não podemos alterar? Será a mera resignação?

É possível, mas pode ser muito mais do que ela. Trata-se quase de

uma aposta sobre o sentido global da existência, porque muitas

vezes esta reconciliação interior tem de ser feita precisamente

quando este sentido global parece escapar à nossa sensibilidade

e à nossa razão. Mas dado que o ser humano vive a sua solidão

em comunhão com outros, é a presença dos outros que aqui se

torna também fundamental. O acompanhamento desempenha,

mais do que nunca, uma função primordial na vivência concreta

da vulnerabilidade humana.

A passagem da ideia teórica da fragilidade para a sua experiência

concreta implica que não me bloqueie interiormente, numa es-

pécie de denegação activa desta fragilidade. Ora, esta denegação

activa acontece de modo quase inconsciente – e bem compre-

ensível – no caso dos jovens, de que foram questão mais acima.

Poderíamos dizer que o peso da fragilidade forte faz com que,

para não ser aniquilado, o ser humano se bloqueie interiormente,

pensando que a doença ou a proximidade da morte é para os ou-

tros, não para ele próprio. A experiência concreta é então negada

e, por assim dizer, espontaneamente rejeitada. O confronto com

o acontecimento concreto que nos põe inevitavelmente diante da

nossa finitude e faz sentir a fragilidade na carne torna-se então

um tanto mais difícil.

O resultado importante ao qual chegamos merece, contudo, ser

sublinhado: a experiência viva da fragilidade e da finitude não é

necessariamente geradora de autodestruição interior ou de de-

sespero, ainda que seja, para o ser humano, o índice premonitório

da sua mortalidade.

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3. O acompanhamento da fragilidade

Ao considerar o caminho percorrido, observo um facto estranho:

a análise da fragilidade enquanto “saber” fez-nos entrar na “ex-

periência” da fragilidade e, do mesmo modo, a breve descrição

desta experiência viva já abriu a questão do acompanhamento

das pessoas vulneráveis.

Até agora, a nossa análise limitou-se à experiência da finitude vivida

pessoalmente enquanto experiência minha. Resta-nos encarar o

contacto imediato com a doença e a morte de uma pessoa, à me-

dida em que nos tornamos próximos do outro. Ora, a este respeito, a

primeira tese a desenvolver tem um enunciado lapidar, que merece

um comentário: quem se torna próximo, torna-se inevitavelmente

frágil e vulnerável.

Todos, cristãos ou não crentes, temos presente no espírito a pará-

bola do Bom Samaritano, que se encontra somente num Evangelho,

o de Lucas. Ora, este texto, que poderia ser considerado como

um grande texto da ética fundamental, também mostra que o

próximo não é, em primeiro lugar, aquele que de facto está numa

situação de proximidade comigo, mas o outro de que me aproximo

activamente. Esta interpretação tem o mérito de mostrar que a

proximidade não é uma situação, de facto, mas um acto, o que

não deve ser necessariamente compreendido de modo espacial,

mas de modo “interior”: aproximo-me interiormente quando me

deixo afectar pela presença do outro, frágil, doente ou moribundo,

e quando esta experiência de ser afectada suscita em mim uma

resposta activa.

O resultado principal ao qual chegámos merece ser repetido: quem

se torna próximo torna-se inevitavelmente frágil e vulnerável.

Compreendemos, então, que a experiência da fragilidade contém

algo de eminentemente ético: enquanto experiência, não significa

“passividade”, como se a experiência nos atingisse de fora como a

doença que nos apanha desprevenidos, mas actividade, aceitação

de uma relação. É verdade, contudo, que sentir-se frágil não é ne-

cessariamente uma experiência ética, tal como no caso em que,

de facto, somos passivamente vítimas físicas ou mentais do acon-

tecimento que nos atinge de fora. Mas esta experiência torna-se

ética quando, de certo modo, aceitamos tornar-nos próximos deste

acontecimento, interiorizando assim aquilo que, contra a nossa von-

tade (e, neste sentido, de fora), nos agrediu. Em termos filosóficos,

diremos então que o que era acontecimento tornou-se acto ético.

Esta tarefa é difícil e, para a levar a bom termo, é muito provável

que precisemos da ajuda de alguém que se aproxime de nós.

O filme Mar Adentro é duplamente ilustrativo desta dificuldade.

O tetraplégico Ramon não recebeu esta ajuda de fora senão por

parte de pessoas que “se aproximaram” efectivamente dele, mas

sob os auspícios da morte e não da vida. Por outro lado, ele não

teve a capacidade de se tornar “próximo” da sua própria situação,

senão para lhe fugir em direcção à morte. A nossa ideia não é

criticá-lo (será que, com efeito, no lugar dele, teríamos tido mais

força?), mas perceber que a assunção da fragilidade exige sempre

um acto ético e não consiste somente numa passividade face aos

eventos que, por definição, acontecem, sem termos, em geral, a

capacidade de os prever.

Que me seja permitido fazer um parêntese teológico, retomando

a parábola do Bom Samaritano. Os exegetas consideram esta pa-

rábola como uma narrativa que mostra como Jesus e como Deus

agem para com o ser humano; assim, o Bom Samaritano é a própria

figura de Deus descrita de maneira narrativa. Se, tal como dissemos,

o acto de se aproximar torna frágil quem se aproxima a então de

Deus ao tornar-se próximo do ser humano mostra a sua máxima

fragilidade; ora, esta ideia paradoxal é hoje em dia retomada pelos

teólogos que reinterpretam a partir dela a omnipotência divina.

Ser omnipotente, para Deus, não significará fazer tudo o que quer

num capricho irracional, mas ter a capacidade infinita de se tornar

próximo. É por isto que alguns teólogos afirmam que a omnipotência

(ou toda-potência) divina é, ao mesmo tempo, omni-im-potência

(ou toda-impotência). A figura de Cristo no caminho da cruz exprime,

então, adequadamente, esta assunção activa, por parte de Deus, da

fragilidade, que é somente o reverso da sua proximidade com o ser

humano. Mas, acrescentam os teólogos, é preciso ser todo-poderoso

para ter a capacidade de ir assim tão longe nesta via de aproximação.

A toda-potência, quando se refere ao amor verdadeiro, assume a

fragilidade de uma aparente toda-impotência, a qual implica, antes

de mais nada, o total respeito pela liberdade do outro.

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Mais do que um simples parêntese, esta passagem pela teologia

sublinha a força da ideia segundo a qual, não reside na perfeita

solidão (de quem se torna autarcicamente dono de si) , mas na

capacidade de assumir a fragilidade que provém do facto de

estar exposto à resposta livre de um outro ser. Nos termos de

Levinas, diremos que, em virtude de uma estranha reviravolta, a

verdadeira potência implica a aceitação de uma real fragilidade

e que a fragilidade assumida gera − ou mesmo é − uma autên-

tica potência, uma força espiritual. Aliás, esta conclusão está em

perfeita sintonia com a conclusão anterior, relativa à experiência

própria da fragilidade.

Mas será possível descrever melhor a fragilidade de quem (se pro-

põe acompanhar os doentes que, pela doença ou pelo sofrimento)

faz a experiência viva da fragilidade e da finitude humana? Tantas

vezes os seres humanos que enfermeiras e enfermeiros ou fami-

liares imediatos desejam ajudar estão confrontados com a prova

final da vida, com o seu cortejo de dores físicas − reumatismo,

perda da audição e enfraquecimento da visão, dificuldades respi-

ratórias, osteoporose etc. Ouvimos então surgir esta reflexão: será

mesmo que vale a pena viver se é para chegar a tantos sofrimen-

tos? Porque é que o Criador não programou uma vida sem dor,

um pouco como no mito do paraíso terrestre? Esta reflexão, que,

na verdade, tem sentido somente para quem se move na órbita

da fé, esquece que a narrativa de Adão e Eva não diz como é que

os nossos primeiros pais teriam acabado os seus dias no termo

da sua mais ou menos longa existência. Esta narrativa não tem

como sentido mais profundo responder a tais perguntas. Ela diz-

-nos somente que Deus não é o autor do mal moral. Então somos

reenviados para nós próprios para tentarmos descobrir o melhor

modo de acompanhar o sofrimento que invade em muitos casos

o final da vida humana.

Quase queria parar à beira desta exigência, porque se trata de

algo tão pessoal que cada um tem de buscar em si a resposta.

Em si sozinho? Talvez seja isto precisamente o erro. Poderíamos,

com efeito, recuperar a ideia da narrativa de vidas passadas, isto

é, a narrativa de pessoas que conhecemos e que já faleceram,

mas que, de uma certa maneira, nos deixaram o exemplo do seu

confronto com a morte. Não foram necessariamente pessoas

extraordinariamente santas, mas pessoas cujo percurso de vida,

até ao fim, nos encheu de paz e suscitou positivamente a nossa

admiração. Destas pessoas, podemos falar de tal modo que se

tornam para nós objecto de uma narrativa que nós fazemos de-

las, e esta narrativa acaba por nos inspirar e nos dar força. Estas

pessoas, de quem nós próprios elaborámos a narrativa existencial,

permitem-nos também acompanhar os outros, como se projec-

tássemos esta narrativa como possibilidade, para o moribundo, de

encontrar também o seu caminho de paz e de activa aceitação da

sua finitude. Não será mesmo assim que os que nos precederam

também continuam a ajudar-nos pelo seu exemplo? É verdade

que entre todos os exemplos possíveis, há um certo número de-

les que são exemplos negativos, exemplos para não imitar. Mas

o conjunto dessas narrativas particulares, que correspondem a

casos que conhecemos pessoalmente ou de que ouvimos falar

por amigos e colegas, acabam por constituir aquilo que arriscaria

chamar o nosso pequeno “evangelho” − pessoal. Para os cristãos,

este pequeno evangelho será um prolongamento do grande evan-

gelho, que também contém tantas narrativas que nos convidam a

inserirmo-nos nelas mesmas. Para os não cristãos, tratar-se-á de

um conjunto de casos que nos podem dar força para acompanhar

os que sofrem, sem sentirmos sozinhos o peso do seu sofrimento

e da sua angústia.

E, assim, julgo que podemos concluir. A fragilidade de quem acom-

panha a fragilidade do outro que sofre não precisa, ela também

não, de ser destrutiva ou de gerar a depressão nervosa. Pelo con-

trário, só pode ajudar e acompanhar quem resiste ao mergulho na

depressão e na autodestruição. A simpatia com o doente não se

mede pelo modo como sofremos sensivelmente com quem sofre.

Pois sofrer com quem sofre é uma actividade e atitude activa que

me integra numa cadeia de solidariedade que vem de mais longe

do que de mim própria (e que me leva mais longe também, que

esta pessoa entregue ao meu cuidado. Talvez seja isso o âmago

da intersubjectividade ética. Talvez seja também esta longa cadeia

de intersubjectividade ética que, mediante as narrativas das vidas

que evocámos acima, nos dê a maior força interior para acompa-

nhar, do melhor modo possível, a fragilidade do outro, tanto dos

outros que amo como dos que foram confiados a meu cuidado

profissional. oe

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ordem dos enfermeiros

Lucília Nunes, Manuela Amaral, Rogério Gonçalves, Sérgio Deodato

Membros do Conselho Jurisdicional

Neste VI Seminário, realizado dia 11 de Outubro de 2005, o

Conselho Jurisdicional pretendeu promover a reflexão ético-

-deontológica em torno do final de vida, temática escolhida

pela pertinência, pela relevância e pela importância que lhe é

atribuída nas questões colocadas face a esta circunstância da

prestação de cuidados. Associámo-nos à Semana Nacional de

Cuidados Paliativos, que decorreu de 8 a 14 de Outubro.

Na perspectiva da enfermagem, proteger e respeitar a dignidade

da pessoa surge como princípio fundamental. Valorizamos a

qualidade de vida no processo de morrer, a importância da

rede social e familiar de apoio à pessoa que vai morrer e con-

sideramos imperativo ético uma rede de cuidados continuados

e paliativos, assim como o acompanhamento psicológico e

espiritual.

Os enfermeiros têm deveres para com o doente terminal,

previstos no Código Deontológico, de “defender e promover o

direito do doente à escolha do local e das pessoas que deseja

o acompanhem na fase terminal da vida; de respeitar e fazer

respeitar as manifestações de perda expressas pelo doente em

fase terminal, pela família ou pessoas que lhe sejam próximas

e de respeitar e fazer respeitar o corpo após a morte.”

Relendo o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermei-

ros, enfermagem “tem como objectivo prestar cuidados de

enfermagem ao ser humano, são ou doente, ao longo do ciclo

vital, e aos grupos sociais em que ele está integrado, de forma a

que mantenham, melhorem e recuperem a saúde, ajudando-os

a atingir a sua máxima capacidade funcional tão rapidamente

quanto possível.” (4.º, 1.)

Parece-nos claro que existe uma configuração dos cuidados de

enfermagem como um prolongamento e uma substituição da-

quilo que as pessoas não podem, temporariamente, assegurar por

si próprias ou lhes é assegurado por aqueles que os cercam.

Sendo certo que aos enfermeiros compete a prestação de cuidados

ao longo do ciclo vital, decorre que acompanhamos as pessoas, as

famílias e os conviventes significativos nos processos de morrer.

E só nos últimos decénios se foi estabelecendo a noção de que

“há muito que fazer quando já nada se pode fazer”, isto é, há

muito a fazer do ponto de vista do acompanhamento, quando

nada existe a fazer do ponto de vista curativo.

Por isso se definem cuidados paliativos “enquanto acções em-

preendidas em diferentes planos (médico, psicológico, social,

espiritual) junto de um doente, após um diagnóstico de doença

incurável em estado terminal. São, pois, essencialmente, cuidados

de conforto global e que apelam a meios proporcionados”.

Neste contexto, o objectivo dos cuidados é obter melhor quali-

dade de vida e preservar, não a integridade corporal ou a saúde,

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VI Seminário cJ – Final de vida

conclusões

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ordem dos enfermeiros

mas a dignidade humana, que é essa possibilidade, para cada

pessoa, de, por intermédio da sua consciência, agir livremente e

autodeterminar-se.

Este tópico foi abordado na conferência Autonomia e Morte.

A autonomia da pessoa é hoje aceite como um princípio ético

basilar e deve ser discutida tendo como pano de fundo o sentido

da vida na relação com o Outro − analisar um possível direito

de dispor da vida (utilizando a eutanásia ou o suicídio assistido)

sem equacionar esta dimensão distorce a reflexão, limitando-a

ao subjectivismo isolado (aquilo que cada um poderá pensar

livremente, mas não humanamente).

De outra perspectiva, diríamos que o agir livre no âmbito da auto-

nomia individual consubstancia-se numa liberdade responsável. Os

actos, decididos livremente na consciência de cada um, originam

consequências para o próprio e para os outros, na medida das

relações estabelecidas. Deste modo, o exercício da liberdade não

ocorre de forma ilimitada, mas tendo em conta os limites impostos

pela desumanidade das consequências que podem originar.

Se falamos de uma autonomia cujo exercício se desenvolve

afastado da normal relação com os outros, sem ter em conta as

consequências nos outros com os quais vivemos, então não será

uma verdadeira autonomia.

Discutir se a autonomia individual permite a tomada de decisões

que, não tendo consequências (aparentes) para os outros, podem

prejudicar ou terminar a vida, inclui a reflexão sobre os actos que

provoquem a morte, como o suicídio, o suicídio assistido ou a

eutanásia. É nesta perspectiva da autonomia e da liberdade do agir

que a abordagem do eventual direito a morrer, enquanto titula-

ridade individual para livremente decidir dispor de si, não tendo

em conta o sentido que damos à vida humana, pode levar-nos a

conclusões que contemplem o exercício desse direito com base

numa liberdade sem fundamento verdadeiramente humano.

Nesta perspectiva, o exercício da autonomia não configura um

direito a morrer. Pode, todavia, distinguir-se do direito de morrer

com dignidade, que consideramos um direito humano.

Sendo a morte uma realidade biológica universal, ocorre em

qualquer momento da vida − realizando o percurso pela “Morte

no ciclo vital”, passando pela perspectiva pediátrica, do adoles-

cente e jovem adulto, do adulto e idoso, compreendemos que

existe tempo de morrer desde o tempo de nascer, pela finitude

e pela precariedade própria do ser humano.

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ordem dos enfermeiros

Sob a temática “Da finitude e da fragilidade humana”, na

conferência final, reflectiu-se sobre a inscrição da morte na

existência humana.

A presença dos outros na solidão de cada um aligeira o peso da

fragilidade. Temos a noção de que a experiência da fragilidade

nos afecta e nos desafia a reagir ou a agir no sentido de aceitar.

Pois que não aceitar a fragilidade humana seria viver o absurdo

− tenha-se, todavia, em conta que o tempo de morrer não é

nenhuma banalidade…

Da normalidade que era, antigamente, falar da morte, pas-

sou-se à vergonha e ao pudor que tornaram o falar da morte

quase indecoroso. Hoje, entende-se que a morte faz parte da

vida e é preciso conferir qualidade e dignidade aos processos

de morrer.

No enquadramento deontológico, os deveres dos enfermeiros,

no “respeito do direito da pessoa à vida durante todo o ciclo

vital” reportam-se a “atribuir à vida de qualquer pessoa igual

valor, pelo que protege e defende a vida humana em todas as

circunstâncias; respeitar a integridade biopsicossocial, cultural

e espiritual da pessoa; participar nos esforços profissionais para

valorizar a vida e a qualidade de vida; recusar a participação

em qualquer forma de tortura, tratamento cruel, desumano ou

degradante”. (Artigo 82)

Os enfermeiros assumem a defesa e protecção da vida e da

qualidade de vida, recusando posições extremadas como o são

a eutanásia e a distanásia (obstinação terapêutica).

Se se considera não existir diferença ética relevante entre não

aplicar uma terapia que pode prolongar artificialmente a vida

e retirar um tratamento que se tornou desproporcionado ou

inútil, é porque a pessoa se encontra incursa num processo

que, segundo o conhecimento actual, levará à morte. Assim,

não se determina o encurtamento ou a interrupção da vida

− limita-se a suspender tratamentos artificiais, inúteis e / ou

desproporcionados, que, na maior parte dos casos, provocam

sofrimento inútil ao doente.

Os enfermeiros acompanham os processos de morte dos doen-

tes e seus familiares em situações de emergência, urgência ou

de “morte anunciada”, vivenciando os sentimentos de perda e

luto, de tristeza no decurso dessa relação de cuidados.

Compete-lhes proporcionar acompanhamento e suporte, ha-

vendo uma preocupação efectiva dos enfermeiros em promover

a qualidade de vida no tempo de vida que resta, em garantir

cuidados básicos e paliativos, com respeito pela dignidade de

cada pessoa e no cumprimento das regras da ética e da deon-

tologia profissional.

Tendo o enfermeiro o dever de trabalhar em “articulação e

complementaridade” com os outros profissionais, realça-se a

importância dos processos de formação, de reflexão e debate

no seio das equipas que prestam cuidados no decurso do pro-

cesso de morte.

No sentido da valorização da qualidade de vida e do acompa-

nhamento, entende-se que, nos cuidados paliativos, há um novo

valor para a vida, que faz com que os gestos terapêuticos e de

conforto adquiram um significado próprio. Que se revalorize o

tempo de vida. oe

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