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1 MAURÍCIO DA SILVEIRA PICCINI "FIZ POR QUERER" - O PAPEL DAS ESCOLHAS DO JOGADOR NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO EM NARRATIVAS DE JOGOS DIGITAIS Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Orientadora: Dr. Vera Teixeira de Aguiar Porto Alegre 2012

FIZ POR QUERER - repositorio.pucrs.brrepositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/4185/1/000438420-Texto... · Quadro 3 – Nomes e descrição das etapas primárias da linha ... expandidos

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    MAURCIO DA SILVEIRA PICCINI

    "FIZ POR QUERER" - O PAPEL DAS ESCOLHAS DO JOGADOR NA

    CONSTRUO DO SENTIDO EM NARRATIVAS DE JOGOS DIGITAIS

    Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Orientadora: Dr. Vera Teixeira de Aguiar

    Porto Alegre

    2012

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    The hard must become habit.The habit must become easy.

    The easy must become beautiful.

    -- Doug Henning,ilusionista canadense

    (1947-2000)

  • 3

    RESUMO

    A presente tese de doutorado constitui-se na investigao do papel do jogador na

    construo de sentido em jogos de narrativa digital atravs da aplicao de

    conceitos de teoria da literatura. Embasa-se nas teorias literrias de Vladimir Propp,

    Claude Bremond, Algirdas Greimas e Tzvetan Todorov, nos conceitos de interao e

    hipertextualidade das reas de comunicao e informtica, nos estudos sobre os

    processos de leitura e nas estruturaes de jogo utilizadas por desenvolvedores de

    software de entretenimento. Apresenta a anlise do jogo Fallout 3 como testagem

    dos conceitos tericos envolvidos e formula derivaes tcnicas e propostas tericas

    da aplicabilidade desse entendimento sobre a construo de sentido da literatura, da

    comunicao, do desenvolvimento de jogos e do processo de aprendizagem.

    Conclui que o jogador no apenas atua como leitor, receptor de uma narrativa, mas

    interpreta o sistema de valores do jogo na busca do domnio das percias utilizadas

    de forma ldica, transformando a mecnica e a narrativa presente no jogo em

    material para sua prpria expresso.

    Palavras-chave: teoria da literatura, narrativa, jogos digitais, construo de sentido, leitura

  • 4

    ABSTRACT

    This thesis presents the investigation over the roll of the player on the construction of

    meaning in games with digital narratives through the application of concepts from

    literary theory. The works of Vladimir Propp, Claude Bremond, Algirdas Greimas, and

    Tzvetan Todorov, concepts of interaction and hypertextuality from communication and

    semiotics, and studies about the process of reading, and the structure of games used

    by developers of entetainment software were adopted as referencial to support the

    research. This volume presents the results of such concepts to analyse the computer

    game Fallout 3. It concludes that the player is not only the receptive reader of the

    narrative presented by the game, but becomes the interpreter of a value system in

    the quest for the attainment of skills, shapping the narrative and the mechanics of the

    game into material for his own expression.

    Palavras-chave: reading, narrative, digital games, making sense, reading

  • 5

    Lista de Ilustraes

    Figura 1 Sistema de atualizao de possibilidades de Bremond 20

    Figura 2 Encaixe de uma sequncia bsica na etapa de abertura de possibilidades de Bremond

    21

    Figura 3 Sistema de actantes de Greimas 22

    Figura 4 Imagem retirada apresentao do artigo Uma mquina de estados para Greimas (PICCINI, 2008b), arquivo pessoal

    23

    Figura 5 Grfico de tenso dramtica adaptada do artigo de LeBlanc (LEBLANC, 2006, p. 443)

    25

    Figura 6 - Reproduo traduzida da pirmide de Fullerton 35

    Quadro 1 Etapas introdutrias ao jogo (tutoriais) e respectivas descries 60

    Quadro 2 Etapas principais, etapas secundrias e descries da funo da etapa na construo narrativa.

    61

    Quadro 3 Nomes e descrio das etapas primrias da linha narrativa principal de Fallout 3 64

    Quadro 5 Conjunto de etapas da narrativa principal em sequncia, definidas pelos objetivos primrios e secundrios.

    65

    Figura 7 Ilustrao da progresso do tempo do jogador (no mundo externo ao jogo) em relao progresso do tempo dentro da narrativa

    83

    Figura 8 Exemplo de disposio de exerccios a serem executados para o aprendizado das operaes bsicas da matemtica

    84

    Figura 9 Exemplo de percurso do jogador ao utilizar sidequests em contexto de aprendizagem

    85

  • 6

    SUMRIO

    CONSIDERAES INICIAIS 7

    1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5

    PRINCPIOS CONCEITUAIS DO JOGO JOGO COMO ATIVIDADE HUMANA JOGO COMO CONSTRUO NARRATIVA JOGO COMO CONSTRUO DRAMTICO-NARRATIVAJOGO COMO INTERAO JOGO E ESCOLHAS

    121216242731

    2 2.1 2.2 2.3

    PRINCPIOS ESTRUTURAIS DO JOGO CONSTRUO DA NARRATIVA ATUALIZAO DA NARRATIVA ANLISE DA NARRATIVA

    39394554

    3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6

    ANLISE DO JOGO FALLOUT 3 DELIMITAO DO TEMA ETAPAS DA NARRATIVA ENCADEAMENTO DAS FUNES CONDICIONAIS DE PROGRAMAO TRANSIO DO OBJETIVO E DOS PAPIS FUNES DO JOGADOR DURANTE A PARTIDA

    59596569717376

    4 4.1 4.2 4.3

    INTERPRETAO E SUPERINTERPRETAO JOGO COMO SISTEMA DE VALORES JOGO COMO ESPAO PARA APRENDIZAGEM JOGO COMO FORMA DE EXPRESSO

    80808386

    CONSIDERAES FINAIS 89

    REFERNCIAS 93

    ANEXO A Descrio do jogo Fallout 3 ANEXO B CD multimdia contendo vdeos do jogo em andamento

    97107

  • 7

    CONSIDERAES INICIAIS

    Como objetivo geral, esta tese busca dar continuidade ao trabalho iniciado

    na dissertao de Mestrado do autor, quando foram formuladas as bases para um

    modelo de anlise especfico para narrativas de jogos digitais. De forma mais ampla,

    ambos os trabalhos visam expandir o ferramental terico da rea da literatura,

    adaptando-o ao processo interativo de construo da narrativa de jogos digitais.

    Alm da prpria validao das teorias da narrativa para os novos meios de narrao

    de histrias, entende-se tambm que, em pesquisas futuras, ser possvel

    reabsorver conceitos aplicados a essas narrativas digitais, de modo a testar os

    conceitos dentro da prpria teoria literria.

    Antes, atravs dos objetivos especficos, explora-se o papel do leitor na

    atualizao das possibilidades narrativas e na consequente construo dos sentidos

    da narrativa presente no jogo digital. Tem-se, ento, como objetivos especficos:

    aplicar o modelo terico para anlise da narrativa digital proposto na dissertao de

    Mestrado Por uma teoria das supercordas da narrativa (PICCINI, 2008a) no jogo

    Fallout 3; identificar, a partir da aplicao do modelo terico, o fio condutor das

    aes do jogo Fallout 3 e avaliar quais aes possuem causalidade obrigatria, ou

    seja, induzem construo de um sentido pr-determinado; demonstrar o papel do

    jogador na seleo dessas aes e, portanto, encontrar a parte do sentido do jogo

    que pode ser imputado ao jogador; e avaliar a utilidade da liberdade do jogador na

    construo de sentido para as diversas reas de aplicao dos jogos digitais.

    Os esforos aqui empreendidos contribuem para a expanso das

    fronteiras interdisciplinares, tendo em vista a organizao do conhecimento acerca

    dos jogos eletrnicos de um novo ponto de vista, aquele da teoria da literatura. O

    assunto j tratado pelas reas da comunicao e da semitica, por pesquisadores

    como Espen Aarseth, Gonzalo Frasca e Luiz Antnio Marcuschi, para anlise do

    meio hipertextual para a compreenso e elaborao de estratgias de criao

    textual e suas implicaes na relao do leitor com a mensagem interativa; da

    informtica, por Alison McMahan e Allen Varney, para a criao de jogos que

    proporcionem maior imerso do jogador com o ambiente virtual, atravs do

    desenvolvimento de tecnologia de realidade virtual e simulaes com tcnicas de

  • 8

    inteligncia artificial; da produo cultural e da educao, por Lynn Alves e James

    Paul Gee, para aplicao dos jogos eletrnicos e sua influncia no imaginrio infantil

    e na construo de conhecimento.

    A adio da investigao atravs dos preceitos da teoria da literatura

    proporciona um desenvolvimento tanto no campo da informtica, na rea de estudos

    de jogos, quanto da prpria teoria da literatura. Por enfocar a leitura como parte do

    desenvolvimento humano e ter j embasamento no tratamento da permeabilidade

    entre texto literrio, imagem, msica e demais formas artsticas, a teoria da literatura

    possibilita o enfoque dos aspectos que tornam a leitura atrativa para jovens,

    consequentemente, que visam formao de jovens leitores interessados nesse

    meio como forma artstica, alm de entretenimento. A integrao do jogo eletrnico e

    do hipertexto ao mbito dos trabalhos da teoria da literatura promove a abertura de

    seus conceitos tericos para a estrutura da narrativa contempornea emergente.

    Da teoria da literatura e dos estudos da narrativa, este trabalho utiliza-se

    das teorias de Vladimir Propp quanto s delimitaes de etapas e personagens; de

    Claude Bremond quanto aos encaixes, combinaes e interrelaes das aes

    narradas; de Algirdas Greimas quanto s relaes entre os atores da narrativa, seus

    objetivos e distribuio de poder e de Tzvetan Todorov quanto composio dos

    sentidos do texto. Para efeito desta tese, entende-se narrativa como a

    representao simblica de uma sequncia de aes ligadas por causalidade, com

    base nos resultados dos estudos tericos citados, a partir dos contos tradicionais (e

    expandidos para os textos novos que mantm a mesma estrutura).

    Para a compreenso das propriedades dos jogos, so selecionados

    aspectos distintos vindos das reas da antropologia e da sociologia, atravs de

    Johan Huizinga e Roger Caillois, que caracterizam a relao do homem com os

    jogos e o que o homem obtm de retorno deles; das reas da informtica e

    desenvolvimento de jogos, atravs de Chris Crawford, Jesper Juul e Janet Murray,

    que possuem experincia na criao de jogos de computador e em pesquisa

    acadmica sobre o uso de jogos em situaes de aprendizagem; da rea da

    comunicao, com as formas de tomada de deciso de Tracy Fulllerton e os

    exemplos de David Freeman sobre a elaborao de emoes em narrativas

    interativas.

  • 9

    As ferramentas presentes na base terica so utilizadas para anlise do

    ttulo Fallout 3, jogo de computador disponvel tanto para plataformas de

    computadores pessoais com Sistema Operacional Windows, como para os

    videogames de ltima gerao Playstation 3 e XBOX 360. O jogo selecionado

    possui enredo extenso e segue um modelo de Role-Playing Game (RPG)1, no qual o

    jogador, alm de controlar uma personagem, deve fazer escolhas para guiar o

    desenvolvimento de atributos dessa personagem (como fora, velocidade, carisma,

    inteligncia), bem como interagir com elementos narrativos (ambientes virtuais,

    motivaes implcitas e explcitas e personagens que contam uma histria), para

    conseguir navegar na estrutura do jogo.

    Alm da experincia do autor desta tese com o prprio jogo, so utilizados

    walkthroughs (guias e colees de dicas publicadas na internet que contm

    instrues passo-a-passo para a soluo de um jogo) para conferncia das

    informaes, bem como para, dada a oportunidade, comparar as percepes sobre

    o jogo pelos autores desses guias.

    O relato do desenvolvimento deste projeto distribui-se em quatro

    captulos. No primeiro captulo, so apresentadas definies de jogo do ponto de

    vista antropolgico e sociolgico, suas aproximaes com definies de leitura e

    interpretao de texto e a distino entre dois conceitos quanto interatividade. O

    jogo visto inicialmente como atividade humana regrada e arbitrria. Essa atividade

    desenvolve-se como construo narrativa e dramtica, em que os jogadores

    assumem papis e experimentam a tenso consequente do desenrolar de suas

    aes. Sendo esses leitores/jogadores agentes das prprias aes da narrativa, so

    revistos os conceitos que regem a interao entre jogadores e o prprio jogo.

    No segundo captulo, apresentada uma formulao do conceito de

    narrativa que rene as interaes possveis dentro de um jogo com aquelas

    disponveis ao leitor no sentido de preenchimento do texto literrio com seu prprio

    imaginrio. Os conceitos de leitura e de composio da narrativa so atualizados,

    1 Normalmente traduzido como jogo de interpretao de personagem, RPG um tipo de jogo em que a construo das personagens parte essencial da evoluo do jogo, no bastando aos jogadores completar os objetivos dados pelo jogo, mas complet-los agindo, pensando, atuando conforme os poderes e limitaes de suas personagens.

  • 10

    tomando-se por guia as noes de preditibilidade leitora2 e de vazios literrios3, para

    incorporar a interatividade e o feedback do leitor. Nesse captulo, so elencados

    tambm os passos para a anlise a partir do modelo proposto pelo autor desta tese

    em dissertao de Mestrado.

    No terceiro captulo, o jogo Fallout 3 analisado para identificar o modo

    como esse preenchimento dos sentidos do texto afetam e so afetados pelas

    decises do jogador. A anlise segue os passos propostos no segundo captulo,

    reconstruindo a estrutura narrativa luz das definies de jogo e interao

    presentes no primeiro. Os diversos nveis de anlise so sobrepostos at a obteno

    de uma descrio dos espaos abertos para decises do jogador enquanto leitor e

    agente da narrativa.

    E, no quarto captulo, a partir da anlise, so avaliadas as interpretaes

    possveis e suas extrapolaes para a elaborao de uma viso do processo de

    construo de sentido pelo jogador. O jogo passa a ser entendido tendo o pacto (da

    narrativa ou das regras do jogo) como porta de entrada do leitor no mundo

    diegtico4. Em seguida, esse mundo serve como campo de treinamento, um espao

    onde o leitor expande sua zona de conforto. Por fim, sendo o jogo compreendido

    como matria para criao de significado pelo jogador, o leitor passa a produtor,

    expressando-se atravs de suas aes sobre o jogo.

    Uma vez que esse trabalho uma elaborao dos fundamentos da

    aproximao dos papis de leitor e jogador, nas consideraes finais, so sugeridos

    focos para pesquisas futuras e aplicaes dos conceitos aqui construdos. Em

    anexo, para facilitar a visualizao do jogo como visto pelo jogador, segue um

    resumo descritivo de Fallout 3 (ANEXO A), seu modo de integrao, combate e

    narrativa, e um CD com vdeos (ANEXO B) apresentando cenas do jogo em primeira

    2 A preditibilidade (BORBA, 2008) a capacidade do leitor de completar o texto enquanto o l, preenchendo espaos lingusticos criados pela tcnica de escrita do autor (omisses para criar suspense ou elipses sintticas, por exemplo) ou pelo desconhecimento de uma palavra usada (obrigando o leitor a criar uma hiptese para seu significado). Conforme a autora, a leitura no uma atividade meramente linear, mas um processamento em paralelo de diversos nveis atravs de diversos processos lingusticos que se alteram conforme o objetivo da leitura.

    3 Vazio literrio a expresso utilizada por Wolfgang Iser para se referir a intervalos ou lacunas do texto. Para Iser, o texto literrio distinto do texto no literrio por possuir espaos para a interpretao do leitor. Esses espaos no so falhas do autor, mas so indutores da leitura, permitindo que cada leitor atinja certa interpretao potencial do texto que lhe cabe por sua disposio individual. (ISER, 2011)

    4 Termo utilizado por Gerard Genette para distinguir o mundo existente dentro dos limites da narrativa (chamado diegtico) daquele que o leitor possa conhecer como mundo real fora da narrativa (extradiegtico). (GENETTE, 1980)

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    pessoa e a sequncia de animao final do jogo, que apresenta ao jogador o epilogo

    da histria.

  • 12

    1 PRINCPIOS CONCEITUAIS DO JOGO

    1.1 JOGO COMO ATIVIDADE HUMANA

    Segundo Johan Huizinga (1955), historiador holands, em sua obra

    Homo ludens, publicada em 1938, jogo uma atividade voluntria exercida dentro

    de certos e determinados limites de tempo e espao, segundo regras livremente

    consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotada de um fim em si mesma,

    acompanhada de um sentimento de tenso e alegria e de uma conscincia de ser

    diferente da vida cotidiana.

    So pontos-chave para a compreenso do conceito de jogo no presente

    trabalho:

    arbitrariedade das regras todos os jogadores devem ter conscincia de

    que esto em um jogo e devem estar em comum acordo sobre o sistema

    de regras a ser utilizado; dessa forma, nenhum jogador pode ser forado

    a jogar;

    finitude do tempo todo jogo tem um comeo e um fim definidos no

    tempo. As regras de definio de tempo devem ser conhecidas por todos

    os participantes. Os eventos ocorridos antes do incio e depois do trmino

    so desconsiderados para fins de jogo;

    finitude do espao todo jogo tem limites espaciais. Quem estiver fora

    das linhas demarcadas como limite ser desconsiderado para fins de

    jogo;

    representao de papis todo jogador representa um papel no jogo,

    pois participa dele como parte de si prprio e no como o todo;

    obrigatoriedade das regras as regras de um jogo no podem ser

    modificadas, pois tal mudana transforma um jogo em um outro.

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    Roger Caillois (1990), em obra publicada em 1958, Os jogos e os

    homens, especifica a definio de jogo classificando-o em grupos de atividades que

    podem ser mais ldicas ou mais regradas. A essas qualidades d os nomes,

    respectivamente, de paideia e ludus.

    Paideia a qualidade de ser sem regras, livre de restries. A sequncia

    das atividades dentro do jogo desenvolvida conforme a partida jogada. J ludus

    a qualidade de ser bem regulamentada, no s havendo muitas regras, mas

    regras que restringem aes legais de ilegais, controlando as sequncias

    possveis de aes e mesmo as estratgias a serem desenvolvidas pelos jogadores.

    Alm dessa escala de regras, Caillois categorizou os jogos pelas

    propriedades que definem a mecnica do jogo e que so exploradas durante as

    partidas. As categorias se chamam agon (oposio), alea (sorte), mimicry (mscara),

    e ilinx (vertigem).

    Agon o tipo de jogo que coloca jogadores em posies opostas,

    podendo ser traduzido como competio. Fazem parte desta categoria os jogos em

    que cada jogador deve superar os outros jogadores, ao invs de superar apenas um

    objetivo comum (por exemplo, xadrez, futebol e boxe). Alea a classificao para

    jogos de sorte, normalmente definida atravs de um instrumento (moedas, roleta,

    dados) que formalize essa aleatoriedade. Mimicry so as simulaes, jogos que se

    baseiam em imitar o comportamento de outras pessoas, animais ou personagens.

    Note-se que teatro est aqui relacionado como jogo, pois a palavra jogo contm

    as mesmas funes rituais propostas anteriormente por Huizinga (atores e

    espectadores, unidos pelas regas do espetculo teatral, comprometem-se a tomar

    os atos das personagens como verdadeiros). Por fim, Ilinx indica os jogos em que

    perder o domnio do prprio corpo e depois retomar esse domnio so as atividades

    principais. Ilinx so os jogos que geram vertigem ou causam algum tipo de medo no

    jogador, como medo de altura e de cair, ou simplesmente ficar tonto depois de girar

    muitas vezes.

    Caillois define jogo (no caso, o verbo jouer, definindo o ato de jogar) como

    uma atividade essencialmente:

    livre entendida como no obrigatria;

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    separada pois possui limites no tempo e no espao;

    incerta cujo resultado no pode ser definido antes de a atividade

    ocorrer;

    improdutiva no cria novos elementos, valores ou riqueza, permitindo,

    no mximo, pode haver troca de objetos entre os jogadores;

    governada por regras definida sob orientao de convenes entre os

    jogadores e suspendendo as leis ordinrias do mundo exterior ao jogo;

    faz-de-conta os jogadores compreendem que um jogo e que as aes

    tomadas durante o jogo e dentro de seus limites fazem parte de uma

    segunda realidade.

    Alm da definio de jogo do ponto de vista de atividade social, h ainda

    a necessidade de definir a dinmica de jogo, ou seja, como as regras funcionam e,

    mais importante, como elas podem ser descritas e entendidas. Em oposio s

    descries humansticas do jogo e do ato de jogar, existe a abordagem matemtica

    e informacional dos jogos e suas regras. A rea de pesquisa conhecida pelo nome

    Teoria dos Jogos faz parte da matemtica e tem diversas aplicaes em reas

    como Administrao e Contabilidade, chegando poltica internacional, para servir

    como modelo para simulaes de comportamento de mercados.

    A principal diferena na abordagem , alm do carter formal, a

    possibilidade de tratar como jogo atividades no compreendidas como tal pelo

    pblico e pelos jogadores. Assim, a conscincia do ato de jogar, por parte dos

    jogadores, no obrigatria. Por exemplo, so considerados jogos, para fins de

    modelagem matemtica, a disputa comercial pelo pblico que compra pes caseiros

    em mercearias de cidades pequenas e a concorrncia entre emissoras de rdio pelo

    pblico que ouve msica sertaneja das 16h s 17h durante a semana, bem como a

    troca de clientes entre mdicos de especialidades diferentes.

    Para termos de simulao matemtica, um jogo no competitivo ou

    cooperativo por si, mas pode ser abordado de forma competitiva ou cooperativa

    entre os jogadores. O comportamento dos jogadores deve ser escolhido atravs de

  • 15

    avaliaes e selees das estratgias possveis. Em alguns casos, pode ser melhor

    competir e, em outros, cooperar. Por exemplo, as mercearias podem definir que uma

    delas vende pes s segundas, quartas e sextas e a outra s teras, quintas e

    sbados. Ou, talvez, selecionem que uma delas deve vender pes mais salgados e

    a outra, mais doces. Dessa forma, distribuem os ganhos em vez de competirem

    pelos mesmos recursos.

    O principal conceito para a compreenso da modelagem matemtica do

    jogo a de melhor escolha. Tem-se aqui um exemplo: duas irms devem repartir

    um bolo, uma metade para cada uma. Como fazem para que o bolo seja repartido

    da forma mais justa possvel? Se a mesma irm corta o bolo e escolhe qual metade

    ser a sua, ela pode cortar uma fatia maior e escolher essa mesma fatia. Assim, a

    outra irm fica com a menor parte. Obviamente, nenhuma das irms permitir que a

    outra corte e escolha a metade do bolo. Elas precisam, ento, comprometer uma

    ao a cada uma. Dessa forma, seja qual irm cortar o bolo, ela o cortar da forma

    mais prxima metade possvel, pois sabe que outra irm ir escolher a maior parte

    para si. Ou seja, nesse jogo especfico, a competio entre as irms atinge um ponto

    em que elas trabalham em direo ao maior bem comum.

    So, portanto, termos importantes para a compreenso do jogo do ponto

    de vista matemtico5:

    cooperatividade jogos cooperativos so aqueles em que os jogadores

    podem se comprometer uns com os outros (so obrigados a seguir pactos

    entre eles); jogos no cooperativos so aqueles em que os jogadores no

    se comprometem uns com os outros (mesmo que faam pactos, no so

    obrigados a segui-los);

    simetria jogos simtricos so aqueles em que todos os jogadores

    podem ganhar e perder de forma equivalente uns aos outros; caso um

    dos jogadores tenha chance de sofrer mais danos ou receber mais

    recompensa que os demais, o jogo dito assimtrico;

    5 O modelo matemtico para jogos aceito pela comunidade acadmica, no estando em discusso. Portanto, a referncia aqui para uma obra que possui a descrio reunida dos conceitos tratados, evitando a citao de cada um dos autores que definiram os termos individualmente. A descrio aqui presente pertence ao artigo de Poundstone (2006).

  • 16

    simultaneidade jogos simultneos ocorrem quando os jogadores

    precisam definir suas aes todos ao mesmo tempo, sem saber qual ser

    a ao dos outros; caso um deles seja capaz de ver a ao do outro

    jogador antes de definir sua estratgia ou os jogadores atuem

    alternadamente (jogador A, depois jogador B, depois jogador A etc.), o

    jogo chamado sequencial;

    informao perfeita jogos de informao perfeita so aqueles em que os

    jogadores podem saber todos os seus movimentos j feitos e os

    movimentos que seus adversrios j fizeram at um dado momento no

    jogo; se alguma informao se perde ou ocultada durante a partida, o

    jogo de informao imperfeita;

    informao completa jogos de informao completa so aqueles em

    que todos os jogadores sabem os valores de recompensas (e dados) de

    cada ao; se alguma ao tem recompensa indefinida ou oculta, o jogo

    considerado de informao incompleta.

    1.2 JOGO COMO CONSTRUO NARRATIVA

    O modelo de construo narrativa aqui utilizado uma ampliao a partir

    da pesquisa apresentada em Dissertao de Mestrado pelo autor desta tese. Tal

    modelo parte do pressuposto de que a narrativa pode ser segmentada em unidades

    menores identificveis para posterior reordenao ou mesmo substituio por

    segmentos de outras narrativas. Assim, possvel comparar esse tratamento da

    narrativa com os clculos e formulaes prprios do computador e do hipertexto. O

    desmembramento da narrativa em funes e personagens segue o modelo dos

    estudos formalistas de Vladimir Propp (1984), publicados originalmente em 1928,

    influenciando as bases do Estruturalismo. A reconstruo das partes em uma nova

    narrativa obedece aos modelos de Claude Bremond, para as sequncias, e de

    Algirdas Greimas, para as personagens, ambos devedores do Formalismo.

    Propp segmentou os contos populares russos em sequncias menores de

    aes dependentes de seus agentes e de sua posio na histria. Da mesma forma

  • 17

    que textos so separados em frases e frases em palavras, Propp define os trechos

    intercambiveis da narrativa como funes e, apesar de diferenas na descrio e

    na apresentao, classifica personagens fixos que se repetem ao longo dos diversos

    contos maravilhosos6. Personagens so os agentes das aes apresentadas na

    narrativa. Possuem qualidades especficas e podem ser reconhecidos facilmente

    nas diversas formas em que aparecem nesses textos.

    A seguir, tem-se uma demonstrao de como o pesquisador organiza seu

    modelo narrativo. As aes ocorrem em quatro contos diferentes:

    O rei d uma guia ao destemido. A guia leva-o para outro reino.

    O velho d um cavalo a Sutchenki. O cavalo leva-o para outro reino.

    O feiticeiro d a Ivan um barquinho. O barquinho leva-o para outro reino.

    A filha do Czar d a Ivan um anel. Moos que surgem do anel levam Ivan para outro reino.

    Propp elimina as personagens:

    O _____ d uma _____ ao _____. A _____ leva _____ para outro reino.

    O _____ d um _____ a _____. O _____ leva _____ para outro reino.

    O _____ d a _____ um _____. O _____ leva _____ para outro reino.

    A _____ d a _____ um _____. _____ levam _____ para outro reino.

    Depois, agrupando-as por seu papel, o autor renomeia-as:

    O (MANDANTE) d uma (OBJETO MGICO) ao (HERI). A (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.

    O (MANDANTE) d um (OBJETO MGICO) a (HERI). O (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.

    O (MANDANTE) d a (OBJETO MGICO) um (HERI). O (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.

    A (MANDANTE) d a (OBJETO MGICO) um (HERI). (OBJETO MGICO) levam (HERI) para outro reino.

    6 A expresso contos maravilhosos caracteriza o tipo de narrativa estudado por Propp, sendo utilizada no ttulo da traduo da obra do autor para a lngua portuguesa (Morfologia do conto maravilhoso).

  • 18

    Repetindo essa simplificao, Propp obtm sete personagens:

    AGRESSOR

    DOADOR

    AUXILIAR (Adjuvante)

    PRINCESA (e seu pai)

    MANDANTE (Rei)

    HERI

    FALSO HERI

    O objeto mgico indicado anteriormente no personagem, mas algo

    que o heri deve conquistar, sendo essencial para o desenvolvimento da narrativa e

    ainda smbolo de crescimento da personagem principal, que adquire poder atravs

    de alguma prova. Tambm so recorrentes a presena de mensageiros e a

    descrio de, pelo menos, dois territrios: a terra onde o heri inicia sua jornada e

    uma outra onde ele deve ser provado em confronto com o agressor. Mas nenhum

    desses caracterizado como personagem, uma vez que no participa do avano

    das aes, apenas contribui para que uma das sete personagens o faa.

    O sistema de funes de Propp cumpre papel importante, ao demonstrar

    o funcionamento da estrutura na narrativa, e serve de apoio para os formalistas

    tratarem das relaes entre forma e sentido. No entanto, a existncia de 31 funes

    com fortes interdependncias sintticas torna o modelo baseado nos contos

    populares russos muito custoso para ser usado e pouco flexvel em comparao

    com estruturas narrativas mais modernas. A partir dele, vrios estudiosos propem

    simplificaes adicionais.

    Claude Bremond (1973), em artigo original de 1966, parte exatamente do

    estudo da parte mais penosa do modelo de Propp, a construo das sequncias. No

    entando, diferente do anterior, Bremond prope no a obrigatoriedade das ligaes

    entre as funes, mas a possibilidade delas. A ligao entre as funes ocorre como,

    pois, consequncia da narrativa, e no o contrrio. Apesar de no tratar de casos

    especficos, como Propp, Bremond consegue em suas sequncias, encaixes e

  • 19

    emparelhamentos narrativos apresentar a evoluo das personagens

    (melhoramentos e degradaes) em relao a seus objetivos.

    O modelo de Bremond segue quatro regras iniciais para fundar-se:

    o tomo narrativo continua sendo a funo, como descrita por Propp;

    o agrupamento elementar constitudo por trs funes, sendo a primeira a abertura das possibilidades, a segunda, o processo de atualizao de uma das

    possibilidades e a terceira, a possibilidade atualizada;

    por se tratarem de possibilidades, as sequncias no so pr-estabelecidas, e as funes nelas se relacionam em forma de rvore, encaixando funo de

    objetivo, de atualizao e de fim (a primeira funo apresenta o objetivo do heri

    abrindo as possibilidades de ao, a segunda seleciona uma das possveis

    aes do heri para atualiz-la e a terceira conclui o sucesso ou a falha do heri

    em atingir seu objetivo);

    as sequncias bsicas podem, ento, ser combinadas para criar sequncias complexas, por encadeamento sucessivo (a concluso de uma sequncia

    incio de outra), enclave (uma sequncia ocupa o papel de funo de outra

    sequncia maior) ou emparelhamento (a funo de uma personagem

    corresponde a uma funo oposta de outra personagem).

    O sistema de atualizao das possibilidades da sequncia elementar

    acontece conforme esta imagem:

  • 20

    Figura 1 Sistema de atualizao de possibilidades de Bremond

    Para exemplificar o enclave, uma sequncia bsica colocada no lugar

    da etapa de abertura de possibilidades, conforme a figura a seguir:

  • 21

    Figura 2 Encaixe de uma sequncia bsica na etapa de abertura de possibilidades de Bremond

    A partir dessas regras, Bremond indica que h necessidade de sucesso

    (do contrrio, haveria descrio, deduo ou efuso lrica) e integrao entre as

    funes (do contrrio, haveria apenas cronologia). E deduz que, para haver

    narrativa, h a necessidade de interesses humanos, porque somente por relao

    com um projeto humano que os acontecimentos tomam significao e se organizam

    em uma srie temporal estruturada (BREMOND, 1973, p.113).

    Na mesma linha de pensamento de Bremond, Algirdas Julius Greimas

    (1973), tambm na dcada de 1960, prope um sistema de relaes entre os atores

    presentes na narrativa literria. Tambm esse sistema parte das personagens

    sugeridas por Propp e sistematiza-as para um conjunto de obras maior que os

    contos maravilhosos russos estudados. Mais do que o papel das personagens na

    obra, o sistema de Greimas baseia-se em uma relao sinttica e relativa das

    personagens, semelhante relao das palavras em uma frase.

  • 22

    O esquema de Greimas indica trs oposies: sujeito e objeto, destinador

    e destinatrio, adjuvante e oponente. Em relao ao modelo de Propp, pode-se

    cham-los respectivamente de heri e objetivo, mandante e mandatrio, ajudante e

    oponente. Cada oposio encaixa-se em um eixo diferente do espao da narrativa,

    criando trs linhas ortogonais. Esse esquema pode ser aplicado a cada uma das

    funes dentro de uma narrativa ou narrativa inteira. , assim, uma descrio

    sincrnica, ao contrrio da descrio da narrativa por sequncia de aes.

    Para aplicar a proposta, necessrio, primeiro, identificar o sujeito.

    Iniciando como o esquema frasal, o sujeito quem age na transformao de uma

    dada funo narrativa, o heri de Propp, por exemplo. O objeto o alvo da

    transformao iniciada pelo sujeito. Adjuvante a personagem que auxilia o sujeito

    na realizao da ao, e opositor a que impede ou dificulta a realizao da

    mesma. Por fim, destinador a personagem que demanda a ao do sujeito,

    enquanto o destinatrio aquele a quem o resultado da ao se destina. A Figura 3

    apresenta o sistema de actantes proposto por Greimas:

    Figura 3 Sistema de actantes de Greimas

    Da mesma forma que as aes descritas conforme Bremond so relativas

    aos pontos de vista de cada personagem, a escolha do sujeito do esquema de

    Greimas modifica toda composio. Ou, ainda, como ser visto adiante, a mudana

    do ponto de vista da personagem, ao longo da narrativa, tambm cria um esquema

    diferente, de acordo com sua percepo do mundo a sua volta, pela troca de seus

    chefes ou aliados e assim por diante.

    Cabe resgatar a origem da notao proposta pelo autor desta tese e

    apresentada no Simpsio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital/SBGames de

    2008 relacionada ao sistema de actantes de Greimas. A notao, para assimilar os

    termos dos jogos de computador, foi desenhada da seguinte maneira, conforme

    apresentado na Figura 4:

  • 23

    Figura 4 Imagem retirada apresentao do artigo Uma mquina de estados para Greimas (PICCINI, 2008b), arquivo pessoal

    Conforme a notao, o objetivo do jogo PAC-MAN percorrer o labirinto

    inteiro. Para tal, h uma isca dada ao jogador, que precisa que sua personagem

    coma bolinhas coloridas ao longo do labirinto. Essa isca tanto indica ao jogador o

    que deve fazer como marca os caminhos j percorridos por ele. O auxlio recebido

    pelo jogador apresentado no jogo na imagem de plulas que aumentam seu poder.

    Os inimigos tomam forma de fantasmas estereotipados. Mesmo tendo sido

    publicado pela primeira vez no ano de 1980, a estrutura do jogo PAC-MAN, como

    ser demonstrado ao longo da pesquisa, ainda repetida nos jogos mais modernos.

    A diferena principal a complexidade dos objetivos ampliada atravs do modelo de

    encaixes, enclaves e emparelhamentos na terminologia de Bremond.

    Nas ltimas dcadas, o que vem atraindo as diversas reas de

    conhecimento em direo aos jogos no so exatamente as propriedades inerentes

    aos jogos, mas a possibilidade de transform-los em programas de computador.

    Durante o processo de programao dos jogos computadorizados, seus

    mecanismos so analisados e copiados (ou simulados) na forma de outras

    sequncias de software menores. Assim, no s so feitas hipteses para definir

    como um jogo funciona, mas essas hipteses so testadas em forma de programas

    de computador que tentam imitar o funcionamento esperado dos jogos.

  • 24

    Essa experimentabilidade (trialability), aliada ao crescente acesso ao

    computador como elemento apoiador as atividades de ensino e de aprendizagem,

    especialmente potenciaizados pelo uso da rede (internet), torna os jogos de

    computador uma possibilidade para as mais diversas aplicaes, quer para pesquisa

    sobre sociabilizao de comportamento ou para apresentao de narrativas

    hipertextuais ou outros gneros (com foco nos jogadores que entram em rede e se

    comunicam atravs da internet).

    O Brasil conta com diversas pesquisas sobre vrias dessas abordagens.

    A professora Lynn Alves (2005) vem trabalhando com jogos do ponto de vista

    pedaggico e sociolgico. Em seu livro Game over: jogos eletrnicos e violncia, ela

    estuda os jogos de computador como meio de propagao de linguagem. Nesse

    caso, o jogo considerado meio de divulgao de linguagens sociais. A violncia

    tratada como linguagem. Os sons e as imagens funcionam como forma de

    comunicar um conjunto de valores socioculturais ao jogador, e ele os utiliza para

    interagir simbolicamente com esses valores. O jogo passaria a ter uma funo

    catrtica. J os pesquisadores Cristiano Pinheiro e Marsal Branco, da Federao de

    Estabelecimentos de Ensino Superior em Novo Hamburgo/FEEVALE, atuam na

    busca de uma formulao semitica especfica do jogo digital atravs da

    decomposio dos jogos em camadas tipolgicas (semelhantes s funes de

    Jakobson7) e em unidades ldicas mnimas os ludemas.

    O ludema a unidade mnima do jogo, ponte entre a ao do interator e o

    resgate das regras do sistema ludolgico (atualiza os desafios que at ento existem

    apenas em potncia) e do sistema narrativo, do qual converte as informaes e

    transforma em experincia de jogo. a presena dos ludemas que garante a

    existncia de um jogo. (PINHEIRO e BRANCO, 2008, p. 73).

    1.3 JOGO COMO CONSTRUO DRAMTICO-NARRATIVA

    Para a abordagem do jogo sob os aspectos do drama, Marc LeBlanc

    (2006) associa o jogo ao teatro, indicando a tenso dramtica como elemento de

    7 O linguista russo Roman Jakobson prope seis funes, de acordo com o foco da comunicao em suas seis dimenses: chama de funo refencial, quando o foco est no contexto; esttica, quando o foco est na prpria mensagem; emotiva, quando o foco o emissor da mensagem; conativa, quando o foco o receptor da mensagem; ftica, quando o foco est no canal; e metalingustica, quando o foco est no cdigo utilizado para transmitir a mensagem.

  • 25

    comparao. Para cri-la corretamente em um jogo, deve-se tratar de dois fatores

    especificamente: incerteza e inevitabilidade. Incerteza a sensao de que o

    resultado do jogo ainda desconhecido, ou seja, qualquer jogador pode vencer ou

    perder. Inevitabilidade a sensao de que a competio est se direcionando a um

    fim, de que o resultado iminente. A tenso dramtica composta obrigatoriamente

    desses dois fatores, nenhum deles sozinho pode criar tenso dramtica. Sua

    evoluo segue uma curva conhecida nos estudos literrios: baixa tenso dramtica

    inicial, aumento gradativo da tenso em direo ao clmax da histria e rpido

    declnio aps o clmax e at a resoluo. A figura 5 apresenta o grfico de tenso

    dramtica baseada no trabalho de LeBlanc.

    Figura 5 Grfico de tenso dramtica adaptada do artigo de LeBlanc (LEBLANC, 2006, p. 443)

    Para empurrar o jogador atravs da tenso dramtica, LeBlanc sugere o

    uso de feedbacks8 positivos e negativos. Feedbacks positivos levam o jogador em

    direo concluso, aumentando a sensao de inevitabilidade. E feedbacks

    negativos levam o jogador em direo incerteza, pois suas tentativas (hipteses)

    de soluo para o jogo lhe so negadas .

    Na rea da educao, apesar de avaliar o uso de narrativas em sua

    pesquisa, Janet Murray (1994), pesquisadora do MIT (Massachusetts Institute of

    Technology, EUA), deixa de lado a importncia da histria e afirma que os jovens

    leitores de textos no computador e os jovens jogadores de videogames buscam

    8 Traduzido como retroalimentao, indica o resultado de uma operao que usado como informao para novas iteraes do mesmo sistema.

  • 26

    explorar a estrutura do texto (hipertexto, pginas da Internet e jogos eletrnicos) at

    que tenham compreendido essa estrutura. Quando isso acontece, o texto deixa de

    ser interessante afinal, o usurio sabe que pode voltar a ele quando quiser. Por

    outro lado, segundo Murray, a estrutura do texto precisa ser aprendida antes de seu

    contedo, isto , deve-se saber navegar para depois buscar as informaes de

    interesse.

    J James Paul Gee, pesquisador das reas de psicolingustica e anlise

    do discurso, publica, em 2003, suas experincias na rea de jogos de computador,

    focando seus estudos nos domnios semiticos proporcionados pelos jogos. James

    Gee no define formalmente o que so domnios semiticos, mas os usa como

    parte fundamental em seus estudos sobre o uso de jogos com finalidade de ensino.

    Em What video games have to teach us about learning and literacy (GEE,

    2007), que se pode traduzir como o que video games tm para nos ensinar sobre

    aprendizagem e alfabetizao, o prprio autor sugere que:

    semiticos uma pea de jargo se isso o incomoda, traduza domnios semiticos para algo como uma rea ou conjunto de atividades nas quais as pessoas pensam, agem e do valor de uma certa forma (GEE, 2007, p. 19; traduo do autor da tese).

    Ainda de acordo com Gee, as atividades presentes nos jogos so teis no

    processo de ensino e de aprendizagem quando so apresentadas em um domnio

    semitico simulado de forma a ser reconhecida pelo jogador, facilitando sua

    utilizao no mundo exterior ao jogo. Da mesma forma que Murray afirma que o

    jogador aprende a forma do texto antes de aprender o contedo, Gee tambm indica

    que o jogador aprende primeiro as regras do jogo (aprende como se mover dentro

    do jogo) para depois prestar ateno ao contedo apresentado. A melhor forma de

    ensinar atravs de jogos , ento, fazer com que suas regras sejam semelhantes ao

    que o jogador precisa aprender e no forando o jogador a aprender um jogo para ir

    sendo informado do contedo. Em outras palavras, mais coerente que um jogo

    que se proponha a ensinar matemtica estimule o jogador a solucionar problemas

    de soma, subtrao, diviso e multiplicao ao invs de obrigar o jogador a aprender

    a controlar uma personagem que percorre um labirinto resgatando algarismos e

    sinais de operaes aritmticas. Embora a primeira alternativa parea at bvia em

    comparao com a segunda, jogos educativos tm utilizado a segunda opo com a

    desculpa de tornar o jogo "mais divertido".

  • 27

    1.4 JOGO COMO INTERAO

    Para a anlise da estrutura dos jogos, partindo da imagem que se tem do

    hipertexto como modelo de leitura diferente do texto comum, o pesquisador

    noruegus Espen Aarseth descreve, em Cybertext: perspectives on ergodic

    literature (traduzido como Cibertexto: perspectivas sobre a literatura ergdica9),

    jogos como mquinas de estado, conjuntos de operaes que alternam dados em

    um processo algortmico. A partir dessa abordagem, infere que jogos de simulao

    podem ser muito mais que hipertexto do ponto de vista do poder de processamento

    e de representao. As reas de interesse de suas pesquisas, conforme o prprio

    Aarseth, so a esttica da cibermdia e da literatura ergdica e esttica do

    hipertexto.

    Aarseth (1997), preferindo a denominao cibertexto, indica que os

    textos eletrnicos possibilitam um envolvimento muito maior do leitor com o texto do

    que simplesmente a leitura. O cibertexto seria um texto e algo mais. Para o leitor

    venc-lo, seria necessrio um esforo no-trivial. O esforo do leitor em reorganizar

    o texto ao tentar percorr-lo maior do que o esforo de simplesmente interpretar o

    que est escrito, como acontece no processo linear10. A definio de narrativa

    hipertextual do presente trabalho, contudo, deixa em aberto a forma de construo

    da narrativa (ramificao, alternativa ou simulao). O modo de interao e a

    possibilidade de influenciar a histria contada so, por enquanto, o mais importante,

    sendo deciso, para esta pesquisa, primeiramente a compreenso do objeto para,

    mais tarde, formular hipteses para avaliao de seu processo de criao.

    A forma escolhida para definir a interao do jogador com o texto ou jogo

    precisa ser mais clara que a utilizada por Aarseth, tendo por objetivo selecionar

    apenas tipos de narrativa em que haja uma interdependncia entre as aes do

    jogador e a histria contada. A ao (ou inao) do jogador deve ser considerada na

    evoluo da fbula alterando a evoluo das aes no plano diegtico11. Alison

    9 A palavra ergdica cunhada por Aarseth a partir de ergos, trabalho. Para Aarseth, o processo de leitura de um cibertexto demanda esforo por parte do jogador maior do que o que ocorre no processo de recepo de um texto tradicional.

    10 A classificao linear utilizada neste conjunto terico faz referncia sintaxe do texto enquanto objeto e no ao processo de leitura em si. Embora a distino entre objeto e processo na leitura e na interpretao dos significados torna-se aparente ao se comparar o corpo terico da teoria da literatura com o do design de jogos, tal distino no foi aprofundada no presente trabalho.

    11 Referente ao mundo que existe dentro da narrativa - na nomenclatura de Gerard Genette.

  • 28

    McMahan usa o termo imerso com uma definio semelhante; contudo, como ela

    mesma indica, muitos jogadores apreciam jogos em um nvel no diegtico

    (preferindo apenas contar pontos e completar misses, em vez de se envolver com a

    histria contada). (MCMAHAN, 2003)

    Evoluindo diante do tema, Jesper Juul, do Center for Computer Games

    Research de Copenhagen, posiciona-se at mesmo contrrio a uma utilidade da

    narrativa para a compreenso dos jogos digitais. Em referncia a Gerard Genette12,

    Juul ressalta, que, embora seja possvel narrar uma histria sem especificar o

    espao, impossvel narrar algo sem especificar ao menos a relao entre o tempo

    em que se passam os eventos narrados e o tempo em que feita a narrao (JUUL,

    2011). Contudo, em um jogo, no h marcas gramaticais para identificar quando

    ocorrem os eventos. E, ao contrrio da narrativa, fica claro ao jogador que o tempo

    apresentado no pode ser o passado, pois quem joga tem poder de influenciar os

    acontecimentos. O tempo do jogo, como profere Juul, o tempo presente.

    A partir dessa afirmao, Juul conclui que impossvel haver narrativa e

    interatividade ao mesmo tempo. Retornando a Genette, Juul afirma que o jogo

    sempre ocorre no tempo de cena, e que o jogo pressupe a diferena essencial de

    que os eventos no so repetidos, enquanto a narrativa uma eterna repetio de

    eventos escritos e reiterados a cada leitura. A interatividade do jogo eletrnico

    impede esse ponto essencial da narrativa oral, escrita ou flmica.

    Jesper Juul indica que a palavra interatividade vem sendo usada por

    modismo em grande parte da produo cientfica e cultural. Alguns usos indicam

    uma necessidade de interao entre sujeitos (jogos interativos), outros so vazios de

    significado (discusses interativas) e h ainda a indicao de alguma relao vaga

    com o meio eletrnico ou com a informtica em geral (educao interativa ou

    exibies interativas). (JUUL, 2011)

    Tentando assimilar a narrativa de forma til, embora no obrigatria, aos

    estudos de jogos digitais, o uruguaio Gonzalo Frasca (2003), participante do mesmo

    Centro de Pesquisas que Juul, na Dinamarca, passou a tratar, em suas pesquisas

    12 Juul faz referncia direta a Narrative discourse (GENETTE, 1980), obra na qual afirmado que o texto narrativa no possui outra temporalidade seno a que lhe emprestada pelo seu leitor. A pesquisa de Jesper Juul utiliza-se, pois, das distines de tempo propostas por Gerard Genette: o tempo da histria (a ordem em que os eventos acontecem), o tempo da narrativa (a ordem em que os eventos so contados na narrativa, que pode ser distinta da ordem da histria, porque o narrador pode comear pelo fim ou adiantar informaes futuras) e o tempo do leitor (o tempo real utilizado pelo leitor para ler a obra).

  • 29

    de Mestrado e Doutorado, de definir o lugar do discurso narrativo nesse campo de

    pesquisas. Frasca considera que toda representao uma ferramenta j enraizada

    em nossa cultura e faz parte da mdia tradicional. Ao contrrio da simulao, ela

    no orientada a objetivos. No h um ponto aonde chegar atravs da

    representao. Simulaes, ao contrrio, consistem de uma forma de retrica

    independente da narrativa, embora muitos pontos sejam comuns. Jogos seriam um

    modo de estruturar a simulao, da mesma maneira que narrativa seria uma forma

    de estruturar a representao. Atravs da simulao, pode-se expressar mensagens

    de modos que a narrativa no permite. Os chamados advergames13 jogos criados

    como forma de propaganda so os pratos de Petri para entender a retrica das

    simulaes.

    Por outro lado, h pesquisadores, como Chris Crawford e Jakub

    Majewski, que buscam definir topologias para narrativas digitais, sem julgar se so

    elas prprias dos jogos ou se existem de forma independente.

    Seguindo a definio de interatividade anterior, a narrativa ser

    hipertextual quando permitir que o leitor (jogador) modifique a histria narrada. A

    partir dos tipos de interatividade indicados por Chris Crawford (2003), projetista e

    roteirista de jogos desde a dcada de 1980, as narrativas interativas construdas em

    ramificaes narrativas (branching storytrees) e os jogos construdos a partir de

    simulao (world simulations) assemelham-se ao conceito de narrativa hipertextual

    utilizado no presente trabalho. Crawford considera que as narrativas em

    ramificaes desapontam o jogador, enquanto as simulaes raramente permitem o

    desenvolvimento de um enredo (plot).

    Como indica Chris Crawford (2003) projetista de jogos eletrnicos, muitas

    histrias so maquiadas para parecerem interativas ao serem publicadas em meios

    digitais. Em muitos casos, a interao apenas superficial. Com o uso de botes

    que permitem animar alguns objetos na tela, a interao entre jogador e narrativa

    no causa modificaes na fbula (entendida como o contedo da narrativa, isto , o

    conjunto de fatos e aes que so contados), apenas diferenas mnimas no

    discurso (entendido como forma como a fbula contada).

    De maneira oposta, para Crawford, alguns jogos so fantasiados de

    formas narrativas. Nesses casos, a narrativa serve apenas para amarrar os

    13 Palavra criada a partir de advertisement (propaganda) e game (jogo).

  • 30

    problemas e quebra-cabeas que o jogador deve solucionar, dando ao jogo um

    aspecto de unidade, como se vrios textos distintos fossem amarrados para

    parecerem um s. Em ambos os casos, os quebra-cabeas apresentam-se como a

    parte interativa da fbula (uma parte dos fatos pode ser modificada levemente),

    mas o discurso (a ordem das aes presentes na fbula ou mesmo a subtrao ou

    adio de novas aes) em si no se modifica (CRAWFORD, 2003).

    Em dissertao de Mestrado de 2003, Jakub Majewski (2010) prope

    classificaes intermedirias s de Crawford. Para Majewski, os jogos podem

    possuir narrativas lineares, em forma de colar de prolas, de galhos, de parque de

    diverses e de blocos de construo. Linear a estrutura comum dos textos

    literrios e no literrios escritos e falados. A leitura se move em uma direo e no

    h necessidade ou possibilidade de alterar a ordem do texto e ainda assim ter o

    contedo apresentado de forma compreensvel. Colar de prolas (string of pearls)

    uma estrutura em que a leitura se move para frente e travada por uma

    necessidade de ao correta por parte do leitor (ou jogador). Ao ser travada, o

    processo de avano alternado para um estado de parcial liberdade dada ao

    leitor/jogador. Normalmente, um problema ou quebra-cabea apresentado ao

    jogador, que precisa o solucionar para avanar a narrativa. Ao resolver o problema

    (completar o quebra-cabeas), o texto alterna novamente em direo narrao,

    limitando as aes para um estado de apenas leitura. Galhos (branching) um

    modelo de estrutura em que os caminhos de leitura se abrem em bifurcaes a partir

    das escolhas do leitor. As bifurcaes so apresentadas como possibilidades

    alternativas e atualizadas como se fossem trechos literrios lineares, ocultando as

    demais alternativas. Parque de diverses (amusement park) uma estrutura

    semelhante "colar de prolas", mas na qual no h ordem pr-definida para a

    execuo de cada parada. Os diversos problemas ou quebra-cabeas so

    apresentados simultaneamente, cabendo ao jogador escolher qual deles tentar

    solucionar a cada momento. Blocos de construo (building blocks) uma estrutura

    semelhante parque de diverses, mas as consequncias das aes do jogador

    so somadas umas s outras. Dessa forma, quando soluciona um problema, o

    jogador recebe alguma recompensa e ele ou mesmo os demais problemas sofrem

    alguma alterao. A metfora a de construo por sobreposio de camadas de

    jogo (regras ou narrativa) em vez de justaposio. Por exemplo, o jogador, para

  • 31

    construir uma cidade no jogo SimCity14 pode ter a opo de comear pela

    construo do sistema de gua e esgoto ou pelo zoneamento de reas residenciais

    e comerciais. Ambas as aes devem ser feitas, mas a definio da soluo de um

    dos problemas implica a definio de melhores ou piores condies para a soluo

    do outro problema.

    1.5 JOGO E ESCOLHAS

    Alm da definio topolgica das sequncias narrativas, h ainda a

    possibilidade de descrev-las de acordo com a forma com que elas so dispostas

    em relao interao do jogador com os elementos do jogo. No artigo The

    narrative and ludic nexus (2011), podendo ser traduzido como "a narrativa e o

    nexo ldico", os pesquisadores Jeffrey Brand e Scott Knight utilizam as seguintes

    descries das possibilidades de apresentao da histria narrada:

    enacted narrative narrativa atuada ocorre quando h no jogo qualquer

    combinao de dramatizao ou histria inicial, parcial. Normalmente,

    existe uma sequncia pr-definida de aes que o jogador deve seguir

    para se aproximar da soluo dos conflitos do jogo;

    embedded narrative a narrativa encaixada no jogo est presente

    quando o jogador apresentado a objetos e artefatos que vo se

    tornando familiares ao longo do jogo, constituindo dicas de que h um

    caminho ou comportamento esperado dele no jogo;

    emergent narrative narrativa emergente ocorre quando o jogador

    imagina ou se torna autor de uma histria atravs de sua atuao e

    interpretao dos conflitos presentes no jogo;

    evoked narrative uma narrativa evocada aquela em que as aes da

    narrativa no influenciam a soluo do conflito dentro do jogo, nem

    mesmo so apresentadas durante as partidas. Normalmente, so

    narrativas de filmes ou outros jogos da mesma franquia e so lembradas

    atravs da imagem de personagens ou episdios dessas outras

    narrativas.

    14 Jogo que simula uma cidade, no qual o jogador, representando um prefeito vitalcio, deve cordenar a construo da infraestrutura de esgotos, ruas, reas domiciliares e industriais, bem como a distribuio correta de recursos para suprir as necessidades de seus habitantes.

  • 32

    Alm das diferentes formas de apresentar a narrativa dentro de um jogo,

    h tambm diferentes formas de apresentar escolhas. A tipologia de Tracy Fullerton

    baseia-se na teoria dos jogos e tem por objetivo aprofundar a experincia do

    jogador, a imerso ou a interao com o gameplay. Quanto s decises referentes

    iluso de deciso, Tracy Fullerton apresenta-as segundo os critrios que seguem:

    hollow decisions - decises que no trazem consequncias reais, como

    cor de cabelo e de pele no The sims15 ou pintura do carro na srie The

    need for speed16;

    obvious decisions - decises cujas consequncias so claramente

    guiadas pela moral ou mecnica do jogo, como saltar para cima de uma

    plataforma ou para o vcuo inferior em Mario17 (e todas as decises de

    "vida ou morte" em que fica claro qual opo vida e qual morte

    equivalem a decidir entre "continuar a jogar ou sair do jogo" e, portanto,

    no so decises reais dentro do jogo);

    (real decisions) - decises que causam alteraes reais nas

    possibilidades do jogo, como o tipo de motor, de pneus ou composto da

    gasolina em m jogo de corrida, que alteram a performance do carro, ao

    contrrio de escolhas como a cor da pintura do carro ser vermelha ou

    preta, que no influenciam na vitria ou derrota no jogo.

    No excludentes, tambm so apresentadas as seguintes definies

    quanto informao:

    uninformed decisions - decises que o jogador toma sem ter informaes

    suficientes. Normalmente, no aconselhvel utiliz-las em jogos.

    Jogadores odeiam sentir que no tm controle das consequncias do

    15 Esse jogo de computador que consiste na simulao de um ambiente domstico. Mais do que controlar as personagens, o jogador constri os ambientes (quarto, cozinha, sala de estar, banheiros, piscinas) em que elas vivem. Atributos como asseio so importantes para o jogo, sendo que asseio garante que a personagem limpe a casa sozinha, sem o comando direto do jogador. Atributos ligados raa da personagem, bem como roupas e acessrios, no interferem no jogo.

    16 um jogo de simulao de corrida. Atributos como potncia do motor so importantes para o jogo, mas cores e desenhos da pintura do carro no interferem nas performance e consequente pontuao.

    17 um jogo em que o heri um encanador que deve salvar uma princesa. chamado de jogo de plataforma por ser elaborado sobre a habilidade do jogador em controlar Mario em seu caminho de saltos e corridas sobre diversos obstculos fixos e mveis.

  • 33

    jogo. Mas, quando bem feitas, servem para afirmar o "salto de f" do

    jogador e sua consequente entrega ao papel e imerso. So melhor

    usadas quando associada a uma dramatic decision descritas a seguir.

    Quando o jogo multiplayer18 (ou jogador x jogador), comum que as

    decises sejam feitas sem a informao sobre o adversrio. Nesse caso,

    e para efeito de simulao desse tipo de jogo, os jogos de estratgia, por

    exemplo, utilizam o fog of war19, artifcio de mostrar apenas parcialmente

    o mapa para os jogadores. H uma diferena aqui (na teoria dos jogos)

    sobre informaes imperfeitas e incompletas, mas no vem ao caso;

    informed decisions - decises tomadas pelo jogador tendo todas as

    informaes necessrias (como xadrez, damas, jogo da velha).

    As decises podem ser, portanto, importantes mas no informadas. Quer

    dizer, o jogador pode ser induzido a fazer uma escolha sem saber que ela afetar o

    jogo futuramente. Para identificar o que leva a uma dada deciso, Fullerton utiliza os

    seguintes critrios:

    dramatic decisions - decises tomadas para completar o enredo, em que

    geralmente o jogador toma um papel, uma personagem para si, e

    interpreta suas aes. O melhor modo de usar dizer ao jogador

    parcialmente como ele deve interpretar o papel e deixar que ele o

    complete tomando essas "decises dramticas". Assim, ele obrigado a

    tomar decises baseadas em seu gosto pessoal ou em seus prprios

    valores morais, ao invs de utilizar pesos e medidas impostos pelo jogo (e

    inventados pelo game designer);

    weighted decisions - decises "pesadas", no sentido de "medidas",

    julgadas, como "Se eu for por aqui, eu perco energia. Se eu for por ali,

    perco poder para fazer magias. Tenho muito mais poder para magias do

    que energia, portanto o melhor caminho por ali." So decises

    18 Nome dado aos jogos que permitem diversos jogadores interagirem ao mesmo tempo e at disputarem uns contra os outros.

    19 Neblina de guerra um artifcio que visa impedir que o jogador obtenha informaes em demasia ao olhar para o mapa do jogo. Enquanto o mapa apresentado em sua totalidade ao jogador, as reas distantes a tal ponto que um soldado no mundo real no poderia enxergar o que se passa naquela regio aparece borrada ou obscurecida pela chamada neblina.

  • 34

    racionais, baseadas nos pesos e medidas impostos pelo jogo. So

    tambm "informed decisions", decises baseadas em informaes, pois,

    para calcular suas chances, o jogador precisa saber com quais dados

    est lidando.

    Algumas decises podem at mesmo no causar efeito imediato,

    dificultando sua compreenso pelo jogador. Fullerton define-as quanto ao tempo de

    atualizao como segue:

    immediate decisions - decises que possuem resposta imediata. Um

    exemplo pode ser atirar contra um guarda em Splinter Cell20 e ter todas

    as luzes acesas e um bando de homens armados correndo atrs do

    jogador;

    long-term decisions - decises que podem demorar alguns minutos, horas

    ou dias para atualizarem suas consequncias. Raramente vemos essas

    decises sendo usadas como artifcio narrativo em games,

    principalmente, porque os programadores e desenvolvedores no

    enxergam to frente da narrativa (normalmente, seu trabalho prestar

    ateno especial interao e diverso que o jogador pode obter em

    cada etapa do jogo, deixando um pouco de lado a narrativa como um

    todo). Mas elas existem. Se um jogador faz sua personagem masculina

    se casar com uma mulher no meio de Fallout 3, isso uma deciso

    iniciada na escolha do gnero da personagem. Em Bioshock 221, matar

    as meninas tm consequncias a longo prazo, mas elas no so decises

    "reais".

    Considera-se nesta pesquisa que as decises mais interessantes so

    dramatic, uninformed, long-term, real decisions. O jogador precisa tomar decises

    importantes para a narrativa, a partir de suas preferncias morais pessoais, e seria

    surpreendente para ele s se dar conta muito tempo depois de que aquela deciso

    teve importncia fundamental para o enredo.

    20 Jogo em que o jogador atua como agente secreto, cumprindo misses que demandam furtividade e pacincia para percorrer o territrio inimigo sem ser notado.

    21 Jogo em que a personagem do jogador deve escolher entre salvar crianas antes que outros seres se alimentem delas ou alimentar a si mesmo da energia dessas crianas.

  • 35

    Tracy Fullerton (2010) tambm apresenta um tringulo de urgncia para

    definir uma distribuio das escolhas dadas ao jogador no jogo, como se v na

    Figura 6:

    Figura 6 - Reproduo traduzida da pirmide de Fullerton

    Assim sendo, a urgncia da deciso entendida como segue:

    crtica - em situaes de vida ou morte, em que jogador sempre deve ser

    avisado de que uma deciso de vida ou morte. H pequenas excees,

    como jogos que seguem o gnero horror, em que necessrio manter o

    nvel de estresse alto. Mesmo assim, prefervel utilizar decises de

    urgncia inferior (importantes) para fazer isso. No contar ao jogador

    quais so as decises crticas faz parte da dinmica de jogos um-contra-

    um, como nos jogos de cartas em que um jogador no avisa ao outro que

    est prestes a completar sua mo ou bater. Ao contrrio, regra do jogo

    de xadrez avisar quando o rei adversrio est em perigo de vida ou

    morte, o chamado xeque;

    importante - em decises de impacto direto e imediato, como decidir entre

    jogar-se contra os tiros inimigos ou fugir;

    necessria - em decises de impacto indireto ou com algum retardo, das

    quais o jogador ainda pode se esquivar em um momento posterior do

    jogo, mas que precisam ser tomadas agora. No xadrez, seria melhor

    comear com os pees ou com o cavalo? Em um RPG, o jogador deveria

    comear a colecionar feitios ou investir na fora da minha personagem?

    Nessas decises, preciso responder de imediato, para que a trama se

  • 36

    desenrole. Em compensao, h chances para que a deciso seja

    alterada depois, caso se descubra ser mais fcil investir em uma

    personagem brutamontes ao invs de em uma feiticeira inteligente;

    menores - em decises de pouco impacto, como, por exemplo, quando o

    sexo da personagem pode alterar um pouco a trama (uma personagem

    pode ter mais chance de ser bem recebida por outras personagens do

    sexo oposto), mas no facilita a soluo do jogo como um todo (tanto o

    homem ou a mulher tero de matar um drago gigante);

    inconsequentes - em decises que no causam impacto no resultado do

    jogo, em que cor do cabelo e cor de pele, nome da personagem,

    orientao religiosa ou viso poltica no alteram o resultado do jogo.

    Muitos RPGs so balanceados para que as escolhas de raa no afetem

    o jogo. O que muda o nome e o efeito visual das aes da personagem.

    Por exemplo, uma personagem mestre do fogo seria capaz de lanar

    bolas de fogo que explodem e queimam um espao circular no cho do

    campo de batalha. No entanto, se o jogador escolher ser um mestre da

    gua, ele seria capaz de lanar jatos de gua que afetam uma rea

    circular no cho do campo de batalha. Ou seja, o efeito visual dos dois

    tipos de personagem so diferentes, mas, para efeitos de jogo, so

    personagens equivalentes.

    Nota-se que os jogadores normalmente prestam muita ateno s

    escolhas inconsequentes, como forma de personalizar o jogo (cores das roupas,

    tipos de armas, nome do heri). Mesmo que elas caiam no tipo de hollow decisions,

    o jogador as trata como sendo de suma importncia para sua experincia de

    imerso. Contraditoriamente, os jogadores podem achar que as escolhas crticas

    no so exatamente escolhas, mas caem no tipo obvious decisions e

    consequentemente no so importantes o suficiente para os jogadores nem mesmo

    para serem lembradas ao final da partida (jogadores em geral no se lembram de

    quantas vezes se esquivaram de uma facada de um guarda inimigo, mas acham que

    eles eram obrigados a se esquivar).

  • 37

    Talvez essa interao seja melhor estudada partindo dos exemplos de

    jogos dados por Freeman em seu livro sobre emoes em jogos (FREEMAN, 2005).

    Nele, Freeman prope uma srie de paralelos entre as escolhas do jogador e as do

    heri. Essas escolhas, prope, devem-se construir por duplicao das relaes. Por

    exemplo, se a personagem do jogador deveria, por motivos de roteiro, sentir-se

    atrado pela princesa, o jogador deve ser estimulado a gostar da mesma

    personagem por causa de algum objetivo do jogo, seja alguma informao que ela

    trar para o desenvolvimento da trama, proteo que ela proporcionar atravs de

    armas mais poderosas ou outros artifcios que movam o objetivo das etapas em

    direo da proteo dessa personagem. Em termos do modelo analisado, h dois

    objetos nas relaes dos atores: um do heri dentro do mundo diegtico e outro do

    jogador fora desse mundo. A narrativa deve servir ao jogo, unificando esses dois

    objetos em um nico comportamento necessrio para que o jogador e o heri que

    ele controla se movam adiante na narrativa pelo mesmo caminho.

    Um dos exemplos o jogo Ico, no qual o heri precisa ajudar uma

    princesa a atravessar um mundo cheio de perigos. A princesa uma personagem

    completamente indefesa, dependendo do heri at mesmo para se movimentar. A

    sensao de que a princesa um fardo ampliada pela dificuldade de locomoo

    do heri a cada vez que ele precisa mover a princesa. Prximo ao final do jogo

    (aps horas de lenta caminhada carregando a princesa atravs das fases do jogo), a

    princesa transformada em pedra, o que faz o heri (e, espera-se, o jogador) sentir

    raiva da vil. Na cena final, tendo o heri sido ferido em sua tentativa de vingar a

    princesa, essa aparece para carreg-lo nos braos. As horas de investimento

    emocional do jogador na personagem da princesa so recompensadas com a

    motivao emocional da princesa pela personagem do heri.

    Parte dessa captura dos sentimentos do jogador vem do pacto inicial, no

    aspecto de arbitrariedade do jogo a que se refere Huizinga, pois, se o jogador

    aceita as regras e o objetivo do jogo atualizados na forma de uma personagem

    humanizada, aceita tambm os sentimentos humanos atribudos a essa

    personagem. Essa assimilao de valores e sentimentos remete a frase de Sartre:

    "A espera de Raskolnikov minha, que empresto a ele". No caso de Ico, os

    sentimentos do heri pela princesa so emprestados pelo jogador, quem

    efetivamente precisa se importar, cuidar, carregar a jovem pequena e indefesa. E,

  • 38

    alm do contedo, o restante dos sentimentos capturado pela prpria estruturao

    do jogo, trabalhada no prximo captulo.

  • 39

    2 PRINCPIOS ESTRUTURAIS DO JOGO

    2.1 CONSTRUO DA NARRATIVA

    O modelo proposto a partir das teorias da literatura estudadas funda-se

    no princpio de que uma narrativa um conjunto de aes representadas de forma

    simblica e encadeadas por relaes de causalidade. Essa simplificao propicia

    observar analogias entre o funcionamento dos jogos eletrnicos e as narrativas

    escritas. Embora jogos eletrnicos de representao de papis (RPGs digitais)

    inicialmente se vale de longos textos com descries, atualmente a tecnologia opta

    por fornecer a imagem e o som que presentificam as descries existentes em suas

    verses textuais. A forma , contudo, simblica. H a escolha de imagens e sons

    que passam informaes ao jogador, mas no apenas as de que ele necessita para

    jogar. Os sons e as imagens funcionam como forma de comunicar um conjunto de

    valores socioculturais ao jogador, que os utiliza para interagir simbolicamente com

    esses valores (ALVES, 2005).

    Para anlise de jogos eletrnicos, so consideradas as aes como

    alteraes de estado. Do ponto de vista da narrativa, no basta escrever, por

    exemplo, Mrio corre. Isso apenas descrio do estado de Mrio em um dado

    instante ou perodo. Para a narrativa, necessrio que haja uma mudana de

    estado. Se levarmos em considerao a interpretao do texto, podemos supor que

    Mrio est parado e que corre indica o incio de uma ao. Dessa forma h uma

    alterao de estados. A forma mais clara , por exemplo: Mrio est parado. Mrio

    corre.

    clara a necessidade da sequncia (BREMOND, 1973), implcita ou

    explcita, mas essa ainda no suficiente. Os dois estados descritos precisam estar

    ligados, precisam formar uma unidade. Essa unidade conseguida por uma relao

    de causa e efeito. Algo deve causar a alterao de estado de Mrio. Para a

    narrativa, apenas sentir vontade de correr no suficiente. A causa no deve

    apenas ser imaginada pelo leitor, ela deve estar indicada, explcita ou

    implicitamente, para que o leitor a encontre no texto. Por exemplo, Mrio est

    parado. Mrio ouve o alarme de incndio. Mrio corre. Nesse caso, a sequncia

    sugere que a causa da alterao de estado de Mrio seja o fato de ele ouvir um

  • 40

    alarme de incndio. Importa notar que essa relao parte da suposio de que isso

    uma narrativa. Ela no cria por si a narrativa, mas a narrativa que cria a

    causalidade (TODOROV, 2003). Ao ler, o leitor busca fechar a sequncia de relaes

    causais. No est dito, por exemplo, se a personagem Mrio est fugindo do fogo,

    nem se ela um bombeiro que ir socorrer as vtimas. Mas, ao ler, completa-se o

    significado para dar uma explicao causal.

    Alm de simplesmente indicar a sequncia de aes conforme elas

    ocorrem, por se estar trabalhando com uma representao, a narrativa apresenta-se

    atravs de smbolos, e esses smbolos esto sujeitos interpretao do leitor. Na

    etapa de construo da narrativa, o autor seleciona smbolos que, supe, so

    reconhecidos pelo leitor. Esses smbolos, alm de informar as mudanas de estados

    da narrativa, permitem ao leitor se ambientar no mundo apresentado. Isso ocorre,

    porque os smbolos possuem relaes entre si, e essas relaes so adicionadas ao

    conjunto de relaes j existentes entre as aes. Por exemplo, a sequncia Mrio

    brinca. Mrio ouve um barulho na porta. Mrio corre. permite a suposio de que o

    barulho na porta causa da corrida de Mrio. O mesmo ocorre no exemplo do

    alarme de incndio, em que no h indicao do julgamento de Mrio quanto ao

    barulho ou da motivao de Mrio. H apenas uma indicao causal.

    Sabendo que os smbolos so importantes, o autor pode escolher criar

    outros tipos de relao dentro da narrativa. Por exemplo, O menino brinca no

    quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na porta. O menino corre.

    uma construo que sugere a relao causal da sequncia narrativa e ainda uma

    relao entre menino e pai. O leitor pode supor, ento, que o menino est

    correndo para receber o pai. Pode supor ainda que o menino est feliz ou que tem

    saudade. E essas duas inferncias no esto na sequncia narrativa, mas na

    relao entre as ideias do smbolo menino e do smbolo pai. H ainda uma

    relao possvel ao se observar que o menino brinca no quarto (ento, sozinho) e

    que essa brincadeira interrompida pela chegada do pai.

    A ligao entre menino e pai , no entanto, ditada pelo leitor. No

    exemplo dado, o autor no explicita a natureza dessa relao. As frases utilizadas

    so intencionalmente vagas. Ele poderia ter dado mais informaes. J, em O

    menino brinca de bonecas no quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na

    porta. O menino corre para debaixo da cama., por exemplo, o autor adiciona a

  • 41

    imagem de uma brincadeira (ainda) feminina (bonecas) a um menino. A chegada de

    uma imagem masculina (a de pai) faz com que o menino se esconda (corre para

    debaixo da cama). Caber ao leitor decidir o motivo que leva o menino a se

    esconder do pai. Ele pode ter medo de repreenso, por estar brincando de bonecas.

    Mas pode ainda estar brincando de bonecas por causa da represso paterna. A

    causalidade no se move apenas para frente na narrativa (TODOROV, 2003).

    Por fim, o autor pode ainda utilizar a repetio de ideias para tornar o

    conjunto de relaes ainda mais denso. Por exemplo, O menino brinca de esconde-

    esconde com bonecas no quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na

    porta. O menino corre para debaixo da cama. Assim, h duas imagens de

    esconder na sequncia. O menino est brincando de esconde-esconde e, com a

    chegada do pai, esconde-se. Nessa verso, como na anterior, ele pode estar com

    medo do pai, mas tambm pode estar se escondendo para brincar com o pai. A

    relao das imagens masculinas menino e pai ainda esto ali, assim como

    permanece o contraste entre essas imagens e as das bonecas (femininas). Contudo,

    a ao de se esconder est repetida e, por estar repetida, agrega as duas imagens

    a de brincadeira e a de fuga.

    Essas relaes internas dos smbolos adicionadas s relaes causais

    entre as aes so o que Tzvetan Todorov chama de sentidos do texto literrio. E

    as inferncias feitas pelo leitor ao selecionar os sentidos que lhe servem para

    construir um significado alm do texto formam o que Todorov chama de

    interpretao. Deve-se considerar que um texto literrio tem um cuidado com a

    linguagem muito maior do que o apresentado nos exemplos. Possivelmente h

    menos repeties de palavras e mais cuidado com a ordem e o ritmo da frase.

    Mesmo assim, a estrutura narrativa clssica j pode ser observada.

    Tambm se pode separar as etapas como situao inicial, abertura de

    possibilidades, atualizao (BREMOND, 1973). A brincadeira pode continuar ou ser

    interrompida. Ela interrompida pela chegada do pai. O menino poderia ignorar o

    pai, ir conversar com ele ou fugir. O menino decide fugir. Nessa separao de etapas

    tambm fica evidente a distncia entre o que descrito e o que inferido pelo leitor.

    Bremond, no entanto, nos d duas ferramentas que so teis mais adiante ao

    passar para o funcionamento do jogo eletrnico: a ideia de que h um grupo de

    possibilidades a serem selecionadas e a ideia de que h uma narrativa para cada

  • 42

    ponto de vista. o jogador quem escolhe o comportamento do menino, e essa

    escolha d-se de acordo com o que o jogador compreender da narrativa at ento (e

    s at ento). Ou seja, a parte principal da escolha ocorre quando o jogador

    seleciona o sentido das palavras e imagens.

    Em um jogo de representao de papis, o jogador coloca-se como o

    menino. informado ao jogador que ele est brincando de esconde-esconde com

    bonecas no quarto e que pode ser ouvido o barulho das chaves do pai na porta.

    Ento, o jogo pergunta: o que voc quer fazer? Seguindo Bremond, o jogador pode

    escolher entre ignorar o pai (e mesmo as bonecas, se assim desejar), correr para

    encontrar o pai que chega ou esconder-se debaixo da cama. A seleo do jogador

    claramente feita de acordo com o que ele acaba de compreender da narrativa.

    Pode-se ainda observar a narrativa como um conjunto de atores

    (GREIMAS, 1973). Tome-se o menino como sujeito e o objeto como a brincadeira de

    esconde-esconde. O pai pode aparecer como opositor, afinal, a figura masculina

    pode se opor brincadeira com bonecas. Nesse caso, o menino foge para se

    proteger de seu agressor. J, se colocado o pai no papel de adjuvante, ou seja, no

    papel de auxiliar do menino, a chegada do pai apenas incendeia a vontade do

    menino de brincar, ao tornar a possibilidade mais fcil ou mais divertida. Ainda h a

    opo de que o objeto de desejo do menino seja o pai. O barulho das chaves do pai

    o informam da boa notcia a chegada do pai. E a brincadeira a forma encontrada

    para dar meios aos dois para se relacionarem como pai e filho (num primeiro

    momento, a brincadeira supre a carncia e, logo aps, torna-se a ligao entre os

    dois).

    O modelo de Greimas contribui, ento, com outros dois conceitos teis

    para a anlise de jogos. Primeiro, traz noo de objetivo. O jogo , essencialmente,

    a busca de um objetivo seja ele uma meta especfica (derrubar o oponente, no

    sum, ou pr o rei em xeque, no xadrez), uma meta relativa (fazer mais pontos que

    o adversrio, no basquete, no vlei, no futebol; atingir a linha de chegada no menor

    tempo, na maratona, na natao) ou simplesmente o acmulo de pontos em geral

    (como o jogo Tetris, que consiste em uma sequncia de fases com acrscimo

    constante de dificuldade). E segundo, traz a noo de que a alterao do objetivo, e

    mesmo das relaes entre os demais atores, altera o sentido. Assim, quando um

  • 43

    jogador faz uma escolha, ele leva em considerao os objetivos do jogo, mas

    tambm leva em considerao os sentidos que percebe ao longo da leitura do jogo.

    Os jogos mais propcios para esse tipo de anlise so os de

    representao de papis (role-playing games, RPGs). Primeiramente, sua estrutura,

    voltada simulao e representao, permite que o jogador pense seu

    comportamento no jogo valendo-se de informaes e valores do mundo

    extradiegtico (mundo real ou mundo ficcional de outras obras de diversas mdias).

    O jogador pode tomar decises baseado no que sabe sobre outros jogos

    semelhantes (aquisio de fora, gasto de energia ou uso de furtividade para atacar

    algum) ou sobre mundos semelhantes. Alm disso, os prprios criadores de RPGs,

    ao longo da evoluo (da mesa para o computador) desenvolvem formas eficazes

    de transmitir as regras de jogo para o jogador, valendo-se de todo o ferramental da

    mdia digital e do prprio tipo de jogo.

    As primeiras fases dos jogos tm a funo de tutoria dos jogadores, que

    entram em um novo mundo (com novas regras e novos sistemas de valores). As

    informaes necessrias para adaptao do jogador so inseridas na narrativa do

    jogo. E as possibilidades de explorao dadas pela simulao do jogo (entrar em

    qualquer porta, tentar pegar qualquer objeto) permitem que o jogador aprenda a

    maior parte das regras por si, por tentativa e erro. Esse modo de transmitir as regras

    aos jogadores, que emerge dos RPGs, torna-se to atrativo que est sendo

    aproveitado para o ensino acadmico (ALVES, 2005; MURRAY, 2003).

    Por fim, os RPGs tambm se tornam timos objetos de estudo por serem

    um modelo de jogo digital bastante evoludo nas ltimas dcadas e altamente

    difundido nos meios de entretenimento. H mesmo jogos que absorvem e adaptam

    caractersticas vindas dos RPGs para aumentar a aparncia de interao com o

    jogador. Por exemplo, nesses jogos, h a possibilidade de o jogador escolher as

    roupas e a aparncia de sua personagem. Embora a cor de uma camisa no altere

    as regras do jogo nem mesmo interfira na pontuao, o jogador faz tal seleo por

    preferncia pessoal, o que leva um sentido novo (no existente anteriormente no

    jogo) a essa pea de uniforme, podendo significar um time, um pas ou uma

    preferncia sexual da personagem controlada pelo jogador.

    Todas essas caractersticas estruturais do modelo de narrativa levadas

    aos jogos eletrnicos e todas as possibilidades tcnicas presentes no meio digital

  • 44

    pedem uma reestruturao do modelo de anlise, para compreender as implicaes

    da estrutura do jogo na construo de sentido pelo jogador. Como o foco deste

    trabalho a narrativa e sua possibilidade de interpretao pelo leitor, atravs

    formulao de uma base para descrio e anlise de sua estrutura aplicada ao jogo

    eletrnico, deixam-se muitos elementos de fora, por exemplo: o funcionamento da

    programao do jogo, as relaes das imagens e do som com o enredo e os

    ambientes sociais dos jogadores. Tais elementos so considerados teis para

    anlise de jogos, mas no so obrigatrios para compreenso de seu

    funcionamento. Por isso, so indicados para pesquisas com foco especfico em tais

    reas.

    O modelo proposto, assim, observa o jogo como um emaranhado de

    aes possveis. A narrativa que surge selecionada pelo jogador dentre essas

    possibilidades. A seleo ocorre tendo em vista o cumprimento do objetivo proposto

    pelo jogo. No depende, contudo, apenas desse objetivo, pois ao jogador so

    apresentados smbolos que, por um lado, o informam sobre o funcionamento do jogo

    e, por outro, remetem a seus conhecimentos prvios, o conjunto de informaes que

    o jogador traz de suas experincias com outros jogos, sobre o funcionamento dos

    controles, sobre a histria apresentada e que servem de pistas para o jogador

    "intuir" o que esperado dele. A seleo feita, portanto, unindo as informaes que

    o jogador j possui com as que ele est adquirindo ao longo do jogo. Provavelmente,

    ento, o jogador no as distingue durante a seleo.

    Para analisar o jogo, deve-se indicar o conjunto de aes obrigatrias

    (aquelas ligadas diretamente ao cumprimento do objetivo principal). Ento, preciso

    identificar o conjunto de aes que permitem desvios do eixo principal, mas que no

    interferem na possibilidade de cumprimento do objetivo. Algumas dessas aes

    permitem ao jogador adaptar a personagem ao jogo, caso necessite de mais poder

    ou mais conhecimento; outras permitem ao jogador simplesmente adaptar a

    personagem a seus gostos pessoais, como tipo de arma (maior, menor), corte de

    cabelo, vestimenta etc.

    Sendo as aes principais obrigatrias, analisando-as podem-se observar

    relaes de sentido possveis a todo o pblico de jogadores de um dado jogo. Esse

    conjunto de relaes importa para a anlise, por exemplo, da violncia em jogos

    eletrnicos. O conjunto de aes alternativas selecionado pelo jogador depende

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    diretamente de suas escolhas e, portanto, de seu humor, sua vontade, sua

    habilidade. Esse conjunto de aes tambm sofre influncia do objetivo principal do

    jogo (alm de objetivos secundrios que podem ser apresentados ao jogador),

    devendo ser analisado observando sua contribuio em relao ao cumprimento

    desse objetivo. Por exemplo, pode ser permitido ao jogador voltar no tempo e matar

    o vilo, enquanto ele tinha trs meses de vida, em vez de esperar lutar contra ele

    quando adulto. Tal rota facilita a vida do jogador, mas implica em matar um beb.

    Por isso, embora o jogador faa a escolha, o jogo o induz a deciso.

    Portanto, a deciso do jogador depende tanto da inteno de cumprir o

    objetivo do jogo (matar o vilo) quanto do balano de significados que o jogador

    pode atribuir a cada s