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FLAHAULT O PARADOXO DE ROBINSON

Flahault - O Paradoxo de Robinson

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FLAHAULT

O PARADOXO DE

ROBINSON

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O PARADOXO DE ROBINSON

Uma revolução científica está em curso, que modificará

profundamente nossa visão do homem e da sociedade e que trará à política a

filosofia social que faz falta1. O problema é que essa visão não está próxima de

se impor! Isso porque os debates parecem incapazes de voltar aos

pressupostos fundamentais, impotentes a questionar as evidências

compartilhadas. Essa impotência, essa confiança nas representações, que só

têm como fundamento o fato de ser largamente compartilhadas, constituem o

verdadeiro obstáculo à renovação das idéias.

O futuro foi insensivelmente cancelado no horizonte do nosso

pensamento, de um lado porque foi desacreditado pelo afundamento dos

projetos prometéicos do século XX e, depois, porque um pensamento que não

consegue avançar e abandona-se ao “economismo” ambiente não consegue

uma perspectiva de futuro. Estamos num período de transição entre duas

concepções do ser humano e da sociedade: uma que, embora obsoleta,

domina (assim como o geocentrismo no inicio do século XVII); a outra que,

lentamente e silenciosamente, está se constituindo e não tem ainda visibilidade

(assim como o heliocentrismo naquela época). A antiga concepção,

estreitamente ligada ao grande movimento de emancipação do indivíduo que

vê na sociedade uma organização utilitária cuja base é constituída pela

economia. A nova visão traduzir-se-á pela concepção do ser humano e da

sociedade muito diferentes. A vida em sociedade precede a emergência dos

indivíduos, a economia não é, portanto, a única base da sociedade, o ser

mesmo dos indivíduos não é exterior à vida em sociedade: ele se constitui nela

e por ela, de modo que sua interdependência é muito mais forte do que a

noção de contrato.

A hegemonia de uma doutrina mascara para ela mesma o fato de

que ela constitui uma fuga para diante. Não é de se surpreender com o fato de

que essa hegemonia, embora criando uma frenesi geral, suscita uma

inquietude difusa. Mesmo o marxismo foi útil aos seus adversários: pelo seu

fracasso, deu-lhes a vitória e contribuiu a reforçar o consenso ao redor de uma

1 FLAHAULT, François, Le paradoxe de Robinson, capitalisme et société, Paris, Mille et une

nuits, Arthème Fayard, 2005

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visão economicista da sociedade, consenso hoje explorado pelo capitalismo. A

crítica exige, portanto, uma concepção do homem e da sociedade.

Robinson Crusoe é o tipo mesmo de individuo que vive fora da

sociedade e recria as comodidades pela sua engenhosidade, seu pensamento

racional e seu trabalho. Ele fundamenta seu ser sobre a relação com as coisas

e não com os outros. Daí que Rousseau via nele o modelo do indivíduo

autêntico, existindo por si mesmo e não pelo olhar dos outros.

O paradoxo aparece quando se vê que Robinson é uma

personagem de ficção, e mesmo uma personagem inverosímil porque

nenhuma pessoa real conseguiria, como ele, viver vinte anos numa solidão

total continuando a trabalhar como se fosse a coisa mais natural do mundo. Na

realidade Robinson não existe por si mesmo: ele existe graças a milhões de

pessoas no espírito dos quais sua imagem se implantou. Robinson existe

simplesmente porque se fala dele: se ninguém falasse mais, deixaria de existir.

Robinson é um bem trans-individual, que faz parte do mundo comum dos

Ocidentais; é um dos bens coletivos e imateriais que constituem sua cultura.

Para que Robinson, dentro do romance de Defoe, seja capaz de

existir sozinho face às coisas, é preciso que o romance exista. Para que um

romance exista, é preciso que a linguagem exista, portanto a comunidade

humana. Como todos os bens coletivos, um romance é uma coisa que

pressupõe a relação com os outros e que, por sua vez, alimenta a relação entre

as pessoas, sob forma, por exemplo, de um assunto a ser conversado.

Robinson foi constituído como modelo que parece ilustrar a verdadeira

natureza do homem, indivíduo racional que existe na relação com as coisas

antes de entrar em relação com os outros. Sendo esse modelo pura ficção, o

próprio fato de conhecê-lo e de aderir a ele só pode fundamentar-se numa

convivência cultural, numa representação comum que não existiria no nosso

espírito se não existisse igualmente no espírito de milhões de outras pessoas.

O simples fato de evocar a personagem de Robinson para ilustrar a idéia do

homem sozinho frente às coisas firma mesmo nossa pertença a um mundo

cultural comum.

O paradoxo de Robinson é sintomático de uma orientação

fundamental do Ocidente moderno. A ordem antiga, da Cristandade e do Antigo

Regime, repousava, como é ainda o caso nas sociedade não ocidentais, na

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convicção que os seres humanos têm um lugar uns em relação aos outros, que

seu ser se fundamente nessas relações de lugar antes de se fundamentar nas

relações que eles têm com as coisas. A modernidade, pelo contrário,

fundamenta o status das pessoas sobre o trabalho e o exercício de suas

competências. Ora essa reviravolta não se contenta de reconhecer as

mudança sociais que se produziram nos últimos séculos: ela lhes atribui uma

visão idealizada. De fato, a convicção de que o indivíduo existe primeiro por si

próprio na sua relação com as coisas faz parte de um credo que sustenta o

grande movimento ocidental de emancipação do indivíduo, a fé na razão e no

progresso. É preciso escapar à interdependência, fonte de tantas dificuldades,

de humilhações e de sofrimentos!

Pode quase se dizer que a filosofia ocidental se constituiu contra a

interdependência, e primeiro contra a dependência que vincula a criança aos

seus pais e ao seu ambiente social; não tanto a dependência material: mais a

dependência intima e pessoal, a dívida da vida. A grande ilusão moderna, é a

idéia da interdependência social dos humanos não os atinge no seu próprio

ser, que ela somente diz respeito à sua relação com as coisas (divisão do

trabalho, satisfação das necessidades, relações utilitárias). Essa ilusão permite

esperar que mais a relação com as coisas será racional – desenvolvimento das

competências e das técnicas, crescimento econômico, boa gestão, melhor

distribuição etc. – melhor as relações humanas serão mediadas pelas coisas, e

mais serão harmoniosos. As paixões não são negadas – amor e ódio, inveja e

ciúme, sofrimento de não sentir-se existir, amizade, rivalidade, luta pelo

reconhecimento, avidez sem fim – mas elas são consideradas como devendo

ser tratadas pela psicologia, quer dizer do domínio privado. Descrever de um

modo pertinente o funcionamento social, falar dele com seriedade e

competência, implica, no modelo atual, abstrair-se das paixões, ou seja das

formas de interdependência que tocam os seres humanos no seu próprio ser.