Flávia-Biroli

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    assim, que assim seja:mdia, esteretipos e exerccio de poder

    Flvia Biroli1

    Resumo: O paper discute as relaes entre esteretipos e mdia noticiosa, procurandoavanar na compreenso da dinmica de produo e difuso dos esteretipos e, em especial,no modo como a mdia dela participa. Os esteretipos so compreendidos como parte dadinmica social de definio dos papeis, baseados em valores que remetem a contextosespecficos das relaes de poder. No possvel entend-los como originriosda mdia oudas formas de sociabilidade reorganizadas pelo advento dos meios tcnicos de difusomassiva. Mas sua presena no discurso miditico pode colaborar para seu impacto e

    permanncia. Difundidos para um grande nmero de pessoas, transformam-se em referncias

    compartilhadas que fazem parte, simultaneamente, da experincia individual esocial.

    Palavras-Chave: esteretipos. mdia. poder.

    Introduo

    comum que a relao entre meios de comunicao e esteretipos seja mencionada em

    anlises nas quais no uma preocupao central2. possvel que o entendimento de comoos esteretipos se definem e circulam aparea, nesses casos, como pouco mais do que um

    desdobramento da compreenso que se tem do funcionamento dos meios de comunicao.

    Assim, se esses ltimos so vistos como responsveis por um ambiente comunicativo rico,

    1Professora do Instituto de Cincia Poltica da UnB e pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] Paper apresentado no GT Comunicao e democracia do IV Encontro da Associao Brasileira dePesquisadores em Comunicao e Poltica (Compoltica), na UERJ, de 13 a 15 de abril de 2011. A discussoapresentada neste artigo parte do projeto Gnero e poltica na mdia brasileira, coordenado pela autora efinanciado pelo CNPq (edital 57/2008, bolsas de PQ e IC). Agradeo a Luis Felipe Miguel pelos comentrioscrticos feitos a uma verso anterior do texto.

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    em que informaes e vises de mundo diversas e conflitantes passam a fazer parte da

    vivncia dos indivduos, eles trabalhariam, em linhas gerais, contra a manuteno dos

    esteretipos. Mas se os meios de comunicao so vistos como instrumentos de uma ordem

    social desigual, reproduzindo informaes e vises homogneas que confirmam as

    perspectivas dominantes, eles podero ser vistos como propagadores privilegiados dos

    esteretipos. Nesse caso, eles trabalhariam a favorde esteretipos que justificam ou so uma

    espcie de caldo de cultura da prpria dominao.

    A primeira dessas vises pode ser associada, historicamente, correspondncia entre

    conhecimento e razo. As informaes, e melhor dizendo, a multiplicao das informaes

    disponveis seria a base para a superao dos preconceitos associados aos esteretipos.

    Haveria uma correlao positiva entre a quantidade e a variedade das informaes

    disponveis e a possibilidade de superao das vises distorcidas ou estereotpicas da vida

    social. Com os avanos tcnicos que permitem a difuso massiva de informaes, os meios

    de comunicao poderiam contribuir para que isso se d.

    No campo dos estudos de mdia, as anlises de Joshua Meyrowitz (1985) sobre o impacto dos

    meios de comunicao para a sociabilidade contempornea podem ser consideradas

    representativas desse entendimento. Para ele, a difuso massiva permitida pelos avanos

    tcnicos ampliaria, potencialmente, o acesso a imagens e valores diferentes daqueles que

    organizam o ambiente presencial dos indivduos. E isso se daria, at certo ponto,

    independentemente de quais so os contedos veiculados. A comunicao mediatizada, mais

    do que a inter-pessoal, colocaria os indivduos em contato com opinies e experincias

    diferentes das suas (Mutz e Martin, 2001), permitindo o compartilhamento de referncias

    alternativas para a compreenso de seu papel social.

    Na segunda das vises s quais nos referimos, a que destaca o papel dos meios de

    comunicao de massa como propagadores dos esteretipos, o que ganha salincia a relao

    entre a mdia e o exerccio da dominao, ou entre a comunicao mediatizada e a

    reproduo da hegemonia. Os esteretipos aparecem como uma dimenso da imposio pelos

    grupos e estratos de grupos dominantes de sua viso de mundo. E a mdia aparece como um

    instrumento central de sua propagao. Nesse caso, a relao entre conhecimento e superao

    dos preconceitos fica comprometida pelo fato de que o controle das informaes e mesmo a

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    produoda verdade (do que assim apresentado e poder ser assim percebido) esto no

    centro da dinmica de dominao. Um de seus aspectos a propagao de representaes

    unilaterais e homogneas da realidade, apresentadas como sendo a prpria realidade ou o que

    importa dela.

    O fato de que a mdia coloca em circulao um grande nmero de informaes , pelo menos,

    insuficiente. Nesse caso, torna-se importante avaliar a partir de que perspectivas essas

    informaes so consideradas relevantes e ganham significado. Os esteretipos no so,

    necessariamente, uma pea-chave nas anlises da mdia assim orientadas. Mas a viso

    estereotipada da realidade social, e especialmente de grupos e indivduos desigualmente

    posicionados em uma dada ordem social, participaria da naturalizao dos arranjos e

    hierarquias existentes e da conteno da crtica a eles.

    So dois argumentos, casados: a mdia difunde os esteretipos; a mdia, dada sua centralidade

    na construo do ambiente social contemporneo, colabora para a naturalizao dos

    esteretipos ao confirmar cotidianamente determinadas vises de mundo, em detrimento de

    outras. Parte ampla da crtica feminista mdia comercial se encaixa nessa viso, ao analisar

    a naturalizao do pertencimento da mulher esfera privada e dos arranjos familiares que o

    justificam e reforam3, assim como o destaque dado ao corpo e aparncia fsica das

    mulheres4. Mas possvel, tambm, associar a essa vertente anlises voltadas para problemas

    de outra ordem, como o impacto da socializao dos jornalistas dentro e fora das redaes

    para a percepo que tm do que notcia e de quais perspectivas sociais so vlidas ou

    merecem destaque na cobertura noticiosa5.

    importante ressaltar que a mdia igualmente importante para as duas vises aqui indicadas

    destacando seu papel na superao dos esteretipos e em sua reproduo e naturalizao.

    Mas isso no significa que as anlises avancem, necessariamente, na reflexo sobre a

    3 Um exemplo interessante a anlise da mdia estadunidense nos anos 1950, especialmente das revistasproduzidas para o pblico feminino, feita por Betty Friedan em The feminine mystique (1997 [1963]).4Em textos menos centralizados na mdia, como o de Naomi Wolf (2002 [1991]) ou preocupados, de fato, como impacto da mdia para as relaes de gnero e a participao das mulheres na poltica, como em Miguel eBiroli (2011) ou em Kahn (1996).5O pertencimento dos jornalistas a uma classe mdia branca levaria identificao com alguns grupos sociais e

    problemas (em anlises distintas, como as de Schudson (1997, p. 8), Ettema e Glasser (1998) ou Miguel e Biroli(2010)), assim como o ambiente profissional os levaria a perceber a poltica a partir da posio privilegiadadaqueles que se tornam suas fontes (Cook, 1998).

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    dinmica social de produo e reproduo dos esteretipos ou mesmo sobre de que modo

    essa dinmica est relacionada ao funcionamento dos meios de comunicao.

    Opaperprocura justamente contribuir para que essa reflexo avance. Foi produzido a partir

    de questes e reflexes relacionadas a pesquisa emprica sobre a presena de mulheres no

    noticirio poltico, tendo como um de seus eixos a anlise dos esteretipos na mdia. H,

    aqui, um esforo para discutir a relao entre mdia e esteretipos sem tratar,

    especificamente, de gnero. A idia que a anlise colabore para estudos que tratem de

    outros grupos sociais ou outras questes relativas definio da agenda e dos

    enquadramentos na mdia. Como se ver, porm, os exemplos e referncias presentes no

    texto remetem a anlises dos esteretipos de gnero. O dilogo com a pesquisa sobre

    esteretipos de gnero marca a reflexo, ainda que se tenha ampliado o foco.

    Pelos caminhos indicados, chegamos a um argumento central, que orienta a discusso neste

    paper: necessrio abandonar a dualidade entre mdia/superao dos esteretipos e

    mdia/propagao dos esteretipos, para que seja possvel chegar a uma forma mais complexa

    e matizada de compreenso da relao entre mdia, esteretipos e exerccio de poder.

    Consideramos que esse passo foi apenas iniciado aqui.

    A anlise a seguir se organiza em duas sees, alm desta introduo e de uma breve

    concluso. A primeira discute o conceito de esteretipo, propondo que seja compreendido

    como artefato moral e ideolgico. A segunda apresenta uma anlise terica das relaes entre

    mdia e esteretipos, procurando, ento, indicar algumas das continuidades e diferenas entre

    o conceito de esteretipo e um conceito que vem sendo importante no campo das anlises da

    mdia e da poltica, o de enquadramento. Procura, sobretudo, localizar o funcionamento da

    mdia na dinmica social de produo e reproduo dos esteretipos.

    1. Esteretipos, codificao e poder

    possvel compreender os esteretipos como dispositivos cognitivos que facilitam o acesso a

    novas situaes e informaes. Isso significa que equivalem a categorias que definem

    padres de aproximao e de julgamento que orientam a leitura do novo a partir de

    referncias prvias. Nesse sentido, reduzem a complexidade das interaes concretas e

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    contribuem para ampliar o grau de previsibilidade nas novas interaes: fundados em

    simplificaes, os esteretipos diminuem as variaes e matizes presentes nas trajetrias e

    comportamentos individuais, que se definem e se explicitam em interaes e contextos

    sociais especficos.

    Para esta discusso, importante estabelecer a diferena entre o entendimento dos

    esteretipos como esquemas simplificadores e sua definio como representaes falsasda

    realidade. A leitura dos esteretipos como equvocos pressupe que exista uma distino

    clara entre imagens simplificadas (e, nesse caso, falseadas) da realidade e a maneira como

    essa realidade vivenciada pelos indivduos e grupos sociais. Mas justamente porque os

    esteretipos esto na base das representaes que so internalizadas pelos prprios

    indivduos, orientando suas aes, que no existe uma fronteira clara entre o falseamento e a

    realidade. Os esteretipos no so representaes que deturpam modos de ser (carter,

    personalidade, disposies individuais) que existiriam de maneira prvia ou independente dos

    processos sociais de definio de papeis e disposio dos valoreseles so parte da dinmica

    social na qual se definem carter, personalidade e disposies individuais.

    A vivncia das relaes sociais fornece os recursos para a construo das identidades e os

    esteretipos fazem parte da dinmica complexa de codificao dos papeis e comportamentos.

    Considerando que mesmo a atividade mentalindividuals existe como orientao social

    de carter apreciativo (Bakhtin, 1995 [1930], p. 114), isto , tem as interaes sociais como

    sua matria, a oposio entre as representaes sociais (includos aqui os esteretipos) e as

    identidades concretas de indivduos e grupos no se sustenta.

    Para Tessa Perkins (1979, p. 140, apudSeiter, 1986, p. 66), argumentar que os esteretipos

    so falsos equivale a argumentar que definies socialmente aceitas dos sujeitos no tm

    efeito sobre eles, isto , no tm impacto no modo como, concretamente, percebem a si

    mesmos e interagem com outros indivduos. Para ela, mais adequado entender os

    esteretipos como uma combinao de validade e distoro (Perkins, 1979, p. 154, apud

    Seiter, 1986, p. 66). Em outras palavras, no existe necessariamente uma oposio entre as

    distores que os esteretipos envolvem e o modo como as experincias dos indivduos se

    organizam concreta e efetivamente. Se h tenses, essas devem ser entendidas como parte das

    continuidades entre os esteretipos e as interaes sociais concretas, nas quais as distores

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    tomam a forma de interpelaes para que os indivduos ajam de uma determinada forma ou

    enquadrem o prprio comportamento e os comportamentos dos outros nos esquemas

    fornecidos pelos padres estereotpicos.

    Esteretipos e realidade alimentam-se um do outro, confirmando papis, comportamentos e

    valores socialmente produzidos. Para utilizar os esteretipos de gnero como exemplo, a

    construo de uma imagem da mulher naturalmente associada a determinados espaos,

    como a casa, e a atividades especficas, como o cuidado com os filhos e outros familiares,

    no pode ser analisada, produtivamente, a partir da dualidade entre falsidade e verdade. Em

    vez de analis-la como falsa ou verdadeira, seria mais adequado compreend-la como uma

    interpelao concretapara que mulheres, a cada gerao, orientem seu comportamento de

    acordo com esses padres, com as habilidades a envolvidas. Nesse sentido, pode-se

    considerar que, internalizadas, as imagens estereotpicas produzem padres reais de

    comportamento que confirmam, potencialmente, os esteretipos. Estes passam, assim, a

    coincidir com aspectos constatados e verificveis da realidade. Nesse mesmo exemplo, o

    conflito de tantas mulheres com os papeis que so chamadas a desempenhar aparece como

    um desvio, em vez de ser a confirmao de que a realidade mais complexa.

    Os esteretipos permitem, duplamente, a tipificao do outro e a localizao de si numa

    escala comum de valores. Alm de ser viciada, a relao entre esteretipos e realidade est

    ligada, assim, a vrias formas de exerccio de poder, com graus variados de

    institucionalizao, que impem nus e desvantagens materiais e simblicos aos desviantes.

    A reproduo dos esteretipos est associada confirmao e naturalizao de padres

    valorativos.

    Por isso preciso distinguir entre o carter facilitador e simplificador dos esteretipos e as

    formas de rotulao e de diferenciao entre padres normais e desviantes. Fatores como

    simplicidade, reconhecimento imediato e referncia implcita a consensos presumidos sobre

    os atributos de indivduos e grupos (Perkins, 1979, p. 141, apud Seiter, 1986, p. 66), que

    constituem os esteretipos, tm seu sentido definido em relaes de poder concretas. Os

    rtulos so, ao mesmo tempo, atalhos cognitivos e efeitos dessas relaes de poder. No se

    trata, assim, de reduzir os esteretipos a quaisquer categorias facilitadoras. Eles

    correspondem a rtulos socialmente definidos a partir das possibilidades que tm os

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    diferentes grupos de fazer circular, e mesmo de institucionalizar, discursos que confirmam

    padres morais de julgamento. Podem existir, assim, conexes importantes entre a facilitao

    no acesso realidade e nas interaes sociais, a rotulao e a confirmao de (ou reao a)

    hierarquias e formas de opresso.

    Isso nos leva a compreender os esteretipos como artefatos morais e ideolgicos. Neles, o

    carter moral dos valores e julgamentos est atrelado aos dispositivos ideolgicos de

    legitimao de papeis e posies em uma dada ordem social. As interaes so moralmente

    codificadas e cada encontro face-a-face ou mediado mobiliza valores e julgamentos

    prvios s circunstncias em que se d (Newman, 1975, p. 209). Os esteretipos

    correspondem definio do outro e do contexto em que as relaes se travam em termos de

    expectativas sociais padronizadas que, por sua vez, pressupem valores. O prprio conceito

    de papel social pode ser entendido como um conceito moral, no sentido de que envolve

    atributos, direitos e deveres determinados; a noo de desvio , igualmente, uma idia moral

    (Newman, 1975, p. 209-10).

    Mas se, de um lado, possvel sustentar sem maiores ressalvas o carter moral dos

    esteretipos, ressaltando sua relao com valores socialmente compartilhados e seu papel na

    distino entre padres legtimos e desviantes, entre comportamentos e traos apreciados e

    desvalorizados, preciso ter mais cuidado ao defini-los como artefatos ideolgicos.

    Uma primeira alternativa, nesse ponto, seria afirmar que so ideolgicos porqueequivalem a

    formas de codificao da realidade que colaboram para legitimar a ordem social vigente, ou

    alguns dos seus aspectos. O problema que essa afirmao poderia levar ao entendimento de

    que os esteretipos so mobilizados apenas por quem est em posio social vantajosa, contra

    ou em desfavor daqueles que so mais vulnerveis socialmente. Parece-nos, diferentemente,

    que podem ser mobilizados tambm como uma espcie de contra-face do exerccio

    continuado do poder. Ainda que a eles no corresponda, necessariamente, uma crtica

    consistente s bases da dominao, sua existncia nos leva a reconhecer que os significados

    atribudos s relaes e papeis variam e no reproduzem, necessariamente, a posio de poder

    objetiva dos grupos. Para tomar dois exemplos conhecidos, o macho ignorante e incapaz de

    fazer valer a autoridade que propagandeia e o americano sem sofisticao e conhecimento

    esto nas piadas e mesmo nos programas humorsticos televisivos. O poltico ladro to

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    comum quanto so raras ou restritas as crticas s bases da concentrao do poder nos

    regimes democrticos, mas no deixa de ser, igualmente, um ndice de que a subverso das

    hierarquias faz parte da dinmica de produo e reproduo social dos esteretipos.

    Os esteretipos remetem s relaes de poder, mas em diferentes sentidos: confirmando-as ou

    demonstrando que as perspectivas daqueles em posio de desvantagem podem no coincidir

    com as dos poderosos ainda que estes detenham os meios para divulgar ampla e

    positivamente seus valores e marcar negativamente ou coibir a propagao de outros valores.

    Feita essa ressalva, que central para a discusso sobre mdia e esteretipos e ser retomada

    em breve, necessrio levar em conta que os esteretipos podem funcionar como recursos

    para a confirmao das hierarquias ou podem, diferentemente, funcionar como uma forma de

    reelabor-las, como nos rumores, piadas, canes, provrbios e eufemismos que fazem parte

    da cultura dos dominados e de suas formas de resistncia cotidiana, analisados por James C.

    Scott (1990). Poderiam, nessa segunda forma, ser parte das evidncias de que o libreto da

    elite para as hierarquias de nobreza e respeito no , na realidade, cantado palavra por palavra

    pelos que a esto sujeitos a elas (Scott, 1985, p. 41).

    A crtica feita por Scott s noes de falsa conscincia e de hegemonia orienta o olhar para as

    fissuras existentes nas relaes de dominao, com a observao das prticas e dos discursos

    elaborados pelos dominados. As pesquisas do autor chamam a ateno para as tenses e

    contradies entre os discursos elaborados pelos dominantes, que so publicamente dispostos

    como o entendimento legtimo das relaes de poder, e aqueles que so produzidos pelos

    subordinados em espaos sociais restritos e relativamente independentes, nos quais esto

    protegidos do olhar daqueles que lhes so hierarquicamente superiores. Apesar da distncia

    entre os problemas tratados pelo autor (baseados, inicialmente, no estudo das formas de

    resistncia cotidiana entre camponeses na Malsia) e aqueles aqui discutidos, h pelo menos

    trs aspectos que nos parecem cruciais. Em primeiro lugar, o consentimento dos

    subordinados (que, no nosso caso, remete relativa aceitao dos esteretipos por aqueles

    que tm suas identidades restritas ou desvalorizadas por eles) pode ser uma encenao

    pblica que oculta, estrategicamente, seu desdm ou sua descrena na legitimidade do poder,

    evitando o nus de assumi-la publicamente. H mais, em segundo lugar, do que o que est

    contido nos registros pblicos. Em outras palavras, a tenso entre os registros pblicos e os

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    registros ocultos, no sentido a eles atribudo por Scott, colocaria em questo a prpria noo

    de hegemonia, ao expor os lugares em que os discursos subversivos, dissidentes e no-

    hegemnicos so produzidos (Scott, 1990, p. 25). No nosso caso, isso remete a algo bvio,

    mas nem sempre mobilizado nas anlises, o fato de que a mdia de grande circulao no

    contm todos os discursos socialmente relevantes em um dado momento.

    Por fim, em terceiro lugar, so os grupos dominantes que definem a fronteira entre os

    discursospara Scott, entre os registros pblicos e os ocultos, para esta discusso, entre os

    que so amplamente difundidos e deixam de ser percebidos como elaboraes parciais e

    aqueles que permanecem como manifestaes localizadas e marginais em relao aos

    discursos que ganham legitimidade pblica. O grau de liberdade discursiva uma varivel

    relevante. Mas sua existncia, bem como a ausncia de censura ou restries circulao dos

    discursos, no significa que os diferentes registros e, no caso, esteretipos alinhados ou no

    alinhados s concepes hegemnicas do poder circularo em p de igualdade, tero o

    mesmo impacto potencial ou funcionaro, igualmente, como incitaes construo das

    identidades a partir de padres morais definidos.

    Voltando ao exemplo dos esteretipos de gnero, e tomando especificamente a valorizao da

    maternidade associada vinculao (e potencial restrio) da mulher ao espao domstico, o

    reconhecimento de que o esteretipo da mulher maternal incita a comportamentos a ele

    alinhados no explica ou totaliza a vivncia das mulheres. Pode ser, pelo contrrio, uma

    projeo desejvel a partir das prprias relaes de dominao, tomando padres morais

    como experincias reais. A idia de que h efetivamente incorporao ideolgica pode no

    corresponder a uma constatao emprica a partir da experincia dos sujeitos, mas a discursos

    que so produto das relaes de dominao e que demonstrariam evidncias do

    consentimento, da cumplicidade e do entusiasmo dos subalternos (Scott, 1990, p. 86). O fato

    de que os recursos para fazer circular esses discursos e para posicion-los e atribuir-lhes peso

    social no estejam igualmente disponveis a ricos e pobres, homens e mulheres, negros e

    brancos devem ser considerados ao se discutir os esteretipos como artefatos morais e

    ideolgicos.

    Afastando a noo de falsa conscincia e, portanto, deixando de lado as definies de

    ideologia mais prximas da idia de iluso e manipulao, possvel aproximar os conceitos

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    de esteretipo e ideologia sem recorrer oposio entre veracidade e falsidade. possvel

    aproxim-los, tambm, evitando o risco de compreender a hegemonia como eliso da

    resistncia. A partir de algumas das abordagens correntes de ideologia, os esteretipos podem

    ser entendidos como artefatos ideolgicos no sentido de que so expresses de uma verso

    da realidade social que suficientemente real e reconhecida para que no seja simplesmente

    rejeitada (Eagleton, 1997 [1991], p. 27). Sua realidade estaria em seus efeitos reais, mesmo

    quando em sua base esto mentiras e vises parciais que so transmutadas em fatos de

    validade universal6.

    O discurso ideolgico constitudo por elementos empricos e normativos, mas os primeiros

    so sempre definidos pelos requisitos dos ltimos (Eagleton, 1997 [1991], p. 33). E essa

    normatividade que estabelece o elo entre a codificao da realidade pelos discursos e as

    relaes de poder. Tomadas essas definies, a melhor forma de lidar com os discursos ou

    enunciados ideolgicos no parece ser questionar sua veracidade ou falsidade, propondo-se a

    distinguir entre elas, mas compreender que esses discursos, com seus componentes empricos

    e normativos, so parte dos esforos para a legitimao de certos interesses em uma luta de

    poder (Eagleton, 1997 [1991], p. 28). Os esteretipos podem ser compreendidos como parte

    dessa mesma dinmica, atendendo lgica mencionada, na qual distoro e validade

    caminham juntas, desde que se leve em considerao que h conflitos, contradies e

    dissonncias na sua produo e circulao. E que a relao entre os grupos sociais e os

    esteretipos difundidos varivel, dependendo de sua localizao social e de sua posio nas

    relaes de poder.

    possvel aproximar os dois conceitos tambm quando se trata de observar como se d o

    trnsito entre o especfico e o universal. A compreenso da ideologia como a matria da

    qual cada um de ns feito, o elemento que constitui nossa prpria identidade e algo que

    no colocado em questo porque se apresenta como bvio e sabido por todos remete,

    novamente, ao problema da construo social das identidades. O discurso ideolgico

    6A compreenso da ideologia como interpelao, presente em Louis Althusser (2003 [1971]), permitiria avanarem uma das compreenses possveis desse paralelo entre o conceito de ideologia e o de esteretipo. Para oautor, a existncia da ideologia e a interpelao dos indivduos enquanto sujeitos so uma nica e mesma

    coisa (p. 97). Nisso consiste a tenso entre a constituio das identidades (a constituio dos indivduos como

    sujeitos) e a sujeio (a ocupao de posies previamente estabelecidas nas relaes de poder), resumida naconhecida formulao de que os sujeitos se constituem pela sua sujeio (p. 104).

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    apresenta-se como verdade universal que no precisa ser submetida anlise racional

    (Eagleton, 1997 [1991], p. 28). E os esteretipos se alimentam da ausncia de anlise racional

    dos valores que os estruturam. Seriam o reflexo das identidades, o desdobramento de

    comportamentos, gostos e tendncias fundados na natureza, na biologia, na identidade

    inevitvel. Apresentadas como caracterizaes fundadas empiricamente, derivadas da

    constatao da natureza especfica dos indivduos e dos grupos sociais estereotipados, no

    aparecem como julgamentos, mas como imagens de carter descritivo.

    Os esteretipos produzem, ao mesmo tempo e de maneira conflitiva, a identificao por

    outros, a distino e a identidade (como internalizao de formas de identificao e de

    distino). Confirmam e reproduzem vantagens, desvantagens e vulnerabilidades, expressas

    em posies de poder relativas. Ainda que esteretipos, preconceitos e formas de

    discriminao no possam ser tomados como um nico fenmeno7, h um continuumentre

    uns e outros na produo social das identidades tipificadas dos grupos e indivduos. Nesse

    sentido, os esteretipos podem promover a discriminao, influenciando sistematicamente

    as percepes, interpretaes e julgamentos, mas podem tambm derivar de e ser reforados

    por formas de discriminao, justificando disparidades entre os grupos sociais (Dovidio,

    Hewstone, Glick e Esses, 2010, p. 7). Nesse sentido, podem ser vir disposio, nos

    discursos, das posies hierrquicas como distines padronizadas que confirmam as

    disposies naturais dos diferentes grupos. Mas o fato de os esteretipos serem efeitos de

    relaes de poder que eles, ento, confirmam retrospectivamente, no exclui resistncias e

    tenses. Do mesmo modo, a internalizao dos esteretipos no exclui resistncias e formas

    variadas de mal-estar decorrentes do modo como funcionam socialmente8.

    7Podem ser entendidos como trs formas de atitude social enviesada contra um grupo e os indivd uos quedele fazem parte. Os esteretipos corresponderiam a associaes e atribuies de caractersticas especficas a

    um grupo; os preconceitos corresponderiam a uma atitude que reflete uma avaliao abrangente de um

    grupo; e a discriminao corresponderia a comportamento enviesado relativo a, e no tratamento de, um grupo

    ou seus membros (Dovidio, Hewstone, Glick e Esses, 2010, p. 5).8 possvel, no entanto, que, como sugere Cass Sunstein (2010 [2009], p. 52) ao falar dos rumores, sejanecessrio explicar os efeitos dos esteretipos em diferentes indivduos e grupos considerando o ambiente emque a ateno seletiva e as preferncias se constituem, as referncias e pr-disposies dos indivduos, mastambm as presses do conformismo. Isso significa dar uma importncia ainda maior ao compartilhamentodas imagens estereotpicas, j que o peso da maioria pode ser uma das variveis que age favoravelmente a sua

    reproduo.

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    O questionamento do papel da mdia na difuso e reforo dos esteretipos , em si mesmo,

    um exemplo dessas tenses e formas de mal-estar. Os conflitos em torno da ressignificao

    dos papeis, da redistribuio de recursos e do reconhecimento de grupos e prticas sociais

    passam, frequentemente, pelo questionamento dos esteretipos ativos em uma sociedade. Isso

    , por si s, um ndice de que h circuitos variados de comunicao, que no se restringem

    grande mdia e aos discursos hegemnicos. O reconhecimento do peso dos meios de

    comunicao nos fluxos comunicativos nas sociedades contemporneas refora, porm, a

    necessidade de entender se e como a dinmica de reproduo dos esteretipos envolve a

    mdia. E torna necessrio analisar como se d a interao entre os diferentes circuitos de

    comunicao e, simultaneamente, entre eles e os grupos que tm posies (de classe,

    ocupao, sexo, raa, idade) socialmente diferenciadas.

    Esteretipos e mdia

    Os esteretipos podem assim, ser entendidos como atalhos cognitivos que facilitam o

    processamento das informaes, desde que se leve em conta que isso se d em contextos

    sociais especficos e em relao a formas definidas do exerccio do poder e das reaes que

    suscitam. Correspondem ao perfil de nossas expectativas normativas em relao conduta e

    ao carter (Goffman, 2008 [1963], p. 61), remetendo a valores morais e discursos

    ideolgicos socialmente produzidos e mobilizados.

    No possvel entender os esteretipos, portanto, como originriosda mdia ou das formas

    de sociabilidade reorganizadas pelo advento dos meios tcnicos de difuso massiva9.

    Anlises como as de Joshua Meyrowitz (1985), citado antes neste paper, afirmam justamente

    o contrrio. O advento da mdia eletrnica teria produzido transformaes nos padres de

    interao e nos comportamentos que potencializaram o questionamento das referncias

    tradicionais, alterando os prprios papeis sociais.

    Mas a presena dos esteretipos no discurso miditico pode colaborar para seu impacto e

    9 Joshua Meyrowitz (1985) afirma justamente o contrrio. Para ele, o advento da mdia eletrnica produziutransformaes nos padres de interao e nos comportamentos que potencializaram o questionamento dasreferncias tradicionais, alterando os prprios papeis sociais.

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    permanncia. Difundidos para um grande nmero de pessoas, transformam-se em referncias

    compartilhadas que fazem parte, simultaneamente, da experincia individual e social.

    Permitem, por exemplo, que um determinado comportamento ou bordo seja referncia

    comum a indivduos que nunca tiveram contato direto e esto posicionados socialmente (por

    classe, ocupao, sexo, raa, idade) de maneiras diversas. Definem eventos e indivduos

    distantes a partir de imagens j conhecidas do pblico, moralmente codificadas, e apresentam

    novas situaes em narrativas que mobilizam sentidos e informaes que lhe so familiares.

    Nas sociedades contemporneas, os meios de comunicao tm um papel central na difuso

    de representaes do mundo social. A relao com o mundo mediada por imagens

    produzidas e difundidas em escala industrial, fazendo com que nossas referncias sejam

    definidas a partir de uma fuso entre o mundo com o qual temos contato diretamente e o

    mundo que conhecemos pelas telas da TV ou pelas pginas de revistas e jornais. Dessa

    perspectiva, preciso pensar na complementaridade entre diferentes modalidades de relao

    com o mundo, mas tambm na dependncia cognitiva dos indivduos em relao aos meios

    de comunicao nas sociedades midiatizadas. Mais do que medir o que a mdia nos oferece

    pela realidade direta que nos estaria mo, orientamo-nos por um conjunto de informaes

    cuja relevncia e pertinncia no podemos, muitas vezes, medir sem recorrer prpria mdia.

    Isso vale, especialmente, para os eventos, esferas e indivduos com os quais s temos contato

    atravs da mdia.

    Mas a distncia fsicae o conhecimento limitadodos objetos e atores estereotipados no

    condio sine qua nonpara que os esteretipos se reproduzam. No lidamos com imagens

    estereotipadas porque no tivemos acesso natureza real das coisas e dos indivduos 10. H

    um continuumentre o desempenho cotidiano dos papeis atribudos aos grupos e os padres

    sociais que definem os valores e expectativas que esto na base da avaliao desse

    desempenho. Em outras palavras, as relaes e circunstncias que nos so mais prximas e

    10Essa compreenso muito comum na literatura infantil contempornea progressista. Um exemplo bastantecaracterstico pode ser encontrado na histria de Cludia Fries (2000 [1999]) sobre o momento em que osmoradores de um prdio, uma galinha, uma raposa e um coelho, ganham um novo vizinho. A excitao com anovidade acaba quando descobrem que quem vai ocupar o apartamento vago um porco. Da em diante,qualquer fato confirma o que j sabem, porcos so sujos. At que percebem que haviam lido mal as informaesdisponveis e descobrem que aquele porco tem nome, casa limpa, bom gosto e hbitos que eles aprovam. Nessecaso, o esteretipo superado pelo acesso verdade sobre os fatos, mas tambm pela assimilao do outro

    aos padres normativos de referncia.

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    que se ligam mais fortemente s nossas identidades individuais tambm so investidas de

    sentidos definidos por expectativas padronizadas. As relaes de gnero so, novamente, o

    exemplo ao qual recorremos. Nelas, os esteretipos organizam as expectativas quanto ao

    papel de mulheres e homens nas relaes familiares, afetivas, profissionais, polticas,

    atravessando as esferas em que as atividades relacionadas a esses papeis se realizam: esse

    um dos sentidos da afirmao de que a conexo entre os aspectos domstico e no-domstico

    da vida profunda (Okin, 1989, p. 126). Fundados em definies do papel adequado da

    mulher na esfera domstica, os esteretipos de gnero permeiam outros espaos e interaes,

    impondo limites a sua atuao. As formas de definir e restringir o papel da mulher na

    esfera domstica organizam suas possibilidades de atuao em outras esferas, como a

    profissional e a poltica.

    A caracterizao de indivduos em situaes prximas e ntimas se d, assim, a partir de

    expectativas sociais padronizadasa especificidade de uma relao conjugal no impede, por

    exemplo, que o comportamento daquela esposa seja avaliado relativamente ao esteretipo

    socialmente predominante da boa me (no exemplo dado por Goffman, 2008 [1963], p.

    63).

    Em outra direo, mas com efeitos complementares aos da primeira, objetos e atores que nos

    so distantes so julgados a partir de experincias cotidianas que confirmam os esteretipos.

    A especificidade da atuao de homens e mulheres na poltica, por exemplo, no impede que

    sejam avaliados a partir de categorizaes que os reduzem ao que seria tpico do seu sexo.

    comum que a avaliao da competncia das mulheres para a poltica seja fundada nas

    expectativas e padres convencionais que organizam os papeis na esfera domstica (como

    expem Bystrom, Banwart, Kaid e Robertson, 2004; Iyengar, Valentino, Ansolabehere e

    Simon, 1997; Kahn, 1996; Miguel e Biroli (2011). Assim, a avaliao das habilidades de

    mulheres e homens para a poltica parece ser parte dessa dinmica complexa em que os

    esteretipos so confirmados ou contestados a partir de referncias pertencentes a diferentes

    camadas da experincia.

    Nos dois casos o da avaliao do que nos familiar a partir de expectativas sociais

    padronizadas e o da avaliao de espaos e atores com os quais no temos contato direto a

    partir das formas assumidas pelas interaes sociais na vida cotidiana e na esfera domstica

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    a reproduo dos esteretipos corresponde naturalizao de caractersticas e competncias.

    Pode corresponder, ainda, naturalizao do pertencimento distinto dos indivduos aos

    diferentes campos sociais. Os meios de comunicao participam desse processo de

    naturalizao dos pertencimentos e das excluses.

    A centralidade dos meios de comunicao nas sociedades contemporneas est relacionada

    ao fato de que nossa experincia hoje, em grande parte, mediada por aparatos tcnicos que

    difundem contedos de forma massiva. O acesso a informaes sobre eventos que no

    presenciamos e o compartilhamento de referncias entre indivduos que se desconhecem

    mas que tm acesso aos mesmos contedos miditicosesto no centro da experincia social

    contempornea. Nas abordagens diversas do funcionamento da mdia, so discutidos ou ao

    menos pressupostos seus impactos sobre a sociabilidade contempornea, as percepes e as

    preferncias dos indivduos.

    freqente, entre estudiosos e jornalistas, a meno afirmao feita por Walter Lippmann

    (1985[1922]) de que h uma correspondncia entre nosso comportamento e as imagens que

    esto nas nossas mentes so formadas pelas imagens, mais do que entre o nosso

    comportamento e a realidade exterior. E essas, por sua vez, esto relacionadas s informaes

    disponveis na mdia (de entretenimento e noticiosa). Esse um caminho para a presuno de

    que existe uma correlao direta entre o que os meios de comunicao produzem e veiculam

    e como pensaro as pessoas que esto expostas a eles. Em outras palavras, para uma relao

    de causalidade entre os contedos difundidos pela mdia e as formas assumidas pela opinio

    pblica.

    De l para c, essa tese convive com vrias outras, que a confrontam ou se acomodam a ela

    em diferentes graus. A reao crtica chamada teoria hipodrmica est baseada no fato de

    que o pblico no responde aos contedos miditicos de forma direta e pr-determinada,

    como se poderia esperar. As relaes entre os meios de comunicao e seu pblico no

    podem ser isoladas de uma srie de influncias e variveis que compem o horizonte

    cognitivo e poltico dos indivduos. As imagens presentes nas nossas mentes, para voltar

    formulao de Lippmann, so formadas por um conjunto complexo de referncias

    disponveis, entre as quais esto aquelas fornecidas pelos discursos miditicos. preciso

    considerar pelo menos dois fatores: o primeiro que as informaes e imagens

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    disponibilizadas pela mdia ganham sentido relacionadas a um conjunto de outras

    informaes e imagens acumuladas ao longo da trajetria dos indivduos, isto , so

    decodificadas emseu ambienteprximo, em processos cognitivos que so marcados por sua

    posio social. Isso nos obriga a lembrar que se o contedo miditico , em larga medida,

    produzido de forma concentrada e homognea, a recepo sempre localizada e socialmente

    posicionada (Thompson, 2002 [1990]).

    O segundo fator, na considerao da complexidade da relao entre a mdia e o pblico, que

    o discurso miditico, ainda que tenha um alto grau de homogeneidade, no ordenado de

    modo coerente. H posies e imagens conflitantes sendo difundidas pelos meios de

    comunicao simultaneamentee esses meios de comunicao no so um bloco indistinto.

    Alm disso, o efeito do que difundido depende dos segmentos do pblico que a ele esto

    expostos, em suas variaes scio-econmica, de gnero, de raa, de faixa-etria, no nvel

    educacional, nas crenas e afiliaes religiosas, local de habitao, padres das relaes

    familiares, entre outros aspectos.

    Isso no significa deixar de lado a assimetria entre a produo/difuso e a recepo dos

    contedos de mdia. No significa, tambm, diminuir a importncia da concentrao da

    propriedade dos meios de comunicao e das rotinas profissionais do jornalismo na

    padronizao dos contedos miditicos e, em especial, dos noticirios. O ponto que disso

    no decorre um conjunto de imagens e informaes que convergem em um nico

    entendimento ou viso de mundo, nem disso se pode presumir um impacto-padro dos

    contedos veiculados sobre os diferentes segmentos do pblico11.

    A crtica ao entendimento de que as opinies refletem os discursos veiculados pelos meios

    de comunicao convive, nesta argumentao, com a constatao da centralidade desses

    11Mesmo considerando que os valores capitalistas e a incitao ao consumo esto na base do modo de produoe circulao dos contedos miditicos ou, em outro ngulo mas ainda com o mesmo entendimento, que osmeios de comunicao so um elo da dinmica de consumo nas sociedades contemporneas -, a compreensodos meios de comunicao como instrumentos dos interesses econmicos hegemnicos pode deixar de lado acomplexidade das disputas simblicas e os matizes e conflitos entre as posies relativas a tpicos e interessesvariados. Um exemplo a relao da mdia brasileira de grande circulao com tpicos como o papel do Estadona economia (em que h um alto grau de convergncia nos noticirios) e com tpicos como as orientaesreligiosas para o comportamento sexual e o controle reprodutivo (em que h variaes e matizes que devem serconsiderados). A no ser que se presuma que um desses tpicos mais relevante do que o outro, no

    justificvel definir o comportamento e os discursos dos meios de comunicao apenas a partir de um deles.

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    meios na definio do ambiente social e poltico contemporneo. A dependncia cognitiva

    dos indivduos em relao aos meios informativos um aspecto dessa centralidade. As

    relaes que estabelecemos com algumas esferas da vida em sociedade consistem, quase

    inteiramente e sistematicamente , em contatos mediados por esses aparatos de

    comunicao. A relao com o campo poltico institucional, com sua dinmica e seus atores,

    um exemplo. Para a maior parte das pessoas, a poltica, isto , um modo restrito de

    compreenso da poltica que a reduz, grosso modo, ao Estado, aquilo que visvel

    midiaticamente.

    A teoria do agenda setting, em suas diferentes verses, procurou dar conta justamente do fato

    de que os meios de comunicao podem no ser capazes de definir como os indivduos

    pensam, determinando suas opinies e preferncias. Mas definem, em grande medida, os

    temas sobre os quais eles pensam. Nesse sentido, fica difcil estabelecer fronteiras entre o que

    socialmente relevante para os cidados em um dado momento e o que a agendada mdia

    torna saliente. A hiptese, nesse caso, que existe uma correlao significativa entre relevo

    nos meios de comunicao e relevnciapara o pblico.

    Maxwell McCombs (2009 [2004]) define dois tipos de agendamento: temtico e de atributos.

    Partindo de suas observaes, fundadas em pesquisas empricas de vrios autores sobre o

    impacto dos discursos miditicos sobre o pblico, podemos trabalhar com o entendimento de

    que: (1) a agenda da mdia tem impacto na definio da agenda do pblico; (2) isso implica

    no compartilhamento de temas, mas tambm de formas de caracterizao e valorizao

    desses temas; (3) a agenda temtica inseparvel dos enquadramentos que organizam o

    acesso aos temas, isto , das molduras que tornam os temas visveis em uma narrativa que

    lhes d sentido.

    De maneira semelhante definio dada aos esteretipos na seo anterior deste paper, os

    enquadramentos podem ser definidos como esquemas simplificadores e como atalhos

    cognitivos. Essa definio envolve o fato de que organizam o mundo para os jornalistas e

    para o pblico ao permitirem que um evento novo ganhe sentido em narrativas

    relativamente estveis, j cristalizadas. Os fatos ganham salincia em uma causalidade e

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    segundo definies e valoraes cristalizadas12. De maneira semelhante aos esteretipos, eles

    pressupem valores e no apenas referncias comuns. Parece-nos que os esteretipos so,

    assim, pea-chave para que os enquadramentos tenham eficcia. As imagens tipificadas dos

    grupos sociais permitem mobilizar, mais do que referncias comuns, julgamentos que,

    compartilhados, do sentido aos acontecimentos.

    A atribuio de statusaos atores e a estereotipia, entendida como construo da imagem que

    envolve a salincia de atributos, so dois aspectos presentes na agenda (McCombs, op. cit., p.

    135). Isso possvel quando o agendamento entendido em seu sentido mais amplo:

    salincia de temas, que se tornam visveis em caracterizaes e enquadramentos definidos. A

    seleo das temticas presentes no noticirio envolve, assim, o recurso a narrativas por meio

    das quais essas temticas fazem sentido. razovel, por tudo que foi dito anteriormente sobre

    esteretipos e enquadramentos, que essas narrativas atendam a padres simplificadores e que

    estes, por sua vez, envolvam rotulaes e distines. Isso est menos relacionado a formas de

    manipulao ou distoro estrategicamente impetradas do que aos discursos e esteretipos

    disponveise que ganham peso e legitimidade em uma configurao especfica das relaes

    de poder, em um dado contexto.

    Isso ocorre em duas etapas da produo do discurso miditico: a da seleo dos temas

    relevantes, que envolve a seleo de quem est capacitado e disponvel para falar sobre eles,

    e a dos enquadramentos, isto , da apresentao desses temas e personagens em narrativas

    especficas. Os esteretipos podem ser fatores de seleo e organizao dos sentidos nas duas

    etapas (que foram separadas, aqui, apenas para facilitar a argumentao). Na primeira, a

    seleo de temas e personagens pode atender s expectativas-padro sobre o que

    socialmente relevantee quem habilitado a emitir opinies sobre aquilo que ganha destaque.

    Pode-se supor, nesse sentido, que no existe uma fronteira clara entre statuse esteretipos,

    mesmo quando se pensa em cargos e posies institucionais que conferem statusqueles que

    as ocupam: eles potencializam uma visibilidade competente, mas no a garantem. Se o

    12Entendo que a aproximao entre esteretipos e enquadramentos permite desenvolver essa discusso paraalm dos seus limites neste texto. Os argumentos aqui presentes foram se definindo, preliminarmente, a partir daleitura da obra Goffman. Ainda que de maneira indireta, esta discusso tributria das reflexes do autor emEstigma (2008[1963]) Frame analysis (2006[1975]) e A representao do eu na vida cotidiana(2009[1959]).Para um conjunto variado de anlises que recorre a esse conceito, assim como discusses sobre seus limites e

    potenciais, sugiro a leitura de Callaghan e Schnell (eds., 2005).

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    acesso s janelas de visibilidade (Gomes, 2008) restritas no noticirio poltico depende de

    posies institucionais, esse acesso, por outro lado, no garante aos diferentes atores (a

    mulheres e homens, por exemplo) uma presena equnime no discurso miditico, tanto do

    ponto de vista quantitativo quanto do qualitativo. Um exemplo disso a relao entre

    mulheres e temticas consideradas femininas, especialmente aquelas relacionadas esfera

    domstica e famlia, no noticirio poltico. Como demonstram pesquisas anteriores, o

    jornalismo concede mais espao s mulheres quando elas se encontram prximas de sua

    esfera tradicional, a dos assuntos privados e do cuidado com os outros, mas a vinculao a

    tais temticas as afasta do ncleo do noticirio poltico (Miguel e Biroli, 2011).

    Na segunda etapa, a dos enquadramentos, as narrativas que conferem sentido aos temas e

    personagens podem ser constitudas por pressupostos e caracterizaes que confirmam os

    esteretipos vigentes. A maior ateno a determinados atributos, o destaque a determinados

    aspectos do comportamento dos atores, em detrimento de outros, a correlao entre o evento

    abordado e outros eventos (em esferas variadas), assim como os ngulos em que as imagens

    so produzidas, podem ser tributrios de padres que reproduzem no apenas imagens-

    tpicas, mas posies que implicam vantagens e desvantagens para os indivduos e grupos

    sociais que so assim caracterizados.

    Um dos aspectos que diz respeito a esta discusso , assim, a correlao entre a definio dos

    temas presentes nos noticirios, as narrativas em que esses temas se inserem e a seleo de

    quem tem voz nos debates que ganham tempo e espao nos meios de comunicao. Ao ativar

    determinadas compreenses da realidade, o jornalismo confirma e ao mesmo tempo promove

    determinados atores sociais ao lugar de enunciadores privilegiados, isto , de indivduos que

    tm competncia e recursos para dizer algo que merece a ateno do pblico. Estudos sobre o

    noticirio de telejornais e revistas impressas brasileiras apontam para o fato de que tm voz

    no noticirio poltico os ocupantes de cargos e posies de destaque no campo poltico em

    sentido estrito (Gomes, 2008; Miguel e Biroli, 2010). Assim, mais do que colocar-se a favor

    de uma ou outra posio no espectro poltico (candidatos, partidos, governos), o jornalismo

    confirmaria as hierarquias correntes ao atribuir mais voz a quem j a detm, pela posio que

    ocupa em sua esfera de atuao, e menos voz ou o silncio justamente a quem est em

    posies marginais nos campos em que trava suas prprias disputas. Com isso, naturaliza,

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    grosso modo, a configurao atual da poltica e a marginalidade que implica para indivduos

    e grupos sociais com perfis que, por vrias razes, no coincidem com os daqueles que

    ocupam as posies mais centraisna poltica e na mdia.

    A agenda da mdia noticiosa definida a partir de uma combinao de fatores. As rotinas

    produtivas interagem com a atuao do governo (por meio das assessorias de imprensa e de

    outras formas de comunicao governamental); com as fontes que tm, individualmente,

    trnsito entre os jornalistas; com instituies e grupos que procuram tornar eventos e tpicos

    noticiveis segundo seus interesses e perspectivas. No h, sempre, complementaridade. Pelo

    contrrio, a agenda objeto de disputas. Mas essas disputas no assumem, necessariamente, a

    forma da oposio entre imagens distorcidas e imagens reais ou entre esteretipos e

    caracterizaes mais complexas de temas e atores. No caso das mulheres presentes no

    noticirio poltico, as pesquisas realizadas indicam que preciso ter em mente que o fato de

    que os esteretipos sejam uma via de acesso mais fcil ao noticirio porque no entram

    em choque com as narrativas e expectativas convencionais , pode levar a estratgias para a

    conquista da visibilidade que no os confrontam. Isso varia, entre outras coisas, de acordo

    com o peso que a visibilidade tem para a carreira dos atores especficos em um dado

    momento. O ponto, no entanto, que as mulheres polticas podem estar diante de duas

    alternativas: a excluso do noticirio ou a incluso estereotipada.

    O diagnstico da presena de esteretipos na mdia no faz dela uma vil na reproduo de

    imagens que comprimem a construo das identidades e o acesso das mulheres s esferas

    sociais tradicionalmente masculinas, como a poltica. possvel trabalhar com uma oposio

    entre a maior homogeneidade das representaes sociais de gnero/maior permanncia dos

    esteretipos e a maior heterogeneidade das representaes sociais de gnero/mais rudos e

    maior potencial de transformao nos esteretipos. O que est em jogo no so, apenas, as

    imagens sobre mulheres e homens, mas a estabilidade relativa dos papeis a eles associados e,

    especificamente, da diviso sexual do trabalho nas esferas pblica e domstica.

    Mas os meios de comunicao podem colaborar para a diluio das fronteiras tradicionais

    entre o pblico e o privado e das fronteiras tradicionais entre os grupos, quando permitem

    acesso a referncias que entram em choque com o ambiente presencial de referncia dos

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    indivduos. O contato com outros contextos e formas de organizao dos papeis pode expor

    de maneira imprevista a configurao atual das relaes em que os indivduos esto inseridos.

    Meyrowitz (1985), j citado, entende que a mdia eletrnica provocaria pelo menos trs tipos

    de mudana nos padres de interao e nos comportamentos: desmistificao das hierarquias,

    com nfase para a mstica das lideranas; reconfigurao das formas de diferenciao das

    experincias e das fronteiras entre as faixas etrias para o acesso a informaes (o que tem

    impacto sobre as hierarquias na esfera familiar); redefinio das identidades de grupos, entre

    as quais o autor enfatiza as diferenas de gnero.

    Consideraes finais

    O compartilhamento massivo de referncias que os meios de comunicao possibilitam pode

    contribuir para a reproduo dos esteretipos ou para sua reorganizao ou superao (em

    direo a novos arranjos estereotpicos, isto , a novas expectativas-padro). Alm disso, os

    matizes na presena dos esteretipos na mdia so ndices de conflitos e de mudanasassim

    como dos limites dessas mudanasnas sociedades, nos contextos em que os noticirios so

    produzidos.

    No discurso miditico, os esteretipos so peas-chave em pelo menos dois mecanismos: a

    apresentao do novo por meio de atalhos cognitivos (o que os coloca como pea de

    sustentao dos enquadramentos) e a identificao dos grupos sociais a partir de valores e

    expectativas-padro supostamente compartilhadas e que no aparecem como objeto de

    discusso. Permitem, assim, atravessar a complexidade dos processos de formao das

    identidades sem problematiz-lospressupem as identidades como dados objetivos, em que

    o trnsito entre o individual e o universal apenas confirmaria os valores e julgamentos que

    esto em sua base. Os esteretipos so, assim, artefatos morais e ideolgicos que atuam

    simbolicamente e tm efeitos concretos, interpelando os indivduos ao mesmo tempo em que

    atualizam julgamentos.

    O fato de que exercem presso para que a individualidade seja vivenciada segundo

    determinadas expectativas-padro no significa que a vivncia individual de fato

    corresponder a elas, espelhando-as coerentemente. Mas porque so parte da dinmica de

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    reproduo, acomodao ou deslocamento das relaes de poder que os esteretipos

    interpelam, constituindo as identidades, ao mesmo tempo em que constrangem. Em muitos

    casos, h recompensas socialmente estabelecidas para quem responde positivamente ao

    chamado, h custos quando esse chamado ignorado ou confrontado. As brechas e rudos

    existem, mas as dificuldades para que as rupturas com os esteretipos vigentes aconteam se

    devem a essa dinmicaisto , aos constrangimentos que se associam aos esteretipos. Est

    em jogo, entre outras coisas, a capacidade que os indivduos em posies vantajosas (entre

    outras coisas, de controle dos meios de comunicao ou de acesso a eles) tm para definir as

    perspectivas vlidas nos discursos que, potencialmente, tm maior alcance e legitimidade.

    Os esteretipos no so, como se argumentou neste artigo, uma simples falsificao, que se

    oporia realidade das vivncias e da construo das identidades. possvel, inclusive,

    sustentar que o aprendizado das identidades sexuais, por exemplo, se d sempre atravs de

    oposies, caricaturas e esteretipos (Badinter, 2005[2003]). Mas mesmo que se considere

    que so, nesse sentido, incontornveis, a compreenso de quais so esses esteretipos, de

    como se d sua reproduo e de quais so seus efeitos fundamental. fundamental a

    compreenso das razes pelas quais alguns deles ganham guarida nos discursos da mdia de

    grande pblico, enquanto outros podem estar restritos a discursos menos srios ou a

    circuitos de comunicao relativamente marginais. E elas remetem diretamente posio dos

    diferentes indivduos e grupos nas relaes de poder e nos campos da produo intelectual e

    da produo jornalstica. Em ltima instncia, o problema dos esteretipos na mdia remete

    ao problema da pluralidade de enquadramentos e perspectivas que constituem o discurso

    miditico. Trata-se, assim, de um dos problemas relacionados concentrao do acesso

    produo dos discursos que a mdia faz circular.

    Tendo isso em mente, pode-se, ao mesmo tempo, considerar o peso dos esteretipos e

    tambm o fato de que, em meio a eles, cada pessoa responde do seu modo s possibilidades

    restritas que as estruturas [de gnero] oferecem, formando seus prprios hbitos como

    variaes dessas possibilidades, ou ativamente tentando resistir a elas ou reconfigur-las

    (Young, 2005, p. 26, traduo da autora, colchetes adicionados para indicar que a formulao

    pode superar o problema das identidades de gnero). Essas respostas no se limitam ao

    mbito da experincia individual. Tm impacto poltico. No caso das mulheres polticas, por

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    exemplo, a maior conformidade aos esteretipos pode ser compreendida como parte das

    estratgias daquelas que atuam na esfera poltica para a construo de imagens pblicas que

    lhes sejam vantajosas inclusive na gesto da sua visibilidade na mdia. Esse pode ser um

    atalho para que mais mulheres ganhem espao na poltica e na mdia, mas no confronta os

    pressupostos e valores que definiram, historicamente, barreiras e desvantagens para as

    mulheres. Ainda que se considere, como prope James C. Scott, que o discurso dominante

    seja a nica arena de luta plausvel em qualquer circunstncia no-revolucionria (Scott,

    1990, p. 103), possvel que isso signifique, no caso dos esteretipos, um reforo ao

    potencial que tm de naturalizao das caractersticas que definiriam a identidade dos grupos,

    com os papeis sociaise hierarquiasa elas associados.

    Os meios de comunicao de massa consistem numa arena na qual esto em disputa, entre

    outras coisas, a definio dos enquadramentos e esteretipos que constituem percepes

    amplamente reproduzidas da realidade social. Esto em disputa, sobretudo, a validao de

    valores e julgamentos que os organizam. E essa disputa se coloca em vrios nveis e graus,

    da o fato que os discursos da mdia de grande circulao reproduzam aspectos relevantes das

    relaes de poder, de vantagem e desvantagem, que organizam a sociedade em um dado

    momento, mas no se restrinjam a uma verso linear e homognea dessas relaes.

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