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FLEXIBILIDADE INTERPRETATIVA DA TECNOLOGIA NO ENSINO DE ENGENHARIA Vágner Ricardo de Araújo Pereira [email protected] Universidade Federal de São Carlos, PPGCTS UFSCar Rodovia Washington Luís, Km 235 - SP 310 São Carlos SP Carlos Roberto Massao Hayashi [email protected] Universidade Federal de São Carlos, PPGCTS UFSCar Rodovia Washington Luís, Km 235 - SP 310 São Carlos - SP Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de um estudo desenvolvido no primeiro semestre de 2014, entre estudantes de engenharia de uma instituição privada do interior do Estado de São Paulo. O objetivo principal foi analisar o desenvolvimento de um conjunto de atividades que aborda a construção social da tecnologia, bem como controvérsias sociotécnicas. Em tais atividades houve a preocupação de criar um ambiente que propiciasse uma reflexão crítica sobre questões sociotécnicas, valorizando o trabalho em equipe, o que culminou em debates denominados Fóruns de Negociações. Os resultados indicaram que, para os estudantes envolvidos no projeto, sua posição pessoal como cidadão, muitas vezes, difere de sua posição como ator, especialista e representante de determinado setor da sociedade. Além disso, a maioria dos estudantes é favorável aos fóruns de negociações como forma de buscar o consenso para a implantação de determinada tecnologia e considera que esta é a melhor maneira para nortear as tomadas de decisão. Palavras-chave: Ensino de engenharia, CTS, Flexibilidade interpretativa, Tecnologia. 1 INTRODUÇÃO Os problemas que os engenheiros enfrentam atualmente tornaram-se cada vez mais multidisciplinares, interagindo com a complexidade da realidade em seus diversos aspectos sociais, éticos, políticos, ambientais, culturais, além dos aspectos científicos e tecnológicos. Isto ocorre pelo fato da tecnologia estar cada vez mais difundida na sociedade e na política, em um mundo globalizado e competitivo. O engenheiro do século XXI deve ter um olhar mais amplo e interagir diretamente com pessoas de diversas áreas e de muitas maneiras diferentes. Entretanto, o ensino de engenharia não

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FLEXIBILIDADE INTERPRETATIVA DA TECNOLOGIA

NO ENSINO DE ENGENHARIA

Vágner Ricardo de Araújo Pereira – [email protected]

Universidade Federal de São Carlos, PPGCTS – UFSCar

Rodovia Washington Luís, Km 235 - SP 310

São Carlos – SP

Carlos Roberto Massao Hayashi – [email protected]

Universidade Federal de São Carlos, PPGCTS – UFSCar

Rodovia Washington Luís, Km 235 - SP 310

São Carlos - SP

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de um estudo desenvolvido no primeiro

semestre de 2014, entre estudantes de engenharia de uma instituição privada do

interior do Estado de São Paulo. O objetivo principal foi analisar o desenvolvimento de

um conjunto de atividades que aborda a construção social da tecnologia, bem como

controvérsias sociotécnicas. Em tais atividades houve a preocupação de criar um

ambiente que propiciasse uma reflexão crítica sobre questões sociotécnicas,

valorizando o trabalho em equipe, o que culminou em debates denominados Fóruns de

Negociações. Os resultados indicaram que, para os estudantes envolvidos no projeto,

sua posição pessoal como cidadão, muitas vezes, difere de sua posição como ator,

especialista e representante de determinado setor da sociedade. Além disso, a maioria

dos estudantes é favorável aos fóruns de negociações como forma de buscar o consenso

para a implantação de determinada tecnologia e considera que esta é a melhor maneira

para nortear as tomadas de decisão.

Palavras-chave: Ensino de engenharia, CTS, Flexibilidade interpretativa, Tecnologia.

1 INTRODUÇÃO

Os problemas que os engenheiros enfrentam atualmente tornaram-se cada vez mais

multidisciplinares, interagindo com a complexidade da realidade em seus diversos

aspectos sociais, éticos, políticos, ambientais, culturais, além dos aspectos científicos e

tecnológicos. Isto ocorre pelo fato da tecnologia estar cada vez mais difundida na

sociedade e na política, em um mundo globalizado e competitivo. O engenheiro do

século XXI deve ter um olhar mais amplo e interagir diretamente com pessoas de

diversas áreas e de muitas maneiras diferentes. Entretanto, o ensino de engenharia não

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vem acompanhando tais mudanças. O ensino precisa desenvolver uma compreensão

mais abrangente do que os engenheiros vão fazer em suas carreiras, preparando-os para

assumirem diversas responsabilidades com envolvimento em várias áreas (KINDELÁN;

MARTÍN, 2008).

A sociedade moderna, fortemente influenciada pelo desenvolvimento científico e

tecnológico, “impõe profundas transformações às atividades escolares” (CABOT, 2012,

p. 84). Em uma sociedade cada vez mais informatizada e interconectada, o ensino

requer atividades mais dinâmicas, com currículos flexíveis, cujas características devem

estar presentes nos materiais instrucionais e nas metas educacionais visando preparar os

futuros cidadãos para enfrentarem as implicações sociais, políticas, éticas, ambientais

que o impacto tecnológico envolve, “capacitando-os para tomadas de decisão

fundamentadas e responsáveis” (CABOT, 2012, p. 84).

O campo Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) vem construindo as bases sociológicas

do conhecimento científico e tecnológico, ao analisar problemas afins, contribui para a

transformação do papel do engenheiro no mundo atual. Portanto,

[...] disciplinas ligadas ao campo denominado Ciência, Tecnologia e

Sociedade (CTS) podem diminuir esse distanciamento do engenheiro com a

sociedade e inculcar nesse profissional, valores sociais que serão integrados à

sua função tecnológica, pois entendemos que as disciplinas que hoje

compõem essa formação não afetam a compreensão do engenheiro das

interações entre a sociedade e a ciência e tecnologia. (SOUSA & GOMES,

2010, p. 91)

Carletto e Pinheiro (2010, p.510), afirmam que “o enfoque CTS ganhou espaço no

contexto educacional, visando à promoção do letramento científico e tecnológico1,

assim como a superação de conteúdos isolados, inclusos no currículo sem a devida

contextualização”. Esse enfoque permite uma ação interdisciplinar, desenvolvendo

atividades que leve o estudante a compreender a influência da ciência e da tecnologia na

sociedade, bem como a interação entre elas. Além disso, contribui para que assumam

uma postura crítica ao analisar os aspectos científicos e tecnológicos. Pesquisa

desenvolvida por esses autores indica que os estudantes se descobrem como cidadãos,

“com o direito, o dever e, principalmente, a capacidade de intervir em seu cotidiano”

(CARLETTO; PINHEIRO, 2010, p.517).

O ensino de engenharia, de acordo com Bazzo (2010), não vem cumprindo plenamente

seus objetivos, ou seja, o de proporcionar condições para que os estudantes adquiram as

habilidades e competências necessárias à formação de um profissional que atenda os

anseios da sociedade, principalmente neste momento em que afloram questões políticas,

econômicas, sociais e ambientais. Vários problemas podem ser identificados, dentre eles

o fato de os conhecimentos sistematizados na área tecnológica serem estruturados para

um ensino dissociado do mundo real, centrado no trabalho individual, cujo “ambiente

de sala de aula desencoraja a participação ativa dos estudantes” (BAZZO, 2010, p. 28).

As situações de controvérsias tecnocientíficas oferecem condições privilegiadas para se

descobrir a produção dos conhecimentos científicos e as realidades tecnológicas. Elas

constituem um elemento básico no campo CTS para desconstruir posições positivistas e

deterministas acerca do desenvolvimento científico e tecnológico (SCHLIERF, 2010,

p.75). Para a autora, o termo controvérsia não tem o significado de polêmica no sentido

usual da palavra, mas de um debate que tem por objeto conhecimentos técnicos ou

científicos que ainda não estão assegurados. Inserir atividades de ensino que analisem

controvérsias sociotécnicas, segundo a autora, pode levar o estudante a desenvolver a

1 O letramento científico e tecnológico refere-se à compreensão de conceitos científicos bem como à

capacidade de aplicação de tais conceitos e a reflexão sobre o desenvolvimento tecnológico.

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capacidade de lidar com incertezas, mais do que informar ou ilustrar sobre aspectos

sociais inerentes nas atividades e produtos científicos e tecnológicos.

Nessa sociedade emergente, a tecnologia passa a ser vista como algo isolado

das relações sociais, como se tivesse vida própria, independente dos motivos

e agentes que a criam e a utilizam. [...] não é comum haver um espaço para

que essas reflexões se efetivem, nem na sociedade como um todo, nem, o que

é pior, no ambiente escolar (SILVEIRA; PINHEIRO; BAZZO, 2010, p. 4).

Diante da complexidade da realidade torna-se fundamental estimular a participação

ativa dos estudantes de engenharia, propiciando um ambiente de aprendizagem com

reflexões críticas acerca do processo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a

partir da análise da influência da tecnologia na sociedade, bem como a da sociedade na

tecnologia, em seus aspectos multidisciplinares e de forma multidirecional. Rompendo,

dessa forma, com uma tradição de ensino que vem reforçando a visão linear e

determinista do desenvolvimento tecnológico. Neste contexto, o objetivo deste trabalho

foi analisar o desenvolvimento de uma proposta didática para implantação de fóruns de

negociação entre estudantes de engenharia, com trabalhos em equipe, baseados em

temas controversos e com escolha espontânea pelos participantes, pois, como afirmam

Silveira, Pinheiro e Bazzo (2010, p.8), em relação a tais influências, essas reflexões:

[...] somente serão possíveis se tivermos um público formado na

compreensão do funcionamento da tecnociência, percebendo que o debate e a

negociação são métodos que permitem a resolução de conflitos que envolvam

o interesse da sociedade, podendo contribuir ao desafio de viver em uma

sociedade voltada para a democracia.

O campo CTS busca romper com a visão de verdade científica, prevalente até meados

do século passado, em prol de uma visão crítica e reflexiva sobre o impacto da ciência e

da tecnologia na sociedade. Também abre canais de comunicação entre usuários e

especialistas, de forma a possibilitar o desenvolvimento de melhores projetos, uma vez

que as soluções não são únicas nem estão garantidas por meio de maiores investimentos

em ciência e tecnologia, segundo uma abordagem linear. Entretanto, tais canais de

comunicação não estão preestabelecidos, mas precisam de muito esforço para serem

criados por meio de situações que propiciem uma abordagem crítica e reflexiva acerca

do significado de progresso ou da evolução da tecnologia na sociedade. Nesse sentido,

este trabalho procura contribuir para a criação de um ambiente de debate entre

estudantes de engenharia, uma vez que tais profissionais são tomadores de decisão no

meio em que atuam.

Essa atitude crítica e reflexiva frente ao desenvolvimento tecnológico, por parte de

especialistas, contribui para fazer emergir os riscos inerentes à própria tecnologia,

possibilitando sua análise de forma científica. Como afirma Beck (2011, p. 241),

O processamento científico de riscos da modernização pressupõe que o

desenvolvimento técnico-científico se converta – com mediações

interdisciplinares – em problema; a cientificização é aqui cientificizada como

problema. [...] Em lugar da resistência frequentemente tão agressiva quanto

impotente dos leigos, entram em cena as possibilidades de resistência de

ciências contra ciências: contracrítica, crítica metodológica, assim como

“atitudes de bloqueio” corporativo, em todos os campos de disputas

profissionais pela distribuição de recursos. [...] os riscos fazem saltar as

possibilidades tradicionais e intradisciplinares de processamento de erros e

forjam novas estruturas de divisão do trabalho na relação entre ciência,

prática e espaço público.

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2 METODOLOGIA

Os sujeitos envolvidos na pesquisa foram 25 estudantes, de uma turma de 41, do

terceiro semestre dos cursos de engenharia mecânica, química e de produção, do

período diurno, de uma instituição privada do interior do Estado de São Paulo. O

trabalho foi desenvolvido ao longo do primeiro semestre de 2014, com encontros

aproximadamente quinzenais, em horário extra-aula, excetuando-se os períodos de

prova para os estudantes.

Como forma de obter o engajamento da turma no projeto2, em horário extra-aula, uma

vez que o primeiro autor deste artigo é professor de física da turma, foi realizada uma

apresentação, cujos temas abordados aparecem no Quadro 1, ou seja, apresentação de

alguns itens das diretrizes curriculares para os cursos de engenharia no Brasil, alguns

tópicos sobre os estudos CTS, com ênfase nas expectativas acerca das funções do

engenheiro neste século, alguns dados sobre pesquisa em inovação tecnológica, trechos

do filme 2001 – Uma odisseia no espaço, produzido e dirigido por Stanley Kubrick

(1968), além de esclarecimentos sobre os objetivos do projeto. Também foi aplicado um

questionário inicial com o objetivo de levar o aluno a refletir sobre algumas concepções

de tecnologia e seu desenvolvimento. Esse questionário foi adaptado do trabalho de

Veraszto (2009), cujos resultados não serão analisados neste artigo, considerando que

estão de acordo com as conclusões obtidas por esse autor.

Quadro 1. Temas e respectivas fontes utilizadas na apresentação inicial.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Os textos e a apresentação foram disponibilizados aos estudantes em um grupo fechado

do Facebook, denominado “Tecnologia e Sociedade” e administrado pelo primeiro autor

2 Projeto aprovado pelo Comitê de Ética sob n

o CAAE: 25120413.1.0000.5433.

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deste artigo. A apresentação inicial demandou cerca de uma hora e meia (duas aulas). O

engajamento obtido foi cerca de 60%, que pode ser considerado elevado uma vez que

tais atividades não influenciariam nas notas dos estudantes, que receberam um

certificado de participação no projeto.

Uma segunda apresentação foi realizada abordando a construção social da tecnologia e

controvérsias sociotécnicas, uma vez que, de acordo com Oudshoorn e Pinch (2007), a

abordagem da Construção Social da Tecnologia (SCOT, na sigla em inglês), considera

que os usuários de um artefato tecnológico desempenham um papel importante na

construção da tecnologia, sendo que diferentes grupos sociais, incluindo os usuários,

podem dar diferentes significados a uma tecnologia. Ideia conhecida como flexibilidade

interpretativa.

A flexibilidade interpretativa se relaciona à ideia de que um fato ou artefato tecnológico

pode ser culturalmente construído e interpretado, isto é, não há um único caminho para

o seu desenvolvimento, ficando submetido aos debates entre os atores interessados.

Conforme Bijker, Hughes e Pinch (1997, p. 40), não há flexibilidade somente na forma

como as pessoas pensam ou interpretam, mas também na forma como os artefatos são

projetados. Não há apenas um caminho possível, ou uma melhor maneira de projetar um

artefato. Os autores afirmam que, em princípio, isso poderia ser demonstrado por meio

de entrevistas com os técnicos que estão envolvidos em uma controvérsia tecnológica

contemporânea.

Segundo Bucchi (2004, p. 84), a construção social da tecnologia articula-se em três

fases consecutivas, ou seja:

a) A demonstração da flexibilidade interpretativa de dispositivos

tecnológicos, isto é, o mesmo artefato pode ser concebido de diversos

modos e formas, uma vez que não há uma única solução ótima;

b) A análise dos mecanismos através dos quais a flexibilidade interpretativa

é “fechada” em um determinado momento e o artefato assume uma

forma estável e,

c) A conexão desses mecanismos de fechamento com os meios

sociopolíticos mais amplos.

A apresentação sobre a construção social da tecnologia foi baseada no trabalho de

Bijker, Hughes e Pinch (1997) a respeito do desenvolvimento da bicicleta segura, a

partir do modelo Penny Farthing, do final do século XIX, proposta por jovens atletas do

sexo masculino, para os quais o risco de cair era parte da diversão. A flexibilidade

interpretativa no desenvolvimento de tal artefato tecnológico declinou, com a

participação de diversos atores interessados, por exemplo, mulheres e pessoas idosas,

levando a estabilização de um modelo seguro.

Além disso, como forma de despertar para discussões acerca de controvérsias sociais e

tecnológicas foram apresentados dois vídeos, um deles sobre a descoberta da estrutura

do DNA - A construção social da descoberta, produzido pela UFSCar (2012) e o outro

sobre alimentos transgênicos, produzido pela Globo News (2010): Alimentos

transgênicos criam polêmica sobre efeitos à saúde, parte 1. Alguns temas controversos

foram apresentados, baseados no trabalho de Gordillo (2005), outros temas foram

acrescentados, como por exemplo, a mobilidade urbana.

Alguns aspectos da importância da reflexão sobre controvérsias sociais e tecnológicas

na formação do engenheiro foram levantados, como o de proporcionar competências

próprias frente a situações controversas, que não devem ser consideradas como

polêmicas, mas envolvendo um debate acerca do conhecimento social, técnico e/ou

científico, ainda não estabilizado. Além de considerar como os diversos atores, ou grupo

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de atores constroem e fortalecem suas associações em busca de um possível consenso

(CHICHILLA; MUNIESA, 2004).

Os objetivos definidos para o projeto, em relação à participação dos estudantes foram os

seguintes: compreender o processo da construção social da tecnologia; desenvolver

habilidades e competências no trabalho em equipe, na identificação de controvérsias

sociotécnicas e na identificação de grupos de atores relacionados com determinada

controvérsia.

Como forma de atingir tais objetivos foi proposta a seguinte tarefa: pesquisar sobre uma

controvérsia sociotécnica de interesse do grupo, relacionada com atividades de

engenharia, identificando os atores ou grupos de atores envolvidos e descrevendo as

relações entre eles. Os estudantes tiveram duas semanas para preparar tal atividade.

Um questionário final, com dez questões, foi aplicado entre os estudantes participantes

do projeto, com questões extraídas do questionário inicial, citado no Quadro 1, e

algumas questões originais. Neste artigo serão analisadas somente as questões originais,

uma vez que as demais questões foram adaptadas do trabalho de Veraszto (2009), cujos

resultados corroboram suas conclusões.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os estudantes se organizaram em sete grupos, cujos temas escolhidos estão

apresentados no Quadro 2. Eles representaram cinco tipos de atores: governo, membros

da universidade, empresas, setores organizados da população e meios de comunicação.

Quadro 2. Propostas dos estudantes para temas controversos e atores envolvidos.

Fonte: Elaborado pelos autores.

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Após a definição dos temas, foram organizados fóruns de negociações, nos quais cada

estudante defendeu o ponto de vista do ator representado, sem a preocupação de se obter

o consenso, mas desenvolver competências, por meio de debate, próprias do trabalho do

engenheiro. O debate de cada grupo foi gravado em vídeo, cuja duração variou de

aproximadamente 8 min a 26 min, dependendo da eloquência dos estudantes. Não é

objetivo deste artigo analisar os vídeos produzidos.

O Quadro 3 apresenta as questões originais e os respectivos resultados obtidos dentre os

25 estudantes participantes (N = 25).

Nota-se, de acordo com a questão 1, que cerca de 1/3 dos estudantes defendeu um ator

cujas opiniões pessoais eram divergentes. Isto gerou sentimentos que prejudicaram sua

defesa, como a falta de motivação em busca de argumentos convincentes, seguida do

desejo de mudar de posição. A maioria dos estudantes fez a escolha do ator baseado em

suas convicções pessoais, facilitando o processo de pesquisa pelos argumentos em

defesa de sua própria opinião. Há um sentimento de que para defender um ator ou setor

da sociedade é preciso abrir mão de suas opiniões pessoais. Entretanto, de acordo com a

questão 2, apenas 1/3 daqueles estudantes que não se sentiram satisfeitos com a escolha

do ator (questão 1), informaram que escolheriam outro ator para representar, de forma

mais alinhada com as suas concepções.

Quadro 3. Questões originais do questionário final e resultados obtidos.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Os estudantes responderam as questões 3 e 4 ordenando os sete aspectos propostos,

sendo que a questão 3 considera seu papel como ator (especialista) e a questão 4 está de

acordo com a sua opinião pessoal, como cidadão.

De acordo com a Figura 1, nota-se que, para essa turma de estudantes de engenharia, os

aspectos sociais prevalecem de acordo com suas opiniões pessoais como cidadão

(21,1%), assim como para os representantes de setores da universidade (22,6%) e

representantes de setores organizados da população (22,0%).

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Como cidadão, as posições de menor influência ficaram para os aspectos científicos

(9,1%), políticos (10,7%) e ambientais (12,7%). Para os representantes das empresas, os

aspectos científicos (17,0%), tecnológicos (17,9%) e econômicos (17,9%)

prevaleceram. Para os representantes do governo, os aspectos políticos prevaleceram

(21,4%), seguidos dos sociais (17,1%).

De maneira geral, pode-se concluir que a posição pessoal do estudante, nesta turma de

engenharia, como mostrado na figura 1 e denominada como cidadão, difere de sua

posição como ator, representando determinado setor da sociedade. Surge, então, a

seguinte questão: quando um profissional representa certo setor da sociedade, ele

precisa abrir mão de suas convicções pessoais? Para esses estudantes, nessa etapa do

curso, parece que sim. Acreditam que sua posição na instituição ou o emprego são

colocados em risco quando expõem uma posição diferente daquela que acreditam

defender os interesses da instituição a que estejam vinculados.

Figura 1. Respostas dos estudantes às questões 3 e 4.

Fonte: Elaborado pelos autores.

O Quadro 4 apresenta as categorias de respostas para a questão 5. Foram 27 respostas

entre 25 estudantes, pois foi possível obter duas categorias na resposta de dois

estudantes.

A maioria dos estudantes é favorável aos fóruns de negociações como forma de buscar o

consenso para a implantação de determinada tecnologia. Os estudantes estabeleceram

alguns objetivos importantes para os fóruns, como a identificação de erros (incertezas e

riscos) no projeto, estabelecimento de um canal de comunicação com a população,

identificação e ampliação de grupos interessados. Eles também consideram que esta

estratégia é a melhor maneira para nortear as tomadas de decisão.

Dentre os estudantes que são desfavoráveis, nota-se uma preocupação com a posição

que a empresa privada ou instituição pública ocupa na sociedade, sua influência sobre as

pessoas, a possível manipulação dos representantes, especialistas dos setores

dominantes da sociedade e o longo tempo dispendido para o estabelecimento de

consenso, o que pode inviabilizá-lo.

Alguns fatores condicionantes foram levantados por quatro estudantes, como a

dependência de organização e sensatez dos grupos interessados, o comprometimento e a

responsabilidade de tais grupos com a implantação da tecnologia, visando o bem estar

da sociedade como um todo.

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Quadro 4. Categorias de respostas à questão 5 do questionário final.

Fonte: Elaborado pelos autores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No mundo atual, globalizado e articulado, as relações sociais estão cada vez mais

complexas, ampliadas pelas diversas tecnologias de informação e comunicação, além da

rapidez com que as interações e a formação de redes ocorrem. Assim, é salutar ao

profissional da engenharia ampliar seus horizontes, indo além do conhecimento

puramente técnico e preocupar-se também com a complexidade da realidade, em seus

diversos aspectos, no contexto do século XXI.

Nesse sentido, as instituições de ensino, particularmente as escolas de engenharia, têm

muito a contribuir, pois formam profissionais que, muitas vezes, ocuparão cargos que

exigem tomadas de decisão. Como toda tomada de decisão envolve incertezas e riscos e

está sujeita a interações de diversos atores da sociedade, em um contexto

multidimensional, é importante valorizar tais conhecimentos e desenvolver habilidades

e competências no caminho da formação de um profissional mais crítico e reflexivo,

aberto às comunicações advindas dos vários setores da sociedade.

Em diversas pesquisas da área encontram-se sugestões visando a inserção de tais

discussões no ensino tecnológico e científico. Dessa forma, este trabalho busca

contribuir com a elaboração e desenvolvimento de uma estratégia didática para a

inserção de temas controversos e propiciar discussões entre os estudantes, como forma

de despertar o interesse para reflexões sobre políticas de Ciência e Tecnologia (C&T) e

que seja viável sua realização ao longo de um semestre, fornecendo ideias no caminho

de romper com a forma tradicional de ensino, tão enraizada nas escolas de engenharia,

buscando aproximar o estudante de situações que vão além de seus muros.

Não se tem a pretensão, com esta estratégia, de transformar o estudante em um

especialista do campo CTS, mas despertar uma visão analítica e crítica do

desenvolvimento de fatos e/ou artefatos tecnológicos. Como afirma Giddens (1991, p.

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45), considerando os aspectos da modernidade, “a consciência geral de que a atividade

humana – incluindo nesta expressão o impacto da tecnologia sobre o mundo material –

é criada socialmente, e não dada pela natureza das coisas ou por influência divina”.

Em linhas gerais, o ensino de engenharia ainda possui forte vínculo com métodos

tradicionais de ensino, que têm se mostrado ineficientes no engajamento dos estudantes,

tanto no aspecto técnico quanto em questões humanas, relacionadas ao impacto da

ciência e da tecnologia na sociedade. É preciso proporcionar condições para uma

aprendizagem crítica e reflexiva. Diversos fatores podem estar interferindo nessa

ineficiência, dentre eles a formação do próprio engenheiro que, em alguns casos, acaba

virando professor de uma instituição, sem romper com esse ciclo. É salutar a criação de

condições de compartilhamento de experiências bem sucedidas entre profissionais que

atuam na formação de engenheiros, tanto para aqueles que ingressarão no mercado de

trabalho, em alguma área da engenharia, quanto para aqueles farão parte do corpo

docente em escolas de formação tecnológica.

Este trabalho procurou refletir sobre o ensino de engenharia sob o ponto de vista de uma

educação CTS, propondo estratégias didáticas que visam a formação de um profissional

mais crítico e reflexivo, como consta das Diretrizes Curriculares Nacionais para os

cursos de engenharia (BRASIL, 2002).

Agradecimentos

Agradecemos a participação dos estudantes de engenharia nas atividades do projeto,

pelo empenho e dedicação em horários extra-aula.

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INTERPRETATIVE FLEXIBILITY OF TECHNOLOGY ON

ENGINEERING TEACHING

Abstract: This paper presents the results of a study conducted in the first half of 2014 to

engineering students of a private university from the São Paulo State. The main

objective was to analyze the development of a set of activities that addressed the social

construction of technology as well as socio-technical controversies. It created a critical

environment to reflecting about socio-technical issues, through teamwork, which

culminated in debates called Negotiations Forums. The results indicate that, for the

students involved in the project, his personal position as a citizen often differs from his

position as an actor, specialist and representative of a society sector. Moreover, most

students is conducive to Negotiations Forums as a way to seek consensus for the

deployment of technology and consider it the best way to guide decision making.

Key-words: Engineering teaching, STS, Interpretative flexibility, Technology.