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Flora Hen

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Hwang Sun-mi nasceu no interior da Coreia do Sul, em 1963. Ela jamais havia pensado em ser escritora, mesmo depois de ter se formado, após uma infância difícil. Como era pobre, não teve acesso a uma escola de ensino médio, mas estudou sozinha, graças a uma professora que lhe deu a chave de uma sala de aula, onde havia livros e material escolar. Mais tarde ela fez mestrado numa universidade e um curso de redação criativa. Queria saber como escrever livros infantis não para publicar, mas para ensinar seus filhos a ler. Por isso sua estreia literária foi tardia, aos 32 anos. A partir daí ela não parou de publicar e ganhar prêmios. Até o presente são mais de trinta livros. As obras de Hwang Sun-mi lidam com uma variedade de temas, como o significado da liberdade, o valor do amor e da atitude ecoconsciente. Suas histórias cruzam fronteiras entre o passado e o presente, entre a realidade e a fantasia. Um de seus livros critica adultos por meio da perspectiva infantil.

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Uma fábula de amor e esperança

tradução de

Lidia Luther

Ilustrações de

Yasmin Mundaca

Hwang Sun-mi

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O ovo de Flora rolou para baixo e parou no canto da tela de arame. Ela olhou com tristeza para o pálido ovo com uma pequena mancha de sangue.

Era o primeiro que botava, em dois dias. Flora não achou que ainda conseguia. No entanto, ali estava: um ovo feio e minúsculo. Isso não pode acontecer de novo, ela pensou. Será que a mulher do fazendeiro levaria embora este também? Ela havia recolhido todos, reclamando o tempo todo que estavam ficando cada vez menores. Ela não deixaria este para trás só porque era feio, deixaria? Hoje, Flora não tinha forças nem para ficar de pé. Não era de se admirar; afinal, ela havia botado um ovo, mesmo não tendo comido nada. Flora ficou pensando em quantos ovos ainda restariam dentro dela. Esperava que este fosse o último. Com um suspiro,

EU NÃO VOU MAIS

BOTAR OVOS!

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olhou para fora. Como sua gaiola ficava perto da entrada, ela conseguia enxergar outra parte do quintal, além da que era visível pela tela de arame. A porta do galinheiro não se ajustava muito bem ao batente; através do vão, ela via uma acácia. Amava tanto aquela árvore que não se importava com o vento frio que penetrava pela fresta durante o inverno, nem com a chuva que a molhava no verão.

Flora era uma galinha poedeira, o que significava que ela havia sido criada para botar ovos. Chegara ao galinheiro mais de um ano antes, e, desde então, tudo o que tinha feito fora botar ovos. Não podia ciscar por aí, bater as asas, nem ao menos chocar os próprios ovos. Jamais havia saído do galinheiro. No entanto, desde o dia em que vira uma galinha correndo pelo quintal, seguida pelos adoráveis pintinhos que ela mesma tinha chocado, Flora vinha alimentando um desejo secreto: chocar um ovo e ver o nascimento de seu pintinho. Mas isso era um sonho impossível. A gaiola era inclinada para a frente a fim de forçar os ovos a rolarem para o outro lado da barreira, separando-os de suas mães.

A porta se abriu, e o fazendeiro entrou, empurrando um carrinho de mão. As galinhas cacarejaram impacientes, criando uma algazarra.

— Comida!— Depressa, depressa, estou com fome!Com um balde, o homem apanhou a ração.— Sempre esfomeadas! É melhor fazerem valer a pena.

Esta ração não é barata.

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Flora olhou ao longe através da porta aberta, concen-trando-se no mundo lá fora. Ela havia perdido o apetite algum tempo antes. Já não queria botar ovos. Seu coração se partia cada vez que a mulher do fazendeiro catava um ovo seu. O orgulho que sentia ao botar logo se transformava em tristeza. Depois de um ano inteiro assim, estava exausta. E não podia nem tocar nos próprios ovos, nem mesmo com a ponta do pé. Não sabia o que acontecia com eles depois que a mulher os colocava numa cesta e os levava embora.

Era um dia claro. A acácia na ponta do quintal estava carregada de flores brancas. Seu perfume doce era trazido pela brisa, penetrando no galinheiro e no coração de Flora. Ela se ergueu e enfiou a cabeça pelo buraco da tela de arame da

gaiola. Seu pescoço sem penas ficou arranhado e vermelho. As folhas

deram lores de novo! Flora ficou com inveja. Se estreitasse os

olhos, conseguiria ver as

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folhas verde-claras que haviam amadurecido e gerado flores perfumadas. Flora notara a acácia logo no primeiro dia em que havia sido trancada no galinheiro. De início, achara que era uma árvore recoberta de flores, mas, alguns dias mais tarde, as flores haviam se desprendido, as pétalas voando como flocos de neve, deixando para trás folhinhas verdes. As folhas viveram até o fim do outono, antes de se tornarem amarelas e caírem silenciosamente. Flora ficara espantada ao observar como as folhas enfrentavam os ventos fortes e a chuva intensa antes de finalmente murcharem e caírem. E havia se encantado ao ver as mesmas folhas renascerem, verdes e brilhantes, na primavera seguinte.

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Flora era o melhor nome do mundo. Flora é a força da natureza que penetra na folha, que abraça o vento e se entrega ao sol e depois cai, se decompõe e vira adubo para que flores perfumadas desabrochem de novo. Flora queria fazer algo da própria vida, assim como a flora gerava os bro-tinhos da acácia. Tinha sido por isso que ela havia resolvido se dar este nome. Não é que alguém a chamasse de Flora, e ela sabia que jamais poderia ser exatamente como a flora, mas o nome a fez sentir-se bem. Era seu segredo. Desde que se autonomeara, havia desenvolvido o hábito de observar os eventos que aconteciam fora do galinheiro: tudo, desde a lua crescendo e minguando e o sol nascendo e se pondo até os animais que viviam se enfrentando no quintal.

— Vamos, comam para botar um monte de ovos bem grandes! — disse bem alto o fazendeiro.

Ele gritava isso toda vez que trazia a ração, e Flora já não aguentava mais ouvir aquilo. Ignorando o homem,

ela olhou para fora. Os animais no quintal estavam ocupados comendo.

Uma grande família de patos se aglomerava ao redor de um comedouro com os rabos arrebitados

para o céu, engolindo a ração sem erguer a cabeça nem uma vez. O velho cão estava próximo, enchendo a boca. Ele podia ter a própria tigela, mas preci-

sava comer às pressas, antes que o galo interferisse. Uma vez, quando se recusou

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a deixar que o galo comesse sua ração, o cão tomou uma bicada tão furiosa que seu focinho sangrou. O comedouro da galinha e do galo não era disputado. Como ainda não tinham pintinhos, eram os únicos a se alimentar com calma. Mesmo assim, o galo às vezes mostrava interesse pela tigela do velho cachorro. O galo havia consolidado sua liderança no quintal recusando-se a recuar mesmo quando o cachorro esticava a cauda e rosnava. O vistoso galo tinha um rabo longo e belo, uma brilhante crista vermelha, um olhar destemido e um bico pontudo. Era seu papel cocoricar ao amanhecer. Depois disso, só ficava saracoteando pelo campo com a galinha.

Flora não aguentava ver a galinha do quintal; sentia-se ainda mais confinada em sua gaiola de arame. Ela também queria ciscar com o galo na pilha de material em decompo-sição, caminhar ao lado dele, chocar os próprios ovos. Não conseguia chegar ao quintal onde os patos, o velho cão, o galo e a galinha viviam juntos, não importava o quanto esticasse seu pescoço pela tela; o arame só a depenava ainda mais. Por que eu

estou no galinheiro enquanto aquela galinha está livre no quintal? Não sabia que o galo e a galinha eram aves coreanas criadas organicamente. E também não sabia que um ovo que botasse sozinha não tinha como gerar um pintinho, não importando o quanto ela se sentasse sobre ele. Se soubesse disso, talvez jamais tivesse nem sequer começado a sonhar em chocar um ovo.

Os patos acabaram de comer e se reuniram sob a acácia, bamboleando a caminho de um monte próximo, seguidos por um pássaro um pouco menor e de uma cor diferente. O topo

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de sua cabeça era verde como a folha da acácia; talvez ele até nem fosse um pato. Por outro lado, ele gingava como um pato e grasnava como um pato. Flora não sabia como um pato-real tinha ido viver no quintal, só sabia que ele era diferente. Ainda estava olhando para fora quando o fazendeiro se aproximou para alimentá-la. Ele inclinou a cabeça, insatisfeito, quando viu que a ração do dia anterior estava intacta.

— Hum... O que se passa aqui? — resmungou.Geralmente, ele ia embora depois de deixar a ração,

seguido de sua mulher, que apanhava os ovos. Hoje, porém, ele estava fazendo o trabalho dela.

— Sem comer todos estes dias. Deve estar doente — murmurou o homem, olhando para Flora com desgosto.

Ele esticou o braço para pegar o ovo dela. Assim que seus dedos tocaram o ovo, tudo se revelou: finas rugas se multiplicaram sobre sua superfície. Flora ficou chocada. Ela sabia que o ovo era feio e pequeno, mas nunca imaginou que fosse mole. A casca nem tinha acabado de endurecer! O fazendeiro fez uma careta.

Flora sentiu o coração se partir ao meio. A tristeza que a dominava toda vez que seu ovo era levado embora não se com-parava ao que sentia agora. Soluços lhe tomaram a garganta; seu corpo inteiro se enrijeceu. O pobrezinho saiu sem casca. O fazendeiro atirou o ovo no quintal, o que fez Flora cerrar os olhos. O ovo se desfez sem produzir um único som. O velho cão se aproximou e lambeu tudo. Lágrimas caíram livremente dos olhos de Flora pela primeira vez na vida. Nunca mais vou botar ovos! Nunca mais!

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