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Florestan Fernandes e o lugar de São Paulo na história da Sociologia no Brasil André Teles Guedes Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB. Bolsista pelo CNPQ. Na década de 1950, quando os uspianos se organizavam em torno da Cadeira de Sociologia I, chefiada por Florestan Fernandes, a tradição dos chamados estudos sociais no Brasil completava não apenas décadas, mas séculos de existência, a depender do enfoque genealógico. As condições que orquestraram o surgimento da Sociologia em São Paulo, entre elas, a vinda dos pesquisadores franceses e norte-americanos, tornaram possível entre os membros da Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e os da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (1934) a manutenção de um tipo particular de posicionamento diante da linhagem nacional de estudos sobre a sociedade brasileira. O estudo de autores como Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Manuel Bonfim, Oliveira Viana e vários outros se exerceu entre muitos uspianos mediante uma certa filtragem, ou mediado por uma série de critérios. Fica bem claro na leitura dos artigos de Florestan reunidos no livro A Sociologia no Brasil (1977), que tal filtragem e critérios eram frutos da idéia de que os estudos conduzidos por tais autores sobre a sociedade brasileira eram destituídos de estatuto científico. Segundo Florestan, em conseqüência da própria inexistência da Sociologia como saber específico, entre as gerações de estudiosos anteriores à década de 1920 e mesmo entre vários de seus prosseguidores, os ensaístas da época seguinte, prevaleceram distorções e deficiências crônicas no tratamento dado a realidade. “(...) A transformação da sociologia em especialidade, integrada ao sistema científico brasileiro, constitui um produto intelectual de desenvolvimentos culturais que se iniciam com as décadas de 20 e 30 de nosso século. Portanto, a formação regular, que poderia dirigir a especialização dos estudiosos nessa ordem de investigações, representa algo que mal está se tornando possível no presente. A formação dos investigadores das gerações mais velhas processou-se mediante recursos autodidáticos e, em menor escala, pela educação em centros universitários estrangeiros. O caráter

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Florestan Fernandes e o lugar de São Paulo na história da Sociologia no Brasil

André Teles Guedes Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB. Bolsista pelo CNPQ. Na década de 1950, quando os uspianos se organizavam em torno da Cadeira de

Sociologia I, chefiada por Florestan Fernandes, a tradição dos chamados estudos sociais no

Brasil completava não apenas décadas, mas séculos de existência, a depender do enfoque

genealógico. As condições que orquestraram o surgimento da Sociologia em São Paulo,

entre elas, a vinda dos pesquisadores franceses e norte-americanos, tornaram possível entre

os membros da Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e os da Faculdade de Filosofia

Ciências e Letras (1934) a manutenção de um tipo particular de posicionamento diante da

linhagem nacional de estudos sobre a sociedade brasileira. O estudo de autores como

Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Manuel Bonfim,

Oliveira Viana e vários outros se exerceu entre muitos uspianos mediante uma certa

filtragem, ou mediado por uma série de critérios.

Fica bem claro na leitura dos artigos de Florestan reunidos no livro A Sociologia no

Brasil (1977), que tal filtragem e critérios eram frutos da idéia de que os estudos

conduzidos por tais autores sobre a sociedade brasileira eram destituídos de estatuto

científico. Segundo Florestan, em conseqüência da própria inexistência da Sociologia como

saber específico, entre as gerações de estudiosos anteriores à década de 1920 e mesmo entre

vários de seus prosseguidores, os ensaístas da época seguinte, prevaleceram distorções e

deficiências crônicas no tratamento dado a realidade.

“(...) A transformação da sociologia em especialidade, integrada ao sistema científico brasileiro, constitui um produto intelectual de desenvolvimentos culturais que se iniciam com as décadas de 20 e 30 de nosso século. Portanto, a formação regular, que poderia dirigir a especialização dos estudiosos nessa ordem de investigações, representa algo que mal está se tornando possível no presente. A formação dos investigadores das gerações mais velhas processou-se mediante recursos autodidáticos e, em menor escala, pela educação em centros universitários estrangeiros. O caráter

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incipiente da especialização soma-se assim, aos efeitos de condições anteriores ainda mais precárias de educação científica dos sociólogos. O resultado de ambas as influências é quase o mesmo: um padrão relativamente deformado de disciplina intelectual do trabalho científico, suscetível de favorecer os móveis da investigação sociológica mais reputados, individualmente, pelos investigadores.” (1977: 62)

Prevalecia um tipo de análise que o autor chama de histórico-sociográfica e que,

segundo ele, costumava se associar a levantamentos incompletos dos dados, explorações

descritivas e interpretativas assistemáticas e projeções subjetivas sobre os resultados da

análise (p.72). Para ele, a transformação da análise histórico-sociográfica em investigação

positiva e a introdução da pesquisa de campo como recurso sistemático haviam se iniciado

com Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque mas só se

completado com o trabalho dos estrangeiros e a instituição do ensino universitário.

Segundo Florestan, as elites ilustradas brasileiras haviam participado desde muito

cedo do desenvolvimento da sociologia, mas apenas como consumidoras. A introdução da

doutrina positivista e suas repercussões na mentalidade proto-republicana ao longo de parte

do II Reinado davam mostras disso. Um saber que na Europa nasceu atrelado aos grandes

processos modernizadores produzidos pelo capitalismo viria, no caso brasileiro, defrontar-

se com uma sociedade estamental avessa ao controle e racionalidade típicos de uma

sociedade de mercado. Em conseqüência, segundo o autor, durante boa parte do século

XIX, os vocábulos da sociologia só teriam encontrado entre os brasileiros um uso não mais

que episódico e marcadamente literário (p.27). É apenas com a geração dos intelectuais de

1870 que se pode falar de fato em evolução dos estudos sociais no Brasil1. Nesta primeira

fase, segundo Florestan, ainda sim, não se produziram investigações, mas apenas o esforço

em considerar os fatores no âmbito de exercícios interpretativos e relacionistas.

Florestan concebe aquilo que se pode chamar evolução social da ciência no Brasil

pondo São Paulo em lugar de proeminência2. Ele associa o surgimento de um ‘sistema de

saber positivo’ no país ao desenvolvimento de complexos urbanos, definidos como pólos

1 Fazem parte da geração de 1870 intelectuais como Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, José Veríssimo, Araripe Júnior 2 Em um artigo publicado pela primeira vez em 1956: “Ciência e sociedade na evolução social do Brasil”. Revista Brasiliense SP: julho-agosto de 1956, nº 6, pp. 46-58. Este mesmo texto é referenciado aqui a partir de sua publicação como primeiro capítulo do livro “A sociologia no Brasil” (1977).

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dinâmicos da nacionalidade tanto em termos culturais quanto econômicos, e tenta

reconstituir tal processo de modo a excluir de seu recorte outras realidades regionais e

locais, apenas chamadas por ele de “pontos dispersos no território nacional” onde a ordem

tradicional também teria se enfraquecido sob os impulsos resultantes da industrialização,

mas sem lhes dar nomes (1977:24). Ao longo de boa parte do texto Florestan discute sob

um prisma histórico o problema do retardamento da criação de núcleos de produção

intelectual verdadeiramente espontâneos e autônomos no Brasil. Para ele, as transformações

ocorridas desde fim do século XIX encerram um longo período em que uma organização

social marcada pelo privilegio intelectual de certos círculos passa a conviver com um nível

crescente de concorrência entre saberes.

Até então, a importação de técnicas e conhecimentos especializados havia sido o

único recurso possível numa sociedade em que a produção de conhecimentos racionais se

subordinava ao exercício de atividades clericais fortemente atreladas a valores e idéias

tradicionais, ou ao pragmatismo político dos chamados bacharéis, atores muito bem

ajustados à lógica do favor e da autoridade típicas do domínio senhorial. Segundo ele,

“como o clero na sociedade colonial, o bacharel se encontrava preso a uma teia de

determinações que projetavam suas atividades no âmago das forças de conservantismo

sócio-cultural” (idem: p.19). O próprio empenho de implementação técnico-produtiva não

podia estar associado à escravidão. Além disso, a estratificação social impedia o surgimento

de perspectivas divergentes sobre a ordem, já que condenava uma parcela significativa da

população ao embrutecimento e comprometia as mais diversas instâncias sociais com a

lógica desse tipo de trabalho. Além disso, segundo ele, as funções de justificação da

escravidão exigiam e direcionavam intensas séries de esforços reflexivos por parte da Igreja

e dos políticos de então.

O desenvolvimento da ciência no Brasil deveria esperar a abolição do trabalho

escravo e a emersão de um regime de classes. Tal mudança esteve sociologicamente ligada

ao processo de avanço industrial e à consolidação do que Florestan chama funções

metropolitanas. São elas que deram à proliferação dos conhecimentos científicos o caráter

de necessidade sócio-histórica: as demandas por conhecimento técnicos e especializados

requisitados pela urbanização, pelo mercado e pela complexificação do aparelho estatal.

São Paulo representava então, desde a metade do século XIX o lugar onde tais

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modificações se apresentavam de modo mais acentuado. Seria assim natural, segundo o

autor, que primeiramente aí se desenvolvesse uma mentalidade favorável à proliferação dos

recursos técnicos e das alternativas racionais de gestão dos problemas humanos:

“Do nosso ponto de vista, o que interessa é por em relevo o sentido do processo. Nas condições de existência de uma cidade como São Paulo, o recurso ao pensamento racional e à investigação científica surge de necessidades reais e, às vezes prementes. Por isso, o sistema institucional se altera, para dar ao pensamento racional e à investigação científica uma posição dominante. Na medida em que isso ocorre, ambos vão deixando de ser um mero produto da civilização da grande cidade, para se transformarem em fatores dinâmicos de sua integração e de sua evolução culturais.” (idem, p.23)

Os estudos sociais esperariam assim até o primeiro quartel do século XX para se

firmarem como saber legítimo (tanto quanto o direito ou a técnica administrativa), e modo

amplamente aceito de explicação das condições em que se encontrava o país. Florestan

sugere que a produção de “Os Sertões” (1902) por Euclides da Cunha e a receptividade ao

seu livro servem muito bem como índices da mudança apontada. Tal mudança vinha

confluir com o crescente aumento das mais diversas categorias de profissionais liberais e o

início das pressões por reformas capazes de garantir os requisitos mínimos de

funcionamento do regime sócio-político formalmente instalado desde a proclamação da

República em 1890. Trabalhos como os de Alberto Torres, se relacionariam claramente

com esse movimento. Tratava-se ali de uma junção entre análise histórica e intenção

pragmática. A manipulação dos saberes sobre os problemas coletivos se relacionando

estreitamente com o empenho elitista de reação as mudanças.

As campanhas e reformas educacionais na década de 1920 davam mostras de que se

desenvolvia entre as elites brasileiras uma nova forma de compreensão do importante papel

que tinham a cumprir no processo de organização nacional certos conhecimentos e

instituições. A introdução da Sociologia, em 1925, nos currículos de ensino médio e

superior indica que esta disciplina passava a encontrar um lugar de destaque no sistema

sócio-cultural brasileiro (idem, p.38). Os anos seguintes foram marcados por uma rotação

na mentalidade dos grupos políticos. E a educação passou a ganhar um espaço tortuoso,

mas progressivo na agenda pública após a Revolução de 1930. É este, segundo Florestan, o

contexto de emersão da experiência universitária brasileira.

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São Paulo já havia sido a precursora na institucionalização de certas atividades

ligadas a atuação do sociólogo: o Museu Paulista e o Departamento municipal de cultura

eram provas disso, mas é no surgimento da Universidade e sua Faculdade de Filosofia em

1934, que Florestan vê o desenvolvimento da Sociologia como especialidade. Por meio dela

se viabilizaram a formação profissional, o desenvolvimento de um público consumidor

orgânico e a criação de um novo tipo de padrão de trabalho e produção intelectual. Muito

disso se deveu a presença de especialistas estrangeiros como Emílio Willems, Donald

Pierson, Roger Bastide, Levy Strauss, Jacques Lambert, Samuel Lowrie, Horace Davis e T.

Lyn Smith e outros3. Eles possibilitaram aos jovens estudantes o contato com um quadro

novo de referências. Estas formavam o roteiro de um tipo de conhecimento dotado de

linguagem e limites específicos frente a outras formas de saber. O contato com métodos e

perspectivas peculiares ao estilo de trabalho dos sociólogos europeus e norte-americanos

deu a alunos como Florestan, Antônio Cândido, Gioconda Mussolini a oportunidade de

conhecerem os circuitos dessa disciplina e as marcas que faziam dela um saber “científico”

sobre a realidade.

Para encerrar a reconstituição da perspectiva de Florestan são necessários alguns

apontamentos. Sua fala traz a tona uma certa idéia de ruptura, que só se esclarece

totalmente mediante a consideração de que a tradição seguida pelos uspianos não seria

aquela que ele chama estudos sociais brasileiros4. Ele e seus alunos5 se filiaram a um

padrão internacional de trabalho, orientado por métodos como o empírico indutivo. A 3 Estes talvez tenham formado a primeira geração da Escola Paulista de Sociologia, o problema consiste em reconhecer que tal grupo pouco tinha de brasileiro e muito menos de paulista. 4 Ressalva tendo de ser feita a Antônio Cândido, que se reconhece fortemente influenciado pelo ensaísmo. 5 E Florestan facilita, sobre eles, o trabalho de identificação: “Trabalharam comigo, ao longo do período de tempo que estive à testa da Cadeira de Sociologia I, diretamente ou através do Cesit, os seguintes colegas: Fernando Henrique Cardoso, Renato Jardim Moreira, Octávio Ianni, Marialice Mecarini Forachi, Maria Sylvia Carvalho Franco, Luiz Pereira, Leôncio Martins Rodrigues Netto, Celso de Rui Beisegel, José de Souza Martins, José César Gnaccarini, Gabriel Cohn, José Carlos Pereira, Gabriel Bolaffi Sedi Hirano, Lourdes Sola, Claudio José Torres Vouga, José Rodrigues Barbosa, Luiz Wejz, José Francisco Fernandes Quirino, Vera Lúcia Brizola, Maria Célia Pinheiro Machado , Dirceu Nogueira Magalhães, André Pompeu Vilalobos e Maria Helena Oliva Augusto.(...) (pp.183-184) Florestan destaca aí nomes que atuaram com ele ao longo dos anos 1950 junto a Cadeira de Sociologia I, nos projetos de pesquisa sobre a questão racial e os que se vincularam ao Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, Cesit, na década seguinte. No mesmo texto Florestan ressalta a cooperação com Roger Bastide, Gilda Rocha de Melo e Souza e Maria Isaura Pereira de Queiroz. Também salienta a contribuição de Bertram Hutchinson e Manoel Tosta Berlink à Cadeira de Sociologia I e a dada por economistas como Sebastião Advíncula da Cunha, Nuno Fidelino de Figueiredo e Aécio Cândido Galvão, ao Cesit.

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Sociologia em países como a França havia estado subordinada durante muito tempo ao

empenho naturalista de alguns de seus pais fundadores, em especial, Comte e Durkheim.

Decorria daí um suposto padrão de cientificidade que entre os uspianos é encarado como

registro de distinção frente aos estudos desenvolvidos pelos ensaístas e pesquisadores não

vinculados à Universidade, muitos deles marcados pelo desvio rumo ao genérico e

tendencioso. As gerações de sociólogos formados na USP teriam sido as primeiras a

conseguirem se livrar da influência e marcas desse tipo de estudo. Só a partir daí, e

posteriormente em alguns outros centros universitários, a Sociologia teria se desenvolvido

como disciplina científica. É importante ressaltar que tal posicionamento crítico não

impediu Florestan de se tornar um profundo estudioso dos estudos sociais produzidos no

Brasil elaborados até então. Ele alimentou uma postura seletiva revista algumas vezes ao

longo de sua carreira em prol de certas aproximações, por exemplo, com Caio Prado Júnior,

quando da escrita de A Revolução Burguesa no Brasil (1975).

As implicações do jeito florestânico de classificar a história do pensamento social

brasileiro são avaliadas de modo bastante crítico em um texto de Wanderley Guilherme dos

Santos: “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social brasileira”, escrito

em 1975 e publicado três anos depois. Nele, Santos primeiramente produz um inventário e

indica o quanto são parcos os estudos sobre a história das ciências sociais brasileiras. Tais

estudos6 são divididos em matrizes: institucional, sociológica e ideológica. Em seguida, o

autor sugere outros critérios capazes de orientar a análise sobre as tradições de estudos

sociais, localizando a própria experiência uspiana dentro de uma perspectiva tão ampla que

faz da idéia de origens, um falso problema. Há nesse texto, sem dúvida, uma quase diluição

da contribuição paulista7. A seguinte citação fornece um quadro representativo do modo

como o grupo de Florestan é encarado por ele:

“(...) A geração que começa a produzir em meio à década de cinqüenta formou-se intelectualmente ou sob a influência praticamente exclusiva do Estado Novo, e ignorando em larga medida a história crítica do passado brasileiro, inclusive a história crítica do passado cultural, ou sob a influência concorrente dos cientistas sociais visitantes, enfáticos na suposição de que apenas recentemente as disciplinas sociais teriam alcançado sua maioridade,

6 Entre eles estão três artigos de Florestan reunidos em “Etnologia e a Sociologia no Brasil” (1958). 7 Que talvez se explique em parte pela da trajetória intelectual de Wanderley Guilherme dos Santos. Um ex-isebiano posteriormente vinculado ao Iuperj.

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como decorrência da fixação de padrões universais de trabalho científico. A aceitação de critérios estritamente conectados ao artesanato intelectual, como medida suficiente de avaliação da qualidade da especulação social – tal como aparece nos artigos de Florestan Fernandes, por exemplo –, teria de levar à desconsideração da produção intelectual brasileira do passado.” (1978:23)

O momento que Florestan define como o que deu origem às ciências sociais é,

segundo Santos, também o de interrupção histórica da experiência intelectual brasileira,

fervilhante até a década de 1920 e início dos anos 30, como o demonstram a atividade

modernista e o ensaísmo sócio-político. Santos faz a crítica do formalismo academiscista

uspiano e define como frágeis os critérios usados por Florestan na consecução de um de

seus estudos sobre a história da Sociologia no Brasil. Segundo ele, classificar a evolução do

pensamento social brasileiro segundo marcos organizacionais e institucionais como fez

Florestan em “O padrão de trabalho científico dos sociólogos Brasileiros” (1958)8,

afirmando simultaneamente que o padrão de objetividade na investigação sociológica só é

alcançado mediante a experiência universitária, implica em construir uma periodização

simplória e detratora da tradição intelectual brasileira pré-uspiana. Toda a produção anterior

a 1934 encerrando-se na idéia de pré-científico9.

E é justamente desse projeto de Florestan de cientificização da Sociologia que trata

a tese de Alberto Oliva “Ciência e ideologia: Florestan Fernandes e a Formação das

Ciências Sociais no Brasil” (1997). Estudando a série de textos metodológicos produzidos

por Florestan entre meados da década de 1940 e início dos anos 60 Oliva detecta uma

8 Texto que também integra seu livro “A Sociologia no Brasil” (1977) como capítulo 3, pp. 50 a 76. 9 O autor ainda ressalta o valor do exercício de Sociologia de Conhecimento operado por Florestan em “Ciência e Sociedade na Evolução Social no Brasil” (1956) e “Desenvolvimento histórico-social da Sociologia no Brasil” (1957) mas tenta ultrapassar tal proposta indicando como a mesma espécie de tentativa veio desembocar em empobrecidas avaliações de dependência e determinância entre condicionantes sociais e formas de pensamento, exemplificados pelos trabalhos de Carone (1969) e Trindade (1974). Santos, após ressaltar o suposto caráter de interrupção da experiência paulista, caracteriza o trabalho dos intelectuais do ISEB, suas ponderações sobre a política e a autonomia econômica, como uma retomada de certos temas e estilos já presentes em autores do século XIX no Brasil, e identificáveis nas obras de Alberto Torres e Oliveira Viana, por exemplo. Aliás, o marcante dualismo isebiano representado pelo par de opostos nação e anti-nação não estaria distante, segundo ele, das dicotomias e contrastes de um Euclides da Cunha, como exemplo, e seus dois Brasis, um litorâneo, moderno e civilizado e o outro sertanejo, arcaico e castigado. O autor propõe uma história das idéias sociológicas organizada a partir dos temas e conteúdos que mobilizaram a reflexão dos atores intelectuais. A idéia de independência, desde o século XVIII; a descentralização e o federalismo no pós 1822, o ordenamento político no II Reinado e depois dele as agendas republicana e abolicionista; a idéia de civilização e raça no século XX e assim por diante.

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tendência do autor em absolutizar certas formulações técnicas e metodológicas encarando-

as como vias exclusivas e garantias irrestritas do padrão de cientificidade nas Ciências

Sociais. É inegável que durante boa parte de sua carreira Florestan tomou o empenho

observacional, empírico e indutivista como pressupostos fundantes do modo de

investigação cientifica. Oliva vai bastante fundo na relativização desses pressupostos

demonstrando que nenhum deles dispõe de unanimidade entre os teóricos da ciência

contemporânea tal a multiplicidade de frentes epistemológicas abertas nessa área. O autor

chega a afirmar que Florestan parece desconhecer outros modelos de explicação

sociológica, ou escamoteá-los sob leituras peculiarmente arbitrárias dos clássicos da

Sociologia. Destituídos de sentido unívoco e acomodados sobre bases metacientificas

discutíveis e instáveis, os pressupostos metodológicos de Florestan ganhariam, segundo

Oliva, sentido proeminentemente ideológico em meio a sua luta pela defesa do tipo de

investigação conduzida na USP sob sua orientação e segundo a herança dos estrangeiros.

Nas avaliações do que então se produzia fora da Universidade o sociólogo teria feito passar

por ciência, o que na verdade não passava de um modo convencional e desatualizado de

elaboração dos procedimentos investigativos de certa vertente da sociologia.

A última parte do livro de Alberto Oliva é uma densa discussão sobre a

interpretação desenvolvida por Florestan das obras de Durkheim, Marx e Weber em seu

livro Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (1967) e retomada em alguns

outros trabalhos como pilar de seu tipo de postura metodológica abertamente flexível. Oliva

chega a conclusão de que as construções indutivas imputadas por Florestan às obras dos

pais fundadores da sociologia não passam de um crasso equívoco já que, segundo ele,

apenas os textos de Durkheim portariam certos sinais do modelo de investigação indutiva.

Além disso, segundo o autor, qualquer pretensão de análise unificada desses autores

esbarraria nos termos epistemológicos de uma excludência mútua entre seus modelos de

explicação sociológica. As particulares combinações, operadas por Florestan, das categorias

próprias do materialismo histórico, estrutural-funcionalismo e da sociologia compreensiva

perderiam a legitimidade que essa leitura primeira havia lhes garantido. E o autor não hesita

em concluir:

“Dada a impossibilidade de uma metodologia legitimar-se como reprodução especular da racionalidade científica, o que acaba acontecendo é a adoção

9

dos princípios de pressupostos de certa vertente metacientífica, portadores de determinada identidade filosófica, como se encarnassem a normatização lógica do proceder científico como tal. Com isso, produz-se o efeito ideológico de perfilhar-se uma metodologia que deixa de assumir o que realmente é – reconstrução da cognitividade das teorias científicas a partir também de determinadas categorias filosóficas. Entendida como mimese, a metodologia não precisa enfrentar a espinhosa questão de como pode prover a adequada fundamentação do que propõe. É justamente esse tipo de pressuposto que leva Florestan a definir a cientificidade da sociologia como empírica, observacional e indutiva sem mostrar preocupação em enfrentar a natureza controversa desses predicados”. (p.347)

A análise de Oliva é pretensamente um golpe de morte no projeto de Florestan. O

que se pode dizer, é que no mínimo ela fornece uma via retrospectivas de reflexão crítica

sobre a obra desse autor. Mas, Florestan Fernandes e sua versão sobre os primórdios das

ciências sociais no Brasil também chegaram a ganhar acolhidas mais favoráveis. O melhor

exemplo disso talvez seja o grande projeto coordenado por Sérgio Miceli no âmbito do

Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos, o IDESP, intitulado “História das

Ciências no Brasil” que envolveu uma equipe de renomados pesquisadores na produção de

mapeamentos e narrativas sobre o desenvolvimento institucional da Sociologia,

Antropologia e Ciência Política no Brasil. O trabalho teve como objetivo a publicação de

dois volumes envolvendo diversos artigos a respeito, certamente um rico material para os

historiadores do pensamento social brasileiro e suas linhagens intelectuais. Dois textos

dentro do livro merecem especial atenção, o primeiro deles, “Condicionantes do

desenvolvimento das Ciências Sociais”, compõe o 1º volume (1989) e é de autoria do

próprio Sérgio Miceli, e o segundo: “A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a escola

paulista” foi escrito por Maria Arminda do Nascimento Arruda, e pertence ao 2º volume

(1995).

Sérgio Miceli se debruça sobre a atuação das primeiras gerações de cientistas

sociais, chamadas por ele muito apropriadamente de “novas categorias de produtores

culturais”, tentando diferenciar os padrões de desenvolvimento institucional e

implementação dessas carreiras no Rio de Janeiro e em São Paulo, fazendo, ao mesmo

tempo, algumas (poucas), referências aos processos de constituição disciplinar em Minas

Gerais, Pernambuco e Bahia. Miceli busca estudar as variantes de tais casos identificando

os grupos de interesses mais amplos em que buscaram se apoiar os membros dessa nova

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categoria; seu perfil social ou lugar de classe; as formas de comportamento intelectuais

predominantes em cada um desses estados diante das demandas políticas envolventes e a

própria amplitude dessas demandas; o grau de distanciamento entre este novo campo

disciplinar e as instituições superiores já existentes, em especial as faculdades de Direito e

por último; a dinâmica dos diferentes mercados de bens simbólicos em que tenderam a

operar esses atores: postos em agências públicas, empreendimentos e corporações privadas

no âmbito cultural como jornais, revistas, editoras etc.

Tanto no Rio como em São Paulo as Ciências Sociais nascem atreladas e

dependentes das estruturas do aparato estatal, mas na então capital do país, instituições

desse tipo pareciam estar mais expostas à cobiça e barganha por cargos, além de sujeitas as

intempéries dos contínuos re-arranjos políticos. O prematuro fracasso da Universidade do

Distrito Federal, encapada pelo grupo ligado à Anísio Teixeira e sufocada pelo lobby

católico dá conta desse misto de clientelismo, controle ideológico e empenho centralizador

por parte das autoridades federais, tão comum naquele estado. Em São Paulo, em

contraponto, pode-se falar em uma estadualização da iniciativa universitária, e desta como

parte de um singular projeto político das elites derrotadas na Revolução de 1932, e

empenhadas em reconduzir São Paulo a um lugar de proeminência nacional. A produção de

novas lideranças, qualificadas e esclarecidas, lhes pareceu o melhor caminho para isso e as

primeiras gerações de universitários souberam converter tais expectativas em liberdade

frente aos modelos convencionais de formação intelectual. Além disso, em São Paulo, os

cursos de Ciências Sociais obtiveram uma espécie de segurança funcional pelo fato de

atenderem ao requisito de formação de quadros para o ensino secundário num momento em

que a estrutura de ensino crescia rapidamente naquele estado.

A origem social das primeiras levas de estudantes uspianos também dá conta das

peculiaridades intelectuais do estado, ou pelo menos de sua capital. Como demonstra

Miceli, grande parte das vagas nesses cursos tendeu a ser ocupada por mulheres e

descendentes de famílias de imigrantes naquele momento, em processo de ascensão social,

ainda sim, membros da classe média. Algo inusitado e completamente distinto do que

acontecia nas faculdades de Direito, Medicina e Engenharia. Enquanto isso, no Rio de

Janeiro, os diplomas de cientistas sociais tendiam a se tornar um trunfo a mais nas mãos de

jovens abastados, futuros herdeiros do empreendimento paterno; ou eram ambicionados por

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jovens de classe média em busca de ascensão profissional nos quadros político-burocráticos

do Estado, conscientes da super-oferta de bacharéis na praça. Nos dois casos, algo em

comum: a pouca disposição desses atores em se entregarem por inteiro a carreira acadêmica

num estado em que eram relativamente fartos e garantidos os cargos públicos e intensos os

meios de cooptação intelectual, além de bastante precários e incipientes os meios

especializados de inserção profissional para sociólogos10

Já Maria Arminda do Nascimento Arruda inicia seu texto justamente tratando dos

novos espaços de sociabilidade impulsionados pelo processo de metropolização por que

passava São Paulo na década de 1940, aderindo à tese de Fernandes e convidando o leitor a

pensar nesta cidade “enquanto mercado e lugar das profissões, isto é, como espaço de

relações dominantemente racionais, e produtora de conhecimento especializados. (...)”

(1995:135). O que está em jogo em sua análise é a constituição da sociologia como saber

socialmente reconhecido e academicamente codificado. O trecho seguinte é bastante

elucidativo de seu ponto de vista:

“No caso de São Paulo, agrega-se o próprio fato de que a rápida transformação engendrou um profissional devotado à reflexão sobre os processos sociais da mudança. Em outros termos, a sociedade produz problemas passíveis de serem absorvidos pela análise científica, isto é, capazes de se tornarem objetos de estudo. A modernização social implica em propor formas de conhecimento, segundo pressupostos renovados. As Ciências Sociais abeberaram-se nessa fonte.” (idem, p.135)

Arruda compreende Florestan como um intelectual de estilo ímpar, no que tange ao

modo de fruição do saber. Na década de 1940 era típica entre os estudantes paulistas,

10 Quanto às relações com o ensino e a retórica jurídicos, Miceli afirma que a vinda e atuação continuada da missão estrangeira para a USP, em especial os franceses e norte-americanos, responsáveis pela área de estudos sócio-culturais, tornou possível o distanciamento frente às Escolas Superiores já instaladas e, viável o desenvolvimento de uma hierarquia, linguagem especializada e critérios específicos de titulação. No Rio, o juridicismo era a base de um vocabulário técnico já consagrado e a situação instável dos professores estrangeiros ali instalados acabou por expor a Universidade do Brasil a formas de recrutamento pouco meritocráticas e bem ao gosto da política de favor tão forte naquele estado. O autor ainda ressalta o modo como a produção editorial tendeu a se expressar mais intensamente em São Paulo, estado tão fortemente marcado pelo processo de incremento econômico entre as décadas de 1930 e 1950. Compara as revistas e periódicos paulistas: Sociologia (1939) e Revista de Antropologia (1954), além de Clima (1941), Anhembi (1950) e Brasiliense (1955), com os empreendimentos cariocas do mesmo gênero: Revista Acadêmica, Revista Brasileira, Revista do Brasil, Cultura Política e Ciência Política, aponta a subordinação do segundo grupo à interesses políticos e conclui: “(...) no Rio de Janeiro, até mesmo o mercado de difusão cultural (editoras etc.) se expandiu sob a égide e o apoio oficial, dependente quase sempre de recursos governamentais. (...)” (p. 131)

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segundo a autora, uma espécie de vivência humanística da cultura. As antigas faculdades

não costumavam ser espaços propícios à competição intelectual. E a sociabilidade dos cafés

com seus longos encontros, o cultivo obrigatório do conhecimento literário, do gosto pela

música, artes plásticas, teatro davam ainda o tom a um certo tipo de cotidiano entre os

estratos de letrados. Os contatos e arranjos pessoais preenchendo as expectativas de

carreiras, que em geral dissociavam-se largamente do preparo fornecido por cursos novos e

de baixo desdobramento profissional. Não havia lugares institucionalizados para geógrafos,

economistas e sociólogos senão os da própria academia. Segundo Arruda, o grupo de

Florestan fora responsável por reflexões e articulações constantes em torno do problema da

profissionalização da atividade do sociólogo. Apesar de apenas ter feito o mestrado na

Escola Livre de Sociologia e Política, marcadamente influenciada pelo padrão norte-

americano de organização disciplinar, Florestan se comporta na década de 1950 como o

mais legítimo herdeiro das preocupações de Donald Pierson no que se refere à valorização

do trabalho em equipe e a formulação da atividade acadêmica definidamente como

trabalho.

Nesse sentido, a autora parece concordar também com as avaliações de Fernandes

sobre as características até então marcantes da atividade intelectual no Brasil. Segundo o

autor, vigorava entre os intelectuais brasileiros uma certa concepção estamental de cultivo

do saber e da erudição como formas de distinção. A dura trajetória de Florestan havia-lhe

impedido de ter o que o berço e o ócio haviam dado aos intelectuais de sua geração. Como

conseqüência, um certo pragmatismo e uma visão instrumental da cultura se

desenvolveriam nele desde muito cedo marcando o tipo de treinamento que veio fornecer

aos seus alunos, tornando-se no final dos anos 50 o propugnador incansável das tarefas do

sociólogo como técnico, pesquisador e docente11.

A autora ainda acrescenta algo à discussão suscitada por Oliva, no que tange a

suposta leitura arbitrária feita por Florestan dos textos clássicos da sociologia, e faz isso se

11 Já são bastante conhecidos os embates entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes na década de 1950. O primeiro, como que representando o Instituto Superior de Estudos Brasileiros - Iseb, concebia a sociologia como instrumento da sociedade nacional em seu processo de auto-conhecimento. A Disciplina devia, segundo ele, estar comprometida com o processo de desenvolvimento (e os sociólogos mais ocupados em evidenciar as leis que o regem), do que com estudos de campo de caráter estático (Guerreiro se referia então a estudos de Comunidade como os desenvolvidos por Emílio Willems e seus alunos), baseados em teorias exógenas e incompatíveis com a realidade nacional. Florestan contra-atacava então definindo os argumentos de Guerreiro como falaciosos e ideologicamente inspirados e seu receituário como deformação “filosófica”.

13

referindo ao empenho teórico metodológico que marca a segunda fase da trajetória do

autor12. O estudo dos clássicos não serviu apenas para fornecer um lugar de autonomia

frente às tradições do pensamento social brasileiro ou como mecanismo de moldagem de

um discurso propagandeado como superior, porque científico. Sendo sim, sintomático da

imaturidade do campo disciplinar e ao mesmo tempo o meio mais adequado de ajustamento

às intenções e expectativas dos franceses. Campos disciplinares jovens e de contornos

frágeis costumam, segundo ela, pressionar seus membros quanto à necessidade de certos

exercícios demarcadores e de definição dos objetos básicos. Teria sido assim com

Durkheim na França e algo parecido no caso de Parsons e a sociologia norte-americana13.

Na Faculdade de Filosofia da USP, a hegemonia angariada pela sociologia sobre as demais

disciplinas nas décadas de 1950 e 1960 atestaria o sucesso de Florestan em seu esforço.

Hegemonia manifesta por certas tendências e visível na proliferação dos objetos e temas

das teses produzidas na Faculdade naqueles anos, em especial as defendidas na

Antropologia e Ciência Política14.

Uma outra via de contribuição sobre essa temática articula-se em torno de esquemas

comparativos. Definir os móveis que presidiram a institucionalização da sociologia no

Brasil sob o contraponto de experiências como a francesa, alemã e norte-americana pode

permitir a identificação de quadros comuns e implicações intelectuais de mesmo tipo entre

esses processos. Viana, Carvalho e Cunha Melo se incumbiram de tal questão na

introdução, algo sintética de seu estudo “Cientistas sociais e vida pública: o estudante de

graduação em ciências sociais” (1994). Para eles, a sociologia nasce tipicamente como

resposta às exigências impostas pelos processos de constituição da contemporaneidade, mas

tende a se diferenciar em função das plataformas sócio-políticas nacionais. No caso francês,

12 Arruda identifica quatro nítidos momentos na trajetória de Florestan, o primeiro deles marcado pelos estudos sobre a questão do folclore e seu empenho na reconstituição das fontes sobre os Tupinambá. No segundo, destacar-se-ia a figura do Scholar empenhado nos estudos sobre a questão metodológica e racial. O terceiro, seria marcado por uma espécie de redirecionamento de seus focos de interesse (e seus trabalhos sobre a mudança social e desenvolvimento na década de 1960 seriam típicos dessa fase), que antecede uma última, posterior à sua aposentadoria compulsória em 1969 e identificada por sua militância socialista e além disso, segundo a autora, pela ‘radicalização de sua perspectiva sociológica e o abandono de parte de suas preocupações teórico metodológicas’ (p.175). 13 Ver argumentação da autora (pp. 155 a 159) 14 Desde os estudos sobre comunidades tradicionais, teórico metodológicos, passando por aqueles dedicados a estrutura social, sem falar das reflexões sobre raça e relações interétnicas até os problemas do desenvolvimento, na década de 1960, já ditados pelo trabalho interdisciplinar no âmbito do Cesit. A autora trata disso muito bem na última parte de seu texto: “Ritos e Produtos” (pp. 211 a 231)

14

como exemplo, a sociologia surge em meio à culminância de movimentos insurgentes e

democratizadores, próprios da chamada III República15. E as ações de Durkheim e dos

durkheimianos aparecem como sintomáticas disso, respostas teóricas a um certo anseio por

estabilização e reformas sociais. Na Alemanha, desde no início do século XIX em meio as

ameaças dos ataques franceses às Universidades, os intelectuais buscam uma aproximação

defensiva junto ao Estado prussiano e por decorrência, são progressivamente contaminados

pelo seu perfil centralizador e discricionário16. Além disso, a forte tradição filosófico-

humanística fazia do ethos universitário germânico um espaço rígido, hierarquizado e quase

impenetrável, marcado pelo cultivo da erudição e certamente isolado das pressões

mundanas. Tal condição, no último quartel do século XIX forçou centenas de intelectuais

alemães ao exílio ou a radicalização dentro de correntes de pensamento como a socialista e

a anarquista. (pp. 359-360)

Nos Estados Unidos, a condução da sociologia à Universidade teria sido obra da

sociedade civil e de seus movimentos filantrópicos ou reformadores, inclusive

religiosamente orientados, nascidos após o fim do processo abolicionista e da Guerra de

Secessão (1866). O lide com a problemática urbana, a idéia de reconstrução social e o

pragmatismo seriam as marcas registradas da sociologia norte americana, que ao mesmo

tempo herdava dos modelos europeus a relação entre ensino e pesquisa, um tanto mais

enfática em relação à segunda.

“Ao contrário da experiência européia, O Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago foi criado para interagir com seu contexto social imediato e, crucialmente – dado que sua intenção manifesta visava a formação de cientistas e não de professores – , suas atividades não estavam, de modo algum, como na França e na Alemanha, subordinadas a padrões de carreira funcionais do seu corpo docente, devendo servir, sobretudo, ao ethos da descoberta e da invenção” (idem, p.362)

15 A III República foi decretada no contexto das sucessivas derrotas do exército do imperador Napoleão III durante a Guerra Franco-prussiana (1870-1871). Após a capitulação francesa em setembro de 1870, seriam os membros do novo governo os responsáveis pela assinatura dos humilhantes tratados de rendição e pela cessão ao Império Germânico dos territórios de Alsácia e Lorena, no norte do país. Além disso, meses depois, os chefes da III República teriam de enfrentar os insurgentes da chamada Comuna de Paris, reprimidos sob o saldo de quase 20 mil mortes. 16 O contexto era o da unificação dos estados germânicos sob a égide e conforme os planos do primeiro ministro Otto von Bismark, conhecido como o chanceler de ferro, e os planos de Guilherme I, o fundador do II Reich em 1871.

15

Esboçadas essas experiências, é possível melhor avaliar as nuances do quadro

brasileiro. Aqui, a sociologia como disciplina acadêmica teria surgido dos expedientes e

intervenções da consciência elitista e ilustrada paulistana e, graças a ela também,

conseguido florescer como instituição isolada e imune às ações da ditadura do Estado

Novo. Antes dela, ao mesmo tempo, não havia propriamente uma tradição de sociologia

“pró-reformas”, instrumento da sociedade civil e sim, uma linhagem de estudos ensaísticos

produzida por atores aos quais talvez se pudesse denominar: intelectuais de Estado. Estes se

desdobrariam em várias frentes. Desde aquela representada por Alberto Torres e Oliveira

Viana, como exemplos, preocupada com a organização do poder público e com a eficácia

civilizacional de suas ações, até o ativismo de viés igualitário de Anísio Teixeira e

Fernando de Azevedo em seu empenho em promover um sistema nacional de educação

laico e moderno (p.366)17.

A expressão “intelectuais de Estado” dá conta do lugar de inserção desses atores e

da crença que eles depositavam nos aparatos públicos, no que tange ao progresso do país

como um todo. A ligação entre a Universidade de São Paulo e a luta pela questão

educacional nas décadas de 1920 e 1930 já foi bastante estudada. Vários dos intelectuais do

grupo logo acima indicado participaram diretamente de seu esforço de criação. No final da

década de 1920, da luta pela ampliação e racionalização da educação pública participavam

entidades como Academia Brasileira de Ciências, a Associação Brasileira de Educadores e

Jornais como o Estado de São Paulo, com seus conhecidos inquéritos sobre a questão

educacional. Esses grupos contribuiriam para transformar a educação em um “problema

nacional”. A Igreja se fazia presente então, como polarizadora, defendendo um modelo que

garantisse sua esfera de influência sobre o setor e impusesse limites a certos tipos de

práticas pedagógicas, como aquelas que aboliam a separação entre meninos meninas dentro

do ambiente escolar. A Revolução de 30 permitiu que as forças mais progressistas em

matéria educacional ganhassem projeção dentro da máquina pública, mas também abriu

generoso espaço para a Igreja, comprovado pelas indicações dos mineiros Francisco

Campos e Gustavo Capanema para o Ministério da Educação, políticos firmemente ligados

a esfera de influência eclesiástica e seu braço civil, Alceu Amoroso Lima.

17 Trata-se dos chamados “pioneiros da educação nova”, responsáveis pelo manifesto de 1932, que além dos dois acima citados compunha-se de nomes como os de Francisco Venâncio Filho, Heitor Lira, Almeida Júnior, Lourenço Filho entre outros.

16

A questão da Universidade, carro chefe das campanhas educacionais em São Paulo,

ganharia na década de 1930 um novo alento. A essa altura, vários intelectuais paulistas, ex-

membros do Partido Democrático, formavam o que viria a ser chamado Grupo do Estado.

Tratava-se de homens como Fernando de Azevedo, Paulo Duarte, Armando de Sales

Oliveira e Júlio de Mesquita Filho que tornaram o jornal Estado de São Paulo peça chave

na campanha em prol da criação de uma universidade que forjasse os quadros técnicos e

intelectuais de uma nova elite, capaz de conduzir São Paulo ao seu grau de merecimento e

importância no cenário político nacional. A USP nesses termos, seria uma das respostas dos

paulistas aos acontecimentos de 1932. Irene Cardoso em seu livro “A universidade da

comunhão paulista: o projeto de criação da Universidade de São Paulo” (1982), acrescenta

um enfoque histórico a essa discussão. A autora define o Grupo do Estado como uma

espécie de partido ideológico ou estado maior intelectual que, durante quase toda a década

de 1930, soube intercalar a defesa aparentemente intransigente de princípios liberais com

momentos de clara negociação e compromisso com o centralismo varguista.

Armando de Sales Oliveira, um dos proprietários do jornal Estado de São Paulo,

tornar-se-ia governador do Estado após a frustrada Revolução Constitucionalista de 1932.

A conhecida exigência de que viesse a ser um paulista o indicado por Getúlio para governar

São Paulo não poderia ser mais bem cumprida senão através desta escolha. Armando Sales

era representante, ao mesmo tempo, dos ideais de 1930 e 1932, pelas campanhas do Estado

de São Paulo na década de 1920, em prol de reformas políticas que “republicanizassem a

República” suprimindo a corrupção eleitoral, e posteriormente pelo engajamento de seu

jornal na campanha constitucionalista. No último episódio, no entanto, o que começara

como oposição à Getúlio e apoio aos revoltosos, terminaria numa solução de compromisso,

através da qual certa parte da elite política de São Paulo “liberal e democrata” passou a

integrar os quadros de um Governo que ao término de uns poucos anos, conduziria a

política nacional à um regime de exceção e subseqüentemente, autoritarismo oficializado: o

Estado Novo.

A Universidade de São Paulo e sua Faculdade de Filosofia foram instituídas por

decreto estadual em 25 de janeiro de 1934. Antes dela já havia no estado, uma experiência

nascente: a Escola Livre de Sociologia e Política, criada no ano anterior, sob a influência de

Roberto Simonsen e como continuidade de iniciativas como a do Instituto Racional do

17

Trabalho. Um dos autores que mais bem reconstitui o contexto sócio-histórico que presidiu

esta experiência é Simon Schwartzman18. O modo como este autor trata das pretensões de

seus criadores e o cenário de suas escolhas é bastante elucidativo. Julio de Mesquita, Paulo

Duarte e Fernando de Azevedo teriam tentado driblar a legislação Francisco Campos,

segundo eles, demasiadamente centralizadora e negligente quanto à questão da pesquisa.

Sobre os aspectos ideais do projeto paulista e o modo como foi planejado. Afirma

Schwartzman :

"A nova universidade seria pública, leiga e livre de influências religiosas; deveria ser uma instituição integrada, não apenas um grupo de escolas isoladas. Seu núcleo central seria a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com professores estrangeiros. Ali haveria uma atividade de pesquisa confiada a uma equipe de tempo integral, que trabalharia nas formas mais adiantadas da ciência, deixando os trabalhos práticos para as escolas profissionais." (Schwartzman, 2001:168)

Uma universidade concebida nesses termos era algo de completamente novo no

cenário nacional, o que explica as dificuldades do empreendimento. As escolas técnicas

superiores e as faculdades, como a de Medicina e Direito, resistiram amplamente a

reconhecer a Faculdade de Filosofia como órgão central. Mas no geral, a experiência

paulista viria diferir e muito do que aconteceu no Rio de Janeiro19. A Universidade do

Brasil e a Faculdade Nacional de Filosofia, apesar de pontualmente bem sucedidas não

conseguiriam integrar os institutos e escolas superiores cariocas e se desenvolver livres da

sanha reestrutadora que se seguiu ao fim do Estado Novo. Apesar de bastante longo, o

seguinte trecho forma um quadro comparativo interessante à compreensão das diferenças

entre as experiências dos dois estados. Segundo Schwartzman, Bomeny e Ribeiro Costa:

“A criação da Faculdade de Filosofia, Ciência Letras da USP obedeceu a procedimentos muito mais acadêmicos, que, por isto deram melhor resultado. A escolha dos professores estrangeiros das áreas mais técnicas foi feita a partir do trabalho pessoal de um matemático de grande competência, Teodoro Ramos; os de ciências sociais, recrutados predominantemente na

18 “Um Espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil” (2001), Capítulo 5. e “Tempos de Capanema” (2000), em co-autoria com Helena Bomeny e Vanda Ribeiro Costa. Parte III. 19 Como acima indicado, a Universidade do Distrito Federal, criada em 1935 pelo esforço de Anísio Teixeira, seria arbitrariamente extinta em 1939, sob a ação dos interesses da Igreja Católica e o impacto do grandioso projeto de Capanema.

18

França, eram familiares à intelectualidade paulistana, de orientação francesa conhecida. No Rio de Janeiro, enquanto isto, o processo de indicações nas áreas sociais e humanas era submetido a um crivo ideológico estrito, e os canais oficiais eram utilizados para a seleção de professores. Em São Paulo havia um evidente investimento intelectual em pensar a maneira pela qual os novos cursos deveriam ser instituídos, ao passo que, no Rio, a preocupação arquitetônica com a cidade universitária parecia ser a principal motivação. Em resumo, se por um lado, o projeto paulista era muito mais orgânico, partindo dos recursos e do envolvimento da própria comunidade científica e acadêmica existente no estado, por outro, o projeto nacional era de concepção muito mais hierárquica e autoritária, buscando implantar-se de cima para baixo. A todas essas considerações há que acrescentar uma outra, de ordem mais geral: por uma série de razões nem sempre muito claras, mas que incluem, sem dúvida, a dinâmica de sua economia e a presença de grandes contingentes de população de origem européia., é possível que São Paulo possuísse, já no início da década de 1930, um ambiente mais propício para a atividade intelectual, cultural e científica do que o Rio de janeiro, e isto proporcionava um terreno mais sólido para um projeto universitário” (2001: 242-243)

Sobre a Faculdade de Filosofia, aspectos como o da filiação ao modelo francês, a

vinda dos especialistas, a ênfase na questão da autonomia universitária e o valor que os

idealizadores da USP atribuíam à alta cultura e ao saber desinteressado são também

abordados por Schwartzman, aspectos, aliás, já bastante conhecidos.20

20 Um ponto importante em seu estudo, posteriormente averiguado por Miceli, diz respeito ao perfil dos primeiros estudantes da Faculdade de Filosofia. Segundo o autor, o baixíssimo nível de regulamentação e profissionalização da carreira de cientista social havia provocado entre os filhos da elite paulistana um generalizado desinteresse pelo curso. A Faculdade de Filosofia recebia suas visitas em dias de palestra aberta, mas as vagas regulares haveriam mesmo de ser ocupadas por atores de lugar social mais baixo e também por mulheres e filhos de imigrantes. A classe média adentrava a Faculdade e fazia chocar contra o rígido humanismo dos mestres franceses suas limitadas expectativas pessoais quanto ao cultivo da erudição. O alcance da inventividade técnica e teórica parecia correr o risco de uma espécie de abrasileiramento. Mas não foi isso o que aconteceu, a geração de Florestan alcançou padrões intelectuais de excelência internacional. Os cientistas sociais na USP tornar-se-iam ao longo dos anos 50 produtores de uma forma original de discurso, com claras implicações no modo como as gerações intelectuais seguintes se poriam a ver a “realidade nacional” e os entraves que tendiam a impedir sua transformação. A ambição de Júlio de Mesquita Filho, de formar elites, tenderia a seguir tortuosos e inesperados caminhos. Florestan, em seus balanços de geração na década de 1970 explica o que aconteceu na USP segundo a fórmula do feitiço que se vira contra o feiticeiro. O que, segundo ele, deviam ter se tornado os quadros de renovação da elite burguesa, transformaram-se em membros de uma intelligetsia crítica e militante, punida e expulsa da Universidade pelo seu alinhamento em prol das reformas democráticas que o liberalismo, segundo ele, de fachada, das elites não havia sido capaz de assimilar. Se a complexificação do Estado houvera tornado o especialista uma peça socialmente valiosa, seu caráter reacionário impedia a realização plena de quaisquer proposições sociológicas tecnicamente formuladas. O golpe de 1964 dava provas do quão inócua havia sido a utopia paulistana no que tange à condução ao poder de uma elite esclarecida e modernizante.

19

São ainda elucidadores os relatos sobre como, na segunda metade dos anos 1940 e

no decorrer da década seguinte, a Universidade de São Paulo se desenvolvia em meio a um

clima político desanimador e pouco representativo de seus interesses. Segundo Daniel

Pécaut (1990:173), as classes populares pareciam tremendamente identificadas com o

adhemarismo21; o PCB programaticamente desarticulado e, as elites paulistas ainda mais

alheias e conservadoras, com o demonstravam os editoriais do jornal Estado de São Paulo.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o PCB e o PTB mantinham fortes bases de apoio nos

aparatos sindicais e um arraigado nacionalismo lançava à arena política alas inteiras das

forças armadas além do conhecido amparo pelo Estado. Explicando-se dessa maneira a

falta de entusiasmo dos intelectuais paulistas frente a onda de desenvolvimento dos anos JK

e sua aproximação cheia de reservas em relação à chamada campanha pelas reformas de

base, no período que antecedeu ao golpe de 1964.

Tentando explicar o florescimento do ethos e clima acadêmico em São Paulo,

Pécaut ressalta que ali os professores tinham o controle sobre as condições que presidiam a

produção e o reconhecimento intelectuais. A mediação institucional contava entre os

alunos, com ampla aceitação e a hierarquia própria das cadeiras era considerada legítima.

Além disso, é preciso lembrar que o cargo de professor na USP era então, entre os cidadãos

paulistas, um posto tremendamente prestigiado. O sentimento do quão raro e valioso era o

espaço da academia estava na base do inter-reconhecimento e da competitividade entre os

estudantes e, explica suas filiações às novas normas de trabalho intelectual. O

desenvolvimento de São Paulo garantia as necessárias comunicações com o exterior. E o

fascínio pelo trabalho de autores internacionais e pelo padrão organizatório das

universidades européias e norte-americanas costumava ser alimentado pela importação ágil

e massiva de livros e revistas. Simultaneamente, no Rio de Janeiro, o papel do intelectual

parecia pouco familiar ao estilo acadêmico moderno, além de um tanto marcado pelo

autodidatismo. Seu reconhecimento não se operava frente a um público restrito,

especializado ou no âmbito de um espaço codificado em termos similares aos da USP. A

atuação do intelectual no Rio tendia quase que naturalmente a implicar participação na

21 Havia então, segundo Pécaut (1990:173) entre a maior parte do público universitário, uma certa repulsa ao movimento político de base popular em apoio à Adhemar de Barros, antigo interventor no governo estadual, político convencionalmente taxado de demagogo.

20

máquina pública ou num plano de dignidade superior, a própria intervenção no campo

político. Aliás, seria mesmo a intimidade dos intelectuais fluminenses com o tipo de

representatividade popular e nacional o aspecto facilitador de suas adesões ao clima de

marcha para o povo que marcou os conturbados anos que antecederam ao Golpe de 1964.

Diferentemente dos exercícios críticos de distinção frente a geração modernista e os

até então academicamente polidos confrontos com as teses de Gilberto Freyre sobre o

negro22, essa oposição entre paulistas e cariocas, cujos posicionamentos de Guerreiro e

Florestan são apenas índices, foi a mais fortemente definidora de uma identidade intelectual

entre os uspianos. A questão do desenvolvimento no início da década de 1960 mesmo que

lentamente, arrastaria Fernandes, Cardoso, Ianni e alguns outros membros do Cesit para um

tipo de sociologia leitora do presente. É interessante avaliar como toda a série de diálogos

sobre a questão nacional popular e sobre o subdesenvolvimento se construíam então sobre

modalidades enunciativas bastante próximas das concebidas pelos ensaístas da década de

1930 (apesar de atualizados no âmbito de um discurso nitidamente economicista), os

chamados intérpretes do Brasil. Tratava-se então de explicar as origens, a formação e os

fundamentos do subdesenvolvimento ou os limites do processo de industrialização

brasileira. Rondava a Cadeira de Sociologia I a iminente aproximação em relação à

questões como a do Estado e o sistema político brasileiros. A pauta de investigações do

Cesit e os trabalhos de Cardoso e Ianni na década de 1960 expressam bem esta tendência23.

22 Ver, a respeito, “Gilberto Freire e São Paulo” pp. 121 a 215 parte II de (orgs.) FALCÃO, Joaquim e ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa (2001) 23 Entre o fim dos anos 50 e primeira metade da década seguinte, os cientistas sociais e economistas preocupados com as razões do atraso nacional se dividiam e atuavam no âmbito de uma série de institutos e centros de produção intelectual. Nesse contexto a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo era apenas uma dentre várias outras instituições envolvidas em um intenso diálogo em torno dos rumos da democracia no Brasil e do papel da ciência e dos intelectuais nessa nova ordem que parecia a todos estar se firmando com o avanço industrial. Faculdades, editoras, institutos, associações ganhavam projeção e reconhecimento. Seus agentes passam a ocupar certos lugares socialmente destacados e renovar os debates intelectuais e políticos, ainda marcados pelas intervenções heróicas, mas esparsas e pontuais da intelectualidade modernista dos anos 20 e 30. Após o golpe e seus efeitos devastadores sobre o campo intelectual, chega a se desenvolver uma terna solidariedade entre paulistas e cariocas, expressa pela participação dos primeiros na Revista Civilização Brasileira. Proliferavam-se então, as teses, que apoiadas em estudos sobre a política econômica do governo Castelo Branco, apontavam para o risco de “ruralização do país”; e os “diagnósticos” estagnacionistas que indicavam o total esgotamento do modelo de industrialização baseado na substituição de importações, além dos ataques a tecnocracia, qualificada de “entreguista” e incapaz de produzir e gerenciar novos modelos de crescimento econômico. Tais idéias às vezes provindas de economistas de renome e legitimidade como Celso Furtado alimentavam uma militância leiga em seu anseio em romper com o Regime. Uma imagem interessante e útil à compreensão desse período é a de uma constelação. O debate intelectual no Brasil

21

Observações finais:

Minha intenção neste artigo foi apenas tratar de algumas versões que dão conta das

circunstâncias históricas singulares que presidiram e condicionaram a trajetória intelectual

dos membros das três primeiras gerações do que se convencionou chamar Escola Paulista

de Sociologia, principalmente o episódio da fundação da USP e seu processo inicial de

desenvolvimento. Infelizmente, a resenha da outra série de textos que compõem os dois

volumes da História das Ciências Sociais no Brasil, e que trazem tantas contribuições a

respeito, não pode ser feita. Trabalhos já reconhecidos como o de Carlos Guilherme Mota

(1977), Milton Lahuerta (1992) e Lúcia Lippi (1995) ficaram de fora. E contribuições mais

recentes, como as teses de Luis Rodolfo Vilhena (1997) e Wagner Romão (2003), também

não foram retomadas. O espaço limitado me impediu de incluí-los neste percurso. Ao

mesmo tempo, talvez tenha sido possível perceber ao longo de sua leitura que as versões

que dão conta do início desse projeto intelectual vencedor dos sociólogos uspianos tendem

a não conseguir escapar de um certo esquematismo. Aquilo que se convencionou chamar

bacharel aparecendo como um opaco conceito ideal típico, um personagem de trajetória

pobremente reconstituída, e negativamente avaliada por parcos exercícios de aproximação.

Sem dúvida, também há problemas no modo como se tende a abordar o lugar de

Florestan em meio a oposição sociologia científica/juridicismo politicamente interessado.

Alberto Oliva, por exemplo, negligencia o fato de que o projeto cientificizador de Florestan

nos anos 50 era parte de um tecido ideológico que atraía o interesse de intelectuais de fora e

de dentro da Universidade. Florestan não deve ser cobrado nesse sentido: ‘por absolutizar que sempre havia se feito diretamente entre autores, até o AI-5, em 1968, deixa-se entrever como um diálogo entre organizações e institutos. Ainda que sujeitos aos tradicionais desvios e ataques pessoais, os confrontos intelectuais tomavam a forma de embates entre correntes de pensamento: a Escola Superior de Guerra, ESG, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Iseb, o Partido Comunista Brasileiro, PCB, a Comissão Econômica para a América Latina, Cepal, a Universidade de São Paulo, USP, sua Faculdade de Filosofia e as experiências a ela ligadas, como o grupo de O Capital e o Cesit. É preciso não esquecer também a ação da União Nacional dos Estudantes, UNE e seus Centros Populares de Cultura neste contexto, ou mesmo dos movimentos em torno de revistas e editoras como a Anhembi, com Paulo Duarte a sua frente, a Brasiliense, dirigida por Caio Prado Júnior e principalmente a Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro, sob a coordenação de Ênio Silveira e Moacir Félix. Foi dentro desta constelação que ganharam sentido certas questões centrais do debate político naqueles anos. Temas como o desenvolvimento, autonomia nacional, dependência, revolução burguesa e segurança nacional, que povoaram os radicalizados discursos anteriores ao Golpe de 1964, tiveram, seguramente, um primeiro lugar nas publicações de várias destas instituições. Assim como os projetos do Governo Militar e suas oposições armadas, incrementalistas ou partidarizadas, estiveram povoadas de conceitos elaborados no calor dos debates intelectuais mais intensos da década de 1950 e início dos anos 60.

22

certas formulações e pressupostos metodológicos’. Naquele momento, ele respondia muito

bem às demandas da tradição disciplinar que ele ajudava a transplantar e consolidar. Mas

Oliva nos deixa entrever o relativo esgotamento desse projeto. Não há mais tantas razões

para que, concordando com o Florestan dos anos 50, continuemos a nos valer do parâmetro

institucional-cientifizante na avaliação das diversas linhagens do pensamento social

brasileiro, em especial às anteriores à Universidade.

Também é verdade que a maneira com a qual os uspianos qualificavam o ensaísmo:

‘expressão de uma mentalidade conservadora, em conexão com formas sociais arcaicas e

com o cultivo elitista do saber’, também pode ser revista. As híbridas características do

processo modernizador brasileiro e as reflexões e frustrações sobre as formas possíveis de

racionalização desse desenvolvimento são parte do arcabouço interpretativo desses

“primeiros sociólogos” paulistas. Eles foram capazes de indicar como o jogo de

privilegiamento deu aos atores da antiga ordem um espaço de acomodação no seio da

‘ordem social competitiva’ em constituição no país. Não há novidade aqui. A alavanca de

força e arbitrariedade que deu sustentação e impulso a esse processo, o Regime pós 64,

também foi alvo de intensas reflexões por parte desses sociólogos. A questão é que no

Brasil, talvez a pendência das promessas, talvez a histórica negligência quanto a certos

“problemas nacionais”, ainda dão sentido à leitura dessas mais antigas contribuições, pelo

menos daquelas não de todo enviesadas pelo racismo ou pelo elogio à centralização

autoritária.

Sobre a década de 1970. Muitos intelectuais paulistas parecem, já ali, terem

compatibilizado suas perspectivas críticas com um certo comportamento profissional de

ajuste. Vários uspianos, ao longo dos anos seguintes, seriam como que arrastados até o

centro dos processos políticos contemporâneos brasileiros. O desenrolar das cisões e

filiações partidárias, exemplificáveis apenas pelas trajetórias de Florestan e seu aluno

Fernando Henrique, tornaram complicadas certas classificações que antes alimentavam

parte da postura desses sociólogos frente à sociologia que os precedeu: uma sociologia de

direita. A outra parte das resistências ao estilo ensaísta se devia as restrições de ordem

metodológica, talvez a pecha de que na obra de autores como Oliveira Lima, Paulo Prado

ou Gilberto Freyre não havia rigor e objetividade suficiente. Bem, passados tantos anos,

relativamente atingida a Sociologia por uma certa descrença em relação às formas mais

23

racionalizadas de representação do social, boa parte do campo disciplinar parece hoje já ter

baixado a guarda em relação ao discurso literário e, talvez mais do que isso, estar buscando

cooperação e se apropriando de seu estilo. É difícil não pensar que já seja possível ao

historiador do pensamento social brasileiro, se desvincular de análises como a de Florestan

a este respeito.

O trabalho de Wanderley Guilherme dos Santos parece ser o único a organizar este

debate de modo mais equilibrado e fornecer as ferramentas capazes de neutralizar algumas

das mistificações que tendem a mediar os diálogos sobre os “primórdios” da sociologia no

país, identificando-lhe os traços de uma auto-imagem uspiana e suas implicações para a

história do pensamento social. Sem negar a objetividade dos trabalhos do Idesp à respeito, é

preciso ao mesmo tempo buscar versões menos dicotômicas sobre o “corte”, “interrupção”,

“salto” representado pela fundação da Universidade de São Paulo. Talvez seja preciso abrir

espaço para releituras da história do campo menos ‘sãopaulocêntricas’. Florestan foi

personagem central no espaço originário dessas contendas e a idéia aqui, passa longe do

desmerecimento da ação da geração de acadêmicos pioneiros, em suas palavras:

“trapezistas que atuavam sem redes protetoras” (1977:225). A questão seria, no entanto,

demonstrar que a versão produzida pelo projeto vencedor não explica a contínua e atual

valorização de textos e autores pré-uspianos, estranhos ao seu estilo difícil, sistemático e

acinzentado.

Bibliografia:

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