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1 FOI POR VOCÊ (Ibateguara, 25/12/14, JOSÉ TENÓRIO NETO) A família de Jairo sempre foi extremamente religiosa, a devoção fazia parte do pão de cada dia da família Silva. As horas das refeições eram um verdadeiro culto com direito a louvores, preces e muita fé, tradição esta passada de geração a geração, cujos princípios cristãos eram rigorosamente observados, desde o mais jovem ao membro mais velho da família. O pai de Jairo era pastor de uma pequena congregação do interior do Estado do Belém do Pará e, regia a igreja como regia a família, ou regia a família como regia a igreja? Vai saber, afinal os dois ambientes não eram em nada diferentes. O jovem teve uma formação profundamente cristã, mas havia algo de especial que chamava a sua atenção na cultura e na religião judaica. Desde pequeno quando ouvia os sermões de seu pai no púlpito da igreja, viajava nas histórias dos personagens do Antigo Testamento, ficava imaginando como seriam os lugares, desejava muito conhecer as terras bíblicas. Jerusalém era o seu maior sonho, sentimento de um escravo na Babilônia. O Antigo Testamento era a parte das Sagradas Escrituras que mais chamava a sua atenção. Dizia que o Novo Testamento não trazia nada de interessante. Alegava que a cultura e o povo judeu passam despercebidos na bíblia cristã. Na verdade, seu desprezo pela história Verto Testamentária era resultado de uma imposição da fé cristã pelo pai. Nunca se quer lhe foi explicado o motivo moral e espiritual de sua formação. Não aceitava os discursos nos sermões que recorrentemente em respeito ao povo judeu declarava a sua incredulidade e rebeldia. Não entendia o porquê de tais declarações, pois via no judaísmo a única forma de se chegar a Deus. Duas datas convencionalmente cristã, a semana santa e o natal não traziam para Jairo boas lembranças. A discussão com o pastor Saulo e a saída precoce de casa são reminiscências que ele gostaria de deletar de sua memória, no entanto só o afastou ainda mais do cristianismo o ingressou de vez no judaísmo. Jairo passou a frequentar uma sinagoga judaica chamada Beti Chabat, local constituído pelo menos por dez judeus adultos, onde passam a se reunir para prece. O culto judaico era uma viajem ao passado bíblico para Jairo. A leitura da Torá e outros livros sagrados satisfaziam seus antigos anseios pelo povo judeu. Não havia nenhum problema para ele fazer parte da membrezia da sinagoga, contanto que se sujeitasse a se tornar um prosélito, ou seja, um converso que abraçou o judaísmo no intuito de servir a Jeová segundo os requisitos da Lei de Moisés. Passados dois anos de sua dedicação a nova fé, Jairo se demonstrava fiel aos preceitos da Torá e do conjunto de regras postos no Mirshiná. Fervente devoto, cumpridor à risca das tradições judaicas. Elogiado pelos rabinos, admirado por todos na sinagoga, Jairo ganhava notabilidade e respeito ao passo que se dedicava cada vez mais a sua fé. Estava convicto que servia a Deus na verdadeira religião. Lamentava apenas o fato de a família não ter aberto os olhos para enxergar o caminho que ele agora trilhava. Sentia uma tristeza na alma pela forma de como saíra de casa. A discussão com o pai, a distância e o tempo incomunicável com a família desde que saiu de casa para aventurar-se em São Paulo. Nesse tempo, Jairo conheceu Helena, colega de trabalho que aparentava ser muito religiosa, algo percebido pelos apetrechos sagrados que carregava. Os dois eram vizinhos de sala na redação do jornal Gazeta. Jairo sempre foi um rapaz tímido, por vezes vendia a imagem de um antissocial, alcunha famigerada recebida por vocação ou reflexo do exclusivismo de sua nova religião. A imagem do pai florava nesse momento, imagem traumática, como um cão buscando a caça, um capitão do mato em busca do escravo fujão. Mas Helena era diferente, simpática, sorridente, boa de conversa, coisa de gente da cidade grande. Desinibida, puxava conversa fácil, eficientíssima em tirar o bicho da caverna:

Foi Por Você

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Gênero: ContoTemática: Religiosa.Autor: José Tenório Neto

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    FOI POR VOC (Ibateguara, 25/12/14, JOS TENRIO NETO)

    A famlia de Jairo sempre foi extremamente religiosa, a devoo fazia parte do po de cada

    dia da famlia Silva. As horas das refeies eram um verdadeiro culto com direito a louvores, preces

    e muita f, tradio esta passada de gerao a gerao, cujos princpios cristos eram rigorosamente

    observados, desde o mais jovem ao membro mais velho da famlia. O pai de Jairo era pastor de uma

    pequena congregao do interior do Estado do Belm do Par e, regia a igreja como regia a famlia,

    ou regia a famlia como regia a igreja? Vai saber, afinal os dois ambientes no eram em nada

    diferentes. O jovem teve uma formao profundamente crist, mas havia algo de especial que

    chamava a sua ateno na cultura e na religio judaica. Desde pequeno quando ouvia os sermes de

    seu pai no plpito da igreja, viajava nas histrias dos personagens do Antigo Testamento, ficava

    imaginando como seriam os lugares, desejava muito conhecer as terras bblicas. Jerusalm era o seu

    maior sonho, sentimento de um escravo na Babilnia. O Antigo Testamento era a parte das Sagradas

    Escrituras que mais chamava a sua ateno. Dizia que o Novo Testamento no trazia nada de

    interessante. Alegava que a cultura e o povo judeu passam despercebidos na bblia crist. Na verdade,

    seu desprezo pela histria Verto Testamentria era resultado de uma imposio da f crist pelo pai.

    Nunca se quer lhe foi explicado o motivo moral e espiritual de sua formao. No aceitava os

    discursos nos sermes que recorrentemente em respeito ao povo judeu declarava a sua incredulidade

    e rebeldia. No entendia o porqu de tais declaraes, pois via no judasmo a nica forma de se chegar

    a Deus.

    Duas datas convencionalmente crist, a semana santa e o natal no traziam para Jairo boas

    lembranas. A discusso com o pastor Saulo e a sada precoce de casa so reminiscncias que ele

    gostaria de deletar de sua memria, no entanto s o afastou ainda mais do cristianismo o ingressou

    de vez no judasmo. Jairo passou a frequentar uma sinagoga judaica chamada Beti Chabat, local

    constitudo pelo menos por dez judeus adultos, onde passam a se reunir para prece. O culto judaico

    era uma viajem ao passado bblico para Jairo. A leitura da Tor e outros livros sagrados satisfaziam

    seus antigos anseios pelo povo judeu. No havia nenhum problema para ele fazer parte da membrezia

    da sinagoga, contanto que se sujeitasse a se tornar um proslito, ou seja, um converso que abraou o

    judasmo no intuito de servir a Jeov segundo os requisitos da Lei de Moiss.

    Passados dois anos de sua dedicao a nova f, Jairo se demonstrava fiel aos preceitos da Tor

    e do conjunto de regras postos no Mirshin. Fervente devoto, cumpridor risca das tradies judaicas.

    Elogiado pelos rabinos, admirado por todos na sinagoga, Jairo ganhava notabilidade e respeito ao

    passo que se dedicava cada vez mais a sua f. Estava convicto que servia a Deus na verdadeira

    religio. Lamentava apenas o fato de a famlia no ter aberto os olhos para enxergar o caminho que

    ele agora trilhava. Sentia uma tristeza na alma pela forma de como sara de casa. A discusso com o

    pai, a distncia e o tempo incomunicvel com a famlia desde que saiu de casa para aventurar-se em

    So Paulo. Nesse tempo, Jairo conheceu Helena, colega de trabalho que aparentava ser muito

    religiosa, algo percebido pelos apetrechos sagrados que carregava. Os dois eram vizinhos de sala na

    redao do jornal Gazeta. Jairo sempre foi um rapaz tmido, por vezes vendia a imagem de um

    antissocial, alcunha famigerada recebida por vocao ou reflexo do exclusivismo de sua nova religio.

    A imagem do pai florava nesse momento, imagem traumtica, como um co buscando a caa, um

    capito do mato em busca do escravo fujo. Mas Helena era diferente, simptica, sorridente, boa de

    conversa, coisa de gente da cidade grande. Desinibida, puxava conversa fcil, eficientssima em tirar

    o bicho da caverna:

  • 2

    -Percebi que voc no muito de conversa.

    -Na verdade sou novo por aqui, apenas dois anos que vim do Par, e trs meses que estou

    nesse emprego.

    -Puxa vida! Veio de longe em busca de sonhos, condies econmicas, coisa do gnero?

    Mais ou menos isso. Mudando da gua para o vinho, percebe-se que voc muito religiosa.

    -Sim, meus pais eram profundamente religiosos, estudei em toda a minha vida em um colgio

    interno catlico.

    -E voc, acredita em alguma coisa?

    Claro que acredito em um deus, se isso que voc quer saber.

    Desculpe-me, no quis contrari-lo.

    -No, no, que isso S percebi a natureza de sua pergunta. Eu frequento uma sinagoga

    judaica j alguns anos e estou prestes a tornar-me um proslito.

    -Legal, eu sempre tive a curiosidade em saber como funciona a liturgia dessas sinagogas

    contemporneas que tentam manter um conservadorismo judaico do primeiro sculo em pleno sculo

    XXI.

    -Na verdade Helena, certo?

    -Sim, e o seu Jairo?

    -Sim, na verdade a f judaica vai alm do simples conservadorismo. O judasmo a verdadeira

    religio, e a Lei a nica forma de estarmos em comunho com Deus.

    -Bom, eu fui criada em um lar cristo, aprendi desde cedo que o cristianismo a verdadeira e

    nica religio que nos conduz a Deus. Os santos que nos deu testemunho de f e coragem devem ser

    venerados, e a Santa Igreja Catlica a verdadeira Igreja, tendo como o seu primeiro lder o apstolo

    Pedro.

    -Est claro que voc foi bem-educada, porm, em sua fala ntido duas coisas: inocncia e

    sincretismo.

    -Como assim? Voc est afirmando que eu no sei o que significa ser cristo?

    -No bem isso, o que estou querendo dizer que voc no sabe realmente qual a verdadeira

    religio. Voc foi instruda, e por qu no dizer domesticada em uma religio que mistura deuses e

    santos como objetos de culto, e nem percebes a discrepncia que esse teu cristianismo tem com a Tor

    Divina.

    -Eu no estou compreendendo a natureza da objeo a minha f.

    -A essncia do cristianismo baseia-se na morte de algum em uma cruz, certo?

    -Certo

  • 3

    -Mas como pode ser isso? Por que ele fez isso? Por qual razo? No seria suicdio?

    -Sinceramente, eu tambm tenho as minhas dvidas.

    -Est vendo? Inocncia e sincretismo. Bom, preciso voltar ao trabalho, mas antes, gostaria de

    convid-la qualquer dia desse, a fazer uma visita a sinagoga que eu congrego; Beit Chabat, voc vai

    gostar.

    -Est bem, vou sim, vamos marcar.

    Desde aquele dia, Jairo e Helena se encontravam sempre nos intervalos do trabalho, as

    conversas duravam horas, tornaram-se grandes amigos, e os ps de Helena estavam cada vez mais

    dentro do Judasmo. Jairo conseguiu convenc-la de que a sua religio no lhe proporcionava nada

    alm de dogmas e crendices, mesmo diante da constante alegao de Helena de que o judasmo era

    uma religio predominantemente masculina, onde o espao ocupado pela mulher quase

    imperceptvel, ou lugar algum. No entanto, o fervor das palavras de Jairo, a devoo de fazer inveja

    a qualquer fariseu ou rabino, rebatia a tese mal colocada, desprovida de fatos de Helena. Dizia que

    ao longo da milenar histria do povo hebreu, a figura da mulher na comunidade judaica tem evoludo

    em consonncia com as outras civilizaes modernas. Este era o nico ponto em que as conversas

    ganhavam contornos de um debate marcado pelos nimos alterados. Com o passar do tempo, Helena

    resolveu ingressar na f judaica, se converte e passa a frequentar a sinagoga com Jairo, o que estreitou

    ainda mais a relao entre os dois. Helena morava distante do trabalho e mais ainda da sinagoga que

    Jairo frequentava. A distncia no era problema, enfrentava quase duas horas de trem e de nibus

    para chegar no trabalho, trs no total para participar do servio sagrado.

    O sbado era um dia especial. Na sexta-feira Helena no voltava para Campinas, mas ficava

    na capital em uma pousada particular da sinagoga Beit Chabat, que abrigava os peregrinos de toda

    parte do Estado para a celebrao do Shabat. No final da reunio, Jairo foi convocado pelo rabino

    regente da sinagoga. Este o informou que dentro de duas semanas ele iria a Jerusalm submete-se ao

    ritual de inicializao, assim oficializando o seu ingresso no posto de proslito no judasmo. Jairo no

    se conteve de tanta alegria. Velhas lembranas vieram tona, um sbito flash da imagem do pai

    aflorou em sua memria, gostaria muito que ele estivesse presente. Sentiu a ausncia da famlia. A

    dor foi maior quando se lembrou da me, ela sempre o apoiou. Lembrou-se da frase que ela falou

    quando ele saiu de casa; -V ser feliz meu filho... Helena o esperava do lado de fora da sinagoga, o

    seu semblante brilhava, assim como o de Moiss que acabara de sair da presena do Senhor no Sinai,

    pelo que ela disse:

    -Posso saber a razo de desse contentamento?

    -Claro que sim, afinal, voc o mais prximo do que tenho de famlia, quero partilhar a minha

    alegria contigo. Vou realizar um sonho de infncia Irei cidade de Davi, a Cidade Santa, Jerusalm,

    vou me batizar no rio Jordo, ser circuncidado, recitar os preceitos da Tor na presena dos sacerdotes

    e dos rabinos.

    -Legal, deve ser um sonho conhecer a cidade de Jerusalm.

    -Mas mesmo, sonho de menino sonho de criana sonho de escravo.

  • 4

    Duas semanas se passaram, o grande dia chegado, Jairo no conseguiu dormir noite.

    Calafrios, nsia de vmito, dor de barriga, tudo ao mesmo tempo, turbilho de nsias, emoes

    sentidas com enorme prazer. Quinta-feira, o dia do embarque, Jairo liga para Helena, mas ela no

    atende ao telefone. Helena queria chegar a tempo, horas antes do embarque, desejava partilhar com

    o amigo alguns momentos. Jairo liga para o Gazeta, recebe a notcia de que Helena no havia ido

    trabalhar. Deduziu que ela queria lhe fazer uma surpresa. A preocupao quis por um momento

    atrevido dividir o espao com as outras sensaes, mas logo se tranquilizou. Concentrou o seu

    pensamento na viajem, na realizao do sonho de infncia. Sentiu algo diferente, profundo sentimento

    de orgulho, louvou a Jav por fazer parte da religio de seu povo:

    Cantar no aliviou a ansiedade, Jairo estava em xtase, mal concebia a ideia do que estava

    acontecendo com ele. Ir a Jerusalm, cidade de Davi, no era qualquer coisa, ainda mais naquelas

    condies, pois no iria apenas fazer turismo, mas a um propsito sublime. Por um instante a

    preocupao por Helena ausentou-se de sua cabea, at que o telefone tocou. Era do Gazeta

    informando a Jairo a notcia fatdica de que Helena sofrera um grave acidente de carro e estava

    internada no hospital Santa Madalena. O voo de Jairo estava marcado para as duas da madrugada, era

    quase meio-dia. Foi imediatamente para o hospital, no queria deixar a amiga naquelas condies

    sozinha.

    Ao chegar ao hospital, Jairo recebe a notcia de que Helena no poder mais andar, todo o

    impacto recebido no acidente provocou uma sequela no crebro causando uma hemorragia deixando-

    a tetraplgica. A notcia o abalou muito, antigas memrias tornaram atormentar a sua cabea; de casa

    da me do pai da igreja principalmente da irm Dulce. O corredor de espera do hospital parecia o da

    morte, que cruelmente dissipava os sonhos pela fatalidade do momento. Por um instante, pensou que

    deveria desistir de tudo aquilo, da viajem, de Jerusalm, dos Rabinos e Sinagogas.

    -Sr. Jairo?

    -Sim, sou eu.

    O Sr. parente da paciente Helena Mascarenhas?

    -Quase isso!

    -Ela est sedada, ser submetida a uma operao daqui h uma hora, o Senhor gostaria de v-

    la?

  • 5

    -Por gentileza...

    O caminho at a sala onde Estava Helena tornou-se o mais longo para Jairo. O corredor ficou

    escuro, longo, interminvel, uma dor comprimiu o seu peito, no sentiu os ps no cho. A dor no peito

    aumentou, de repente, ao passar por uma sala, viu um letreiro que dizia: No andeis ansiosos por

    coisa alguma. No compreendeu o significado daquilo, como pode no estar ansioso naquele

    momento? pensava. Achou que havia escutado ou lido essa inscrio em algum lugar. -O Sr. Pode

    seguir em frente, a sala onde se encontra a paciente fica no setor sete, depois da enfermaria. Ao chegar

    a sala, e v Helena desacordada, no se conteve, comeou a chorar. A dor no peito retornou com mais

    intensidade e teimosia. Sentiu-se s, desde que saiu de casa nunca necessitou do afago da famlia,

    salvo naquele momento. Lembrou-se da inscrio na porta de uma das salas: No andeis ansiosos

    por coisa alguma. Dessa vez, acompanhada da cara do pai, no entendeu bem o porqu, mas quis

    acreditar naquilo.

    -Sr. Jairo. Era a enfermeira informando que chegou a hora de preparar Helena para a cirurgia.

    Nesse momento, Jairo viu chegar uma jovem senhora na porta da sala, imediatamente, pensou ser

    parenta de Helena. Os traos semelhantes eram provas irrefutveis de sua descrio. Cludia, a irm

    distante, apareceu para a assistncia familiar. De cara, ela o reconheceu, mesmo sem nunca ter o visto,

    pois a irm j havia falado sobre ele. Jairo tambm facilitava a descrio, pacato, simples, com ar do

    interior, no negava as origens, o Kip ajudava em sua identificao;

    -Sr. Jairo?

    -Sim...

    -Sou a irm mais velha de Helena, quero agradecer por ter ficado com ela at agora.

    -No foi nada. No poderia deix-la sozinha.

    -Mesmo assim, sou muito grata, moro um pouco distante daqui, quase que no nos vemos.

    Helena nos faria uma visita nesta semana, mas disse que voc faria uma viajem muito importante e,

    queria aproveitar alguns momentos contigo.

    -Sim, estou com um voo marcado para as duas da madrugada, mas diante de tudo isso...

    -No desista de sua viajem, e no se preocupe, vou assumir o posto a partir de agora. V

    tranquilo, vai dar tudo certo, tenho a certeza de que ela vai querer que voc cumpra seus votos. Vou

    aproveitar, mesmo que nesta funesta ocasio, recompensar a minha ausncia.

    Jairo foi para a casa, restava-lhe algumas horas antes da partida. Helena no saia de sua cabea.

    De sbito, lembrou-se que no havia comunicado ao rabino regente o trgico acontecimento com

    Helena. Pensou em ligar, mas o fato era digno de ser contado entre corpos. Foi at a sinagoga que

    ficava apenas uns trinta minutos de sua casa. Ao chegar, o rabino de prontido o saudou, perguntou-

    lhe o que aconteceu para ele no estar em casa se preparando para a longa viajem at Jerusalm. Jairo

    informou ao Rabino o acontecido, de como Helena se encontrava, e de como ela ficar. Diante de seu

    dramtico discurso, cujas palavras em curso de um ritmo pulsante e acelerado do corao, em uma

    sincronia perfeita, justificado pelo apreo de Jairo a amiga. No entanto, o rabino no pareceu se

    comover com aquela dramtica narrativa, antes informou-lhe que diante das condies fsicas de

    Helena, a sinagoga no poderia mais acolh-la como membro. A luta, face aos tempos modernos e

  • 6

    rebeldes em conservar certos aspectos da ortodoxia judaica dos sculos passados, era um legado que

    at ento Jairo no havia enxergado. Veio repentinamente em sua memria, como um dado inflamado

    do maligno, o que Helena disse em suas primeiras conversas; eu sempre tive a curiosidade em saber

    como funciona a liturgia dessas sinagogas contemporneas que tentam manter um conservadorismo

    judaico do primeiro sculo em pleno sculo XXI. Helena passou a ser vista como uma deficiente,

    aleijada, desqualificada para estar entre o povo de Deus, afinal, como manda o figurino o sacrifcio,

    necessariamente precisa ser sem mcula. A imagem do pai voltava a perturb-lo, s que dessa vez

    no veio sozinha, lhe visitou tambm a irm Dulce. Visita justificada, pois a irm foi acolhida pela

    igreja que o pai preside quando submetida ao mesmo destino de Helena.

    So quase onze horas, Jairo deita-se pensativo, como pode abandonar uma irm no momento

    de maior sofrimento? Chegou novamente a pensar em desistir da viajem. Tudo parecia se perder nas

    duras palavras do rabino regente; a sinagoga no poder acolh-la mais como membro. Percebeu

    que no havia o mesmo entusiasmo, a alegria deu lugar a tristeza. Nem de longe a figura imponente

    que carregava o basto da verdade sobre Deus, pronto a atacar o terreno inimigo e destruir as heresias

    e falcias das demais religies. Estava fraco, abatido pegou o telefone, quis ligar para o pai, queria

    um conselho, no sabia o que fazer. Mas o orgulho custa caro, no iria vend-lo por nada. Pensou

    tambm em ligar para o rabino, dizer-lhe umas boas, jogar tudo para o alto, procurar uma nova

    religio, ou quem sabe abrir uma sinagoga. O ltimo pensamento o confortou, no apenas isso, o

    motivou a no desistir da viajem: fui muito longe para querer voltar logo agora. Dormiu.

    Perto da meia-noite, Jairo estava pronto para iniciar a sua misso. No como dantes, mas

    estava de p. O silncio do condomnio foi interrompido pela buzina do txi para lev-lo ao aeroporto.

    Finalmente, a hora do embarque chegada! Nesse momento, o corao de Jairo foi a mil, no de

    alegria, mas de medo. A vida no interior de Belm nunca lhe a via dito que ele voaria. Mas tudo ia

    perfeitamente dentro dos conformes. Todo aquele turbilho de sensaes liquidificadas fez sentir-se

    cansado. Pegou no sono, dormiu quase a viajem inteira, acordou assustado, a aeromoa tratou de

    acalmar os passageiros, informando-os que era apenas uma turbulncia costumeira, nada demais. Ato

    contnuo, os balanos aumentavam a cada nuvem, o medo tronou-se um infeliz passageiro, veio a sua

    mente a frase escrita no hospital; No andeis ansiosos por coisa alguma. Queria acreditar, mesmo

    que absurdamente naquilo, pois no lembrou de nenhuma recitao da lei dessa natureza que lhe

    viesse trazer a paz. Subitamente um claro forte, um brilho intenso, invadiu o avio.

    Quando acordou, Jairo j no estava mais no avio, no entendeu o que estava acontecendo,

    na verdade no lembrou de nada alm do claro. Estava alojado em uma espcie de estalagem ou

    pousada. Uma casa bem simples, estilo campons, a rudez das paredes, principalmente do telhado

    feito de barro com vigas salientes. As frutas secando no teto, uma pequena abertura servindo de janela.

    Jairo sentiu-se anacrnico, fora de seu tempo, em uma poca diferente. Uma pequena dispensa, uma

    cozinha tambm pequena e um lugar para o banho com degraus construdo ao redor de um ptio

    pavimentado. As paredes eram cobertas de uma camada fina de gesso de pedra calcria, e o assoalho

    era de cho batido. A moblia era composta de mesas de pedras retangulares, vasos, pratos, copos e

    pesos cilndricos. Os talheres, a cama, a casa, nada era comum. Na cama havia uma vestimenta,

    sentiu estar nu, mesmo vestido. Uma vestimenta bsica, nada de cueca, no mximo um vestido longo

    at os ps, uma tanga para ser usada por baixo da tnica, nada de moda, de belo, contudo necessrio

    ao ambiente, pois o clima era intenso, o calor era escaldante, mas era aliviado pela vestimenta. O sol

    entrava pela fresta da porta, observou que na parte superior da porta, precisamente nos umbrais, viu

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    uma tiras, aproximou-se, havia letras, escritos, reconheceu de cara a inscrio, mesmo em hebraico;

    Amars a Deus sobre todas as coisas. O lugar era escuro, na parte superior o alqueire alumiava

    precariamente o ambiente. A sua conscincia permanecia em parte em nosso sculo, o mnimo

    possvel, mudou o espao, o lugar e as datas, mas ele era o mesmo. Foi a janela, viu os transeuntes,

    ortodoxos, arcaicos. O local era Jerusalm, pois do lugar que estava, podia contemplar o formoso

    templo de Herodes, mas como pode ser isso? Ele no foi derribado pelos romanos? Esperava ver a

    mesquita Alue Mosk no lugar? A viso o perturbou, no era Jerusalm moderna, era a antiga. Jairo

    saiu, no sabia para onde ir, esperava ser recebido por correspondentes da sinagoga Beit Chabat em

    Jerusalm, lembrou-se do celular, voltou a casa, no entanto no encontrou as suas coisas, as malas,

    os documentos, a carteira, tudo havia sumido, somente aquela veste antiquada. No sabia exatamente

    o que havia acontecido consigo e suas bagagens. Algum entrou, era o dono da estalagem, lhe

    ofereceu uma espcie de po de forma arredondada, sem sal, tosco e ridculo. Aquela seria a mais

    longa quinta-feira de sua vida.

    -Desculpe senhor, quem me trouxe para c?

    -O senhor no se lembra? Foi um homem chamado Joshua, parecia de posses, me pagou uma

    boa quantia, disse que eu deveria cuidar bem de voc, prepar-lo para amanh, pois o dia ser longo,

    inesquecvel.

    -Aonde posso encontr-lo? Ele mora aqui por perto, qual o seu endereo?

    -Bem..., eu nuca o vi, parecia ser de longe, de algum lugar fora de nossas extremidades. Um

    viajante. Recomendou-me os devidos cuidados e, mais nada. No se preocupe, estou aqui para servi-

    lo. Coma, descanse um pouco, eu volto mais tarde.

    -Certo, s mais uma coisa... Onde estou, que dia hoje?

    -Bem, estamos em Jerusalm, cidade de Davi, cidade de meu Deus, estamos no ms de nis,

    hoje Yom amishi, ( quinta-feira).

    Jairo no acreditou no que estava acontecendo com ele, pensou estar sonhado, mas era algo

    muito real, sentivel, palpvel, concreto. Lembrou-se de um romance; A cabana, em que o personagem

    passa por semelhante devaneio. Mas tudo parecia real, no concebia a louca ideia de estar perdido no

    tempo. O sonho tornou-se pesadelo, lembrou-se de Helena, certamente ela teria uma reposta plausvel

    para essa situao. Tentou situa-se no tempo, havia tido aulas de cultura hebraica, quando ingressou

    na sinagoga, fez a contagem dos anos comuns e embolsticos. Olhou pela fresta da janela, percebeu

    a agitao da cidade, havia muita gente, aglomerao, barulho de mercado, falas entrecruzadas,

    grupos, caravanas, tudo ao mesmo tempo, empoeirados pela terra seca, amarela, presa a cor da pele.

    Homens, mulheres, soldados romanos de guarida, parecia um daqueles filmes picos, apenas UMA

    NICA DIFERENA: ele era um dos personagens. Aquela cena pesou-lhe a mente, sentiu em seu

    corpo um cansao extremo, como se tivesse comprimindo-o contra a parede, um peixe fora dgua,

    um animal fora de seu habitat. Caiu no sono, dormiu na cama dura, feita de vara, mas confortvel

    para o cansao.

    Na manh seguinte, Jairo acordou assustado, era cedo, percebeu pelo fraco aparecimento da

    luz do sol que penetrava as brechas da casa precria. O barulho vindo do lado de fora era estrondeante,

    muitas vozes, gritos, sussurros, gemidos, choros. Ouviu quando algum gritou:

  • 8

    -Injustia! Solte o inocente.

    Jairo saiu, deparou-se com uma enorme multido em frente de seu aposento, a agitao era de

    fim de mundo, uma mulher agarrou um soldado e pediu-lhe que o ajudassem, ele no culpado, dizia;

    foi armao dos fariseus. Ficou perplexo com toda aquela agitao, deduziu que poderia ser um

    motim, pois havia lido As antiguidades Judaicas, e quanto os judeus se rebelaram contra o regime

    romano, desencadeando sucessivas rebelies. Os soldados estavam em guarda, no para a batalha,

    mas apenas para manter a ordem. Muita gente na rua, subindo, descendo, no se sabe ao certo para

    onde iam. Viu um homem ser empurrado, socado e apedrejado por um grupo de pessoas, nos rostos

    podia se ver o vermelho do nariz transparecendo a raiva. -Peguem-no, este discpulo do falsrio! O

    grupo partiu vorazmente pra cima do homem, mas, que por sorte conseguiu escapar dos lobos

    devoradores. Jairo viu quando o homem cambaleando entrou em uma rua, mais precisamente um

    beco. Seguiu-o, no percebeu que distanciara de seu aposento. No se preocupou com isso, a cidade

    aparenta ser pequena, pensou. Gostaria de saber o motivo da desordem eufrica do momento. No

    conseguiu tirar da cabea as duas palavras provindas dos lbios dos algozes; discpulo e falsrio. Este

    homem a chave

    O lugar era pequeno, distante da cidade. Sabia que se fosse em seu tempo, aquilo seria invaso

    de privacidade, contudo justificou-se na ideia nobre de poder ajud-lo, motivo bvio para sua

    curiosidade. Foi at a parte que parecia ser o quarto, a cama estava vazia. Havia uma escada feita de

    uma terra preta batida que dava acesso parte superior da casa. Subiu as escadas, o homem estava

    deitado no trreo desacordado. Jairo tentou anim-lo, estava muito ferido. Depois de alguns minutos,

    ouviu um gemido, correu para perto. Ele tentou abrir os olhos, Jairo deu-lhe gua. Gemeu outra vez,

    mas desta vez o gemido trouxe algumas palavras truncadas misturadas com dor; Ele inocente.

    Quem? Diga-me, quem?

    Nada mais, apenas o cu, o sol e as nuvens, fiis testemunhas de palavras soltas, vazias, frias

    de cadver. Jairo procurou o caminho de volta. De repente, deparou-se com pessoas correndo em

    direo ao lado sul da cidade. Perguntou a um dos maratonistas:

    -Para onde tu vais?

    -Para a fortaleza de Antnia, l acontecer o julgamento.

    -De quem?

    -Do rabino da Galileia.

    O que ele fez, matou algum, cometeu um crime hedion... Horrvel?

    No tenho tempo para te explicar, o julgamento acontecer na hora sexta, quero encontrar um

    lugar privilegiado a vista. S posso dizer que ele um agitador, mentiroso, rebelde e transgressor de

    nossa tradio, por isso merece a devida punio. Jairo ficou intrigado com aquilo, lembrou-se de

    Scrates, acusado de corromper os jovens com sua filosofia inovadora, lembrou com exatido, s no

    lembrava onde, quando ouviu ou aprendeu. Mesmo estando consciente de quem era, Jairo no se

    lembrava de tudo e todos que compunha a sua vida. Boa parte dessas lembranas era como se ele no

    tivesse ainda vivido, apenas flashbacks. A cidade encontrava-se daquele jeito por causa de um

    homem? Certamente, este era um criminoso altamente perigoso, achou. Jairo resolveu acompanhar a

  • 9

    multido em direo a Pretria de Antnia, fortaleza do prefeito da provncia Pncio Pilatos.

    Aproveitou para reiterar-se da situao e perguntou a um soldado romano sobre o acusado, s no

    sabia como iniciar a conversa com um oficial romano. Lembrou-se de Dona Laura, professora de

    histria, que ensinou sobre culturas antigas, dentre elas a romana. Com os braos levantados para

    frente, e com a palma da mo para baixo, gritou:

    -Ave Csar.

    -Ave Csar. No sabes que no tens o direito de falar com um oficial Romano?

    -Perdoe-me oficial, sou estrangeiro, estou de passagem, s quero algumas informaes para

    localizar-me no espao em que me encontro.

    -Diga-me, o que queres saber?

    -O que est acontecendo, por que tamanha agitao e alvoroo na cidade?

    -Um certo rabino, judeu, residente da pequena e baixa Galileia ser julgado.

    -O que foi que ele fez para tamanha fama, e repercusso?

    -Na verdade, nenhum crime, mas o seu povo o acusa de traio ao imprio, muitas

    testemunhas disseram que ele o rei dos judeus. CESAR O REI!!!

    -Vocs o ouviram declarar tamanha acusao?

    -No! O seu povo o disse.

    -Roma o acusa desse crime?

    -Bem... no. Ele no um a ameaa para ns, o Imprio maior do que qualquer homem.

    Seus ensinamentos afrontaram as tradies de seu povo. Os sacerdotes esto furiosos, a corja poltica

    e religiosa de Jerusalm querem o ver morto. Ouvi dizer que certa vez, afirmou que derrubaria o

    templo e depois o levantaria. Muitos relatos de seus feitos chegaram a Csar Augusto, milagres, curas,

    bruxaria a meu ver. Mas nenhuma acusao de que estava incentivando o povo a rebelasse contra

    Roma.

    -Ento porque, julg-lo?

    -Mesmo no sendo contra ns, como j disse, a corja o querem morto, isso trar paz novamente

    a esse lugar miservel. Os fariseus tm o poder, podem provocar uma rebelio, no podemos conceder

    matria para eles. H anos temos contido a rebelio desses infelizes, essa gente no adora os nossos

    deuses, tem a sua prpria religio e seu Deus. Esse Messias est perturbando no a ordem civil, mas

    a religio. Temos ai papel, plvora, e finalmente o fogo para explodir esse lugar em revolta e sedio.

    Temos que fazer a nossa parte.

    -Mas se ele judeu, nos seria apropriado um julgamento na corte judaica?

    -Pouco nos importa as questes desse povo, mas os Principais, linha de frente desse motim,

    querem v-lo crucificado, nesse caso, s Roma tem o poder para sentenci-lo a morte.

  • 10

    Lembranas antigas tentaram fazer um visita a Jairo, uma terrvel dor de cabea, um cansao,

    dores em todo corpo, como se tudo aquilo fosse pesado demais para se suportar naquele poca. Em

    meio multido que seguia em direo ao lugar do julgamento, fitou os olhos em uma mulher que

    era consolada nos ombros por outra. Chegou mais perto, ouviu quando uma disse: -Tu no sabes que

    ESTE O DESTINO PELO QUAL ELE VEIO. Aproximou-se mais, teve medo em falar com elas,

    por instinto percebeu que no era honroso ao homem ser visto conversando com uma mulher em

    pblico. Ouviu quando a que chorava foi chamada de Miri. No se conteve, aproximou-se mais,

    nesse instante, a multido o apertava, parecia procisso, faltava apenas o santo.

    -Ol senhoras, perdoe o atrevimento de minha curiosidade, ela teima mais do que a razo.

    -Que saudao esta?

    -No sou daqui. Sou um viajante de um tempo distante, de um lugar muito distante, no entanto,

    sinto-me envolvido nessa trama. Desde de cedo, embora no sei exatamente o que est acontecendo.

    -Nosso Mestre foi preso injustamente, mfia de Fariseu.

    -Sim, eu ouvi falar desse grupo.

    Nosso Mestre nos deu vida, possibilitou um novo mundo a ns mulheres. No cometeu crime

    algum. Nunca o vimos transgredir se quer um til ou jota da Lei. Mas os doutores se sentiram ameaado

    por sua doutrina. Pois era diferente. Esse era o nico crime cometido do ponto de vista farisaico.

    Antes Dele, estvamos fadados aos discursos vazios, hipcritas, desprovidos de aes prticas dos

    mestres judeus.

    -Eu no consegui compreender muito bem isso. Como pode algum ser condenado por fazer

    o bem?

    Uma das mulheres, enxugando as lgrimas, equilibrando os soluos, disse:

    -No me esqueo de quando o vi pela primeira vez. Foi no pior momento de minha vida

    pregressa, todavia o mais importante. Fui pega no ato do adultrio, levada estrategicamente a sua

    presena. Os Fariseus queriam v-lo contradizer-se. Pedras nas mos, podia ouvir o barulho de seus

    rangeres. Declararam-lhe o meu crime, que por lei deveria ser apedrejada. Surpreendentemente, o

    Mestre abaixou-se, escreveu a seguinte descrio na areia: Todos vocs so inocentes? Em seguida,

    disse: quem no tiver pecado atire a primeira pedra.

    -Voc no teve medo de algum ter jogado a pedra?

    -Sinceramente, tive sim, pois sabia a ndole daqueles lobos, de principal virtude o fingimento.

    Mas quem poderia mentir diante de TAMANHA PRESENA? Disse-me que eu estava perdoada,

    chamou-me de filha, e desde ento, no sou mais a mesma.

    Jairo ouviu quando algum o chamou: Gentio! Era o dono da estalagem que o reconheceu de

    longe. Seu nome era Calebe, pareceu-lhe aos olhos que sua pele estava mais ressecada, amarelada ao

    sol escaldante do Oriente. Perguntou-lhe para onde estava indo, pois estava distante do lugar de sua

    estadia. Jairo respondeu-lhe que seguia o destino da multido, no mesmo interesse, sem planejamento,

    sabia apenas o destino, mas no razo de sua ida ao lugar esperado. Calebe falou que era perigoso

  • 11

    para um gentio est no meio da multido, judeus eram exclusivista, desprezavam as outras raas. Tal

    informao, no teve importncia, pois o antigo instinto de redator lhe dizia que estava diante de um

    grande acontecimento, digno de ser noticiado. As ruas eram defeituosas, pedregosas, estreitas, com

    ladeiras estrondeante. Um bom sacrifcio daria para oferecer aqui. Ouviu gritos; Impostor, Belzebu,

    sacrifique esse transgressor. Em alguns rostos dava para ver a cor da fria, vermelha, encarnada com

    suor e sujeira, sujeira amarela de gente do oriente, coberto por tnicas e mantos. Era um verdadeiro

    liquidificador de emoes, choro, raiva, alegria, esta ltima, no de felicidade, mas de desejo de

    sangue que a cada grito; CRUCIFIQUE-O, CRUCIFIQUE-O, tornava concebido o pensamento. Um

    homem de idade, bem-vestido com trajes religiosos, puxava o carro alegrico da massa eufrica. Jairo

    tentou aproximar-se, mas foi impedido, no pela multido, mas pelos soldados do templo.

    Caifs! Gritou algum. Raa de vbora. No se sabia de onde vinha tais insultos, percebia-

    se porm, que o alvo era o mestre-sala desse carnaval.

    -Calebe. O que est acontecendo? Que este aqum pede a sua morte?

    -Meu senhor, aqui perigoso, at mesmo para os bons, vamos a um lugar mais reservado.

    Quero que voc conhea o seu anfitrio.

    -Mas, Senhor. Eu preciso

    -No se preocupe, posso garantir que voc no perder nenhuma cena do espetculo,

    crucificaes s perdem para coliseus em matria de sangue e crueldade pblica, principalmente se o

    ru tiver o requinte do acusado.

    Calebe conduziu Jairo a um lugar reservado, distante da multido, de toda a agitao. A casa

    era grande, ornamentadas, paredes decoradas, estilo romano. -Espere aqui. Uma sala ampla, propcia

    as grandes reunies, as paredes eram pintadas com afrescos. Imaginou estar em casa de gente

    importante, elite, certamente.

    -Shalon Adonay.

    -Shalon.

    -Como estais?

    -Estou bem. Desculpe-me, eu o conheo?

    -Sim, no se lembra? Fui encarregado de receb-lo em nossa terra.

    -Eu no compreendo. Quem o encarregou?

    -Meu jovem, atente apenas em saber o necessrio. Por exemplo, por que estais aqui?

    Uma dor de cabea retornou com mais intensidade, o esforo para responder a pergunta exigia

    mais do que Jairo podia imaginar. Ele no sabia a resposta. No sabia o porqu de estar naquele lugar,

    naquele tempo, naquela poca. Soou em sua mente a lembrana do motivo, de forma muito vaga

    como se fosse uma folha cada de uma rvore levada pelo vento sem saber para onde em um espao

    oco em sua memria.

    -Lembro-me, vagamente, que fui enviado a Jerusalm para o ritual de inicializao.

  • 12

    -J o fez?

    -No, a cidade est agitada at porque, no sei por onde e quem procurar para tal tarefa.

    -Posso fazer uma pergunta?

    -Sim, claro, estou aqui para lhe servir.

    -Por que esse rabino to importante? Ele fez algo de especial para tamanha repercusso?

    -Eu estava presente no monte, seu discurso era sobremaneira impactante. Suas palavras eram

    agudas, penetrantes. Ficamos estarrecidos com a grandeza de sua eloquncia divina. Bem-

    aventurados os que choram

    -Falaram-me que ele desagradou a elite religiosa, isso verdade?

    -Mal compreendido. Sua doutrina descortinou a hipocrisia religiosa dos fariseus. Por vezes,

    sem repostas, ficaram nus diante Dele. A legalidade da religio afasta o homem da verdadeira f. No

    adianta sermos fervorosos na letra, e frios no esprito. O judasmo glaucomou os nossos olhos

    espirituais. Esperamos h anos por sua chegada, mas quando ele chegou queremos mat-lo. Sabe por

    que, porque no o enxergamos com a alma. Nada do que foi apresentado em julgamento contra Ele

    pode ser provado. Est sendo julgado sem ter cometido crime algum, tudo no passa de um teatro

    judicial. A verdade sobre s pode ser encarada face a face. Por mais que eu fale, voc precisa ouvi-lo

    senti-lo v-lo, olhar em sua face e contemplar Deus sorrindo.

    -Bom, creio que isso no ser possvel.

    -Ainda h tempo meu jovem. H tempo para todas as coisas debaixo do sol. Haver sempre

    tempo para a mudanas.

    Jairo foi conduzido a Pretria de Antnia. Ao longe podia v-lo, deformado, ensanguentado,

    coroado, olhando para baixo. Os gritos costumeiros, crucifique-o, crucifique-o, crucifique-o, eram

    mais altissonantes. Jairo tentou chegar mais perto. A multido o apertava, comprimia em fria. A baba

    descia dos lbios deles como cachorros raivosos faminto por carne. Algum gritou; solte-o, ele

    inocente! Viu que era um homem j velho, de aparncia simples, mas calado por murros, pontaps,

    tapas e sangue. -SAIU A SENTENA, CONDENADO A CRUCIFICAO! Colocaram a trave em

    suas costas e o conduziram para fora da cidade. Comea o percurso do jazido ao lugar de espera. Jairo

    adentrou no meio da procisso fnebre. -Direto a caveira Falsrio! livra-te deste suplcio filho de

    Deus. A rua pedregosa, a subida ngreme, tudo isso aliado ao intenso calor oriental torna o evento

    um verdadeiro espetculo sofrido de cenas empoeiradas de sangue. Jairo chegou mais perto, o soldado

    com chicotes nas mos impossibilitava qualquer aproximao. A cara dos soldados eram

    terrivelmente assustadoras. Sem expresso, baba com gosto de dio, maldade, frieza empacada no

    chicote batido com fora no ru. Cuspiam-lhe a face, puxaram os seus cabelos, aproximava-se dele

    apenas para marcar em seu mapa o curso de suas frias. -Nada pode abalar os pilares de nossa f, eu

    disse a este impostor impertinente. Moiss confiou a ns a autoridade da Lei. Agora vem este ai

    querendo mudar tudo, MORRA SUA VBORA. Nesse instante, Jairo lembrou da sinagoga Beit

    Chabat, do rabino, o pior... do Judasmo que acreditava ser piedoso desde ento. Essa lembrana

    recente o assombrou, uma sensao de erro passado. Os soldados espantavam as moscas a chicotadas.

    O condenado tropeou e caiu. A barra de madeira despencou sobre as suas constas. Nesse instante,

  • 13

    uma mulher se aproximou, deu-lhe gua. Foi retirada a fora provocando uma confuso alm da posta.

    Abriu-se uma oportunidade de aproximasse dele. Jairo adentrou no beco humano, sua respirao ficou

    mais veloz, seu corao pulsava com frenesia, no sabia o porqu. Ele olhou sob a ressecada camada

    de sangue talhado, no era humano. Desfigurado, no parecia gente, pensou. Deus no sorriu, antes

    chorou.

    -Por que?

    -Saia!

    O local era rude, fora das muralhas de Jerusalm. Uma colina ou plat, um acidente geogrfico

    que se assemelha a um crnio. A subida era terrvel. No cume, havia pilhas de crnios e estacas

    fincadas ao cho. Ao chegar, o jogaram contra a estaca de madeira. Viu quando um soldado pegou

    um martelo e uns pregos. Esticaram os seus braos e ficaram os pregos nos pulsos. Ele gritou, Jairo

    no se conteve, comeou a chorar. No sabia o real motivo das lgrimas, talvez piedade. Levaram o

    ru a cruz. Pronto, tudo acabado. O fluxo de gente diminuiu. No havia mais nada de interessante

    de se ver. Mulheres choravam desesperadas ao p da cruz. Jairo quis aproximar-se. Teve receio,

    preferiu ficar distante. As mulheres afastaram-se. Aproximou-se mais, e mais e mais e mais

    quis v-lo mais de perto. Sentiu que a hora era aquela. Finalmente saberei.

    -Jairo, o que fazer para herdar a vida eterna?

    -Guardar todos os mandamentos e viver segundo as tradies de nossos antepassados Rabi.

    -Respondestes bem. Um dia irs a Jerusalm. Passars pelo ritual de inicializao no judasmo.

    -Jairo, Cristo morreu na cruz com um propsito sabe qual?

    -No pai.

    A lembrana motivou a Jairo a chegar o mais prximo. -Preciso pergunta-lhe.

    -Por que? Conjuro-te Senhor! Por que?

    Sua cabea cambaleou para o lado esquerdo, com muito esforo olhou para baixo e baixinho

    respondeu... FoI pOr Vo.

    -Sr. Jairo.

    Escamas nos olhos, parecia escamas nos olhos. Lentamente foi abrindo-os, pouco a pouco a

    viso foi chagando. Estava dentro de seu quarto, em cima de sua cama. Sr. Jairo, chamaram na porta

    batendo com fora. Era o motorista do txi que o levaria ao aeroporto.

    -Desculpe-me, eu agarrei no sono, eu acho.

    -COMO PODE SER!!! ISSO NO POSSVEL, SER QUE ENLOUQUECI?

    Era Helena, perfeitamente bem, sem traumatismo, sem tetraplegia.