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FOLHA UNIVERSAL E A DOMINAÇÃO MASCULINA: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DA MÍDIA IMPRESSA RELIGIOSA Wellton da Silva de Fatima 1 RESUMO Este trabalho busca compreender os processos de constituição de sentidos sobre a mulher no discurso do Jornal “Folha Universal” da Igreja Universal do Reino de Deus, tendo como pressuposto a dominação masculina com base no referencial teórico e metodológico da Análise do Discurso de linha francesa. O corpus se constitui de duas edições da coluna Folha Mulher, mais especificamente dos enunciados destacados nos chamados “olhos” característicos do discurso jornalístico. Buscamos estabelecer nessas análises a existência dos sentidos estabilizados, mas também a possibilidade de rupturas, de deslocamentos. Quanto à construção da identidade da mulher, levamos em consideração e operamos com os conceitos de memória, interdiscurso, formações discursivas e formações ideológicas; focando nas possibilidades que se dão com as expressões e cadeias parafrásticas. Introdução Religião, dominação masculina e mídia A noção de dominação masculina em que estaremos inscritos no decorrer desse trabalho está ancorado nos estudos elaborados por Pierre Bourdieu e se refere, primordialmente, às relações de poder que eternizam, arbitrariamente, o masculino em detrimento do feminino no que consiste ao convívio em sociedade, a partir de uma perspectiva discursiva. Portanto, nos é caro aprofundarmo-nos nesse conceito em uma perspectiva mais ampla, afunilando as possibilidades de transversalidade do domínio masculino nas relações de poder e suas manifestações através do discurso. A partir de uma visão ampliada, Bourdieu (2014) ressalta a eternização do caráter arbitrário da dominação masculina, espantando-se em relação a ordem do mundo, com seus sentidos únicos e seus sentidos proibidos. “ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, perpetue-se apesar de tudo [...]”. Sendo assim, a perspectiva que se parte é de estranhamento do perpetuamento dessas estruturas, mesmo diante de um dado cenário a que a sociedade encontra-se imersa em seus determinados recortes de momentos históricos e suas (incertas) progressões de pensamento social. Há, nesse sentido, uma incorporação de esquemas inconscientes de percepção das estruturas históricas da ordem masculina, havendo a necessidade, portanto, da busca de uma estratégia que consista em transformar um exercício de reflexão transcendental visando explorar as “categorias de entendimento” ou as “formas de classificação” com as quais construímos o mundo. Tudo isso diante de um panorama etnográfico de 1 Graduando em Letras/Literaturas pela UFRRJ – Bolsista PIBIC/CNPq – [email protected]

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FOLHA UNIVERSAL E A DOMINAÇÃO MASCULINA: UMA ANÁLISE DO

DISCURSO DA MÍDIA IMPRESSA RELIGIOSA

Wellton da Silva de Fatima1

RESUMO

Este trabalho busca compreender os processos de constituição de sentidos sobre a

mulher no discurso do Jornal “Folha Universal” da Igreja Universal do Reino de Deus,

tendo como pressuposto a dominação masculina com base no referencial teórico e

metodológico da Análise do Discurso de linha francesa. O corpus se constitui de duas

edições da coluna Folha Mulher, mais especificamente dos enunciados destacados nos

chamados “olhos” característicos do discurso jornalístico. Buscamos estabelecer nessas

análises a existência dos sentidos estabilizados, mas também a possibilidade de

rupturas, de deslocamentos. Quanto à construção da identidade da mulher, levamos em

consideração e operamos com os conceitos de memória, interdiscurso, formações

discursivas e formações ideológicas; focando nas possibilidades que se dão com as

expressões e cadeias parafrásticas.

Introdução

Religião, dominação masculina e mídia

A noção de dominação masculina em que estaremos inscritos no decorrer desse

trabalho está ancorado nos estudos elaborados por Pierre Bourdieu e se refere,

primordialmente, às relações de poder que eternizam, arbitrariamente, o masculino em

detrimento do feminino no que consiste ao convívio em sociedade, a partir de uma

perspectiva discursiva.

Portanto, nos é caro aprofundarmo-nos nesse conceito em uma perspectiva mais

ampla, afunilando as possibilidades de transversalidade do domínio masculino nas

relações de poder e suas manifestações através do discurso.

A partir de uma visão ampliada, Bourdieu (2014) ressalta a eternização do

caráter arbitrário da dominação masculina, espantando-se em relação a ordem do

mundo, com seus sentidos únicos e seus sentidos proibidos. “ordem estabelecida, com

suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas

injustiças, perpetue-se apesar de tudo [...]”. Sendo assim, a perspectiva que se parte é de

estranhamento do perpetuamento dessas estruturas, mesmo diante de um dado cenário a

que a sociedade encontra-se imersa em seus determinados recortes de momentos

históricos e suas (incertas) progressões de pensamento social.

Há, nesse sentido, uma incorporação de esquemas inconscientes de percepção

das estruturas históricas da ordem masculina, havendo a necessidade, portanto, da busca

de uma estratégia que consista em transformar um exercício de reflexão transcendental

visando explorar as “categorias de entendimento” ou as “formas de classificação” com

as quais construímos o mundo. Tudo isso diante de um panorama etnográfico de

1 Graduando em Letras/Literaturas pela UFRRJ – Bolsista PIBIC/CNPq – [email protected]

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estruturas objetivos baseados em uma visão falo-narcísica e na cosmologia

androcêntrica.

A respeito do componente etnográfico percebido no que se refere a construção

social dos corpos há um trato da ordem da sexualidade comparada a dois universos

diferentes, sendo um deles a sociedade Cabila; no tocante a incorporação da dominação,

a ideia da definição social do corpo e dos órgãos sexuais está evidenciada à medida que

se compreende aqui o produto desses dois fatores enquanto um trabalho de construção

social. A violência simbólica, na perspectiva da dominação masculina, consiste no

aparato no qual se encontram reunidas todas as condições do pleno exercício da

sobreposição da masculinidade, através de estruturas sociais e atividades produtivas e

reprodutivas, com base em uma divisão sexual do trabalho.

É relevante notar, também, que na gênese do habitus feminino e nas condições

sociais de sua realização tudo concorre para fazer da experiência feminina do corpo o

limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, desse modo, o corpo percebido é

duplamente determinado socialmente. Postula-se que é através daquele que detém o

monopólio da violência simbólica legítima dentro da família que se exerce a ação

psicossomática que leva à somatização da lei, dessa forma a adesão a ordem das coisas,

do princípio das tendências afetivas atribuídos à mulher na divisão do trabalho de

dominação, da socialização diferencial que predispõe os homens a amar os jogos de

poder e as mulheres a amar os homens que os jogam.

Portanto, compreende-se que o panorama de dominação atual tende à

perpetuação tendo como contracondutas algumas possibilidades como o trabalho

histórico de des-historicização no qual é preciso reconstruir a história do trabalho

histórico de des-historicização, sendo importante a pesquisa histórica que, por sua vez,

não pode se limitar a descrever as transformações da condição das mulheres no decorrer

dos tempos. No que se refere a possibilidade de mudança há de positivo o fato de que a

dominação masculina não impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. E de

todos os fatores de mudança, os mais importantes são os que estão relacionados com a

transformação decisiva da função de dadas instituições que funcionam como aparelhos

ideológicos do estado (Althusser, 1998), na reprodução da diferença entre os gêneros.

Observando fenômenos inerentes às relações humanas em uma perspectiva atual,

pode-se afirmar que a sociedade se circunscreve, ainda, em um regime estrutural

estritamente patriarcal, estando esse regime anterior a agentes sociais como, por

exemplo, a família e a igreja, os quais se configuram enquanto aparelhos ideológicos do

Estado (Althusser, 1998). A organização do patriarcado coloca a figura masculina no

centro do “poder”, estando submetidas a ela as demais instâncias. Desse modo, as

mulheres já se inscrevem na perspectiva da diferença já que se encontram submetidas à

masculinidade. “A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos

simbólicos [...] tem por efeito coloca-las em permanente estado de insegurança corporal,

ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos

outros [...]” (Bourdieu, 2014, p. 96). Ainda de acordo com Bourdieu, as relações entre

os gêneros se dão conforme algumas associações que se dão em uma perspectiva

perpetuadamente simbólica nas quais, por exemplo, as mulheres sempre estão

associadas ao espaço interno, enquanto os homens estarão associados ao espaço externo.

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Nesse sentido, a masculinidade é pressuposto fundamental para se exercer determinadas

posições no que se refere aos pares opositivos que contrapõem a vida pública e a vida

privada, o viril e o sensível, entre outras coisas:

Nas faculdades de medicina, a porção de mulheres decresce à

medida que se sobe na hierarquia das especialidades, algumas

das quais, como a cirurgia, lhes estão praticamente interditadas,

ao passo que outras, como a pediatria, ou a ginecologia, lhes

estão quase que reservadas. Como se vê a estrutura se perpetua

nos pares de oposição homólogos às grandes divisões

tradicionais, com a oposição entre as grandes escolas e as

faculdades de direito e de medicina e as faculdades de letras, ou,

dentro destas, entre a filosofia ou a sociologia e a psicologia ou

história da arte. E é sabido que o mesmo princípio de divisão é

ainda aplicado, dentro de cada disciplina, atribuindo aos homens

o mais nobre, o mais sintético, o mais teórico e às mulheres o

mais analítico, o mais prático, o menos prestigioso. (Bourdieu,

2014, p. 127)

Ainda à luz dos estudos de Pierre Bourdieu, e na perspectiva sobre os pares

opositivos que evidenciam as divisões dos papéis de gênero, é possível perceber que há

lugares determinados aos quais somos designados e pré-dispostos ao sermos, no

momento do nascimento, designados segundo a genitália. Sendo o feminino o lado

onerado dessa determinação social, indagam-se os motivos pelos quais a insurgência de

negação a esse “destino” não seja um procedimento comum mesmo na

contemporaneidade, todavia, e seguindo a noção de habitus, entende-se que o processo

é tão naturalizado que a problematização cotidiana fica comprometida, mesmo por parte

das mulheres: “[...] as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de

avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante que as

leva a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é [...] (Bourdieu, 2014,

p.13)”.

A dominação masculina está enraizada na sociedade e as suas manifestações

perpassam a perspectiva discursiva já que se inscrevem nela componentes ideológicos

cujos sentidos são construídos historicamente. Esses sentidos, ao longo do tempo e das

transformações pelas quais a sociedade passa, perpetuam-se e continuam a fixar a

masculinidade, simbolicamente, como centro do poder em detrimento da figura

feminina. Nesse sentido, compreender as diversas nuances pelas quais se manifestam e

se perpetuam essas estruturas de dominação torna-se urgente.

Refletindo a partir da ideia de prática e de divindade características das religiões

monoteístas, encontramos processos similares principalmente entre as religiões da

descendência de Abraão, tais processos respaldados no texto sagrado e estruturado em

um modus operandis hierárquico que põe em evidencia a figura masculina para além

apenas do ‘embate’ homem/mulher. Aliás, a fundação a que podemos chamar de

‘verbal’ do cristianismo, judaísmo ou islamismo, por exemplo, configuram-se a partir

de uma relação intrínseca com um livro sagrado, cujas escrituras têm diversas funções

perpassando, inclusive, por diretrizes da vida pública e/ou privada. Trata-se de “[...] um

‘cânone da opressão’, que, nas religiões monoteístas, passa pelos livros sagrados e pelas

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suas interpretações e reinterpretações por parte das instâncias emissoras dos discursos

oficiais (sempre masculinas!)” (Toldy, 2012, p.2) e, acerca da hierarquização, ressalva:

“O patriarcado não é compreendido nos termos de um sistema sexual binário, mas sim

como uma complexa estrutura piramidal de domínio político e de subordinação [...]”

(Toldy, 2012, p.2).

Em se tratando de Brasil, o Cristianismo, através da Igreja Católica, constitui-se

como religião oficial tornando-se um dos países com o maior número de fiéis da

religião no mundo. O êxito do catolicismo, muito se deve à abordagem e estratégias de

ação da Igreja que, por meio de filosofias que valorizavam a caridade, em grande

medida encabeçada pela Igreja, mas executada pelas mulheres cristãs, o Cristianismo se

institui, cada vez mais forte, como religião dominante. Todavia, nas últimas décadas

observa-se o grande crescimento do protestantismo e mais especificamente das

denominações cristãs de correntes ideológicas neopentecostais.

Dentre os diversos fatores destacados para o crescimento e o êxito do segmento

religioso neopentecostal aqui nos é mais relevante discorrer sobre sua boa relação e

utilização das mídias radiofônicas, televisivas, impressa etc. Na TV, por exemplo, os

programas da Igreja Universal do Reino de Deus, doravante IURD, cativam o público e

exercem a difusão de suas ideias “pela ênfase no exorcismo, na cosmovisão do combate

contra as forças malignas que prejudicam as diferentes dimensões holísticas do ser:

espiritual, físico, corporal, econômico” (Budke, 2005, p.46). Dessa forma é possível

perceber que dentre as características das igrejas neopentecostais está o uso de

elementos da vida cotidiana o que proporciona a criação de uma identidade com os

telespectadores (fiéis e possíveis fiéis). Essa aproximação e (possível) adequação das

igrejas com as pessoas em busca da construção de uma identidade comum faz com que

em diversos momentos, a igreja tenha que ceder na tentativa de acompanhar seu tempo

e se constituir uma possibilidade real para as pessoas que assistem. Isso configura uma

constante tensão entre a doutrina e novas possibilidades, inclusive, de leitura do livro

sagrado.

Prosseguindo à fundação verbal das religiões, é importante ter em vista que a

relação fundamental das religiões com os textos sagrados foi produzida a partir de

tensões através das quais os textos foram submetidos às mais diversas interpretações

decorrentes dos contextos, dos processos históricos e outros contatos que se inscrevem

na forma como se dava a leitura de tais textos.

Admitindo-se novas possibilidades de leitura dos textos sagrados e,

consequentemente, de diretrizes da conduta dos indivíduos segundo à doutrina,

contemporaneamente se vive um momento de reflexão acerca da atuação da igreja, e daí

surge uma problemática: “Agora, que a igualdade entre os sexos é defendida

explicitamente, o discurso da Igreja entra em contradição consigo mesmo, ao insistir

numa antropologia específica [...] que fundamenta exclusões, nomeadamente da vida

pública” (Toldy, 2012, p.6)

Partindo do postulado de que a Igreja, assim como outras instituições como a

família e a escola, apresenta um discurso e uma prática, historicamente, desfavorável à

emancipação feminina, faz-se necessário pensar a transversalidade entre a representação

da religião, ou seja, a Igreja e a dominação masculina, ancorando-se em um aparato

teórico metodológico que permite ir além da superfície linguística, e consequentemente,

além da interpretação de texto e, com isso, alcançar como se dão a construção, a

circulação e a perpetuação dos sentidos que nesse contexto se realizam.

A respeito do embate entre a Igreja e as mulheres podemos iniciar este problema

refletindo sobre a prática da primeira em relação à outra que permite vislumbrar uma

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ação discursiva voltada para designar à mulher um determinado lugar, um discurso

sempre vigilante e direcionador, segundo Bourdieu:

Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um

clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência,

sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua

sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade,

ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral

familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e

principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres

(Bordieu, 2014, p.12)

Tendo o discurso religioso, uma relação intrínseca de dependência com a

dominação masculina, muito pelo fato de estar a Igreja, inclusive, fundamentada em

uma perspectiva estritamente patriarcal, faz-se necessário um trabalho analítico

propositivo de identificação das estruturas que permitem a perpetuação de tal modelo. A

partir da perspectiva discursiva, oferecida pela AD, é possível identificar,

estruturalmente, como se dá a construção dos sentidos sob determinada coisa e, dessa

forma, possibilitar a proposição de desconstruções de modelos enraizados.

Vale ressaltar que, historicamente, a figura feminina tem sido útil às ações da

Igreja. Desde os atos de evangelização aos de caridade, as mulheres tomam a frente das

ações para concretizá-las, de forma que podemos afirmar que a efetividade do trabalho,

digamos, social exercido pela igreja se dá a partir da colaboração do sujeito feminino. A

inclinação feminina para essas ações também se fundamenta em uma lógica de

dominação masculina:

[...] em tarefas de beneficência, sobretudo para a Igreja, em

instituições de caridade ou, cada vez mais, em associações ou

partidos. Não raro confinadas nessas atividades não

remuneradas, e pouco inclinadas, por isso, a pensar em termos

de equivalência entre o trabalho e o dinheiro, as mulheres estão,

muito mais que os homens, disposta a beneficência, sobretudo

religiosa ou de caridade. (Bourdieu, 2014, p.13)

É nessa perspectiva de uma Igreja inscrita em uma condição na qual a

dominação masculina institui desde a organização até o funcionamento de sua estrutura,

que parte de uma fundação verbal na qual há uma relação íntima com as palavras e os

enunciados por elas formados, e que no decorrer do tempo, apropria-se da mídia com o

objetivo difundir as suas ideias a fim de alcançar o maior número de adeptos possíveis

que nos propomos a investigar no ponto onde todas essas questões se imbricam, como

se dá a construção de sentido sobre o lugar da mulher, sabendo-se das questões

supracitadas.

Um problema para a AD francesa

Compreendendo-se não somente como uma teoria, mas também como uma nova

proposta de leitura e de relação com o texto, a Análise do discurso, a que abreviamos

aqui como AD, configura-se como a disciplina do entremeio (Orlandi, 2013, cap.2)

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porque se constitui no trabalho contínuo e constante das contradições epistemológicas –

historicamente condicionada – entre diferentes regiões do conhecimento. Assim é que a

proposta epistemológica de Pêcheaux (1969) de articular Ciências Sociais (História,

Sociologia e Filosofia), Linguística, Teoria do Discurso e Psicanálise inaugurou um

novo período de reflexão não só sobre a linguagem, mas também sobre a ideologia – e,

sobretudo, das relações possíveis, de natureza intervalar, entre essas concepções através

da formulação da noção de discurso.

A saber, o movimento aparentemente disperso – mas, na verdade, heterogêneo –

de constituição da AD articulou conceitos de três regiões do saber em seu entremeio, em

seu espaço intervalar – atravessadas por uma teoria do sujeito de cunho psicanalítico –

conforme postulado por Pêcheux & Fuchs (1975):

[...] 1. O materialismo histórico, como teoria das formações

sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das

ideologias;

1. A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos

processos de enunciação ao mesmo tempo;

2. A teoria do discurso, como teoria de determinação histórica

dos processos semânticos (p. 78)

Tendo a noção de discurso como foi condutor de um percurso para compreender

as noções advindas dessas regiões supracitadas e tendo-o, ainda, como ponto de

convergência dos deslocamentos necessários a uma compreensão do complexo processo

semântico-histórico de produção de efeitos de sentido, chegamos à concepção de que na

AD, a noção de história está estreitamente ligada à de social, tendo sido deslocada ao

olhar discursivo através da crítica feita por Courtine (1980) ao conceito de condições de

produção (CP) proposto por Pêcheux (1969): a fim de evitar associações

psicossociologias, que transformariam em simples circunstâncias as determinações

históricas do acontecimento discursivo, Courtine propôs alias a noção de CP à análise

histórica das contradições ideológicas presentes na materialidade dos discursos,

articulando-as às Formações Discursivas (doravante FDs); conceito este emprestado de

Foucault (Vigiar e Punir).

A respeito da ideologia, a principal fonte inicial do pensamento de Pêcheux a

esse respeito foi o trabalho de Althusser, cujas teses de seu famoso artigo “Ideologia e

Aparelhos Ideológicos de Estado” (1998) expomos conforme duas teses:

1. A Ideologia é uma “representação da relação imaginária dos indivíduos com

suas condições reais de existência”;

2. A ideologia tem uma existência material.

Para Althusser, a ideologia não tem história: “a ideologia é eterna” (talvez no

sentido de ‘tempo presente’, que é o vivido, percebido, sentido e experienciado de

modo imediato pelo indivíduo).

Vendo o homem como um animal ideológico por natureza, afirma:

A existência da ideologia e o chamamento ou interpelação dos

indivíduos como sujeitos são uma e a mesma coisa. [...] o que

parece ocorrer fora da ideologia (para ser exato, na rua) ocorre,

na realidade, na ideologia. [...] um dos efeitos da ideologia é a

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negação prática, pela ideologia, do caráter ideológico da

ideologia. [...] a ideologia não tem um exterior (para si mesma),

mas, ao mesmo tempo, ela não é nada senão o exterior (para a

ciência e a realidade) (p. 14)

A respeito da discursivização, Segundo Orlandi (1996),

O discursivo pode ser definido como um processo social cuja

especificidade está no tipo de materialidade de sua base, a

materialidade linguística, já que a língua constitui o lugar

material em que se realizam os efeitos de sentido. Daí decorre

que a forma da interpretação – leia-se: da relação dos sujeitos

com os sentidos – é historicamente modalizada pela formação

social em que se dá, e ideologicamente constituída. (p. 146-147)

Do ponto de vista da AD, a linguagem tem na incompletude um de seus

fundamentos: tudo não pode ser dito, e o que pode ser dito não pode sê-lo de qualquer

maneira. A este princípio constitutivo da linguagem, e cerne do conceito de formação

discursiva (FD) corresponde o impossível da língua, o qual se inscreve no real da

língua. Este, segundo Pêcheux (1990, 29-42), não “[...] é o impossível [...] que seja de

outro modo” dos pensamentos escolástico aristotélico, positivista (com seu método

hipotético-dedutivo experimental) e ontológico dialético marxista. Trata-se, para ele, do

“[...] fato linguístico do equívoco como fator estrutural implicado pela ordem do

simbólico.” Aliás, é nisto que consiste o trabalho simbólico da linguagem na

constituição discursiva do referente. Por isso é que a cada enunciação, os sentidos são

(re)negociados, balizados, redimensionados: os sujeitos precisam situar-se

discursivamente, isto é, perceber as posições que ocupam e que são ocupadas pelos

outros, colocar-se no lugar do outro senão para compreender ao menos vislumbrar que o

outro não é completamente o mesmo.

Por isso a linguagem não é uma (homogênea), assim como (e uma vez que) o

sujeito é “dividido”, polifônico, descentralizado. Os sentidos só não tendem à dispersão

ad infinitum porque são circunscritos por determinada FD, que os delimita. Mas

também horizonte, linhas de fuga, pontos de deriva...

Desta forma, postula-se a ambiguidade como fundamento para se evidenciar um

modo de ser da língua, trabalhando a noção de efeito/evidência da língua: esta existe

como corpo/materialidade – o que não autoriza a equivalência (uma forma -> um

sentido – opacidade x transparência). O efeito de aparente transparência da língua se dá

ligada a outras duas evidências: a do sentido (uma palavra da língua se dá ligada a

outras duas evidências: a do sentido (uma palavra significa “x e somente x”) e a do

sujeito (“eu sou y”/origem de si próprio; “eu quero dizer x”/fonte de sentido; “eu digo

z”/origem da linguagem).

Admite-se, então, um apagamento do fundamento ideológico nas discussões

sobre a linguagem, esclarecendo que é isto que a AD tenta resgatar quando fala em

resistência, concebendo-a como um trabalho que se situa na margem entre a dominação

que se faz da linguagem e a que ela estabelece (língua ora como serva, ora como dona

do pensamento). Assim, os enunciados da língua podem sempre escapar à organização

da língua, uma vez que os “furos” e as “faltas” são próprios à ordem da língua são dela

estruturantes no sentido de constituírem-se em “fatos linguísticos estruturais implicados

pela ordem do simbólico” (Pêcheux 1990).

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Há uma importante distinção feita por Orlandi, no então artigo “Autoria e

interpretação”, ao investigar a natureza dessa diferenciação entre ordem (do discurso) e

organização (da língua): situa aquela no plano do simbólico (espaço da opacidade dos

sistemas de representação), e esta no plano do imaginário (espaço da ideologia).

Não havendo mais então, em uma perspectiva semântico-histórica (ou

discursiva, nos termos da AD), um centro e uma margem dados a priori, mas dispersão

de sentidos, efeitos possíveis de sentido (discurso), é a formação discursiva (FD) –

concebida como necessariamente constitutiva de uma formação ideológica (FI) – que

determinará qual efeito de sentido prevalecerá em detrimento de outros, o que evoca,

por sua vez a questão do possível da língua e do discurso.

Conforme Orlandi (1987, p. 144), a aceitação da tese da literalidade já é um

efeito discursivo que traz consequências de diversas ordens:

a) Teórica: a literalidade é um produto da história (no sentido de que há um

processo de “hegemonização semântica” determinada pelas relações de

produção, as quais determinam a distribuição do poder em uma sociedade

sendo a teoria do discurso justamente um espaço para a reflexão sobre a

determinação histórica dos processos semânticos);

b) Metodológica: não havendo um sentido nuclear do qual derivam os sentidos

periféricos, cabe ao analista reconstituir (historicamente) como um sentido

dentre (vários/muitos) outros, tornou-se hegemônico/dominante; assim, a

atenção sobre a linguagem se desloca de um percurso psíquico interno

(linguagem-pensamento) para um percurso social externo (linguagem-

sociedade);

c) Analítica: parte-se do funcionamento, do uso (múltiplo, observável, mas não

evidente), e não de uma forma abstrata, para se configurar as condições

determinantes da prevalência de um ou outro efeito de sentido sobre os

demais.

Assim, na visão da AD, quanto ao processo de produção do sentido, não é o

falante/locutor (onipotente, onisciente, onipresente) quem determina a forma e o sentido

do que diz, a construção de um efeito semântico hegemônico sendo determinada pelas

relações de força entre FDs, que não constitutivas de FIs – e através dessas, e em última

análise, por condições de produção específicas (Pêcheux & Fuchs 1975), mas não só de

ordem econômica. De qualquer forma, é essa dinâmica da correlação de forças que

determina (ao menos parcialmente) a possibilidade de interpretação (isto é, a atribuição

de sentidos), cuja discussão remete à questão do (im)possível da língua e do discurso.

É necessário também tratar da relação entre sujeito e enunciação via enunciado,

cuja materialidade fornece a ancoragem linguística necessária do sujeito à história

(historicidade) através da ilusão referencial.

Pressupor que a AD tem o discurso como seu objeto teórico (“fato discursivo”) –

e não simplesmente empírico (“dado linguístico”) -, significa dizer que o concebe

simultaneamente como categorias teórica, conceitual e operacional pela própria

exigência da perspectiva materialista de contemplar a determinação histórica

(constituída simultaneamente pelos componentes ideológico e inconsciente) no processo

de produção dos sentidos que a dicotomia linguística (vs. “linguageira”) “língua/fala”

não recobria. Assim, o discurso é concebido como o espaço, o lugar ou a instância da

linguagem (e não da língua como sistema imanente) em que emergem as significações,

ou ainda, os efeitos de sentido produzidos no processo de interlocução/interação

“verbal” entre formas ou posições-sujeito.

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Ainda procedendo às noções que serão necessárias para elucubrar o problema

exposto nessa pesquisa, Courtine (1981) conceitua interdiscurso como

a instância de formação, repetição e transformação dos

elementos de saber de uma FD, em função das posições

ideológicas que ela representa em uma conjuntura determinada.

[...] o interdiscurso é o lugar de formação do pré-construído e

funciona como um elemento regulador do deslocamento das

fronteiras de uma FD, controlando a sua reconfiguração e

permitindo a incorporação de pré-construídos que lhe são

exteriores, provocando redefinições, apagamentos,

esquecimentos ou denegações entre os elementos de saber da

referida FD.

Por isso é possível ao autor ver na contradição o princípio constitutivo de toda

FD. E ele retoma Foucault (1969) para ir além: a contradição é a própria lei de

existência do discurso: “[...] A contradição funciona, assim, no fio do discurso, como o

princípio de sua historicidade.” Assim, segundo Courtine (1981), a FD deve ser pensada

como uma reconfiguração incessante, em que seus limites deslocam-se em função das

posições ideológicas que essa FD representa no interior de uma conjuntura determinada.

Desse modo uma FD deve ser entendida como dois ou mais discursos em um só,

estabelecendo a contradição como seu princípio constitutivo, sendo então uma unidade

dividida e heterogênea, seu contorno sendo fundamentalmente instável, pois não há

limites rígidos a separar os elementos internos de seu saber daqueles que lhe são

exteriores. O domínio de saber de uma FD funciona como um princípio de exclusão do

que nela não é formulável, em função da formação ideológica (FI) de que provém. O

interdiscurso constitui-se, então, no domínio de saber próprio a uma FD, funcionando

como um princípio de aceitabilidade discursiva, ou seja, determinando o que pode e

deve ser dito, e excluindo o que nela não é formulável, promovendo, pois, a repetição, a

redefinição, ou o recalque e a negação dos elementos do saber. O interdiscurso

incorpora os elementos pré-construídos, produzidos exteriormente à FD, mas atuando

como se sempre estivessem estado lá. É então através da repetição do pré-construído

que os objetos do discurso adquirem sua “estabilidade referencial” ou produzem a

“ilusão da transparência dos sentidos”.

Nesse sentido, estando o trabalho simbólico do discurso na base da produção da

existência humana, pode-se recorrer à AD para compreender processos diversos

relacionados ao homem e sua atuação nos mais variados campos e instâncias sociais.

As religiões, através de seus cultos míticos, são espaços nos quais o simbólico

está sempre em ação, os significados são construídos com base em uma história

percorrida, resistências e transformações. Ao manifestarem-se através da língua, as

religiões também se inscrevem em uma perspectiva discursiva, estando então sujeitas e

passíveis de reflexão através das teorias para seu entendimento: “Na análise do discurso,

procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do

trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (Orlandi, 2013, p.15).

Em função disso, através da AD e levando-se em consideração a fundação mítica

“verbal” pela qual se constitui o cristianismo desde suas correntes mais tradicionais até

as mais contemporâneas e inovadoras, é possível lançar-se no aparato teórico-

metodológico da AD para compreender determinados processos em cujo interior

imbricam-se a religião e a prática discursiva.

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Diante da necessidade de desvendar processos de produção dos sentidos, é

preciso partir de pressupostos que colocam o discurso em situações de questionamento.

Ancorando-se no processo histórico de constituição, observando a problemática através

de fenômenos linguísticos e circunscrevendo-se em uma noção de sujeito vinda da

psicanálise, o trabalho de análise considera as mais diversas dimensões e intersecções

de imbricamento do discurso, pois, como diz Orlandi “As palavras simples do nosso

cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se

constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós.”(2013, p.20), é mister

propor uma indagação que vai além da superfície linguística, buscando compreender os

processos de significação para além do que releva a interpretação do texto e com isso,

desvendar as diversas possibilidades de caminhos percorridos por aquelas palavras até o

momento da enunciação em questão.

A aplicação da teoria ao texto está sujeita a uma série de adequações através das

quais é possível mensurar a efetividade do trabalho a ser feito. A depender do gênero

textual há muitas possibilidades em se tratando de análise envolvendo questões

linguísticas. Especificamente pensando no texto jornalístico e seus desdobramentos

enquanto gênero textual, o trabalho no âmbito da AD permite a visitação não somente

no modo como o discurso em questão é produzido, mas também no próprio modo de

funcionamento do discurso de instituições que, em seus jornais ou revistas, têm seus

discursos e ideologias diluídos. Para além disso, quando as questões se transversalizam,

o problema da linguagem em questão torna-se desafiador à medida que o trabalho de

análise se debruça sobre um texto jornalístico que se propõe enquanto veículo de

informação sem abrir mão de seu caráter religioso e, com isso, de seus valores morais e

de todas as filiações que isso possa representar, inclusive à dominação masculina.

Por isso, compreendendo que a Análise do Discurso trabalha propriamente com

o discurso e que “[...] a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso,

de percurso, de correr por, de movimento.” (Orlandi, 2013), elegemos a AD francesa

para perceber, no ponto onde todas essas questões se encontram, como se dá a

construção do entendimento sobre o lugar da mulher através da história do diálogo entre

os atores supracitados, entendendo o modo de produção dos sentidos sobre as mulheres

no discurso jornalístico, em uma coluna direcionada à mulher, em um jornal filiado a

uma instituição religiosa, que, por sua vez, está ancorada em uma religião e, portanto,

sujeita às influências da dominação masculina.

O discurso da coluna Folha Mulher

Ao trabalhar com conceitos como o de formação discursiva, faz-se importante

evocar também o conceito de memória, trabalhada na AD também à luz da noção de

interdiscurso. Buscamos, então, recuperar o caminho teórico percorrido até chegar à

noção de memória, ressaltando a despretensão quanto à cronologia desta trajetória.

Além disso, fazemos uma distinção entre as noções de memória e interdiscurso, as

quais, por vezes, são tomadas como sinônimos ou equivalentes.

Uma noção que não poderia deixar de aparecer em uma disciplina que se propõe

a analisar discursos seria a de repetição. Não é difícil notar, e no corpus com o qual

estamos trabalhando isso fica evidente, que os discursos, por princípio, tentem a se

repetirem. Assim, a AD considera que as repetições são o princípio motor para a

produção de discursos, isto é, pela repetição de discursos anteriores é que novos

discursos são construídos. Neste sentido, retomando o texto escrito por Pêcheux e

Fuchs, em 1975, Freda Indursky afirma: “[...] o sentido se constitui a partir das relações

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de parafrasagem que as diferentes expressões mantêm entre si no interior de uma FD,

ou, mais exatamente, nas palavras dos autores, tais relações interiores à matriz de

sentido de uma Formação Discursiva” (Indursky, 2009, p.1), exigindo, portanto, que

haja uma repetibilidade de certos sentidos.

Portanto, um sujeito, ao evocar discursos anteriores e produzir o seu discurso,

recorre inevitavelmente a repetições. Essas repetições, apesar de muitas vezes serem

feitas ipsi litteris, constituindo-se em citações, normalmente ocorrem em forma de

paráfrase. A repetição, sendo palavra por palavra ou não, pode levar a um deslizamento

de sentido, a uma ressignificação. Assim, mesmo havendo citação, é possível que os

sentidos atribuídos às palavras sejam diferentes.

Além da noção de repetição, outra noção presente na trajetória da reflexão sobre

memória é a de pré-construído. O pré-construído seria todo o elemento de discurso que

é produzido anteriormente, em um outro discurso e independentemente. Eni Orlandi

estreita a relação entre memória e pré-construído quando afirma que “a memória

discursiva é o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma

de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de

palavra” (2013, p.31). Portanto, o pré-construído é um elemento do interdiscurso

reinscrito no (intra)discurso do sujeito e é caracterizado por ser derivado da

exterioridade, derivação esta que é esquecida.

Nesse sentido, selecionamos duas edições do Jornal da IURD publicadas entre

os anos de 2014 e 2015, visando buscar uma regularidade no discurso do folhetim no

decorrer de cerca de um ano. Procedemos então à análise da superfície linguística

dessas edições, optando pela aplicação do trabalho com cadeias parafrásticas de sentido,

característico da AD francesa, apenas no título da coluna. O corpus analisado se

constitui especificamente de enunciados retirados da coluna Folha Mulher. Foram

analisados todos os enunciados que evocassem um sentido que evidencie qual a ideia de

lugar que o jornal, através de sua coluna revela a partir da leitura de construção

histórica dos sentidos (ainda que não no léxico, mas no contexto).

A respeito do próprio título da coluna e na perspectiva da possível designação de

lugar, utilizamos a paráfrase da seguinte forma:

Folha Mulher Folha Mulheres

Refletindo sobre a representação, e sabendo-se que é comum no plano da

superfície linguística o uso do plural de um determinado vocábulo para caracterizar a

abrangência de sua representação, trabalhamos o deslocamento do singular para o plural

para perceber as possibilidades de deslizamento de sentidos. Levando em consideração

a característica do gênero textual de cuja estrutura o texto jornalístico se beneficia, é

sabido e justificável que a expressão “mulheres” no lugar de “mulher” seria muito bem

vista já que sugeriria uma determinada abrangência de alcance do ali é publicado.

Todavia, a partir da noção de interdiscurso e através do não-dito, compreendemos

também que o termo “mulheres” evoca sentidos não tão bem-vindos para um jornal

filiado a uma instituição que se pretende de corrente ideológica neopentecostal, que é a

possibilidade de existência de categorias, ou seja, optar pelo plural de “mulher”

significaria consentir com a ideia da existência de uma sessão do que se compreende

por mulher, admitindo a possibilidade de diversas “categorias” de mulher. Dessa forma,

ao optar pelo singular, compreende-se a não possibilidade do sentido que sugere que o

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discurso ali contido não é construído para sujeitos diferentes e sim para uma unidade, o

que vem ao encontro do pensamento dos principais trabalhos mais relevantes

atualmente sobre gênero.

Em outra perspectiva, observando não somente o plano linguístico, mas também

o suporte no qual o discurso está disposto, postula-se que, dadas as características dos

gêneros textuais que estruturam o texto jornalístico há um contraste entre a coluna

Folha Mulher e o restante do Jornal da IURD. Ainda a partir da noção de não-dito e

recorrendo a Dominação Masculina de Bordieu fica explícito no discurso do jornal, no

que se refere a designação de lugar para os sujeitos característico do discurso religioso,

que ao optar por tratar de determinados temas como afetividade, relacionamento

amoroso e família, quase exclusivamente na coluna em detrimento dos outros espaços

do jornal, a Folha Universal corrobora a ideia de orientar a mulher sempre para o plano

do interno, para aquilo que está de uma forma ou de outra conectado ao lar, à casa e

quase nunca à vida pública.

A despeito do que é possível a partir do que é acionado pelo interdiscurso sobre

o nome da coluna que estamos analisando, a superfície linguística releva um

contraponto. A predominância da dominação masculina fica explícita em diversos

recortes da coluna ao trazer trechos como "A mulher ‘desnuda’ mostra insegurança e de

certa forma ‘perde’ a beleza” (Ed. 1143), no qual é evidente a ideia de que a mulher

está em constante vigilância e se espera dela que acate as expectativas dessa vigilância,

adequando a sua vestimenta de acordo com conceitos morais, ou trechos como “Quando

a mulher é facilmente influenciada pela moda, ela fica igual a todo mundo” (Ed. 1143)

que corroboram basicamente a mesma ideia.

Mais especificamente sobre a imposição de conceitos morais característicos do

discurso religioso e oriundo de uma ideia tipicamente patriarcal de pensar o

comportamento dos sujeitos, ficam expressos em falas de entrevistados como: “O que

faz a mulher mais atraente para o homem é a graciosidade e a feminilidade. Valores que

têm entrado em extinção nas mulheres hoje em dia” (Ed. 1143). Ou, ainda, quando o

título da matéria principal é “Muito além do decote”, enunciados como: “As pesquisas

comprovam: nada fácil é atrativo” ou “Mas como então chamar atenção deles?”,

evidenciando a expectativa que se coloca discursivamente a nível de pressuposto sobre

as mulheres estarem constantemente designadas a aprontar-se e atender às expectativas

masculinas. Ainda na edição 1143, há uma matéria secundária de título “Você acredita

no seu filho?”, na qual a feminilidade é compreendida e discursivamente produzida

como fundamental para exercer a boa maternidade.

Já na edição 1889, enunciados como “Mulheres que se estressam facilmente ou

que descontam suas angústias nos outros são como uma bomba prestes a explodir.”,

constroem uma ideia de sujeito sobre desestabilizado sentimentalmente o que podemos

atribuir como característica do próprio jornal como todo e não apenas da coluna, muito

embora a maioria dos enunciados que revelam um sujeito instável afetivamente tenham

sido direcionado, de fato, às mulheres. Outros trechos corroboram essa afirmação, tais

como “como os sentimentos influenciam atitudes”, que, no contexto em que se

apresenta, falando das emoções e, sobretudo associando um determinado descontrole de

emoções à figura feminina, o enunciado remete pragmaticamente não a ‘como os

sentimentos influenciam atitudes’, mas ‘como ser sentimental influencia nas atitudes’.

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Conclusão

As igrejas de correntes ideológicas neopentecostais tais como outras

denominações religiões cristãs estão circunscritas a uma formação social que se

estrutura a partir do patriarcalismo, tal como as religiões monoteístas principalmente as

religiões da descendência de Abraão. No interior dessa formação social, em que

predomina a dominação masculina encontram-se formações ideológicas que

caracterizam, entre outras coisas, as possibilidades de ideias relacionadas aos conceitos

morais, comportamentos etc. E no interior das formações ideológicas, encontram-se as

formações discursivas que compõem, por exemplo, o texto que nos propusemos a

analisar no decorrer deste trabalho.

Apesar do discurso aparentemente adequado aos avanços, principalmente, da

pauta feminista e dos processos pelos quais perpassam os direitos das mulheres

evidenciados na possibilidade obtida através da paráfrase expressa no título da coluna, a

superfície linguística revela que, muito embora o discurso vem tentando se adequar ao

que o expectador considera atrativo, as ideias que orientam os temas, assuntos e falas

que a coluna evidenciam ainda se configuram de forma a designar à mulher um

determinado lugar, e esse lugar ainda está associado ao espaço interno, à exclusividade

da afetividade relacionada ao feminino, dentre outras características descritas conforme

a Dominação Masculina de Bourdieu. Ou seja, o discurso do Jornal Folha Universal,

especialmente em sua coluna Folha Mulher, busca apresentar um discurso emancipador

sugerindo a autonomia da mulher na sociedade dentro do próprio ambiente religioso,

todavia as formações a que inscreve, devido à forma como se constitui e se perpetua na

sociedade, está circunscrito à uma formação social patriarcal no qual a dominação

masculina alcança êxito.

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