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TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia) Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais) Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia) Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia) Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História) Profª. Drª. Beth Brait (Letras) Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo SP Telefax: (11) 3818-4589 e-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/humanitas DISCURSO EDITORIAL Direção Editorial: Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino Coordenação: Floriano Jonas César Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 (sala 1033) – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP Telefones: (11) 3814-5383 e 3034-2733 (telefax) e-mail: [email protected] http://www.discurso.com.br Tradução Ivã Carlos Lopes Luiz Tatit Waldir Beividas Copyright by Pierre Mardaga, Éditeur, 1998 Título original em francês: Tension et signification Copyright da tradução brasileira: Discurso Editorial, 2001 SUMÁRIO Prólogo 09 Recensão 10 Definições 11 1

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TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia) Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais) Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia) Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia) Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História) Profª. Drª. Beth Brait (Letras) Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo SP Telefax: (11) 3818-4589 e-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/humanitas

DISCURSO EDITORIAL Direção Editorial: Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino Coordenação: Floriano Jonas César Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 (sala 1033) – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP Telefones: (11) 3814-5383 e 3034-2733 (telefax) e-mail: [email protected] http://www.discurso.com.br

TraduçãoIvã Carlos Lopes Luiz Tatit Waldir Beividas

Copyright by Pierre Mardaga, Éditeur, 1998 Título original em francês: Tension et signification Copyright da tradução brasileira: Discurso Editorial, 2001

SUMÁRIO

Prólogo 09 Recensão 10 Definições 11 Confrontações 12 Notas e referências bibliográficas 14

Capítulo 1 – Valência 15 Recensão 15 Definições 16Definições paradigmáticas 17 Definições sintagmáticas 26

221 Definições sintagmáticas amplas 26 222 Definições sintagmáticas restritas 28 Confrontações 30

Capítulo 2 – Valor 39 Recensão 39

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Definições 40 Definições paradigmáticas 40 Definições sintagmáticas 47 Confrontações 52

Capítulo 3 – Categoria – Quadrado semiótico 61 Preliminar 61 Recensão 63 Definições 65 Definições paradigmáticas 65 Definições sintagmáticas 71 Confrontações 81

Capítulo 4 – Esquema 97 Recensão 97 Definições 100 Definições paradigmáticas 100211 Definições paradigmáticas amplas 101 212 Definições paradigmáticas restritas 109 22 3 Definições sintagmáticas 112 Confrontações 117

Capítulo 5 – Presença 123 Recensão 123 Definições 123 Definições paradigmáticas 124 Definições sintagmáticas 134221 Definições sintagmáticas amplas 135 222 Definições sintagmáticas restritas 141 Confrontações 147

Capítulo 6 – Devir 153 Recensão 153 Definições 154 Definições paradigmáticas 154 Definições sintagmáticas 159221 Definições sintagmáticas amplas 159 222 Definições sintagmáticas restritas 162 Confrontações 163

Capítulo 7 – Práxis enunciativa 171 Recensão 171 Definições 173 Definições paradigmáticas 173211 Definições paradigmáticas amplas 173 212 Definições paradigmáticas restritas 177 22 Definições sintagmáticas 180 221 Definições sintagmáticas amplas 180 222 Definições sintagmáticas restritas 185 Confrontações 188

Capítulo 8 – Forma de vida 203 Recensão 203

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Definições 205 Definições paradigmáticas 205 Definições sintagmáticas 210 Confrontações 214

Capítulo 9 – Modalidade 227 Recensão 227 Definições 230 Definições paradigmáticas 230 Definições sintagmáticas 235221 Definições sintagmáticas restritas 235 222 Definições sintagmáticas amplas 240 Confrontações 246

Capítulo 10 – Fidúcia 263 Recensão 263 Definições 264 Definições paradigmáticas 264 Definições sintagmáticas 268221 Definições sintagmáticas da confiança 268 222 Definições sintagmáticas da crença 269223 Definições sintagmáticas da crença e da confiança 270 Confrontações 273

Capítulo 11 – Emoção 279 Recensão 279 Definições 281 Definições paradigmáticas 282 Definições sintagmáticas 285221 Definições sintagmáticas amplas 286 222 Definições sintagmáticas restritas 289 Confrontações 292

Capítulo 12 – Paixão 293 Recensão 293 Definições 297 Definições paradigmáticas 297211 Definições paradigmáticas amplas 297 212 Definições paradigmáticas restritas 300 22 Definições sintagmáticas 303 221 Definições sintagmáticas amplas 303 222 Definições sintagmáticas restritas 308 3 Confrontações 313

Bibliografia 321 Índice remissivo 329

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PRÓLOGO

ESTE LIVRO tenta comparar certas propostas teóricas e metodológicas ligadas de perto ou de longe à semiótica tensiva, à semiótica das paixões e à semiótica do contínuo Por conseguinte, compreende algumas escolhas iniciais que definem um ponto de vista: ponto de vista da complexidade, da tensividade, da afetividade, da percepção Nesse particular, não pretende substituir a semiótica “clássica”, de onde provém, e cujos “estandartes” são o quadrado semiótico e o esquema narrativo canônico: debateremos longa e freqüentemente acerca de ambos Mas este trabalho procura situá-la, ao mesmo tempo em que se situa a si próprio: situá-la e situar-se como uma das semióticas possíveis, no seio de uma semiótica geral ainda por construir Revelar uma escolha é preservar-se da ilusão que consiste em querer escrever a história de uma disciplina quando se está dentro dela, e em decretar, por exemplo, que este ou aquele paradigma anterior está ultrapassado, e que o futuro está do lado daquele que se está propondo Revelar uma escolha é, em suma, reivindicar a pertinência validável e falsificável do ponto de vista defendido, e a coerência do método decorrente E quando esse ponto de vista e essa coerência compreendem a possibilidade de se pôr em perspectiva entre os outros pontos de vista e as outras coerências possíveis, então é uma outra maneira de fazer semiótica que se desenha, mais do que um outro “paradigma” A pertinência de um ponto de vista teórico mede-se, entre outras coisas, por sua capacidade de isolar categorias simples e generalizáveis, e procedimentos reproduzíveis e operatórios No que respeita às categorias, notaremos particularmente o papel atribuído à intensidade e à extensão (ou “extensidade”), por um lado, e aos modos de existência (ou modalidades existenciais), por outro Quanto aos procedimentos, ressaltaremos, entre outros, o princípio das correlações conversas1 ou inversas entre gradientes, a distinção entre a predicação implicativa e a predicação concessiva, ou ainda a sintaxe existencial 9

Se o valor heurístico de um ponto de vista teórico é função da variedade dos discursos que ele é capaz de explicar, e dos campos de investigação que ele abre, então defenderemos aqui a diversidade dos domínios abordados; do discurso poético ao discurso científico, do mítico ao político, da lingüística francesa à lingüística comparada, da antropologia à retórica: abrindo-se amplamente, a reflexão semiótica recompõe de fato o seu elo com as origens transdisciplinares Concebido inicialmente como um dicionário, este livro foi se transformando pouco a pouco numa espécie de tratado a expor sistematicamente uma posição teórica: o número de verbetes reduziu-se consideravelmente, seu volume respectivo ampliouse, os verbetes converteram-se em capítulos; passamos, então, a ver a ordem alfabética como uma simplificação demasiadamente cômoda e uma progressão temática impôs-se Mas o produto final conserva um traço do projeto original Todos os capítulos, construídos sob o mesmo modelo, moldam-se como os verbetes de dicionário: definições, correlatos, sinônimos e antônimos; enfim, exemplos Gostaríamos de comentar rapidamente essa arquitetura, concebida como um “manual de uso” dos conceitos examinados

1 RECENSÃONessa seção, evocaremos, sem mais, aqueles autores que trataram de um ou outro conceito Essa menção é necessariamente superficial, dado que o tratamento diacrônico de uma configuração significante supõe uma semiótica geral que já estivesse de posse da tipologia dos possíveis Vamos nos contentar em “acolher” discursos anteriores que examinaram, com suas preocupações específicas, as noções que ora abordamos1 [N dos T]: Termo da oposição inverso/converso, a ser definido posteriormente

10_PRÓLOGO

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De resto, sabemos muito bem que as potencialidades dos discursos anteriores são filtradas pela teoria receptora, no estado em que esta se encontra no momento em que as explora: esta é uma das leis da intertextualidade Por pouco que se admita que a teoria receptora tenha evoluído, já é prudente reexaminar as “fontes”, para dar livre curso a suas potencialidades adormecidas

2 DEFINIÇÕESA definição é um enunciado problemático, e essa incerteza tem tudo para durar De fato, a definição é um gênero que subsume várias espécies: definição distintiva de Aristóteles a Littré; definição construtiva dos matemáticos; definição analítica de Hjelmslev; este último acrescenta mais uma distinção, um tanto obscura, entre definições “formais” e definições “operacionais”, que Greimas e Courtés (Dicionário de semiótica, p 102) reproduzem, sem maiores esclarecimentos O critério de pertinência não basta para decidir sobre a justeza de uma definição Uma definição pertence, queira ou não, a um conjunto de definições controlado por duas exigências muito fortes: a hierarquia e a homogeneidade No que toca à homogeneidade, a definição supõe a presença de um invariante definicional, manifesto ou catalisado, na maioria das vezes imanente Mas, para a semiótica, essa confiança cega na imanência parece ilusória: a semiótica dos anos 90 não é nem exatamente a mesma, nem completamente outra, quando comparada à dos anos 70 Uma seria mais binarista, logicista, acrônica, mal concedendo um lugar ao sensível; a outra, mais uma semiótica das paixões, da intensidade, preferindo a dependência e a complexidade às diferenças meramente binárias Distinguiremos dois tipos de definições: definições paradigmáticas e definições sintagmáticas Ademais, somos levados a distinguir entre definições que se aplicam ao discurso como um todo

11_PRÓLOGO

(definições sintagmáticas amplas) e definições que se reportam a apenas um ou vários segmentos (definições sintagmáticas restritas) Teremos de nos defrontar, inevitavelmente, com a complexidade das relações entre o eixo paradigmático e o eixo sintagmático A tradição lingüística, principalmente com Jakobson, quis ver aí relações puras e exclusivas: disjuntivas e distintivas para o paradigma, conjuntivas e associativas para o sintagma Mas, para além do fato de essa distribuição exclusiva ter ratificado um incômodo hiato entre morfologia, semântica e sintaxe, a opção pela “complexidade” de algum modo volta a questioná-la: a dependência está no princípio mesmo da diferença paradigmática, e a diferença dos modos de existência continua a operar na profundidade da sintaxe do discurso Assim, as tensões sintáxicas, cujos efeitos sensíveis são inegavelmente de ordem sintagmática, originam-se na concorrência entre as figuras de um mesmo paradigma Essa “complexidade” é, efetivamente, uma manifestação da tensividade

3 CONFRONTAÇÕESCada conceito mantém relações – mais ou menos conflituais – de vizinhança, de proximidade, até mesmo de analogia à distância, com outros, o que acarreta confrontações, quando não desemboca numa problematização Uma grandeza semiótica só estará corretamente definida se levarmos em conta toda a rede dessas associações e oposições A grandeza examinada é coextensiva ao discurso ou apenas imanente a uma parte desse discurso? Em que outras grandezas ela se prolonga? Com que outras grandezas ela pode associar-se ou opor-se estruturalmente? A confrontação abre de certo modo o campo dos possíveis discursivos e preserva o futuro: com efeito, o discurso não se contenta em acolher os “produtos acabados” do percurso gerativo;

12_PRÓLOGO

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sabemos que, paralelamente ao princípio da conversão, a tradição semiótica admitia, desde os anos 70, que as grandezas mais abstratas podiam ser manifestadas diretamente em discurso, como se a enunciação do discurso fosse em grande parte independente de sua geração! Além disso, outros modos de associação e de rearticulação das grandezas semióticas estão entrando em cena, e serão examinados no presente estudo: as “formas de vida”, por exemplo, ou, mais surpreendente talvez, as “paixões” e as “emoções” A semiótica do discurso tem que se haver com “conglomerados”, dispositivos que associam grandezas heterogêneas, cuja coerência não é fornecida pelo percurso gerativo A práxis enunciativa que ela tenta apreender vincula-se mais a uma “bricolagem” (cf Jean-Marie Floch, Identités visuelles, que toma a noção de LéviStrauss para aplicar à enunciação) do que a um algoritmo de engendramento universal Por outro lado, será que a semiótica é suficientemente aguerrida para fazer frente a outros empreendimentos hermenêuticos? Só a própria confrontação poderá fornecer a resposta Em primeiro lugar, trata-se de esclarecer, na medida do possível, as relações entre a semiótica e o campo das ciências humanas e sociais, relações muito freqüentemente reduzidas a “reformulação” e a “integração”, quando não a exclusão Como exemplo, podemos aludir às relações, constantes mas desiguais, entre a semiótica e a fenomenologia e, singularmente, à obra de Merleau-Ponty, relações declaradas no artigo de Greimas intitulado “Le saussurisme aujourd’hui” (1956) Como conduzir pacificamente essas confrontações? O mais simples seria admitir que os conceitos diretores da semiótica estão longe de apresentar o mesmo grau de elaboração e, a partir dessa constatação, perguntar se tais conceitos, apenas esboçados, não poderiam ser fortalecidos, enriquecidos, aprofundados por aproximações efetuadas com pleno conhecimento de causa

13_PRÓLOGO

Por princípio e mesmo de acordo com o seu projeto científico, a semiótica está sujeita a essas confrontações, com as quais só tem a ganhar, tanto na condição de metalinguagem, como na de linguagem-objeto Como metalinguagem, e numa perspectiva otimista, cabe ao percurso gerativo da significação, mas também à estratificação no plano da expressão e no plano do conteúdo, fornecer a prova de que constituem realmente lugares de acolhimento e de compreensão e não de exclusão Com relação a sua própria linguagem-objeto, a semiótica está convidada a reconhecer a existência de estilos e regimes, e não somente de categorias e processos universais, de estilos quando se trata do sistema e de regimes quando se trata do processo Assim procedendo, a semiótica reencontraria certas preocupações que também povoam a lingüística geral Se o objeto de fato da lingüística é o conhecimento de uma determinada língua, seu objeto de direito é o conhecimento desta língua no seio de um grupo dado de línguas e, no limite, da faculdade da linguagem

4 NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Os princípios enunciados acima (a propósito da recensão, das conexidades, das confrontações, principalmente) não poderiam ser aplicados sem um sistema de referências bibliográficas: não se trata somente de submeter-se a um dos ritos do discurso universitário, que é um gênero entre outros, mas de manifestar claramente a imersão de nossas proposições na rede das aquisições anteriores, próximas ou aparentemente distantes

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VALÊNCIA

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1 RECENSÃOARA o Littré, valência era apenas o nome de uma espécie de laranja originária de Valência Segundo o Robert, foi preciso esperar o ano de 1875 para que aparecesse, no vocabulário da química, a acepção atual que designa o número de ligações químicas que um átomo ou um íon entretêm com outros átomos ou íons O termo foi retomado em psicologia para caracterizar a potência de atração de um objeto O traço constante “potência de atração” conserva uma parte do sentido etimológico do baixo-latim valentia (“vigor”, “boa saúde”) L Tesnière o introduz enfim em lingüística para designar o número de lugares actanciais ligados a cada predicado na estrutura básica da frase1 Num enfoque global, a valência caracterizaria, por conseguinte, ao mesmo tempo o liame tensivo e o número de liames que unem um núcleo e seus periféricos, estes definidos pela atração que o núcleo exerce sobre eles e pela “potência de atração” do núcleo, reconhecível pelo número de periféricos que ela é capaz de manter reunidos sob sua dependência A quantidade estaria, nesse caso, sob o controle da intensidade e vice-versa; os dois juntos caracterizariam as relações de dependência, produzindo globalmente efeitos de coesão De um ponto de vista totalmente diferente, a emergência de um protótipo numa categoria semântica, a partir da rede de dependências que unem as ocorrências sensíveis que a constituem, adviria também da valência objetal, na medida em que o protótipo sanciona uma certa forma de coesão sensível, a partir da qual vão se desenhar os limites e depois as oposições constitutivas da categoria

1TESNIÈRE, L Eléments de syntaxe structurale Paris, Klincksieck, 1959, p 105

15_VALÊNCIA

Se a valência não figura no volume Sémiotique, I nem no Sémiotique, II, ela é consagrada em Sémiotique des passions2 , em que aparece no decurso de uma reflexão incidindo ao mesmo tempo sobre o valor do valor e sobre a reorganização das axiologias que intervêm entre o nível pressuponente e o nível pressuposto O termo valência foi adotado em semiótica para dar consistência a uma constatação muitas vezes verificada na análise dos discursos concretos: o valor dos objetos depende tanto da intensidade, da quantidade, do aspecto ou do tempo de circulação desses objetos como dos conteúdos semânticos e axiológicos que fazem deles “objetos de valor” Morfologia dos objetos, modulações dos processos e da prática de colocá-los em circulação: trata-se, pois, de atribuir, de fato, um correlato ao valor propriamente dito e de controlar a distinção entre, de um lado, os investimentos semânticos dirigidos aos objetos de valor e, de outro, as condições tensivas e figurais que sobredeterminam e governam os primeiros O que significaria que nem o conceito de valência, nem o conceito de valor são auto-suficientes: eles só adquirem sentido como partes integrantes de uma semiose imanente em cujo interior a valência seria a manifestada e o valor, o manifestante

2 DEFINIÇÕESO tratamento desta noção impõe precauções particulares, na medida em que a introdução do conceito de “valência” deveria conduzir a uma revisão da própria noção de paradigma, dado que o paradigma é, no sentido saussuriano, uma estrutura de2

[N dos T]: Cf GREIMAS, A J et COURTÉS, J Sémiotique Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, I Paris, Hachette, 1979 (Dicionário de semiótica São Paulo, Cultrix, sd); id, Sémiotique Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, II Paris, Hachette, 1986; GREIMAS, A J et

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FONTANILLE, J Sémiotique des passions Des états de choses aux états d’âme Paris, Seuil, 1991 (Semiótica das paixões São Paulo, Ática, 1993)

16_VALÊNCIA

acolhimento dos valores; a valência, a nosso ver, contribui, numa medida ainda por determinar, para a significação do próprio paradigma: de fato, todo paradigma pressupõe valências Acrescentemos que o tratamento da valência exige que a versão “dinamarquesa” do estruturalismo se sobreponha, nas reflexões, à versão “praguense”, na exata medida em que o estruturalismo “dinamarquês” intervém propositalmente a montante das noções mais consagradas, assumindo o risco de expor seus pressupostos constitutivos21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Numerosos elementos indicam que a noção de paradigma, sobre a qual continuam se apoiando a lingüística e a semiótica, apresenta o vício, que chega a se caracterizar como uma autêntica obstrução epistemológica, de propor a relação paradigmática como ponto de partida da organização de uma categoria, ao invés de situá-la como sua simples resultante À exceção da obra de V Brøndal, à qual voltaremos, a maior parte das teorias se satisfaz com uma solução de continuidade entre paradigma e definição Isso diz respeito efetivamente a quê? Uma grandeza semiótica aparece como uma “passarela” entre dois níveis de articulação: essa grandeza é, de um lado, compreendida por um paradigma – às vezes mais, às vezes menos numeroso, mais estabilizado ou menos – e, de outro, ela compreende sua definição, ou seja, segundo o ensinamento dos Prolegômenos3 , sua divisão, suas articulações internas Portanto, o signo estabelece uma comunicação necessária entre o paradigma a que pertence e sua própria definição: como ele efetua esta comunicação?

3 HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem São Paulo, Perspectiva, 1975, p 74

17_VALÊNCIA

A apreensão paradigmática da valência tem por objeto restabelecer ou precisar o liame entre a definição e o paradigma Em outros termos, trata-se de tentar compreender como, munida de sua definição, uma grandeza semiótica intrinsecamente complexa pode inscrever-se num inventário regrado de oposições Todas as definições são “verdadeiras”, na medida em que elas repousam sobre uma divisão, e “falsas”, pois que os objetos, mesmo os mais comuns, estão expostos a surpreendentes flutuações definicionais Assim, para o Littré, o cão é um “quadrúpede doméstico, o mais apegado ao homem, pois cuida de sua casa e de seu rebanho e ajuda-o na caça”, enquanto para o Micro-Robert ele é definido como um “mamífero doméstico de que se contam numerosas raças treinadas para cumprir certas funções junto ao homem” O mínimo que se pode dizer é que o “retrato” do informante, o cão, é correlativo à posição e aos interesses do observador, o redator do artigo do dicionário Todas as definições praticam uma divisão, instalam uma desigualdade e um conflito entre duas direções e cada uma dessas direções produz por si mesma um efeito de perspectiva No caso do cão, esse conflito presentifica: a) de um lado, uma escolha classemática, entre quadrúpede e “mamífero”, que não pode ser considerada como uma oposição, já que uma engloba a outra, mas sim como uma variação na profundidade hierárquica do gênero e das espécies: o quadrúpede “aproxima”, porque esse classema leva em conta a aparência visível do cão, enquanto o mamífero “distancia”, pois que o homem e a baleia são também mamíferos; de acordo com a profundidade classemática, o “quadrúpede” teria, portanto, pouca profundidade e o

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“mamífero”, uma profundidade maior; b) de outro, um gradiente tímico em que a afetividade investida seria forte (tônica), quando as funções domésticas fossem negligenciadas e fraca (átona), quando voltassem ao primeiro plano

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_VALÊNCIA

A correlação sobre a qual recaem nossas duas definições associa o classema próximo (“quadrúpede”) a um efeito tímico forte e o classema distanciado (“mamífero”), a um efeito tímico fraco: o Littré atesta a primeira articulação e o Micro-Robert, a segunda; mas as duas definições despontam do mesmo sistema de valências, que elas ponderam diferentemente Essas “valências” poderiam ser caracterizadas aqui como uma correlação entre os gradientes respectivos da profundidade classemática e da tonicidade tímica Algumas precisões teóricas e terminológicas impõem-se desde já Tentamos articular aqui uma “semântica do contínuo”, que possa desembocar numa semiótica do contínuo e que seja suscetível de responder pela aparição do descontínuo No plano da expressão, as grandezas contínuas correspondem ao que Hjelmslev chama de “expoentes” (acentos e entonação) e são da ordem da intensidade e da quantidade, na medida em que o acento e a entonação podem afetar tanto a altura e a duração dos fonemas (sua quantidade ou sua extensão) como a energia articulatória (sua intensidade) Em nome do isomorfismo entre a expressão e o conteúdo, consideramos que, com as valências, estamos diante de gradientes de intensidade (por exemplo, o gradiente de intensidade afetiva) e gradientes de extensidade (por exemplo, o gradiente da “funcionalidade”, dos papéis domésticos do cão, ou da hierarquia dos gêneros e das espécies) A intensidade e a extensidade são os funtivos de uma função que se poderia identificar como a tonicidade (tônico/átono), a intensidade à maneira da “energia”, que torna a percepção mais viva ou menos viva, e a extensidade à maneira das “morfologias quantitativas” do mundo sensível, que guiam ou condicionam o fluxo de atenção do sujeito da percepção No espaço tensivo, que é seu domínio privilegiado, esses gradientes são postos em perspectiva pelo foco ou pela apreen

19_VALÊNCIA

são de um sujeito perceptivo Essa orientação dos gradientes em relação a um centro dêitico e em relação a um observador os converte em profundidades semânticas Trata-se, bem entendido, de profundidades que articulam um espaço mental, às vezes mais, às vezes menos abstrato, o espaço epistemológico da categorização, mas isomorfo do espaço da percepção e dele diretamente derivado: a profundidade semântica obedece de fato à mesma definição que a profundidade figurativa; só muda o grau de abstração Quando duas profundidades se recobrem para engendrar um valor, serão denominadas valências, na medida em que sua associação e a tensão que daí emana tornam-se a condição de emergência do valor Gradiente designa pois o modo contínuo das grandezas consideradas; profundidade designa a orientação na perspectiva de um observador (que focaliza ou apreende); valência designa uma profundidade correlata a uma outra profundidade Quando falamos da valência classemática “mamífero”, estamos nos referindo, portanto, (i) de um lado, à sua condição de pertencente a uma profundidade classemática e (ii) de outro, ao fato de que ela é correlata a outra profundidade, qual seja a do tímico Globalmente, as valências definem-se, pois, por sua participação numa correlação de gradientes, orientados em função de sua tonicidade sensível/perceptiva Isso quer dizer que, de imediato, um observador sensível é instalado no cerne da categorização, como o próprio lugar das correlações entre gradientes semânticos Em outras palavras, a “caixa preta” da semiótica das paixões, a saber o corpo próprio do sujeito que sente,

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encontra aqui uma definição oblíqua inesperada: o corpo próprio é o lugar em que se fazem e se sentem, de uma só vez, as correlações entre valências perceptivas (intensidade e extensidade) A correlação que funda a definição do “cão” pode ser apresentada, seja sob a forma de um diagrama:

20_VALÊNCIA

mamífero

+Le Robert

Profundidade classemática Le Littré quadrúpede

– –funções funções

+Profundidade tímica afetividade

seja sob a forma de rede:Tonicidade Profundidades Classemática (Extensa) Tímica (Intensa) Funcional Afetuoso Quadrúpede Mamífero fraca forte

na qual o cão do Littré ocupa as casas “quadrúpede + afetuoso”, enquanto o do Robert ocupa as casas “mamífero + funcional” A análise de um valor requer, por conseguinte, (i) ao menos dois gradientes que, na medida em que são orientados, funcionam para o sujeito de enunciação como profundidades, e (ii) em cada uma dessas profundidades, uma variação que é provavelmente identificável a uma variação de intensidade ou de extensidade, ou, para manter o isomorfismo entre a expressão e o conteúdo, a uma variação de tonicidade Cada gradiente comportará, pois, uma zona forte ou tônica e uma zona fraca ou átona

21_VALÊNCIA

Na medida em que as valências são graduais e da ordem da tonicidade, sua correlação é, por definição, tensiva Essa análise sumária do valor do objeto mostra como poderíamos projetar um modo de medir suas variações graduais O valor é então a função que associa as duas valências e essas duas valências (esses gradientes orientados e correlatos) são os funtivos do valor A valência pode, pois, dar margem a duas análises: de um lado, ela é uma orientação gradual num conjunto de grandezas tônicas ou átonas; de outro, ela varia sob o controle de uma valência, por relação à qual é percebida como associada e dependente A noção de valência traz uma correção apreciável à concepção semiótica do valor, na medida em que este, hoje em dia, é chamado a responder às questões levantadas pela semântica do protótipo: qual é a parte do gradual e do discreto na constituição de uma categoria? Como se combinam, na definição de cada unidade, os traços distintivos isotópicos e os traços de posição hierárquica (hiponímia e hiperonímia)? Qual é a parte da diferença e da dependência? Qual é, enfim, o papel do observador ao pôr os traços em perspectiva? Nossa abordagem ainda é muito sumária para proporcionar respostas satisfatórias a todas essas questões, mas este primeiro esboço mostra bem que aquém do quadrado semiótico, ou seja, aquém da categoria estabilizada e discretizada, as valências e suas correlações desenham o

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espaço teórico em que as respostas esperadas devem se configurar: a) A questão da fronteira das categorias é aqui reformulada em termos de “extensidade”, pois os gradientes da extensão podem receber limiares determinados com maior ou menor precisão b) A questão da posição hierárquica do protótipo de uma categoria corresponde aqui à profundidade conhecida como “classemática” c) A relação entre os traços distintivos, a posição hierárquica e as propriedades que variam de maneira contínua, é tratada como

22_VALÊNCIA

uma função hjelmsleviana: os traços distintivos do valor estão do lado da função e as variações extensivas e intensivas da tonicidade, do lado dos funtivos (as valências) d) A inscrição do sujeito observador na organização da categoria, e na seleção de seu protótipo, é aqui considerada, de imediato, como resultante das propriedades perceptivas das valências (propriedades intensivas e extensivas), já que, para nós, sua orientação em “profundidade” depende de um sujeito perceptivo que lhes impõe sua dêixis De um outro ponto de vista, quando se examina a maneira pela qual os valores tomam forma e circulam nos discursos, mas também nas macro-semióticas que as culturas constituem, percebe-se que a polarização axiológica das categorias semânticas não é a única propriedade exigida e que, sobretudo, o caráter atrativo ou repulsivo dos objetos e das junções não depende apenas do conteúdo semântico neles investido: os universos axiológicos devem obedecer previamente a certas condições de composição e homogeneidade, e os valores, por mais desejáveis que sejam, só podem ser procurados e só podem circular sob certas condições de extensidade e intensidade, uma vez que a conjugação das valências intensivas e extensivas modula o fluxo das trocas comunicacionais e, notadamente, o seu andamento temporal Especifiquemos, agora, o liame entre definição e paradigma Reduzindo, por comodidade, o paradigma a um par, examinemos a definição de gato proposta pelo Micro-Robert:“pequeno mamífero familiar, com pêlo macio, olhos oblongos e brilhantes e orelhas triangulares, que arranha”

Deixemos de lado a indicação de “pequeno” que, aqui, diz respeito à profundidade classemática, para nos ater somente ao gradiente tímico, que se projeta em profundidade propriamente23

_VALÊNCIA

afetiva e em profundidade funcional, até mesmo utilitária: o cão é apenas “doméstico”, mas os serviços que presta são numerosos, enquanto o gato é promovido de “doméstico” a “familiar”, mas não “serve” para nada (para o dicionário de Furetière, o gato mantinha uma valência funcional como “caçador de ratos”) Seja o diagrama:+funcional o cão Profundidade funcional o gato não-funcional

–doméstico Profundidade afetiva

+ familiar

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A valência forte do gato na profundidade afetiva é controlada pela percepção sob o modo visual e sob o modo tátil Seria ainda necessário mencionar, para ser exaustivo, uma dimensão estética, bem como uma dimensão fiduciária com a oração relativa “que arranha”, correlata, sem dúvida, da precedente, e que deixaria entender que quanto mais atraente e sedutor for o gato, mais será preciso desconfiar do animal A existência, em língua, de um liame paradigmático entre duas grandezas pressuporia, pois, que essas partilhassem as mesmas valências O paradigma declina, por meio dos valores que acolhe, as valências subjacentes que a definição associa, de modo que se podem reencontrar entre as unidades constitutivas de um paradigma as correlações que definem cada unidade considerada isoladamente em sua definição: por exemplo, se a corre24

_VALÊNCIA

lação entre a valência “tímica” e a valência “funcional” é pertinente para as definições respectivas do gato e do cão, ela deve sê-lo também para o paradigma ao qual ambos pertencem, e deve estar no próprio princípio de sua oposição distintiva Em relação à análise sêmica tradicional, surgem duas diferenças: (i) o valor põe em jogo duas valências ligadas entre si por uma função, de maneira que as valências, por definição (cf supra), encontram-se, sempre, “aos pares”; em seu nível de pertinência, é sua correlação que “faz sentido”; uma determinada valência não poderia advir sem que sobreviesse sua contravalência; de fato, a tensão entre as valências é constitutiva dos metatermos da estrutura elementar; (ii) em segundo lugar, em razão de sua dependência em relação à interação tensiva das valências, os traços não são somente traços de conteúdo enumeráveis, mas também valências ligadas Esta última propriedade diz respeito diretamente à estrutura dos sememas e das configurações semânticas: de uma certa maneira, a semiótica construiu-se inteiramente sobre a idéia de que o semema não poderia ser um simples conglomerado (aditivo, cumulativo) de traços distintivos; o percurso gerativo, fundado sobre uma distribuição hierárquica, é uma das respostas possíveis a esta dificuldade Mas, de um ponto de vista imediatamente operatório, a distribuição dos semas – depreendidos pela análise concreta por meio das operações de comutação e segmentação – nos diferentes níveis do percurso gerativo, em função de seu grau de abstração ou de densidade figurativa, não constitui uma resposta satisfatória à questão dos liames de dependência específicos, que produzem um determinado efeito de sentido particular em discurso ou um determinado semema atualizado (como, aqui mesmo, a dependência inversa entre a funcionalidade doméstica do gato e do cão e a afetividade investida em cada um deles) A teoria da valência, ao contrário, poderia precisar a natureza desses liames, graças às correlações de gradientes que propõe, e até25

_VALÊNCIA

mesmo futuramente permitir prever tais liames tendo como pano de fundo as dimensões bem gerais da intensidade e da extensidade

22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Ao tratar das definições paradigmáticas, fizemos menção a uma função sem maior precisão Agora, para tratar da sintagmatização das valências, é indispensável opor a função a si própria Na falta de precedente sugestivo, tomamos como guia a distinção mais simples, a saber a tensão entre a conjunção, a relação “e e”, e a disjunção, a relação “ou ou” No caso da conjunção, as valências variam no mesmo sentido, ou seja, menos pede sempre menos, mais pede sempre mais; trata-se

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então de uma correlação conversa No segundo caso, da disjunção, as valências variam em razão inversa uma da outra; a textualização resulta nos seguintes tipos de enunciados: mais pede menos, menos pede mais; desta vez, temos uma correlação inversa Ambas serão assim representadas:

+

+

– – +

– – +

26

_VALÊNCIA

OBS: A forma do arco é potencialmente explorável, mas não seria muito pertinente ao nosso propósito: se fosse preciso definir um “lugar geométrico” para cada correlação, este seria prioritariamente de tipo estatístico e ocuparia zonas de densidade variável, tendo como eixo de simetria o traçado dos arcos A coexistência desses dois regimes funcionais libera um espaço de acolhimento plausível para os dois grandes princípios introduzidos pela antropologia, a saber o princípio de exclusão, que tem como operador a disjunção, e o princípio de participação, que tem como operador a conjunção Seria conveniente, mediante a convocação da pressuposição recíproca, colocar esses dois regimes funcionais na mesma classe? Na verdade, os microuniversos discursivos parecem conjugar esses dois princípios e se satisfazer com um modus vivendi Isso pede uma breve explicação: a valência, como tal, pertence ainda à substância: ela só chega à forma quando se torna um desafio para os dois grandes princípios da exclusão e da participação Examinemos, a título de ilustração sumária, a relação entre certas práticas e a procedência sexual daqueles que as exercem: a bricolagem é reservada aos homens, de tal modo que, ao ser praticada por uma mulher, tem como efeito “virilizá-la” No caso da culinária é diferente: esta, ainda que aberta aos homens, permanece antes de tudo feminina; a “alta cozinha”, porém, é considerada uma tarefa dos homens; só as mulheres que mostraram sua capacidade são admitidas em caráter excepcional Examinando as coisas mais de perto, é fácil perceber que a pejoração e a melhoração funcionam como termos médios entre os dois princípios indicados e o jogo próprio das valências; o recurso da pejoração e da melhoração permite, respectivamente, excluir participantes e fazer com que excluídos participem Assim, a cozinha corriqueira tende a se abrir e a permitir, por melhoração, a inclusão de novos participantes masculinos; inversamente, no caso da “alta cozinha”, que exclui num primeiro momento as mulheres, essa exclusão é, por sua vez, abalada pela distinção dos agentes femininos mais destacados27

_VALÊNCIA

Basta introduzir as categorias vida/morte, natureza/cultura, centrais em antropologia, para entrever a motivação do mito na abordagem de Lévi-Strauss: moderar os excessos, provavelmente correlatos, da participação e da exclusão Voltaremos a isso no estudo consagrado aos valores Em segundo lugar, esses dois princípios oferecem duas imagens opostas da noção de limite: para o princípio de participação, em correlação conversa, cada gradiente parece poder recuar indefinidamente o limite

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do outro, engendrando assim sempre mais mais e sempre menos menos; para o princípio de exclusão, em correlação inversa, o limite não está mais situado nos confins, mas no equilíbrio das valências concorrentes Os exemplos do cão e do gato são, aqui, particularmente esclarecedores, na medida em que estão em causa as fronteiras das categorias Na definição do cão considerada isoladamente, o número de serviços prestados é proporcional à carga afetiva, de maneira que esta correlação conversa não pode fornecer indicação determinante sobre os limites da categoria, a não ser no caso das valências nulas: um cão que não serve para nada, um cão selvagem, poderia ser amado? Será que poderia ainda ser considerado um cão? Não estaria mais próximo do lobo? Mas, desde que se considerem conjuntamente as valências correlatas das definições respectivas do cão e do gato, o limite então será claro: um cão que não serve para nada e que é excessivamente familiar (um “poodle”, por exemplo) começa a parecer um gato A diferença entre categorias de fronteira fluida e categorias de fronteira nítida poderia, pois, ser tratada mediante a distinção entre correlação conversa (regime participativo) e correlação inversa (regime exclusivo)222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Os dois regimes de valência que acabamos de examinar, o princípio de exclusão e o princípio de participação, realizam-se28

_VALÊNCIA

localmente na cadeia convocando os valores dois a dois, e cada um apresenta suas próprias particularidades sintagmáticas O regime de exclusão tem por operador a triagem e, se o processo atinge seu termo, leva à confrontação contensiva do exclusivo e do excluído e, para as culturas e as semióticas que são dirigidas por esse regime, à confrontação do “puro” e do “impuro” O regime de participação tem por operador a mistura e produz a confrontação distensiva do igual e do desigual: no caso da igualdade, as grandezas são intercambiáveis, enquanto no da desigualdade, as grandezas se opõem como “superior” e “inferior” A rearticulação das valências em valores, no espaço semionarrativo, supõe que as dependências/independências sejam convertidas em diferenças (contrariedade, contradição, complementaridade) a partir das rupturas observadas na rede de dependências, de maneira que os limiares ou limites projetados sobre as valências tornam-se fronteiras de uma categoria estabilizada e discretizável Do mesmo modo, o sujeito sensível, ao se tornar sujeito semionarrativo, vê seu universo partilhar-se axiologicamente graças à polarização em euforia/ disforia, enquanto, no espaço tensivo, a foria não polarizada caracterizava as reações de seu corpo próprio às tensões nas quais ele estava mergulhado Assim, surge o valor no sentido semiótico: o valor como diferença que organiza cognitivamente o mundo focalizado, e o valor como desafio axiológico que polariza o próprio foco Cada um desses campos semióticos possui seu índice tensivo e sua própria coerência: o programa de base é descontínuo numa semiótica da triagem e tende a restringir a circulação dos bens; é contínuo numa semiótica da mistura e favorece o “comércio” dos valores Nas semióticas da triagem, a circulação dos valores é, pois, pequena, por vezes nula, e, de qualquer maneira, desacelerada pela solução de continuidade colocada entre o exclusivo e o29

_VALÊNCIA

excluído Nas semióticas da mistura, o tempo4 da circulação é mais rápido numa cultura em que a valência é difusa do que numa outra em que a valência tende a se concentrar num número restrito de

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grandezas Sabe-se que, no domínio econômico, o valor de troca tanto dos bens como da moeda depende da rapidez (inflação) ou da lentidão (deflação) com a qual os bens são trocados Do mesmo modo, Lévi-Strauss mostrou muito bem que as trocas matrimoniais eram submetidas a uma coerção que aparece globalmente como uma “desaceleração” ou um “distanciamento”, o segundo podendo ser considerado como uma variedade da primeira5 Intuitivamente, temos o sentimento de estar igualmente diante de estruturas elementares características do “político”: à igualdade corresponderá uma sociedade do direito; à desigualdade, uma sociedade do privilégio Do lado da exclusão e da triagem, teríamos uma sociedade do interdito, com seus intocáveis Mas caberá às análises concretas confirmar ou não essa sugestão de generalização

3 CONFRONTAÇÕESA dependência das valências em relação ao devir é literal no conhecido texto de Baudelaire:“Como o pai um pôde engendrar a dualidade e, enfim, metamorfosear-se numa população incontável de números? Mistério! A totalidade infinita dos números deveria ou poderia concentrar-se outra vez na unidade original? Mistério!”6

Essas questões estão realmente ligadas, como lembra Cassirer, ao universo do sensível, de onde emanam a foria e o devir:4

5 6

[N dos T]: Toda vez que aparecer tempo (em itálico), faz-se referência ao parâmetro andamento (variações de velocidade), de inspiração musical LÉVI-STRAUSS, Cl Structures élémentaires de la parenté Paris, PUF, 1949 BAUDELAIRE, Ch L’art romantique Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains, in Œuvres complètes Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954, p 1090

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_VALÊNCIA “Pois que os conteúdos não-decompostos da percepção, enquanto tais, não oferecem qualquer perspectiva de abordagem ou qualquer ponto de apoio a esse pensamento Não entram em qualquer ordem estável e geral, não possuem, de modo algum, qualidade verdadeiramente unívoca e, ao serem tomados no imediatismo de seu estar-ali, apresentam-se como um fluxo inapreensível que resiste a toda tentativa de nele distinguir ‘limites’ exatos e bem nítidos”

O devir da intensidade, ao produzir e distribuir ápices e modulações, tomaria, de qualquer modo, a forma de um ritmo O devir da extensidade, ao produzir e distribuir partes e totalidades, unidades e pluralidades, caracterizar-se-ia pela formação e deformação de agenciamentos merológicos Em relação à distinção entre sujeito e objeto, notadamente no ato perceptivo, pode-se levantar a hipótese de que as valências de intensidade e de tempo7 caracterizam essencialmente o devir sensível do sujeito, enquanto as valências de extensidade e os agenciamentos merológicos que daí decorrem caracterizariam o devir sensível do objeto As valências subjetais determinam as condições do acesso ao valor para o sujeito, assim como o valor da junção: de natureza essencialmente “rítmica”, elas podem ser identificadas graças ao tempo e à aspectualização da apreensão ou da troca É assim que o “valor para o sujeito” se configura ou se dissolve, na medida em que este saiba, ou não, modular a velocidade do processo que leva à junção; o generoso, por exemplo, ao adotar o tempo justo, permite aos outros que usufruam os objetos de valor dos quais ele próprio se separa; o perdulário, ao contrário, pela aceleração da circulação dos objetos que esbanja e dos quais se separa,

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põe em causa a própria existência desses objetos e, ainda mais, o próprio valor subentendido pela troca

7

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, tome 2 Paris, Minuit, 1986, p 53

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_VALÊNCIA

As valências objetais determinam na morfologia das figuras-objeto aquilo que as torna aptas a acolher um investimento axiológico, notadamente sua estrutura merológica Com efeito, as formas particulares da dependência e da independência que unem as partes do mundo sensível entre si, preparam e determinam o tipo de valores que aí poderão ser investidos, e os limites do campo disponível, inclusive no plano estético Nesse sentido, a preocupação com a “perfeição” não assinala apenas uma certa concepção do belo, mas pode também ser compreendida como a manifestação discursiva de uma valência que, por exemplo, atribuiria à autonomia sensível do objeto (a ausência de dependências exteriores perceptíveis) e ao fechamento da apreensão perceptiva, o estatuto de uma condição prévia ao investimento axiológico O aprofundamento em curso do conceito de valência poderia igualmente conduzir a um modus vivendi entre o contínuo e o descontínuo Numa espécie de dialética da estabilidade e da instabilidade, a discretização estabiliza as correlações entre as valências, convertendo os limites que elas aceitam em fronteiras de uma categoria; desse modo, ela cristaliza as contradições, convertendo respectivamente as valências inversas em contrariedades e as valências conversas em complementaridades No outro sentido, a desestabilização das categorias e a preeminência dos termos neutros e complexos nos discursos concretos restituem o livre curso das correlações tensivas, seja no modo da exclusão (termos neutros), seja no modo da participação (termos complexos) É o que tentaremos demonstrar no estudo consagrado à categoria e ao quadrado semiótico Por outro lado, a extensão do conceito de valência é de tal ordem que a decisão mais sábia requer que examinemos antes as categorias semióticas que escapam ao seu campo de atividade Escolheremos, porém, assinalar as conexidades que existem entre a valência e, respectivamente, a quantidade, o sujeito e o objeto32

_VALÊNCIA

Na espera de uma semiótica consistente do número e da quantidade, está claro que a interação incessante entre a valência e esses operadores de grande envergadura, quais sejam a triagem e a mistura, prefigura um dos capítulos dessa semiótica A triagem e a mistura podem, como já apontamos, variar em termos de tonicidade: a triagem fica menos ou mais drástica e a mistura, menos ou mais homogênea Obtemos, assim, a seguinte rede, que define quatro figuras da quantidade:Triagem Tônica Átona unidade / nulidade totalidade Mistura universalidade diversidade

A articulação semiótica da quantidade é distinta do engendramento formalizado do número que os matemáticos aprofundam Mas há algo talvez mais importante: se conjugamos a quantidade e a intensidade, então o excesso e a falta permitem, no interior de cada categoria, passar de um regime tensivo a outro, ou seja, de uma valência a outra: a) Numa semiótica da triagem, o excesso permite ir de “tudo” a “qualquer coisa”, até mesmo a “nada” Esta é a razão pela qual hesitamos entre

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nulidade e unidade na rede acima: se a triagem atinge o limite, não há lugar nem para uma única ocorrência A lógica da triagem pode, pois, chegar ao niilismo integral Lembremos, de passagem, que os grandes ensaios sobre o fenômeno totalitário contemporâneo demonstraram amplamente que o fundo, ou a forma acabada, do totalitarismo era o niilismo; na criação artística, essa superação do “tudo” pelo “nada” corresponde até certo ponto ao “estilo semiótico” de Mallarmé, que se dirige à “nulidade” passando pela inapreciável “raridade” da unidade singular Ao contrário, a falta permite a nosso imaginário que considere os começos como desencadeamentos, explosões,33

_VALÊNCIA

“big bangs”, levando, como se ouve dizer, de “nada” a “qualquer coisa”, e de “qualquer coisa” a “tudo” b) Numa semiótica da mistura, o excesso permite, em nome da “tolerância”, da “abertura”, do tão justamente denominado “pluralismo”, passar da “diversidade” à “universalidade”; o acento se desloca da diferença (a desigualdade, nesse caso) para a semelhança (a igualdade); a falta, que restabelece a “diversidade” em detrimento da “universalidade”, entra em ação assim que decai o fervor das confraternizações entusiastas, o que, como cada um pode sentir, é uma questão de tempo: o “ápice” não suporta a duração Examinemos agora a relação entre a valência e a paixão, considerada restritivamente como um modo de ser do sujeito Para depreender a estrutura das valências subjacentes à “paixão”, propomos projetar, um sobre o outro, os dois gradientes da intensidade e da extensidade e colocamos, frente a frente, uma “tensão mínima divisa” e uma “tensão máxima indivisa” Se admitimos que a paixão supõe uma relação com o objeto e uma relação com os outros, duas profundidades podem ser consideradas A profundidade da fixação ao objeto tem como termos extremos o apego e o desapego; recorremos de propósito ao termo freudiano por ser difícil contestar que o ponto de vista econômico em psicanálise tenha algo a ver com a valência, na medida em que esta modula “energias” semânticas e perceptivas A paixão dirigida por uma “tensão máxima indivisa” elege um objeto exclusivo, enquanto a multiplicação dos objetos, diminuindo as tensões, conjuga-se facilmente com o desapego A profundidade da relação com outrem teria, por sua vez, como termos extremos uma socialidade restrita, cujo limite seria uma intersubjetividade dual, e uma socialidade ampliada que teria como limite a “humanidade” no sentido de Augusto Comte O apaixonado, no limite, é “a-social”, ou solitário, ainda que a resposta à questão: “Robinson, em sua ilha, estaria sujeito34

_VALÊNCIA

à paixão?”, depois das obras de R Girard, seja algo delicado de fornecer, a menos que se imagine, evidentemente, que as clivagens modais internas do ator suscitem uma interação entre diversos papéis, instaurando de alguma forma o diálogo “dele” “consigo próprio” Na França do século XVII, o “honnête homme”, ou seja, aquele cujo “comércio” era agradável, estava situado sob o signo do desapego Entretanto, afirmar que a socialidade do apaixonado é restrita pode levar à confusão: somente a sociabilidade do papel patêmico está em pauta nesse momento, dado que, no caso de Grandet, por exemplo, Balzac mostra que, na qualidade de avaro, ele participa de uma socialidade restrita – os avaros se reconhecem intuitivamente e se compreendem sem que convivam ou tenham simpatia mútua: é o que Balzac chama de “francomaçonaria das paixões” – mas, a partir do momento em que sua avareza não esteja diretamente implicada, ele participa de uma socialidade ampliada, já que conhece “toda” Saumur Reencontramos o elo de estrutura entre a diminuição da

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tensão e seu fracionamento Desse modo, a estrutura tensiva dos sujeitos apaixonados se deixa atingir pela conjugação de quatro valências: a intensidade, a extensidade, a relação com o objeto e a relação com outrem Associando as duas primeiras no mesmo gradiente disposto verticamente e as duas últimas num gradiente disposto horizontalmente, obtemos o seguinte diagrama:

35

_VALÊNCIAapego

(profundidade intensa da fixação ao objeto)

desapego

socialidade restrita

(profundidade extensa da socialidade)

socialidade ampliada

O elo de dependência entre as valências propriamente tensivas e as valências sociais vale também para os actantes coletivos homogêneos: o fanático de ontem, o totalitário de hoje compõem um apego muito forte e uma socialidade tendendo à nulidade, que os conduzem a encarar como natural a liquidação física dos adversários que eles próprios se atribuem Por fim, ainda que haja mais de uma razão para que o jogo das valências interesse ao tratamento dos objetos, limitamo-nos aqui, a exemplo do que já fizemos com a intersubjetividade, às relações de compatibilidade entre objetos Nesse caso, também, a intervenção dos operadores da triagem e da mistura permite formular as articulações elementares Do lado da dêixis da triagem, os objetos podem ser considerados incompatíveis ou inadequados; do lado da dêixis da mistura, eles serão compatíveis ou adequados; vê-se logo que esses diferentes casos de figura também provêm da competência de um sujeito da triagem ou da mistura, que pode ou não pode, que deve ou não deve reunir ou separar os objetos O quadrado semiótico correspondente seria este:

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_VALÊNCIA

incompatível Dêixis da triagem

adequado

{separado

}compatível

Dêixis da mistura

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A importância atribuída respectivamente à triagem e à mistura decide as ambiências nas quais os sujeitos se projetam e se reconhecem Um exemplo, como simples suposição, permitirá fixar as idéias: na perspectiva exclusiva da triagem, uma biblioteca “high tech” e uma cômoda “Louis XV” são, juntas, inconcebíveis (incompatíveis ou, a rigor, inadequadas), enquanto na perspectiva da mistura, a justaposição desses dois móveis será avaliada e sentida como “muito chique” e “audaciosa”, na medida em que serão considerados pelo menos como compatíveis Os estilos próprios aos valores são, pois, sobredeterminados por seus regimes de valências Permite-se pensar que, na perspectiva da mistura, um salão inteiramente “Louis XV” ou inteiramente “high tech” serão avaliados como “tediosos”, “cafonas”, quando a valência da mistura estiver nula As avaliações estéticas e éticas e seus correlatos emocionais assinalam aqui claramente que as valências subtendem as axiologias e que é sobre elas, mais que sobre os valores propriamente ditos, que incide a pertinência dos “estilos”

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_VALOR

VALOR1 RECENSÃOREFLEXÃO sobre o valor apresenta à época contemporânea duas características: a polissemia do termo “valor” e a consideração das conseqüências epistemológicas decorrentes desta polissemia Com relação à polissemia, lembremos que ninguém põe em dúvida a existência de valores econômicos, lingüísticos, estéticos, morais, mas, nesse domínio, todo limite é apenas um uso; para os que gostam de comer bem, existem, sem dúvida, valores gastronômicos, como mostrou o estudo de Greimas intitulado “La soupe au pistou ou la construction d’un objet de valeur”1 A partir do instante em que uma práxis é atestada e codificada, tem-se o direito de postular valores de sistema (a “boa dosagem” dos ingredientes selecionados e, no mesmo ato, valorizados) e valores de processo (a aquisição da destreza, o sentido de uma justa coordenação temporal, etc) Mas a especulação sobre o valor, seja ela conduzida de um ponto de vista filosófico, sociológico ou semiótico, é de fato uma reflexão sobre os valores, já que diz respeito à relação entre as diferentes ordens de valores Para Saussure, revelar o papel do valor em lingüística é colocá-lo, sucessivamente, em relação com os valores que chamaríamos de “agonísticos”, subjacentes ao jogo de xadrez2, os valores econômicos, enfim, os valores matemáticos Pode-se pensar que cada uma dessas analogias deve ter constituído, para Saussure, um critério de validação das hipóteses que lançava1

A

2

GREIMAS, A J Du sens II, Paris, Seuil, 1983, p 157-69 [N dos T]: “A sopa ao ‘pistou’ ou a construção de um objeto de valor” in: Significação - Revista brasileira de semiótica, 11/12, set de 1996, p 7-21 SAUSSURE, F de Curso de lingüística geral São Paulo, Cultrix, 1971, p 104

39

_VALOR

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Hjelmslev, menos nítido ou menos interessado nessas questões que Saussure, adota como analogias preferenciais o jogo de xadrez, os valores econômicos e os valores algébricos Mas esta última analogia é indireta, já que parece tributária da centralidade atribuída por Hjelmslev ao conceito de função, do qual ele retém sobretudo “o sentido lógico-matemático” Esta preferência renova o algebrismo de Saussure Para Greimas, essa problemática é dupla: trata-se de formular uma mediação entre os valores lingüísticos, em princípio estritamente diferenciais e “vazios” de conteúdo, e os valores narrativos, os quais, na perspectiva greimasiana, são considerados como imanentes ao devir do sujeito e à sua busca do “sentido da vida” Em segundo lugar, se se admite que o percurso gerativo declina as diferentes classes de valores – valores aferentes às estruturas elementares da significação, valores modais e temáticos aferentes às estruturas narrativas de superfície, valores discursivos –, a reflexão sobre os valores acaba por se confundir com outra, referente à conversão dos valores de um nível a outro e indica uma certa incompletude da semiótica greimasiana atual

2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

A análise paradigmática de uma grandeza semiótica está sujeita a duas dificuldades muitas vezes subestimadas Em primeiro lugar, os pais fundadores da semiótica européia divergem sobre um ponto importante Para Saussure, no Curso de lingüística geral, em razão do critério adotado (a saber a “associação”), manifestamente herdeiro do século 19, um paradigma, contrariamente ao sintagma, é aberto:40

_VALOR “Um termo dado é como o centro de uma constelação, o ponto para onde convergem outros termos coordenados cuja soma é indefinida” 3

Para Hjelmslev, ao contrário, por certo em razão do princípio de empirismo e de suas três exigências, a exaustividade, a não-contradição e a simplicidade, a análise conduz necessariamente a um inventário fechado:“Quando são comparados os inventários assim obtidos nos diferentes estágios da dedução, é notável ver que o número deles diminui à medida que o procedimento de análise avança [] De fato, se não houvesse inventários limitados, a teoria da linguagem não poderia esperar alcançar seu objetivo: tornar possível uma descrição simples e exaustiva do sistema que está por trás do processo textual”4

A semiótica greimasiana, notadamente com o papel unificador atribuído ao percurso gerativo, está de acordo com a posição adotada por Hjelmslev, mas é claro que as diversas tentativas de introduzir, nos anos 80, novos degraus a converteram parcialmente em inventário aberto dos níveis de articulação Conseqüentemente, não haveria nada a mais nos termos de um paradigma do que o conteúdo atingido pela comutação: aquilo que a intervenção da comutação depreende é com certeza pertinente, mas esta pertinência é de fato e não de direito, enquanto as outras grandezas comutáveis não tenham sido, elas também, distinguidas e recenseadas Hjelmslev empresta de um lingüista russo do começo do século, A M Peškovskij, a hipótese segundo a qual

3 4

20

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SAUSSURE, F de, op cit, p 146 HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 48

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_VALOR “Há termos precisos e termos vagos, e, o que importa acima de tudo, parece que um sistema é freqüentemente organizado sobre a oposição entre termos precisos de um lado e termos vagos de outro”5

Essa hipótese, que já apresenta o mérito de inscrever a incerteza no sistema, é seguida de uma outra que marca, de antemão, os limites do binarismo: “todo sistema com dois termos é organizado sobre a oposição entre um termo preciso e um termo vago”6 Dito de outro modo, a diferença, antes de se projetar numa alternativa, é confrontada com sua denegação, quando não com seu próprio desaparecimento Em La catégorie des cas, essa oposição dará lugar à oposição entre o termo “intensivo” e o termo “extensivo”:“A casa que é escolhida como intensiva tende a concentrar a significação, enquanto as casas escolhidas como extensivas têm uma tendência a propagar a significação sobre as outras casas de modo a invadir o conjunto do domínio semântico ocupado pela zona”7

Não poderíamos desconsiderar o fato de que G Deleuze inaugura sua reflexão sobre a diferença com considerações surpreendentemente próximas:“Mas em lugar de uma coisa que se distingue de outra coisa imaginemos alguma coisa que se distingue – e no entanto aquilo de que ela se distingue não se distingue dela O relâmpago, por exemplo, distingue-se do céu escuro, mas deve levá-lo consigo como se ele se distinguisse do que não se distingue É como se o fundo emergisse à superfície, sem deixar de ser fundo [] A diferença é esse estado de determinação como distinção unilateral Deve-se dizer, da diferença, que ela é feita, ou que ela se faz, como na expressão ‘fazer a diferença’”85 6 7 8

HJELMSLEV, L Nouveaux essais Paris, PUF, 1985, p 33 Op cit, p 34 HJELMSLEV, L La catégorie des cas Munich, W Fink, 1972, p 112-3 DELEUZE, G Différence et répétition Paris, PUF, 1989, p 43

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_VALOR

Essa reflexão, bem próxima da concepção gestaltista da percepção, é reformulada em termos semióticos como “primado da negação”: o termo primeiro é a princípio aquele que não é qualquer um, e que, por isso, destaca-se do “qualquer um” A distinção precederia de direito a diferença ou, em outros termos, a independência como negação da dependência precederia a diferença Uma dupla obstrução pesava sobre a diferença: (i) os termos da diferença são, ambos, determinados; (ii) o conteúdo da diferença é, de acordo com o ensinamento de Saussure, negativo, já que só se exige dos termos que difiram um do outro, sem que se pergunte em quê eles diferem; essa dupla obstrução está doravante superada, de modo que questões abandonadas até o presente podem ser, daqui para frente, formuladas Optamos, no entanto, por nos situar a meio-caminho do “indefinido” saussuriano e do “estritamente definido” hjelmsleviano Entretanto, uma reflexão sobre as precondições de uma definição paradigmática do valor deve admitir os dois postulados

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mencionados por Hjelmslev nos Prolegômenos: (i) a “massa amorfa e indistinta” de Saussure é substituída pela postulação de um “continuum não analisado mas analisável”9 ; (ii) “não existe formulação universal, mas somente um princípio universal de formação”10 Entretanto, parece-nos pertinente acrescentar à lista das precondições as quatro propriedades seguintes: a dissimetria, a orientação, a reversibilidade, a concessão Quanto ao primeiro ponto, a dissimetria, esta emerge literalmente dos textos de Hjelmslev e de Deleuze que acabamos de evocar: a oposição de base não se refere aos termos polares, mas a um “termo preciso” e um “termo vago”, uma plenitude e uma vaguidade, no limi-

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HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 59 Op cit, p 79

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te um “alguma coisa” e um “qualquer coisa”; a delimitação inerente aos termos polares não parece dever ser inscrita entre os primitivos Hjelmslev não se interessa em saber se o continuum de que se vale é orientado ou não, mas, com Cassirer e Deleuze, admitiremos que ele deve ser apreendido como o “fluxo de uma série contínua sensível”11 Do ponto de vista epistemológico, permite-se pensar que dissimetria e orientação devem entreter uma relação de pressuposição recíproca, que nos dispensa de fixar uma anterioridade ou uma prioridade, ou de sermos categóricos, a exemplo do binarismo, sobre a questão de saber se se deve tomar branco por não-preto ou preto por não-branco Com relação ao terceiro ponto, a reversibilidade, por sua vez, é menos uma propriedade do que uma resultante da análise: a partir do momento em que uma dimensão é concebida como um gradiente, o aumento dos “mais” tem por correlato uma diminuição dos “menos”, assim como uma tensão decrescente tem por correlato um relaxamento crescente O quarto ponto, a concessão, é uma generalização do precedente: em cada ponto do gradiente, sobrevém um pequeno “drama”, na imanência daquilo que Bachelard chama de “vingança das decisões contrárias”; no devir, quer se trate de uma propriedade, como no confronto do rubor e do enrubescimento, ou de um processo propriamente narrativo, uma determinada valência é correlata ao esforço, ao trabalho de uma valência inversa: uma valência de movimento enfrenta uma valência de inércia; uma valência coesiva defronta-se com uma valência dispersiva, etc Em suma, das valências conversas (e “tranqüilas”) passa-se às valências inversas e “inquietas” O arcabouço próprio das definições paradigmáticas apresenta, portanto, de um lado uma complexidade contínua, de outro, uma dissimetria irredutível De maneira que (i) em nome da11

DELEUZE, G Différence et répétition, op cit, p 51

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complexidade [A/B], nenhum componente, nem A nem B, poderia ser tomado isoladamente, e que (ii) em nome da dissimetria, A e B podem, tanto um como outro, receber a orientação positiva, mas, nesse caso, com a condição de imputar ao outro a orientação negativa Falta-nos apenas denominar

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as grandezas que, em razão de sua exclusão recíproca, constituem o intervalo ao longo do qual virão se inscrever os valores intermediários Do ponto de vista figural, ou seja, das categorias atestadas simultaneamente no plano do conteúdo e no plano da expressão, temos a “intensidade” e a “extensidade”; do ponto de vista figurativo, ou seja, das categorias atestadas somente no plano do conteúdo, admitiremos que o espectro do valor possui como termos extremos: para a intensidade, os valores de absoluto, onde domina o foco; para a extensidade, os valores de universo, onde domina a apreensão; mas, tanto num caso como no outro, trata-se apenas de uma dominante: os valores de absoluto prevalecem em detrimento dos valores de universo, e reciprocamente Já é tempo de propor um exemplo Sabe-se que o livro de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, compõe uma abordagem paradigmática visando a apreender as diferenças entre o tipo de sociedade própria do Antigo Regime e o que se instaura do outro lado do Atlântico e, por outro lado, uma abordagem sintagmática, na medida em que Tocqueville toma o advento da democracia e o declínio da aristocracia como inevitáveis, ainda que as “razões do coração” façam-no preferir a segunda à primeira O que reterá nossa atenção, no entanto, é menos a existência da oposição do que os termos pelos quais Tocqueville a exprime:“Compreendo que num Estado democrático, constituído dessa maneira, a sociedade não será imóvel; mas os movimentos do corpo social poderão nesse caso ser regulamentados e progressivos; se encontramos aí menos brilho que no seio de uma aristocracia, 45

_VALOR encontramos também menos miséria; as satisfações serão menos extremas e o bem-estar mais geral; as ciências menos amplas e a ignorância mais rara; os sentimentos menos enérgicos e os hábitos mais suaves; notar-se-ão mais vícios e menos crimes”12

O sistema aristocrático escolhe o ápice dos valores em detrimento de sua extensão na exata medida em que o sistema democrático adota a extensão máxima a que aspira ao preço da “mediocridade”, como indica literalmente a frase: as satisfações serão menos extremas e o bem-estar mais geral Do ponto de vista paradigmático, as oposições pelas quais se pretende apreender duas configurações são, pois, de duas ordens: a orientação positiva dos valores de absoluto próprios do sistema aristocrático contrasta com a orientação positiva dos valores de universo próprios do sistema democrático, mas ela se opõe também à orientação negativa dos valores de universo no interior do mesmo sistema aristocrático Uma configuração bastante comum manifesta assim “duas” oposições que desembocam em programas distintos de exclusão: uma externa, outra interna, mas é comum que a segunda prevaleça sobre a primeira: é aí então que dois sistemas de valor em oposição “externa” são fundidos num só, sob um ponto de vista único: um sistema de valores homogêneo se estabiliza, orientado por uma “oposição interna”; na verdade, formular a categoria como um quadrado semiótico corresponde a adotar a perspectiva que conseguiu impor sua orientação aos valores O diagrama das valências que vem a seguir traduz, pois, o ponto de vista adotado por Tocqueville e denuncia de certo modo sua preferência pelos valores de absoluto, no sentido de que a imposição de uma correlação inversa entre a intensidade e a extensidade já assinala a perspectiva daquele para quem o outro regime, o dos valores de universo, só pode ter renunciado ao “ápice”, à intensidade, em proveito da difusão máxima:12

TOCQUEVILLE, A de De la démocratie en Amérique Paris, 10/18, 1963, p 28

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+ aristocracia

valores de absoluto

democracia – – valores de universo +

22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

As definições sintagmáticas encarregam-se da complexidade específica dos termos extremos da profundidade, aqui uma intensidade sem extensidade, na qual pode-se reconhecer uma definição válida do uno, ou do único, lá uma extensidade sem intensidade, na qual pode-se reconhecer uma definição do universal Basta agora identificarmos os operadores que suscitam uma distensão em cada complexo: no caso dos valores de absoluto, parece que a triagem e o fechamento intervêm como operadores principais, tendo por benefício a concentração, enquanto os valores de universo pedem o concurso da mistura e da abertura, tendo por benefício a expansão A sintaxe canônica possui, por conseguinte, a forma de um ciclo:triagem → fechamento → abertura → mistura → triagem

Contudo, se essa distensão é necessária, ela não é suficiente A elucidação da dinâmica sintáxica, no espírito dos fundadores da semiótica européia, diz respeito ainda à direção para Hjelmslev e ao limite para Saussure Para a direção, entendemos que a perspectiva adotada, a partir da alternativa entre valores de absoluto e valores de uni47

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verso, vai afetar o discurso e funcionar, ela própria, como uma instância de triagem, deixando passar as configurações discursivas que estão de acordo com o ponto de vista adotado e barrando as que pertencem ao outro regime de valores Assim, Tocqueville dá a entender, no texto citado, que o crime está para o regime aristocrático assim como o vício está para o regime democrático, de maneira que essa operação de triagem, que pode estar explícita e mesmo axiomatizada, responde pela homogeneidade do discurso que a depreensão da isotopia expõe mas não explicita As grandezas enuncivas, aqui o crime e o vício, são, pois, regidas pelo regime axiológico assumido pelo sujeito da enunciação, individual ou coletivo Para o regime que visa aos valores de absoluto, o máximo de intensidade está associado à unicidade, ou seja, a uma grandeza definida por sua tonicidade e sua exclusividade; no plano discursivo, essa grandeza será qualificada de “sem paralelo”, “inigualável”, “única”: ele apenas ou ela apenas serão os únicos predicados dignos desta concentração de valor, como na segunda quadra do conhecido soneto de Verlaine:“Car elle me comprend, et mon coeur transparent Pour elle seule, hélas! cesse d’être un problème Pour elle seule, et les moiteurs de mon front blême, Elle seule les sait rafraîchir, en pleurant”13

Esse regime dos valores de absoluto tem por base a intersecção de um eixo da intensidade e de um eixo da quantificação que possuem como termos extremos, de um lado, a singularidade, aqui valorizada como unicidade e, de outro, a uni13

[N dos T]: “Porque ela me compreende, e meu coração transparente Só por ela, ai de mim! deixa de ser um problema Só por ela, e o suor de minha fronte pálida Só ela sabe refrescar, chorando”

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versalidade, cuja orientação torna-se, pois, para esse regime, negativa Os intervalos correspondentes à quantificação são aqueles realizados nas línguas, só que falta evidentemente estabelecer que, no universo de discurso em que intervém esse regime, um determinado valor num eixo está ligado por comutação a um determinado valor no outro Em outras palavras, cada fase de concentração ocasiona um deslocamento na escala da quantidade, o que significa a ultrapassagem de uma fronteira ou, ainda, que cada “abertura” se dá ao preço de uma queda de intensidade A avaliação própria desse regime é, pois, positiva quando a intensidade aumenta e a extensidade diminui, negativa quando a intensidade enfraquece e a extensidade aumenta No outro regime, a “importância” dos valores é função de sua extensão; o limite corresponderia, entre outras coisas, ao imperativo categórico de Kant, segundo o qual todo valor deve poder se submeter à universalização Desde então, uma vez que as duas dimensões evoluem de maneira conversa, a avaliação é positiva quando a extensidade e a intensidade estão no nível mais alto e negativa quando estão ambas no nível mais baixo Essas proposições proporcionam um conteúdo formal e operatório a uma intuição que se manifesta em Semiótica das paixões, a saber que os universos de valores são secretamente regidos no espaço tensivo por dois grandes tipos de valências: as valências de intensidade, que modulam as energias em conflito, e as valências quantitativas, que modulam notadamente as propriedades merológicas da percepção Os dois grandes regimes axiológicos assentam na correlação inversa ou conversa desses dois gradientes Identificamos a exclusão-concentração, regida pela triagem, e a participação-expansão, regida pela mistura, como as duas principais direções capazes de ordenar os sistemas de valores Consideremos agora o tratamento do limite Na medida em que sabemos que a participação governa o regime dos valores de49

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universo e a exclusão, o dos valores de absoluto, convém examinar, para cada um desses regimes, sua aspectualização a partir da questão: a mobilização de cada um desses dois princípios será total ou parcial? A segunda possibilidade apresenta uma configuração interessante: no caso da exclusão, se esta não for total, devemos nos perguntar qual é o lugar que a exclusão concede à participação Também no caso da participação, se ela não for total, deve conceder igualmente um lugar para a exclusão Do ponto de vista da práxis enunciativa, isso representa para o sujeito, individual ou coletivo, ter que tratar, em função do regime prevalente, uma ou outra dessas duas questões: como, no regime da participação, excluir participantes? Como, no regime da exclusão, fazer participar os excluídos? Assim, literalmente, cada uma das duas funções, reconhecidas pela antropologia clássica, torna-se, a partir de sua aspectualização parcial, objeto para a outra Para o sujeito coletivo, faremos referência às observações de Lévi-Strauss sobre os modos de punir em Tristes tropiques:“Penso em nossos costumes judiciários e penitenciários Se os estudássemos de fora, seríamos tentados a opor dois tipos de sociedades: as que praticam a antropofagia, ou seja, que vêem na absorção de certos indivíduos detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizá-las e mesmo de colocá-las a seu favor; e as que, como a nossa, adotam o que poderíamos chamar de antropoemia (do grego émein, vomitar); diante do mesmo problema, essas últimas escolheram a solução inversa, qual seja a de expulsar esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a esse uso”14

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Para o sujeito individual, gostaríamos de introduzir a hipótese de que o modus vivendi, o compromisso, entre exclusão e14

LÉVI-STRAUSS, Cl Tristes tropiques Paris, Plon, 1959, p 418

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participação é procurado na pejoração e na melhoração; a identificação dos “bons” ou dos “maus” permite, no caso da participação, restringir a própria extensão do universal, evitando que a exclusão ganhe todo o terreno; no caso da exclusão, a mesma distinção, mas em sentido inverso, permite estender o domínio dos “bons”, evitando que a universalidade e a indiferenciação, quando não a entropia da qual ela é portadora, ganhem todo o terreno Na medida em que as definições sintagmáticas esforçam-se para apreender o alcance das transformações sintáxicas, somos levados, como no tratamento da valência, a caracterizar essas transformações por sua extensão Admitiremos que essas transformações são restritas ou ampliadas Elas serão restritas quando sobrevêm no interior de um só regime, ou seja, quando a participação e a exclusão, sem deixar de ser funções, assumem igualmente valores de termos; os percursos consistiriam nesse caso em variações de equilíbrio entre a participação e a exclusão; por exemplo, se existe um devir da participação, este corresponderá à “dose” de exclusão admitida: é o caso da aparição da economia, ou até da avareza, numa sociedade em que prevalece a troca e a circulação de bens E, reciprocamente, se existe um devir da exclusão, este está às voltas com a área da participação que admite: as pesquisas de E Landowski sobre a marginalidade e o estatuto do Outro em nossas sociedades referem-se a esse caso de figura15 As transformações restritas esforçam-se, pois, para determinar e ajustar os valores médios do “mais” e do “menos” A melhoração suspende a exclusão própria dos valores de absoluto, admitindo no espaço dos valores uma zona participativa; do mesmo modo, a pejoração suspende a participação, delimitando uma zona exclusiva: em relação à intensidade, a melhoração pode passar15

LANDOWSKI, E Présences de l’autre Paris, PUF, 1997

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por uma negação; em relação à extensidade, a pejoração desempenha o mesmo papel As transformações serão ditas ampliadas se a participação e a exclusão repelirem-se mutuamente, participação total culminando com os valores de universo ou exclusão implacável conduzindo aos valores de absoluto Os valores são, nesse caso, valores extremos, ou seja, adstritos à alternativa do “tudo ou nada” O conjunto das possibilidades sintáxicas oferecidas no espaço dos valores assenta, efetivamente, na categorização do complexo tensivo “intensidade/extensidade”:Universalização (aliança, aliagem) Exclusão (pureza)

Melhoração (acréscimo)

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Pejoração (contração)

3 CONFRONTAÇÕESNessa seção, cabe-nos, evidentemente, precisar o liame entre valor e valência: a valência apresenta-se como o elemento analítico do valor, e, de maneira mais corrente, como o “valor do valor” Cada uma das duas espécies de valores indicados, os valores de absoluto e os valores de universo, aplica-se às duas profundidades destacadas, a intensiva e a extensiva; em cada profundidade, dois operadores intervêm normalmente: para a profundidade intensiva, a abertura e o fechamento; para a profundidade extensiva, a triagem e a mistura Tanto num caso como52

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no outro, o imaginário semiótico pode ser concebido “a montante” como uma barragem – um “container” segundo P Aa Brandt – que, simultaneamente, deixa escapar e retém, de maneira que a soma das duas operações fica constante Por conseguinte, as valências próprias a essas operações permitem precisar a tipologia subsumida por cada classe de valores: a) os valores de universo supõem a predominância da valência da abertura sobre a do fechamento e a predominância da valência da mistura sobre a da triagem; em relação à primeira, a abertura vale como livre e o fechamento como restrito, ou até apertado; em relação à segunda, o misturado é avaliado como completo e harmonioso e o puro é depreciado como incompleto ou mesmo imperfeito ou desfalcado; b) os valores de absoluto supõem a predominância da valência do fechamento sobre a da abertura e a predominância da valência da triagem sobre a da mistura; em relação à primeira, o fechado vale como distinto e o aberto como comum; em relação à segunda, o misturado deprecia-se por ser disparatado (cf na isotopia religiosa, o profano, ou mesmo o sacrílego), e o puro aprecia-se justamente por ser absoluto, sem concessão (cf o sagrado) A rede das interações possíveis apresenta-se assim:Abertura/Fechamento Pureza/Mistura Valores de universo Valores de absoluto aberto = livre fechado = excluído aberto = comum fechado = distinto misturado = completo puro = incompleto misturado = disparatado puro = “absoluto”

Esse esboço confirma a relatividade atual do esquema narrativo: o “sentido da vida” obtido a partir da descrição proposta53

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por V Propp torna-se uma forma, entre outras, de vida possível, ciosa de sua coerência própria e de sua “originalidade”, ou seja, de sua distintividade A título de ilustração, evidentemente sumária, é fácil revelar, no caso de figura em que o fechado domina o aberto, que a apreciação do fechado encontrou no esnobismo uma manifestação quase institucional, enquanto a depreciação do aberto é nítida na pejoração que atinge, sem trégua, a chamada sociedade de consumo, de tal maneira que aqueles que ousam elogiá-la despertam suspeitas de serem “provocadores” adeptos do paradoxo A manifestação de uma classe de valores estabelece, para cada valor considerado isoladamente, o seu contexto, mas este último é tratado seja como um recurso, seja como um complemento O contexto não é um parâmetro secundário, mas primordial e tensivo Cada grandeza espera, pois, que o contexto fixe a orientação geral do universo de discurso, revelando sua chave axiológica: valores de

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absoluto ou valores de universo? A reflexão de Max Weber sobre as condutas éticas interessa-nos igualmente, já que o sociólogo chega a um resultado formalmente comparável ao que propomos: não há um sistema de valores, mas dois que estão, segundo Weber, numa relação de oposição abissal:“Toda atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas”16

Trata-se da ética dita de responsabilidade e da ética de convicção Seus programas narrativos respectivos parecem distinguir-se primeiramente do ponto de vista aspectual:“[] o partidário da ética de responsabilidade levará em conta justamente as fraquezas comuns do homem [] e considerará que não16

WEBER, M Le savant et le politique Paris, Bourgois, 10/18, 1963, p 206

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_VALOR pode se isentar, à custa dos outros, das conseqüências de sua própria ação na medida em que as tenha podido prever [] O partidário da ética de convicção sentir-se-á “responsável” apenas pela necessidade de preservar a chama da pura doutrina para que ela não se apague []”

Mas a diferença entre as duas orientações éticas vem à tona assim que as confrontamos com os modos de existência: (i) segundo a ética de convicção, a potencialização dos valores é erigida em absoluto, já que as conseqüências da ação são, de certo modo, virtualizadas e, assim, consideradas como “nulas e sem efeito”; (ii) segundo a ética de responsabilidade, a realização da ação é solidária à atualização dos valores Nos termos da rede apresentada anteriormente, a ética de convicção resgata sua incompletude exaltando sua pureza, enquanto a ética de responsabilidade deve sua completude a seu caráter misturado, ou seja, ao fato de assumir também o que Weber chama de lastimáveis conseqüências Admitiremos, grosso modo, que a ética de convicção procede a uma triagem, isolando a intenção, enquanto a ética de responsabilidade pertence à mistura, na medida em que recusa separar a intenção das conseqüências que decorrem de sua operação Essa convergência permite precisar o lugar da semiótica no seio das ciências humanas A semiótica deveria ocupar, em relação às ciências humanas, o lugar que a língua, segundo Hjelmslev, ocupa frente aos demais sistemas semióticos, e que decorre de sua capacidade de assegurar a traduzibilidade entre os outros sistemas Essa concepção era igualmente a de Greimas, que atribuía à semiótica a tarefa de propor às ciências humanas uma metalinguagem coerente, já que a semiótica pretende ser uma teoria da significação e as ciências humanas, sob um aspecto ou outro, exploram esta ou aquela ordem de significações Nesse caso, a função da semiótica não é ditar às ciências humanas suas hipóteses: ela encarrega-se apenas de estabelecer as condições de uma “boa” comunicação entre semiótica geral e semióticas singulares55

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O último ponto diz respeito à relação entre a moralização e a tipologia dos valores De fato, isso equivale a se perguntar como os discursos “se viram” para pôr em circulação os valores Desafiado pela tipologia dos valores, o discurso intervém, recorrendo à melhoração e à pejoração Com efeito, entre os dois grandes tipos de valores, os valores singulares, exclusivos e visando ao absoluto, e os

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valores universais, participativos e assumindo a relatividade, interpõem-se os valores melhorativos e os valores pejorativos, que se esforçam, de certo modo, para preencher o hiato que existe entre os dois tipos; mas essa compensação, por sua vez, submete-se a uma gradação De fato, o lugar atribuído ao regime concorrente, no interior de um regime axiológico dominante, pode ter maior ou menor importância: o regime tolerado e dominado estará, pois, ou em ampliação, ou em diminuição Lembremos, no entanto, que: (i) num micro-universo dirigido pelos valores de absoluto, a participação é obtida por melhoração: certos elementos considerados “bons” são adicionados; (ii) num micro-universo dirigido pelos valores de universo, a exclusão é obtida por pejoração: certos elementos considerados “maus” são retirados A variação da dosagem de cada uma dessas operações conduz às seguintes avaliações: a) Em regime de valores de absoluto: o aumento da melhoração produz a banalização; a diminuição da melhoração produz a rarefação b) Em regime de valores de universo: o aumento da pejoração produz a marginalização; a diminuição da pejoração produz a generalização Delineia-se, assim, uma sintaxe dos tipos de valores, que permitiria descrever a “vida” e a “morte” das axiologias e até o grau de interesse e de desinteresse dos sujeitos que as utilizam: a banalização, por exemplo, num regime de valores de absoluto, conduz, progressivamente, não à vitória dos valores de universo, mas a uma decomposição axiológica, assim como, num regi56

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me de valores de universo (uma democracia, por exemplo), a marginalização Imaginemos, por exemplo, um amor conforme o cânone platônico: cada um com seu par ou a alma-gêmea enfim reencontrada Enquanto o sujeito não procura outras razões para esse amor, ele está livre de qualquer inquietude, já que é o único a poder unir-se ao outro O lugar que ele ocupa na rede que acabamos de produzir é o da rarefação Mas se outras razões atingem seu espírito, razões que poderiam ser partilhadas pelos outros, nesse caso abre-se a via à banalização; enfim, se nosso sujeito chega a imaginar o objeto de seu amor como universalmente “amável”, o objeto amado torna-se agora um objeto difuso ao qual outros sujeitos, além dele, têm acesso O círculo trágico no qual se envolve o ciumento insere-se na tensão entre uma exclusividade de fato, que o ciumento atribui a si próprio, e uma participação de direito dos outros que o ciumento não pode deixar de admitir É como se a morfologia dos valores de absoluto, aos quais o ciumento se prende, fosse minada pela dos valores de universo que, no entanto, ele não pára de convocar Ao contrário, a “prostituição”, de que nos fala Baudelaire nas primeiras páginas de Fusées, parece justamente corresponder a um funcionamento hiperbólico dos valores de universo17 A pejoração e a melhoração confirmam-se como pontos de vista indispensáveis, pois que permitem diferenciar operações e grandezas que, sem isso, viriam a confundir-se Como já sublinhamos, o concentrado e o difuso não possuem significação em si: é o devir, a “dura lei” da correlação tensiva que faz sentido porque impõe inexoravelmente o enfraquecimento do termo correlato, quando, por exemplo, a exclusão leva à negação de17

“O amor é o gosto da prostituição Não existe sequer prazer nobre que não possa ser associado à prostituição/ Num espetáculo, num baile, todos desfrutam de todos/ O que é a arte? Prostituição/ O prazer de estar nas multidões é uma expressão misteriosa do desfrute da multiplicação do número []” [Tradução livre], in Œuvres complètes, op cit, p 1189

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Page 30: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

_VALOR

toda extensão, ou ainda quando a difusão extenua toda concentração Estamos agora aptos a atribuir aos diferentes tipos de valores um modo de existência próprio Mas, antes de tudo, introduziremos uma modificação na correspondência proposta no Dicionário de semiótica e retomada em Semiótica das paixões18 (cf capítulo “Presença”) da seguinte maneira:Realização Virtualização

Conjunção

Disjunção

Atualização Não-disjunção

Potencialização Não-conjunção

Esse remanejamento pareceu-nos necessário na medida em que (i) a acepção lingüística mais corrente da atualização é a de uma “subida” das estruturas virtuais em direção à manifestação e, por conseguinte, em direção à realização, e (ii) a potencialização, principalmente pelo efeito da práxis enunciativa, conduz a um retorno das formas do uso para o sistema ou, pelo menos, a uma memória esquemática que fica em seu lugar Desde então, podemos considerar que: (i) os valores de absoluto são virtualizantes porque são disjuntivos; (ii) os valores de universo são realizantes porque são conjuntivos; (iii) os valores melhorativos são atualizantes por serem não-disjuntivos: admitem algum suplemento no interior dos valores de absoluto;18

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 52

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_VALOR

(iv) os valores pejorativos são potencializantes por serem não-conjuntivos: suspendem, de um determinado elemento, a condição de pertencente aos valores de universo A partir disso, estamos aptos a afirmar que os grandes tipos de valores podem ser considerados como modos de existência do valor no interior das culturas individuais e coletivas e que esses se mostram, por isso mesmo, capazes de articular as modulações da presença e da ausência dos valores (cf capítulo “Presença”); os regimes de valores serão, então, reformuláveis em termos de densidade de presença para um sujeito sensível, e capazes de fundar sua “forma de vida” Além disso, a onipresença dos julgamentos melhorativos e pejorativos no discurso torna-se compreensível na medida em que esses pressupõem a escolha de um ponto de vista, ou seja, a preferência por uma valência e a negligência em relação a outra A pejoração, por exemplo, supõe que o acréscimo de intensidade tem por correlato um empobrecimento em extensidade Podese admitir, para utilizar uma imagem, que a pejoração é a antecâmara da exclusão, assim como a denegação da pejoração, quando intervém, permite prever uma reintegração próxima daquele que era ameaçado de exclusão

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

PRELIMINAR

É

INCÔMODO examinar essas duas noções, em razão da centralidade que lhes foi atribuída nas teorias hjelmsleviana e greimasiana: para Hjelmslev, a culminância da teoria da linguagem – mas não dos “prolegômenos” dessa mesma teoria – equivale a uma “ciência das categorias”, refutando a distinção tradicional entre sintaxe e morfologia:“Vê-se também que uma tal descrição sistemática da língua, efetuada à base do princípio de empirismo, não permite nenhuma sintaxe e nenhuma ciência das partes do discurso”1

No que respeita ao quadrado semiótico, para Greimas e Courtés,“Compreende-se por quadrado semiótico a representação visual da articulação lógica de uma categoria semântica qualquer”2

Mas a centralidade do quadrado semiótico não tem muito a ver com a da categoria na perspectiva hjelmsleviana: para Greimas e Courtés, a centralidade do quadrado semiótico provém da posição que se lhe designa no percurso gerativo, isto é, em última análise, no universo de discurso particular cujo simulacro o percurso gerativo tenta estabelecer, ao passo que, para Hjelmslev, a centralidade da categoria deriva do conteúdo exclu1 2

HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 107 GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 364

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

sivamente funcional que ela apreende Carregando um pouco nas tintas, o quadrado semiótico está no centro do discurso, e a categoria, no centro do discurso sobre o discurso Duas outras diferenças devem ser assinaladas: (i) as duas noções diferem em extensão Segundo a definição dada em Le Langage:“categoria, paradigma cujos elementos não podem ser introduzidos senão em certos lugares da cadeia, e não em outros”3

A categoria é, assim, uma singularidade situada na cadeia, ao passo que, para Greimas e Courtés, o quadrado semiótico, com as orientações previstas, deverá, ao cabo da descrição, revelar-se coextensivo à cadeia; (ii) para Greimas e Courtés, a articulação é dada como “lógica”, mas parece-nos mais judicioso considerá-la como “lógico-discursiva”; caso contrário, a teoria semiótica seria “apriorística” e “transcendente”, ou seja, contraditória com as premissas epistemológicas às quais, por outro lado, ela se vincula Para Hjelmslev, já não sucede o mesmo, se se admitir que o ensinamento da Catégorie des cas é mais claro que o dos Prolegômenos, visto ser a oposição participativa julgada mais pertinente para descrever os dados semióticos do que a oposição distintiva:

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“O princípio estrutural que dirige o sistema lingüístico dos casos é por definição pré-lógico A relação entre dois objetos, que é a significação dos casos, pode ser concebida por um sistema de oposições lógico-matemáticas ou por um sistema de oposições participativas Ora, só o sistema desta última espécie é que recobre os fatos da linguagem e permite descrevê-los pela via imediata Mas seria possível reduzir o sistema da lógica formal e o da língua a um princípio comum que poderia receber o nome de sistema3

HJELMSLEV, L Le langage Paris, Minuit, 1969, p 173

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO sublógico O sistema sublógico fundamenta o sistema lógico e o sistema pré-lógico ao mesmo tempo []”4

Cada uma dessas abordagens, em suma, proporciona à outra o que lhe falta: por um lado, a abordagem de Hjelmslev apresenta o “sistema lógico” preconizado por Greimas e Courtés como uma das soluções possíveis Por outro, a práxis descritiva proposta por Semântica estrutural e pelo Dicionário de semiótica permite aplicar o aparato teórico dos Prolegômenos à análise dos textos que Hjelmslev recomendava, sem todavia mostrar como abordá-la As conseqüências para o tratamento de tais noções no presente trabalho são duplas: em primeiro lugar, o tratamento do quadrado semiótico está subordinado ao da categoria, assim como o da espécie ao do gênero; em segundo lugar, o quadrado semiótico é especificado por sua orientação e pelo número reduzido de termos que contém Semelhante relativização afasta tanto a tentação do dogmatismo ortodoxo – o quadrado seria uma aquisição definitiva –, quanto heterodoxo: o quadrado teria caído em desuso, e seria chegada a hora de descartá-lo

1 RECENSÃOAs recensões respectivas das categorias e do quadrado semiótico são obviamente muito diferentes uma da outra O pensamento europeu deve as primeiras a Aristóteles; de acordo com D de Tracy:“As dez categorias são a substância, a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o tempo, a situação, ter, agir e padecer; ou seja – e isso foi bem observado pelos autores de Port-Royal –, ele [Aristóteles] quis reduzir a dez classes todos os objetos de nossos pensamentos, incluindo todas as substâncias na primeira e todos os acidentes nas nove outras”54 5

HJELMSLEV, L La catégorie des cas, op cit, p 127 TRACY, D citado pelo Littré, verbete “Catégorie”

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Kant transformará esse inventário em um sistema de quatro “dimensões”: a quantidade, a qualidade, a relação e a modalidade, cada uma admitindo três casos Perante tal herança, os lingüistas dividiram-se entre três atitudes: os que avaliaram que ela não lhes dizia respeito, os que – como por exemplo Benveniste – julgaram que as categorias decorriam da gramática da língua em que eram enunciadas, e enfim os que, como V Brøndal, consideraram que era necessário compor-se

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com elas 6 De outro ponto de vista, a partir das investigações antropológicas sobre a percepção, conduzidas nos anos 70 por Berlin e Kay, a psicologia americana, na pessoa de Rosch, mostrou como os sujeitos empíricos (os informantes empenhados em dispositivos experimentais) constroem as categorias necessárias à apreensão de seu meio ambiente Toda uma corrente da semântica contemporânea 7 , representada na França por G Kleiber8 , explorou os resultados de tais pesquisas sob a denominação de “semântica dos protótipos” Na verdade, trata-se antes da categorização pelos sujeitos psicológicos e culturais (na versão mais recente dessa teoria), categorização que opera por tipificação, e cabe indagarmo-nos se é legítimo projetar esse procedimento, bastante pertinente do ponto de vista psicológico e antropológico, na descrição semiolingüística da categoria Como quer que seja, uma vez admitida a variedade dos modos de construção psico-antropológica das categorias, o quadrado semiótico, reconhecido como específico de seu funcionamento discursivo, só pode considerar-se como produto de um desses modos de construção, como uma apreensão entre outras: aquela, justamente, que assenta nas “estruturas elementares” da significação6

7

8

BRØNDAL, V “Langage et logique”, in Essais de linguistique générale Copenhague, E Munsksgaard, 1943, p 48-71 Ver, em particular, RASTIER, Fr Sémantique et recherches cognitives Paris, PUF, 1991, p 180-236 KLEIBER, G La sémantique du prototype Paris, PUF, 1990

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

No que toca ao quadrado semiótico, se se aceitar vê-lo como um caso particular daquilo que A de Libéra denomina um “dispositivo quadrangular”9, então não será impossível vinculá-lo ao quadrado de Apuleio, para uns, de Aristóteles, para outros, o qual permite articular “quatro proposições diferenciadas pela quantidade e pelo caráter positivo (afirmativo) ou negativo do juízo que encerram”10 Tal filiação, entretanto, não é reivindicada por Greimas, e, se for preciso a qualquer custo designar “pais espirituais”, são antes os nomes de Hegel e Lévi-Strauss que vêm à mente O quadrado semiótico11 está contido em filigrana no último capítulo de Semântica estrutural, dedicado à obra de Bernanos, capítulo em que a referência a Hegel é explícita12 Mas é principalmente o modelo proposto por Lévi-Strauss no estudo intitulado “A estrutura dos mitos”13 que se menciona:“[] a nova formulação do modelo apresenta a vantagem de ser idêntica, quanto à forma de sua articulação, à da estrutura acrônica, imanente, do conto popular, assim como ao modelo do mito proposto por Lévi-Strauss”14

2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕESPARADIGMÁTICAS

O empreendimento greimasiano não pôde eludir o fato de que a lingüística européia, nos anos sessenta, estava marcada9

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10 11

12 13 14

LIBÉRA, A de “La sémiotique d’Aristote”, in NEF, F (Ed) Structures élémentaires de la signification Bruxelles, Complexe, 1976, p 28-55 Op cit, p 30 Sua primeira explanação sistemática deve-se a A J GREIMAS e RASTIER, F “O jogo das restrições semióticas”, in GREIMAS, A J Sobre o sentido Petrópolis, Vozes, 1975, p 126-43 GREIMAS, A J Semântica estrutural São Paulo, Cultrix, 1973, p 326 LÉVI-STRAUSS, C Antropologia estrutural Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975 GREIMAS, A J Semântica estrutural, op cit, p 302 Cf igualmente Greimas, “Por uma teoria de interpretação da narrativa mítica”, in Sobre o sentido, op cit, p 171-216

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

pela diversidade de postulações Numa perspectiva fundadora, cuja necessidade ninguém contesta, quatro direções epistemológicas marcavam suas posições: uma semiótica da diferença e do valor, herdeira declarada do Curso de lingüística geral de Saussure; uma semiótica da dependência preconizada por Hjelmslev; uma semiótica da oposição binária distintiva, formulada por Jakobson e ilustrada por Lévi-Strauss; enfim, uma semiótica da complexidade, proposta já com certa clareza por Brøndal Se é provável que sua contemporaneidade tenha salientado as diferenças, com o passar do tempo estas seriam paulatinamente atenuadas; de nossa parte, situamo-nos precisamente num ponto intermediário em que os desacordos e as convergências tendem a se equilibrar Em presença de tal diversidade, parece-nos que o empreendimento greimasiano apresentava-se como duplamente “ecumênico”: (i) ele foi capaz de provar que o aparelho conceptual, essencialmente “praguense”, previsto para dominar as distinções fonológicas, era transponível e aplicável ao tratamento da narratividade; (ii) o empreendimento greimasiano, perante as duas versões do estruturalismo, a “praguense” e a “dinamarquesa”, esforçou-se para conjugar a “letra” da versão praguense – temos em mente o empréstimo declarado a Jakobson quanto à tipologia das oposições elementares – e o “espírito” da versão dinamarquesa15, a saber: por um lado, a “teoria da linguagem” proposta por Louis Hjelmslev, não por ser a melhor, mas por ser esta, em certo sentido, a única que assegura de maneira coerente a continuação da revolução saussuriana (apesar da ampliação notável do foco); por outro lado, a importância da complexidade ressaltada por Brøndal:

15

ZILBERBERG, Cl “Greimas et le paradigme sémiotique”, in Raison et poétique du sens Paris, PUF, 1988, p 65-94

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO “[] minha principal dívida é para com Viggo Brøndal, que propôs uma combinatória sistemática das oposições morfológicas”16

Mas tal síntese põe entre parênteses a tensão entre essas duas correntes teóricas, tensão que não deixa de ressurgir, em particular na análise dos discursos A divergência entre as duas principais

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correntes do estruturalismo europeu provém do fato de a escola praguense admitir a existência de termos simples, e, quando fosse o caso, compostos, ao passo que para a escola dinamarquesa a complexidade é primeira e todos os termos são compostos – dado que, para Hjelmslev, “[] toda grandeza é uma soma”17 Esta posição descende em linha direta do Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes de Saussure, obra que demonstrara serem complexas as vogais longas, uma vez que associavam uma vogal breve e um “coeficiente sonântico” O progresso, se é que há algum, vai da ilusão da simplicidade ao reconhecimento da complexidade Preocupado em explicitar o que o separa dos praguenses, Hjelmslev afirma que dois modos de organização das entidades podem ser previstos: a rede e a hierarquia; define a primeira como “análise por dimensões”, a segunda como “análise por subdivisão” A análise por dimensões, que produz as “redes”,“consistiria em reconhecer, no interior de uma categoria, duas ou várias subcategorias que se entrecruzam e se interpenetram []”18

A partir daí, cada membro da categoria pode ser considerado como a intersecção de pelo menos duas dimensões e, por conseguinte, como composto por um mínimo de duas grandeNEF, F (Ed) Structures élémentaires de la signification, op cit, p 21 HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 89 HJELMSLEV, L Nouveaux essais, op cit, p 49

16 17 18

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zas Esse é, entre outros, o princípio da análise sêmica mais comum A análise por subdivisão, que produz hierarquias,“consistiria em repartir os membros da categoria superior em duas ou várias classes, das quais pelo menos uma comportaria ao menos dois membros”,

de tal forma que cada membro da categoria pode ser definido pela maneira (parcial ou total) como ocupa as casas obtidas por subdivisão A diferença entre as duas abordagens não é nada negligenciável:“A diferença operativa entre os dois procedimentos consiste no fato de se estabelecerem, na análise por dimensões, simultaneamente duas (ou várias) subcategorias que são absolutamente coordenadas, ao passo que, na análise por subdivisão, são estabelecidas sucessivamente duas (ou várias) subcategorias, a segunda das quais está subordinada à primeira (a terceira à segunda, e assim por diante se for o caso)”19

Acrescentemos que a intervenção das valências, que preconizamos no capítulo a seu respeito, requer a análise por dimensões É possível relacionar a tipologia dos termos primeiros a tal problemática Uma “análise por dimensões” não conhece senão termos complexos, obtidos a partir de pelo menos duas dimensões, enquanto uma “análise por subdivisão” encontra, ao mesmo tempo, termos complexos e termos simples Os textos fundadores do estruturalismo podem ser abordados como tomadas de posição nessa matéria Para o fundador da glossemática, todos os termos são complexos, ainda que pareçam simples Brøndal e19

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Op cit, p 50

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Greimas registram a existência de uns e outros, mas separam-se em seguida: as dominâncias brøndalianas são as mediadoras por excelência entre termos positivo e negativo, ou ainda – mas isso não está nítido – entre termos plenos e termo neutro; Greimas atribui aos operadores lógicos, contradição e implicação, a tarefa de conduzir de um contrário a outro Enfim, as oposições jakobsonianas referem-se, obviamente, a termos simples em si Para resumir: entre Hjelmslev e Jakobson, que optam exclusivamente, o primeiro pela complexidade, o segundo pela simplicidade, Brøndal e Greimas conjugam ambas as soluções A partir disso, definir uma relação paradigmática apenas pela alternância é visivelmente retirar-lhe ao menos metade do alcance Atingimos a inteligibilidade de uma relação paradigmática quando as três seguintes condições estão satisfeitas: (i) a relação paradigmática se insere no que propomos chamar, com Hjelmslev, uma rede, da qual a alternância paradigmática só representa uma parte, a parte “cega”, por assim dizer, já que a outra metade está faltando; (ii) uma rede compõe, por definição, dimensões distintas Nesse sentido, várias explanações no presente estudo mostram que as dimensões predominantes podem ser a intensidade e a extensidade; (iii) em cada dimensão operam correlações de valências, ora conversas, ora inversas, embora as incidências das correlações inversas sejam mais significativas e mais pungentes para os sujeitos do que as das correlações conversas Parece-nos que tais exigências se lêem indiretamente através das dificuldades, ou até das objeções, que jamais deixaram de acometer o quadrado semiótico: (i) o material operatório não é homogêneo, pois que o quadrado mobiliza por um lado a contrariedade e a contradição, e por outro lado a implicação, mas uma solução de continuidade subsiste, apontada por exemplo por B Pottier, que sempre insistiu no fato de que não-rico não implica necessariamente pobre; (ii) o caráter bidimensional do69

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quadrado é evidente no caso dos quadrados modais, que compõem ao menos dois predicados, e a solução proposta, a saber, o recurso ao “grupo de Klein”20, nada mais faz que dar uma forma ao problema, sem resolvê-lo; (iii) a despeito dos tesouros de ingeniosidade produzidos por Greimas, a diferença entre o modelo constitucional e o modelo transformacional permanece bem tênue, e tem-se o sentimento de uma simples variação de ponto de vista:“Uma nova interpretação da estrutura elementar da significação [] parece, a partir disso, possível: se a primeira procurava traduzir a maneira pela qual se supõe que o sentido se articula para ser apreendido enquanto significação, a segunda por sua vez permite compreender como a significação é produzida por uma série de operações criadoras de posições diferenciadas”21

Mas como, por outro lado, a significação não se apreende senão em sua transformação, a distinção permanece bastante frágil A reformulação da semântica fundamental a partir das premissas tensivas – projeto declarado nas primeiras páginas de Semiótica das paixões – deve, para atingir o fim que se propõe, ser capaz de compor os seguintes dados: (i) ela toma a forma de uma rede que associa ao menos duas dimensões ligadas por uma função, conforme a definição proposta pelos Prolegômenos: “Uma dependência que preenche as condições de uma análise será denominada função”22; (ii) toda

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grandeza, cuja pertinência à rede esteja demonstrada, deve por isso mesmo ser considerada como complexa: se a rede compreender duas dimensões, A e B, a defini20

21 22

COURTÉS, J Analyse sémiotique du discours Paris, Hachette, 1991, p 136-60; FONTANILLE, J Le point de vue dans le discours - de l’épistémologie à l’identification, Tese de doutorado de Estado, Univ Paris III, 1984, primeira parte In Structures élémentaires de la signification, op cit, p 22 HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 39

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ção de uma grandeza será do tipo: [(valência de A) + (valência de B)] Observemos apenas que Greimas, nas primeiras páginas de Semântica estrutural, estabelecia a complexidade do lexema “tête”, mas sem assinalar a tensão entre as duas dimensões da /extremidade/ – intensiva? – e da /esfericidade/ – extensiva? Existe, contudo, um isomorfismo inegável entre os termos concebidos como “pontos de intersecção de [tais] feixes de relações” e a rede formada pela “interpenetração” das dimensões22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

A questão que se nos apresenta no momento é a seguinte: se a rede vale como sistema, que processo lhe corresponde? Em outros termos, qual o teor da sintaxe adequada à rede? Seria no mínimo estranho que a sintaxe fundamental prevista por Greimas, sintaxe que opera por contradição [s1 → não s1] e implicação [não s1 → s2], conviesse à rede Não pareceria menos estranho, porém, que as operações próprias da rede fossem totalmente alheias à sintaxe fundamental A principal censura dirigida à sintaxe fundamental sempre incidiu sobre a implicação: esta era incumbida de proporcionar o “suplemento” que a contradição era incapaz de fornecer, a não ser que excedesse sua própria definição Se a implicação constitui uma dificuldade, é aparentemente por supor uma homogeneidade da categoria que a contradição, por sua vez, coloca em xeque, negando o eixo semântico e abrindo uma infinidade de possíveis capazes de desestabilizar a categoria23 Para que “não-pobre” possa implicar “rico”, parece necessário, segundo essa objeção, postular-se antes de mais nada uma redução de todos os gradientes subjacentes, para se atingir o menor número possível de posições A objeção de B Pottier23

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J “Le beau geste”, RSSI, 13, 1-2, 1993, p 21-35

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recai justamente, entre outras coisas, sobre a legitimidade de tal redução, na medida em que há uma infinidade de maneiras de não ser “pobre”, a maioria das quais não consiste em ser “rico” A versão sintáxica do mesmo problema é ainda mais clara, pois, se a contradição representa o abandono do domínio de A por negação, a asserção correspondente à implicação permite reintegrar-se no domínio de B: vale dizer que a negação e a asserção só podem atuar entre os domínios A e B,

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mas não no interior de cada um deles, e, por conseguinte, cada subdomínio constitutivo da categoria é considerado como simples e não graduável Pode-se contudo vislumbrar uma solução, à qual retornaremos, e que se deve ao fato de a negação pluralizar, ao passo que a asserção reduz e concentra: os operadores do quadrado semiótico, e em particular a seqüência [contradição → implicação], parecem gerir em segredo uma componente quantitativa, isto é, extensiva Conseqüentemente, conforme as hipóteses formuladas a respeito das valências e valores, como a extensidade não poderia atualizar-se sem afetar a intensidade (e reciprocamente), essa dependência nos autoriza a supor, subjacentes às operações canônicas do quadrado semiótico, correlações entre a intensidade e a extensidade De resto, esqueceu-se muitas vezes que o princípio da comutação, na medida em que garante o valor de uma oposição, implicava estar toda alternância paradigmática ligada, em discurso, a pelo menos uma outra alternância O que se traduz pelo fato – cabal evidência que não seria inútil recordar aqui – de que a “pobreza” entrará em isotopias diferentes conforme apareça, por exemplo, num conto folclórico ou nos Evangelhos No primeiro caso, ela será tratada dentro da isotopia social, como uma figura do não poder fazer individual; no outro, dentro da isotopia da sensibilidade à palavra divina, quer dizer, na verdade, como um poder saber ou poder sentir72

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Isso equivale a dizer que as relações lógico-discursivas próprias à categoria constituem-na apenas em razão da correlação que associa a dimensão “pobreza/riqueza” a outras dimensões, como poder fazer/não poder fazer, num caso, ou “humildade/orgulho”, “sensibilidade/insensibilidade à palavra divina” De tal forma que, mais concretamente, o “pobre” do Evangelho não se contenta em desfazer-se de seus bens (negação), por causa da insensibilidade à palavra de Deus que estes provocam, mas ele deve, além disso, asseverar a “pobreza” – dentro da relação de implicação – em virtude da nova capacidade que dela decorre, o que lhe permitirá, então, acolher plenamente essa mesma palavra De certa maneira, a contradição visava a dissociar duas dimensões agindo sobre uma só delas, enquanto a implicação-asserção sela definitivamente sua solidariedade A “condução teleológica” que, segundo P Ricoeur, dirigiria sub-repticiamente as operações sintáxicas profundas24 , poderia receber uma descrição em termos de correlações entre isotopias do discurso No caso específico da implicação-asserção, que “arremata” o percurso no quadrado, seus mistérios poderiam ser solucionados se se admitisse que não há categoria simples ou isolável, sobretudo em discurso, e que a redução final imposta pela implicação é na verdade guiada por um foco pertencente a outra dimensão, correlativa da primeira Esse raciocínio, desenvolvido a propósito de uma correlação externa, poderia ser utilmente reaplicado à complexidade interna do próprio quadrado semiótico Se se partir, não do termo simples “rico” que, na realidade, não tem qualquer direito à existência antes do desdobramento de todas as suas relações constitutivas, mas sim do complexo ainda indiferenciado “pobreza/riqueza”, que a somação identificou como zona de uma cate24

ARRIVÉ, M & COQUET, J-C Sémiotique en jeu Paris/Amsterdam/Philadelphia, Hadès/ John Benjamins, 1987, p 293-7, bem como RICOEUR, P “Entre herméneutique et sémiotique”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 7 Limoges, PULim, 1990

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goria, a contradição tenta dissociar as dimensões que lhe são correlatas, e depois a implicação vem restabelecer-lhes a solidariedade indissolúvel Desse ponto de vista, a implicação/asserção não pressupõe uma (duvidosa) homogeneidade da categoria, mas, ao contrário, ela a constrói contra todas as tendências dispersivas que se expressam Noutras palavras, cada um tem liberdade para imaginar um domínio semântico aberto e heterogêneo, em que certas formas da “não-riqueza” ou da “não-pobreza” nos fariam simplesmente sair da categoria: o “não-rico” e o “não-pobre” deixariam, então, de ser afetados pela alternância “riqueza/pobreza”, e não haveria implicação capaz de convencê-los a completar o percurso no quadrado, ou seja, declarar-se, o primeiro, “pobre”, e o segundo, “rico” Mas, justamente, esse domínio aberto e heterogêneo não está organizado pela pressuposição recíproca “riqueza/pobreza”, pois “riqueza” e “pobreza” só se pressupõem uma à outra de maneira estrita se “não-pobre” implicar “rico”, e se “não-rico” implicar “pobre” Com relação à complexidade interna da categoria, a sintaxe fundamental tenta, portanto, dissociar as dimensões: tratar à parte pelo menos metade da rede, para depois reuni-las O processo, para abarcar as duas partes da rede, se vê então obrigado a recorrer a uma espécie de “jeitinho”, a implicação, que nada mais é, como procuramos mostrar, que a reafirmação final da unidade de uma categoria Talvez seja aqui a ocasião – mas voltaremos a isso – de distinguir uma categoria semântica, que requer a interdependência estrita da pressuposição recíproca e das implicações, de um simples domínio semântico, ou “campo”, no dizer de certos autores, o qual seria muito mais tolerante, deste ponto de vista Se a semântica lingüística, e particularmente a lexical, na medida em que manipula conjuntos já selecionados, limitados ou depurados, pode a rigor satisfazer-se com os domínios, a semiótica discursiva deve, em contrapartida, chegar a construir categorias,74

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

que ofereçam aos conjuntos vastos, diversos e heterogêneos que ela manipula, o mínimo de coerência necessário à inteligibilidade do discurso É simples fazer um balanço: se a contradição caracteriza a dissociação da rede e se a implicação lhe assegura a existência e a coerência, ou seja, a pressuposição recíproca das duas “semi-redes”, então a implicação deve ter prioridade sobre a contradição Observemos, antes de mais nada, que, ao adotar essa definição da estrutura, colocamo-nos deliberadamente na perspectiva de uma semiótica da dependência e da complexidade Uma semiótica da dependência é uma semiótica fortemente implicativa, que atribui ao [se → então] (e à sua inversão concessiva) uma �força ilocutória � superior; essa apresentação, contudo, é incompleta O operador adequado à rede é na realidade, como sugerimos, a comutação, em que Hjelmslev via o sustentáculo do método lingüístico e que ele incluiu na “estrutura fundamental de toda língua, no sentido convencional” Se nos colocarmos decididamente na perspectiva da rede de dependências, limitando-nos ao caso em que esta assenta na intersecção de duas dimensões, obteremos as seguintes posições, selecionando os valores a e b numa dimensão, e c e d na outra: a b c ac bc d ad bd

A comutação supõe que os valores a e b numa determinada dimensão “reclamem”, impliquem, isto é, selecionem respectivamente os valores c e d em outra dimensão sempre ligada à primeira, de tal sorte que, ao cabo dessa seleção, conservamos apenas meia rede:

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

a b

c ac

d bd

A dependência e a diferença respondem assim pela estrutura: a dependência toma a forma das duas implicações, [ se a, então c ] e [ se b, então d ], enquanto a diferença produz a distinção pressuposta: [ a ⇔ b ], e sua réplica pressuponente: [ c ⇔ d ] Em outras palavras, a disjunção entre os dois primeiros complexos advém por causa da correlação entre as duas dimensões: é porque [ a ] e [ b ] selecionam respectivamente [ c ] e [ d ] (relações de dependência “eletivas”) que [ a ] e [ b ] por um lado, [ c ] e [ d ] por outro, estão disjuntos (relações de diferença) A dependência “cria” a diferença, mas não por si só Uma semiose recorre a certas possibilidades do “sistema sublógico”, mas não a todas, ou não na mesma perspectiva: ela leva em conta aqui [ a - c ] e [ b - d ], mas “ignora” ou põe no segundo plano os dois outros complexos possíveis [ a - d ] e [ b - c ] E tal procedimento, ou orientação, são inerentes à própria significação, pois se todos os possíveis fossem manifestados, no plano da expressão bem como no do conteúdo, o sujeito só se veria às voltas com universais e ficaria na impossibilidade de articular o sentido Noutros termos, a dependência só pode produzir a diferença se ela for “eletiva”; essa seria, provavelmente, uma das operações constitutivas para a somação: no interior de uma dimensão qualquer, uma grandeza, por exemplo, a “pobreza”, elege uma grandeza pertencente a outra dimensão, por exemplo a “humildade”, e, ao fazê-lo, cria a possibilidade de uma diferença com as outras grandezas de sua própria dimensão Com efeito, a oposição entre “pobreza” e “riqueza” é apenas de escala, enquanto a correlação com a dimensão “humildade-orgulho” não lhe conferir valor e orientação (no caso, “pobre” → positivo, e �rico � → negativo)76

_CATEGORIA QUADRADO SEMIÓTICO

De certa maneira, a comutação significa que �se� muda de valor sem no entanto sair do sistema Ela confirma, de alguma forma, a eleição operada inicialmente: [ se a, então c ] mas [ se b, então d ] Sair do sistema seria mudar a relação eletiva entre grandezas Se se admitir, considerando-se o complexo tensivo em que tais dependências se instauram, que cada dimensão [ a - b ] e [ c -d ] é um gradiente e cada grandeza solicitada [ a, b, c, d ] é uma posição num gradiente, então o procedimento de “eleição” que estamos expondo pode ser interpretado como o “estabelecimento de uma correlação” entre dois gradientes De acordo com o princípio estabelecido especialmente no capítulo sobre as valências, dispomos, no caso, de duas possibilidades: a correlação conversa, que permite uma eleição “direta” entre grandezas de mesma ordem, e a correlação inversa, já entre grandezas de ordem simétrica Além disso, de um ponto de vista sintáxico, a concessão – a relação inversa – pressupõe a implicação – a relação conversa – na medida em que a contradiz Se pudermos admitir que as quatro entidades complexas [ a - c ] e [ b - d ] por um lado, e [ a - d ] e [ b - c ] pelo outro, constituem os termos da estrutura, cuja diferença, como já ressaltamos, provém de dependências “eletivas”, o jogo estrutural poderá então adotar, no caso em que apenas duas dimensões estejam correlacionadas, as duas formas seguintes:

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+ b S2

+ b S2

a – –

S1 a – c d + –c

S1 d +

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Se, no interior de cada correlação, é a “eleição” de uma grandeza por outra que faz emergir a diferença, entre duas correlações o processo é bem outro: para saber se a correlação é conversa ou inversa, não basta identificar quais grandezas “elegem” quais outras grandezas: é preciso, além disso, poder comparar globalmente os gradientes e suas respectivas orientações Vale dizer, este segundo tipo de diferença põe em jogo, não este ou aquele grau, mas as dimensões no seu conjunto, ou seja, literalmente a orientação e a coerência da rede Aqui também, uma dependência (a correlação) faz emergir uma diferença entre duas maneiras de associar duas orientações; na realidade, a diferença ou a semelhança entre as orientações, conversa ou inversa, de cada dimensão, só aparece contra o fundo da dependência – a correlação – que obriga a compará-las e adotar uma ou outra solução Para tomar um exemplo já bem conhecido, o das modalizações veridictórias, sabe-se que por definição e por construção, desde os anos 70, cada posição é definida como um termo complexo que conjuga as dimensões do ser e do parecer Admitindo-se, por hipótese, que as duas dimensões são graduais – não é absurdo supor que, a exemplo do que ocorre alhures, o ser possa ser graduado conforme a intensidade e o parecer conforme a extensidade –, obtêm-se, mediante correlação conversa ou inversa, os dois seguintes esquemas:+ ser VERDADE + ser SEGREDO

não-ser – – nãoparecer

FALSIDADE FALSIDADE

não-ser – – nãoparecer

ILUSÃO

parecer +

parecer

+

78

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

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Parece, pois, que, a partir de uma semântica do contínuo, da dependência e da complexidade, pode-se pensar em distinguir dois tipos de diferenças: (i) uma diferença interna, própria a cada correlação, tal que a variação entre s1 e s2 – o percurso no arco de correlação – possa ser tratada de maneira contínua, em função de graus selecionados em cada uma das duas dimensões; (ii) uma diferença entre duas correlações que, qualquer que seja a solução adotada, só pode ser descontínua, pois não há passagem contínua possível entre os dois arcos de correlação Concreta e intuitivamente, sabe-se que a ilusão e o segredo possuem um comprometimento mútuo: difícil falar, por exemplo, numa ilusão que não corresponda a um segredo, ou num segredo que esteja mais bem guardado do que por trás do anteparo de uma ilusão Cada correlação se apresenta, portanto, como uma perspectiva homogênea sobre o complexo de ser e parecer, em que os dois termos opostos são, apesar de tudo, solidários, podendo estar até mesmo associados numa única estratégia discursiva: nesse sentido, eles obedeceriam à regra de pressuposição recíproca, e poderiam ser tratados como contrários Conseqüentemente, a partir do momento em que se tenta sintetizar as duas correlações em um único sistema quadrangular, a passagem de uma correlação conversa para uma correlação inversa deve processar-se como uma revolução interna à correlação: esta não se encontra suspensa, por certo, mas a orientação dos gradientes está invertida No interior da categoria, tem-se de escolher obrigatoriamente uma das soluções, e cada uma delas exclui a outra Essas diferentes propriedades nos levam a reconhecer aí uma interpretação plausível da contradição O exemplo da veridicção mostra cabalmente que tal síntese é incompleta, pois que temos ainda a escolha entre duas soluções, se dispusermos “horizontalmente” os dois pares de contrários, e “verticalmente” as duas correlações contraditórias:

79

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

(I)

Verdade Segredo

Falsidade Ilusão

OU

(II)

Verdade Ilusão

Falsidade Segredo

A questão é a seguinte: quando partimos efetivamente de um complexo que engendra as modulações da tensão entre duas dimensões, como reconhecer, por exemplo, a modulação que corresponderia ao contraditório apriorístico “não verdade”? Como a contradição, aqui, é global – entre duas orientações da correlação, isto é, entre duas formas de complexidade –, não se pode logo de saída decidir que se trata do segredo ou da ilusão É então que o valor e o papel da implicação na estabilização do quadrado semiótico aparecem plenamente Com efeito, se o segredo implicar a verdade (solução I), isso significa que é o ser, igualmente positivo em um como no outro, que está

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na posição de selecionar, ou o parecer (verdade), ou o não-parecer (segredo); no que toca à implicação [ilusão → falsidade], seria o não-ser que desempenharia o mesmo papel, de tal sorte que somos levados a afirmar que, no que concerne à primeira solução, é a dimensão do ser que é decisiva, na medida em que são as grandezas que a compõem que são “eleitoras” (ou selecionantes) Em contrapartida, se a ilusão implicar a verdade (solução II), isso significa que é o parecer (igualmente positivo num e noutro) que, desta vez, está em posição de selecionar quer o ser (verdade), quer o não-ser (ilusão); na outra implicação, o não-parecer tem o mesmo papel, confirmando assim a função selecionante da dimensão do parecer Em suma, a implicação continua a garantir aqui a homogeneidade (ou, em termos discursivos, a isotopia) da categoria; no entanto, ela está condicionada pela distribuição dos papéis – eleitor/elegível, selecionante/selecionado – entre duas dimensões correlatas (ao mesmo tempo em que revela essa distribuição): a80

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

categoria veridictória, por exemplo, muda de disposição conforme a dimensão selecionante seja a do parecer ou a do ser

3 CONFRONTAÇÕESO primado da rede e, num âmbito mais geral, da complexidade, sobre a oposição binária, incita-nos a examinar sua repercussão na noção de ponto de vista De fato, por relação à rede, o ponto de vista não escapa ao seguinte dilema: operar, após seu desligamento, quer com uma só dimensão: [ac ⇔ ad] ou [bc ⇔ bd], quer com duas dimensões: [ac ⇔ bd] No primeiro caso, o ponto de vista informa, dentre c e d, qual é o termo positivo; no segundo caso, informa qual é a dimensão diretora Consideremos a máxima de La Rochefoucauld: “A fraqueza se opõe mais à virtude do que o vício” (Máxima 445): ao invés de separar as dimensões do querer e do poder, essa máxima solda-as uma à outra, de tal sorte que a única via de diferenciação – como já indicamos no capítulo “Valor” – é a da melhoração e da pejoração; por conseguinte, a pejoração afeta o querer e a melhoração incide sobre o poder, e a virtude e o vício podem ser parcialmente identificadas em razão da “força” que requerem, e da “fraqueza” que repelem Nosso segundo exemplo será tomado a Baudelaire No primeiro verso da peça LXXVIII das Flores do Mal:“Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle”25

o “céu” acrescenta às dimensões em uso – a luminosidade, a superatividade espacial – as dimensões, inesperadas, da gravidade e da compacidade; ao fazê-lo, esse primeiro verso opera uma comutação do ponto de vista: como a profundidade tátil vem to25

“E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça” Tradução de Jamil Almansur Haddad São Paulo, Difel, 1958 [N dos T]: Em razão do semantismo que liga “baixo” a “grave”, propomos também a tradução literal: “Quando o céu baixo e grave pesa como tampa”

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

mar o lugar da profundidade visual, o “céu” fica ameaçado de promiscuidade com o “cá embaixo” Surpreendente, a metáfora indica uma mudança de regime: o “céu”, protegido, por assim dizer,

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pelo regime da triagem (a separação, a distância), cai sob o regime, pejorativo, da mistura (a promiscuidade) Dessa maneira, a metáfora procederia, em geral, a uma comutação de pontos de vista da mesma natureza, e a “grande” metáfora – a que, de acordo com Proust, “é a única a poder dar uma espécie de eternidade ao estilo, []” – é aquela que transfere uma dada grandeza de um campo categorial para o campo diametralmente oposto, por exemplo do ser para o fazer, da pessoa para a não-pessoa, do evento para a repetição, etc26 Assim, a metáfora homérica, “a aurora dos dedos de rosa”, projeta a aurora da não-pessoa para a pessoa, do amorfo para o eidético, da luminosidade para o cromatismo Se a metáfora violenta realmente a práxis enunciativa, compreende-se que tenha sido considerada, com a ajuda do tempo, como a “rainha” das figuras, a despeito dos louváveis esforços envidados por Jakobson e LéviStrauss para pôr a metonímia no mesmo patamar A proximidade com as propostas – e as denominações – de R Blanché em seu livro intitulado Structures intellectuelles são demasiado eloqüentes para serem ignoradas Fica difícil, considerando-se os limites que nos impomos, reproduzir aqui o encaminhamento, muito técnico, do autor Os procedimentos de engendramento dos diferentes postos são diferentes: enquanto, para Greimas, trata-se de passar de “dois” a “quatro” e, depois, mediante outras operações, de “quatro” a “seis”, para R Blanché trata-se, antes, de passar de “três” a “seis” Em segundo lugar, o papel da implicação parece menor na abordagem de R Blanché do que na de Greimas

26

Essa é a tese do Grupo µ, em Rhétorique de la poésie (Paris, Complexe, 1977, rééd Points Seuil, 1990), visto que, para eles, a dimensão retórica do discurso poético opera por mediação entre os grandes universos disjuntos que são o logos, o cosmos e o anthropos

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Duas dificuldades aparecem, ligadas ao postulado da complexidade, e ao jogo das valências que é sua expressão operatória Para o que irá chamar-se, em semiótica, de isotopia passional, R Blanché propõe a seguinte “héxada completa”27:Patia

YFilia Fobia

AAfobia

EAfilia Apatia

I

O

U

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Cabe primeiramente indagar-se a respeito da natureza exata dos postos Y (patia) e U (apatia): a nosso ver, eles são menos termos engendrados pelas relações próprias à héxada do que os próprios eixos semânticos, quer dizer, o denominador comum aos termos contrários Em segundo lugar, as dissensões [ A – I ] e [ E – O ] seriam de ordem lógica, ou seriam manifestantes de uma diferença de intensidade (ou de quantidade), em continuidade com os constituintes mesmos do quadrado de Aristóteles? Como quer que seja, fica fácil transpor tais dados para a estrutura comutativa que sugerimos, ou seja, para uma rede:Tonicidade (Y) Atonia (U) Conjunção filia (A) afilia (O) Disjunção fobia (E) afobia (I)

27

BLANCHÉ, R Structures intellectuelles Paris, Vrin, 1969, p 104

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Se o direito à “arbitrariedade” em matéria de teoria é imprescritível, o mesmo já não se verifica no que tange à sua “aplicabilidade” As vicissitudes da paixão [ filia ⇔ fobia ], por exemplo, a conversão do amor em ódio28, advêm porque a �tonicidade � é conservada, por assim dizer, intacta Quanto ao que se deveria denominar, rigorosamente, �a aforese �, isto é, a �perda � [tonicidade → atonia], uma máxima de La Rochefoucauld dá a medida de sua complexidade:“Raríssimas são as pessoas que não têm vergonha de se haverem amado quando já não se amam” (Máxima 71)

Tudo se passa como se a negação da “filia” fosse impossível; como se a paixão, embora acabada, conservasse um resíduo de intensidade que tenderia a se atualizar numa forma degradada da paixão contrária Mais uma vez, o que parece estar em questão é o conteúdo exato da negação e sua relação com a intensidade A negação é incontestavelmente do âmbito da textualização, onde, de maneira geral, ela se manifesta sem variação observável; mas, em profundidade, as coisas aparecem sob outra luz: a negação impõe uma seqüência única e sincrética a descontinuidades muito diversas e perfeitamente provisórias, próprias às culturas e às mudanças qualitativas que tais descontinuidades determinam mediante comutação Em suma, a negação é condicionada, e quiçá até analisável, de forma que se pode pôr em dúvida seu caráter de primitiva Acrescentemos, enfim, que R Blanché propõe como “estrutura perfeita” o seguinte “hexágono da igualdade”29, que organiza as diferenças de grandezas:28 29

FREUD, S Introduction à la psychanalyse Paris, Payot, 1971, p 323 BLANCHÉ, R Structures intellectuelles, op cit, p 64

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

= > > < <

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Page 46: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

= Para o lingüista e o semioticista, essa apresentação não é nada evidente Considerar que a igualdade, a superioridade e a inferioridade formam uma tríade de contrários é negligenciar o fato de que as contrariedades não são de mesma ordem: a contrariedade [igualdade/desigualdade] é primeira, e a contrariedade [superioridade/inferioridade] é segunda Duas outras diferenças devem ainda assinalar-se: a superioridade e a inferioridade são identificáveis uma à outra conforme a seguinte regra elementar: se a for maior que b, então b é menor que a, de modo que se está lidando com uma reciprocidade, e não com uma contrariedade no sentido estrito Enfim, a igualdade e a desigualdade pressupõem, como indicou Sapir, uma “gradação” que pode estender-se, quer por ultrapassagem de seu limite inferior ou superior, quer por segmentação interna, de sorte que bastam três termos para se introduzir uma complexidade irredutível Assim, Sapir mostra que as posições significam, antes de mais nada, que uma transitividade está interrompida:“[] a, b, c devem ser os únicos membros da série a ser classificada em gradação; nesse caso, c é ‘o melhor’, não porque seja melhor que a e b, mas porque não existe qualquer outro membro da série que seja melhor que ele [] c deixará de ser ‘o melhor’ assim que outros membros, d, e, f, n acrescentem-se à série, muito embora ele ainda permaneça ‘melhor’ que certos outros membros já fixados da série []”30

Sapir encontra-se aqui na mesma linha de Greimas, quando este último escreve:30

SAPIR, E Linguistique Paris, Folio-Essais, 1991, p 242

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO “Em lingüística, as coisas se dão de maneira diferente [do que ocorre em lógica]: o discurso, aqui, conserva os rastros de operações sintáxicas anteriormente efetuadas: []”31

Por outro lado, as relações entre o 4-grupo de Klein e o quadrado semiótico poderiam ser precisadas graças à teoria das valências De fato, o grupo de Klein se apresenta globalmente como a conjugação de duas transformações aplicadas a uma mesma grandeza, como em Piaget, implicitamente retomado por J-C Coquet, quando este propõe seu diagrama das seqüências modais da identidade subjetal: q-ps sp-q O autor comenta:“Esse quadrado é construído formalmente de acordo com as operações involutivas (logicamente, da contrariedade) e da inversão (logicamente, da implicação)”32

não q-ps não sp-q

Os parênteses acrescentados pelo autor assinalam, justamente, o que cumpriria demonstrar: dispõe-se de um jogo de grandezas modais, às quais se aplicam conjuntamente a inversão e a negação, mas não se sabe como, e nem mesmo se, se pode passar assim da contrariedade à implicação, ou seja, a um quadrado semiótico Outra configuração, freqüentemente representada nos chamados quadrados modais, é aquela em que o grupo de Klein consiste em aplicar uma mesma operação a duas grandezas31 32

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 366 COQUET, J-C Le discours et son sujet I e II Paris, Klincksieck, 1984-85, p 39

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Page 47: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

conjugadas; em vez de duas operações combinadas, lida-se nesse caso com uma única operação cujo alcance varia:Querer fazer Não querer não fazer Querer não fazer Não querer fazer

Mas esse caso pode ser facilmente assimilado ao primeiro, mais geral, contanto que se considere que as duas negações não têm, aqui, o mesmo estatuto: uma incide sobre o predicado de base (sobre o pressuponente: neste caso, o fazer), e a outra, sobre o predicado modal (sobre o pressuposto: neste caso, o querer); mesmo em lógica, e com maior razão em lingüística e semiótica, já não há que demonstrar que a negação do pressuposto e a do pressuponente não possuem nem o mesmo estatuto semântico, nem as mesmas conseqüências pragmáticas, o que implica que os termos assim engendrados, por não terem o mesmo estatuto, não são homogêneos Poderíamos contentar-nos, portanto, com a seguinte definição geral: o 4-grupo de Klein forma-se a partir da aplicação de duas operações ou duas variedades de uma mesma operação a uma grandeza ou um conjunto de grandezas previamente definidas E é aqui, de fato, que está a dificuldade: o grupo de Klein, ao contrário do quadrado semiótico, não define os termos que manipula, ele define apenas as posições que estes ocupam; o quadrado semiótico produz, graças a suas relações constitutivas, posições que definem os termos de uma categoria, ao passo que o grupo de Klein parece pressupor a existência de tais termos, para atribuir-lhes a posteriori as respectivas posições Essa era, em essência, a objeção – oral – de Greimas Com efeito, o grupo de Klein se aparenta ao que denominamos aqui uma rede de dependências; duas constatações corrobo87

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

ram essa afirmação: em primeiro lugar, não há grupo de transformações a não ser que duas operações estejam correlacionadas; ademais, na quase totalidade dos exemplos encontrados em semiótica, essas operações não se aplicam a uma grandeza isolada, e sim a pelo menos duas grandezas correlatas, ou seja, a uma forma complexa Disso dá testemunho o quadrado da identidade modal em J-C Coquet, uma vez que, longe de se limitar a uma combinatória formal de grandezas simples, ele trata explicitamente das relações de dominância (dominância do querer ou dominância do saber) no interior de um dispositivo modal complexo Decorre daí, imediatamente, uma primeira conseqüência Se o grupo de Klein, tal como se utiliza em semiótica, manipula correlações de grandezas e operações, supõe-se que ele se aplique a gradientes e valências, o que nos leva, por exemplo, a reinterpretar a predicação modal como um elo tensivo entre dois gradientes; a modalização do fazer pelo querer, por exemplo, poderia então conduzir a dois tipos de correlações: (i) duas correlações conversas, fundando modalizações implicativas: se “mais” querer, então “mais” fazer; se “menos” querer, então “menos” fazer; (ii) duas correlações inversas, fundando modalizações concessivas: apesar de “mais” querer, ainda assim “menos” fazer; apesar de “menos” querer, ainda assim “mais” fazer As modalizações implicativas, fundando-se em correlações conversas, consagram a força do vínculo modal (querer fazer e não querer fazer); as modalizações concessivas, assentadas em correlações inversas, exprimem o enfraquecimento desse mesmo laço modal (querer não fazer e não querer não fazer) Conseqüentemente, o raciocínio que desenvolvemos para analisar a passagem de uma rede de valências a um quadrado semiótico pode ser reproduzido aqui, na medida em que o grupo de Klein, tal como é usado em semiótica, nada

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mais é que a representação especificada de uma rede de dependências O exemplo do quadrado da veridicção, acima evocado, é particularmente88

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

claro a esse respeito, uma vez que o problema por ele colocado já foi abordado tanto através do grupo de Klein33 , quanto – como fazemos aqui – em termos de resolução de uma grandeza complexa Vale dizer, o grupo de Klein, a exemplo do quadro cartesiano em que se insere a rede, não é uma solução à questão da complexidade e da tensividade que ele exprime: tudo o que faz é proporcionar-lhe uma aparente forma lógica e gráfica A explicação, por sua vez, reside no mecanismo tensivo das correlações de valências Por outro lado, o quadrado semiótico e a categorização em geral receberam, com os trabalhos de R Thom e J Petitot, uma interpretação nos termos da teoria das catástrofes Não cabe aqui avaliar o impacto e o alcance da teoria das catástrofes em semiótica Assinalemos apenas que o princípio mesmo da diferença de potencial, que aliás não é apanágio dessa teoria, mas do qual ela faz uso, e que ultrapassa em muito as questões relativas ao quadrado semiótico, poderia ser uma boa reformulação da noção de “tensão”; ainda assim, restaria poder justificar o ganho de semelhante reformulação Mas se se examina mais de perto a argumentação de J Petitot, percebe-se logo que a eleição de uma matemática topológica funda-se afinal, em termos diferentes dos nossos, na preocupação de fazer emergir as diferenças a partir de redes de dependências Com efeito, assimilar as oposições constitutivas de uma categoria sêmica ao “valor posicional” de suas determinações é privilegiar o “princípio de conexão”, tomado explicitamente a Geoffroy Saint-Hilaire; a opção efetuada e sua motivação estão claras, pois que se trata de mostrar“como conexões podem preexistir a sua análise em termos e relações, e por isso mesmo organizar unidades interiormente articuladas em que o valor das partes é função de sua posição”34

33 34

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 368 PETITOT, J “Sémiotique et théorie des catastrophes”, Actes sémiotiques, Documents, V, 47-48 Paris, CNRS, 1983, p 6

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

A colocalização das diferentes determinações num mesmo espaço resulta, em suma, numa divisão do espaço, numa coexistência de partes que apresentam estratos e pontos em comum, e por conseguinte o advento da diferença será pensado, nessa perspectiva, como produto da complexificação morfológica daquilo que, inicialmente, não é mais que uma simples distribuição de lugares conectados entre si Coerentemente, a argüição em favor da dependência se prolonga, em J Petitot, por uma refutação da “discretização dos esquemas topológicos”, pela qual “tudo o que constitui estrutura se anula”35 Além disso, quando se examinam os avatares das diversas determinações, nas catástrofes que descrevem a topologia do quadrado semiótico, percebe-se que eles poderiam ser caracterizados, muito economicamente, como as diferentes relações tensivas entre duas [X–Y], e depois três [X–Y–0] dimensões Eis, por exemplo, a distribuição própria à cúspide, ou seja, ao conflito entre duas determinações:

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(x)Y x Y

X-Y

X

y

X(y)

Dois comentários ocorrem Primeiramente, se não se imaginam – como alguns o fazem, por vezes – as determinações X e Y como entidades mais ou menos autônomas “capturadas”, “atraídas” ou “rejeitadas” pelos poços de potencial, mas simplesmente como valores posicionais e graduais, que se definem pela cor35

Op cit, p 17

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

relação de suas variações respectivas e conexas, então todas as zonas desse conflito descrevem equilíbrios diferentes dessa correlação Em segundo lugar, parece legítimo perguntar-se: se não houvesse distribuição dos lugares e das forças no espaço categorial, se o domínio não estivesse dividido em subdomínios que diferenciam dominantes de X e de Y, o que restaria? A resposta não é: o “eixo semântico”, ou o “sema isotopante”, como nos sugeriria a semântica clássica, mas sim: a “fusão” de X e Y, fusão que se obtém tanto fora do alcance dos estratos (à esquerda da ponta da cúspide, no diagrama acima), caso da “fusão estática”, quanto pela globalização de um processo considerado reversível e cíclico (nos termos de R Thom: o “ciclo de histerese”), caso da “fusão metabólica”: não é portanto o eixo semântico amorfo que subsistiria, e sim a correlação de X e Y em seu princípio mesmo Noutras palavras, a “correlação tensiva”, tal como a definimos, é para a semântica tensiva e contínua o que o “eixo semântico” é para a semântica discreta e descontínua Aproximando o olhar, notaremos que a complexidade – no sentido em que a entendemos, isto é, como a coexistência e correlação de muitas dimensões ou profundidades – não se elimina nunca, na perspectiva catastrofista, pois que até mesmo a oposição privativa a mantém: a ausência de X pode ser reformulada, a partir da “descompactificação” da cúspide, como um desaparecimento de X (absorção por 0) “em presença de Y”; inversamente, o aparecimento de Y será formulado como “gênese de Y a partir de 0, em presença de X”36 Logo, a co-presença e a conexão de duas determinações – que gostaríamos de denominar “dimensões” ou “profundidades” – é, aí também, o mínimo requerido para que uma categoria se delineie Mas a focalização – compreensível nos anos 80 – no quadrado semiótico e na necessidade de explicá-lo ocultou, em parte, esta dimensão quase brøndaliana da teoria das catástrofes: de36

Op cit, p 21

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_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

fato, toda a demonstração de J Petitot é finalizada e visa “fundar” matemática e ontologicamente, via fenomenologia, o quadrado semiótico Ainda assim, as posições do quadrado definidas dessa maneira não são nunca termos simples; serão no máximo, por vezes e num limite, termos “simplificados” – é o caso de X∞, a chamada determinação �infinitizada” ou “idealizada” mas são, muito pelo contrário, termos complexos em cujo seio dimensões correlatas buscam equilíbrio em reciprocidade e interdependência Parece, enfim, oportuno tentar tomar posição em relação à semântica do protótipo, que se apresenta atualmente como uma teoria psicolingüística da categoria Com efeito, nessa perspectiva, a categoria não se define a partir das relações canônicas que a constituem, mas sim mediante a eleição de uma grandeza denominada “protótipo”, em torno da qual se organizam as diferentes dimensões de um domínio semântico Convém precisar, a propósito, vários pontos: (i) originariamente, essa teoria se interessa sobretudo pela base perceptiva da categorização (por exemplo, o recorte das cores); (ii) ela trata portanto, como sugerimos, antes da categorização do mundo natural, na perspectiva de sua lexicalização, do que da categoria lingüística em geral; (iii) ela se serve igualmente das propriedades distintivas e das propriedades hierárquicas, ou seja, da diferença tanto quanto da dependência; (iv) isso equivale a dizer que os protótipos que ela manipula são de naturezas bastante diferentes: um feixe de traços comuns ou um elemento isolado, um elemento neutro ou um elemento saliente (o “parangon”, ou melhor exemplar), um conjunto de traços organizados em rede, ou então numa simples semelhança de família em cadeia Relativamente a este último ponto, nota-se que os protótipos podem ser quer intensivos (melhor exemplar), quer extensivos (rede, ares de família), e que seu papel estruturante pode ser forte (parangon, rede) ou fraco (elemento neutro, ares de família) A semântica do protótipo diz respeito à estratificação, na medida em que a questão colocada é a da determinação das fron92

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

teiras do domínio semântico a partir das figuras do mundo natural que são percebidas pelo sujeito e, por via de conseqüência, da identificação das relações internas e externas que contribuem para estabilizar ou desestabilizar tais fronteiras Trata-se portanto mais da emergência das categorias a partir da figuratividade, do que da descrição da categoria sêmio-lingüística em geral Quanto a isso, a semântica do protótipo deve muito à teoria da Gestalt, por tratar da identificação de formas cuja diversidade fenomenal é dificilmente controlável, graças a uma matriz que vai sendo pouco a pouco desenhada por sua superposição e aproximação: o protótipo é, de algum modo, uma “figura” que se destaca sobre o fundo indistinto das ocorrências Diversos problemas abordados por essa teoria podem ser formulados, e em parte resolvidos, nos termos de uma semiótica tensiva do discurso Por exemplo, a questão da consistência das fronteiras do domínio quase não faz sentido em língua, na medida em que depende das seleções próprias a cada discurso, a uma classe de discursos, e mesmo quiçá a uma cultura Indagar-se, por exemplo, se a “lava” faz parte da classe dos líquidos, ou se um disco voador é um bom protótipo para a classe dos veículos automotivos, é perguntar-se, na verdade, qual é a isotopia do discurso, a qual, por sua vez, é tributária do gênero e do tipo de discurso A natureza das ligações entre os constituintes da categoria, outra questão recorrente, depende do ponto de vista adotado para construir a totalidade: a coleção de traços comuns depende de uma estratégia cumulativa, extensiva e conceptualizante, enquanto a seleção de um “melhor exemplar” obedece a uma estratégia intensiva, eletiva e iconizante Conforme a distinção proposta no capítulo “Práxis enunciativa”, as duas grandes estratégias de ponto de vista intervêm aqui, uma

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assentando na extensão cognitiva de uma ou várias grandezas no domínio semântico e a outra, na intensidade sensível de uma parte válida por todas93

_CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

as demais Por isso, a análise da categoria e das posições respectivas de seus constituintes poderá desembocar na medição das tensões entre a matriz e suas realizações concretas Assim é, por exemplo, que se levarão em conta tanto as tensões coesivas a reunir num só domínio: água, leite, sopa, chuva, neblina, lava, óleo, metal fundido, quanto as tensões dispersivas que, num determinado contexto discursivo, podem ser consideradas, quer como inferiores (entre água e óleo), quer como superiores (entre água e lava) Nesse particular, as figuras de retórica podem também intervir, para elevar ou baixar tais tensões dispersivas, visto que, sob certas condições, a lava pode formar um rio, ou ainda, como em Verlaine, o horizonte turvo de neblina pode aparecer como Um céu como leite37 Entre as modulações tensivas (extensivas e intensivas) da categoria e seus usos sob enunciações e pontos de vista particulares, permanece todavia a zona de pertinência do quadrado semiótico, o qual, também sob essa ótica, merece ser situado Tal situação poderia ser explicitada assim: (i) a organização tensiva da categoria determina pelo menos um centro de tensão (o atrator, ou “protótipo”) e horizontes de distensão ou “fronteiras”, (ii) logo, um domínio semântico, do ponto de vista da percepção semântica, está organizado como um espaço tensivo, um campo de presença (cf o capítulo “Presença”), (iii) o aparecimento do atrator se aparenta, se este for de tipo intensivo, ao que chamamos de “somação”, e, se ele for de tipo extensivo, à “resolução” (cf o capítulo “Esquema”); a somação e a resolução estão no âmago do engendramento do quadrado semiótico a partir do espaço tensivo (cf acima), e enfim (iv) a práxis enunciativa, regulando o aparecimento e a fixação dos usos, retroage sobre a percepção categorial, e fixa, nesse particular, “estilos” categoriais (cf acima) Sob essa perspectiva, e lembrando que o quadrado37

VERLAINE, P “L’échelonnement des haies”, Sagesse, III, 13, Le Livre de Poche, p 147

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_CATEGORIA QUADRADO SEMIÓTICO

semiótico pode ser derivado da rede, ele ocuparia o seguinte lugar na tipologia dos “estilos categoriais”:Dominante intensiva (→ somação) Percepção tônica Percepção átona Elemento saliente (→ parangon) Elemento neutro (→ termo básico) Dominante extensiva (→ resolução) Rede de traços comuns (→ quadrado semiótico) Abarcamentos irregulares (→ ares de família)

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_ESQUEMA

ESQUEMA1 RECENSÃOROCEDER aqui à recensão significa, primeiramente, estabelecer o corpus dos termos lexicalmente aparentados Em primeiro lugar, o lexema “esquema” pode apresentar-se de forma absoluta ou

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então especificado No domínio sêmio-lingüístico, o emprego absoluto pertence a Hjelmslev e funda a distinção entre forma e substância, na qual ele via o essencial da descoberta saussuriana O emprego absoluto é igualmente adotado por Greimas, no que tange às estruturas elementares da significação, para designar a relação entre os termos contraditórios do quadrado semiótico, respectivamente s1 e não-s1, s2 e não-s2, e para lembrar que a forma semiótica é “feita de exclusões, de presenças e de ausências”1 Precisemos de imediato que Greimas não vincula esta denominação à acepção hjelmsleviana – conduta que, aliás, jamais deixa de adotar, quando a continuidade é patente –, mas está claro aqui que, concebida como produtora de um “esquema”, a negação é identificada com uma operação de triagem cujo objetivo é o de delimitar a zona de uma categoria: a esquematização teria assim, nesse sentido, alguma coisa a ver com a somação Em segundo lugar, “esquema” apresenta-se também munido de um adjetivo, como no sintagma “esquema narrativo”, em cujo desenrolar Greimas gostava de ver o “sentido da vida” Mas, se é permitida a expressão, o “esquema narrativo” ficou, por assim dizer, órfão: por que, por exemplo, não estabelecer um “esquema modal”? Certamente a modalização constitui parte integrante da narratividade, mas pode ser abordada em si mes1

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GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 158

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ma e considerada como uma dimensão autônoma do discurso Não seria preferível, portanto, tratá-la como “esquema modal”? O corpus compreende ainda os termos “esquematismo”, oriundo de Kant, e “esquematização das categorias”, segundo J Petitot, que considera esta última como uma mediação entre a transcendência das categorias e sua objetividade fenomenal Mas para além do sentido próprio, que consistiria em se manter fiel ao termo kantiano, ou seja, ao “esquematismo” concebido como mediação entre o conceito e a imagem2 , encontra-se também um sentido figurado, que Cassirer, em La philosophie des formes symboliques, propõe, expandindo essa noção para a mediação entre o que vem sendo chamado de sensível e inteligível:“A linguagem, com os nomes que dá aos conteúdos e às relações espaciais, possui também um esquema, ao qual ela deve remeter todas as representações intelectuais para torná-las apreensíveis e representáveis pelos sentidos”3

J Petitot, por sua vez, esclarece o estatuto de esquema confrontando-o a modelo: a meio-caminho entre o conceito e a diversidade fenomenal, as estruturas topológicas são esquemas em relação aos conceitos teóricos porque os traduzem num imaginário passível de ser desdobrado em ocorrências e são modelos em relação à diversidade das ocorrências que elas reduzem

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3

Para Kant: “Tudo o que podemos dizer é que a imagem é um produto da faculdade empírica da imaginação produtora, enquanto o esquema dos conceitos sensíveis (como figuras no espaço) é um produto e de algum modo um monograma da imaginação pura a priori, por meio do qual e de

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acordo com o qual as imagens são primordialmente possíveis; e que, se essas imagens só podem ser ligadas ao conceito por meio do esquema que elas designam, então elas não lhe são em si mesmas perfeitamente adequadas” (in Critique de la raison pure, tome 1 Paris, Flammarion, 1944, p 173) CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, op cit, tome 1, p 154

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A questão em foco é a seguinte: seria essa diversidade redutível? Seria possível depreender um núcleo comum a todos os empregos que destacamos, de modo que esses não fossem mais do que variedades desse núcleo? Parece que a convocação de uma esquematização responde à necessidade de tratar com o máximo rigor uma heterogeneidade ou uma alteridade considerada, por outro lado, como constitutiva: entre a forma e a substância em Hjelmslev, entre o inteligível e o sensível em Cassirer, entre a imagem e o conceito em Kant, entre a estética transcendental e a percepção em J Petitot Restam os dois empregos diferentes de esquema por Greimas: tais empregos, correlatos entre si, não contradizem essa proposta, na medida em que, embora situados num nível de generalidade menor, tentam pelo menos estabelecer uma ponte, puramente semântica no caso do quadrado, existencial no caso do esquema narrativo Tudo se passa como se, nesses diversos autores, o esquema tributasse sua posição de mediador a esse hiato entre, de um lado, a intensidade e a concentração conceptual e categorial e, de outro, a extensão e a dispersão das ocorrências É dentro desse espírito, ou seja, dentro dos limites que ele pressupõe, que a noção de esquema será abordada aqui Em razão da problemática tensiva subentendida pelo conjunto desses ensaios, o esquema será examinado como a mediação entre as duas dimensões cuja intersecção constituiria o fato tensivo por excelência, a saber, a intensidade e a extensidade O esquema não trata, pois, nem da intensidade nem da extensidade em si, mas pretende ater-se ao princípio de sua correlação na semiose, e especialmente na mediação entre realizável e realizado, entre uma categoria e seus usos

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2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Nos anos sessenta, em razão da “fonologização da semântica” , que parecia então a via promissora, admitia-se geralmente que o problema teórico recaía sobre o inventário de uma vintena de pares de traços distintivos, com auxílio dos quais parecia possível descrever os micro-universos tais como aparecem nos discursos verbais ou não-verbais A epistemologia da semântica era concebida de forma imitativa ou analógica: a partir dos trabalhos de R Jakobson, notadamente o grande estudo intitulado “Phonologie et phonétique”5 , tratava-se de aplicar no plano do conteúdo um procedimento que já havia sido bem aprovado no plano da expressão Sabe-se que o empreendimento não vingou, mas, nesse episódio, a resposta era menos equivocada que a pergunta O procedimento binarista, de acordo com a terminologia hjelmsleviana, decorre de um ponto de vista “intensional”, enquanto o ponto de vista da semiótica deve ser também “extensional” Isso exige esclarecimento: para Hjelmslev, o valor – como já mencionamos no capítulo sobre o valor – é definido por sua extensão: concentrado ou expandido Mas na medida em que a semiótica tem por objeto o discurso, essa grandeza será aqui uma extensão discursiva, mínima para o sema, máxima

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quando a isotopia é coextensiva ao discurso-objeto; em segundo lugar, as grandezas que oferecem as mesmas características na cadeia formam uma classe, ou ainda uma categoria, já que esta define-se como “um paradigma cujos elementos só podem ser introduzidos em certos lugares da cadeia e não em outros”6 Lem44

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Emprestamos essa expressão de Hjelmslev que, com ela, precavia-se contra as teses binaristas, mesmo antes que fossem formuladas Ver HJELMSLEV, L Ensaios Lingüísticos, op cit, p 131 JAKOBSON, R Essais de linguistique générale Paris, Minuit, 1963, p 103-49 HJELMSLEV, L Le langage, op cit, p 173

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bremos a propósito que, no Curso de lingüística geral, Saussure pergunta-se:“Quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a palavra Senhores!, temos o sentimento de que se trata, toda vez, da mesma expressão, e, no entanto, as variações do volume de sopro e da entonação a apresentam, nas diversas passagens, com diferenças fônicas assaz apreciáveis []”7

Mesmo antecipando-nos um pouco, diremos justamente que os valores esquemáticos de Senhores! são constantemente reavaliados pelo enunciador; enfim, as grandezas, no que diz respeito a cada uma isoladamente, são definidas pela intersecção de pelo menos duas dimensões, mas, conforme tentamos estabelecer no capítulo “Categoria – Quadrado semiótico”, são também parte integrante do que denominamos uma rede fundada na “interpenetração de duas dimensões”, e esta incorporação responde por sua complexidade estrutural É dentro dessas condições que cremos ser útil distinguir entre definição ampla e definição restrita211 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS AMPLAS

O procedimento característico de Hjelmslev nos Prolegômenos, que consiste em situar-se inicialmente fora da linguagem, em seguida instalar a função e a dependência como objetos da análise, e depois, a partir desse “credo”, reintroduzir uma a uma as categorias que foram, desde sempre, o objeto da reflexão lingüística, este procedimento arroga-se justamente o que seria necessário estabelecer: a possibilidade dessa expulsão inicial da linguagem

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SAUSSURE, F de Curso de lingüística geral, op cit, p 125

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Esse procedimento deveria demonstrar, no mínimo, que a reintrodução da linguagem ocorre sem gerar maior conseqüência Ora, se está claro que o componente estrutural da língua e, mais

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amplamente, o componente chamado de “semionarrativo”, não são de modo algum afetados, o mesmo não se pode dizer do que provém do sensível (a foria) e do perceptível (a tensividade) O que se encontra especialmente prejudicado e falseado nesse episódio é precisamente a mediação, ou até mesmo a conversão, entre a tensividade e a foria de um lado e a estrutura de outro, conversão que as noções de esquema, esquematismo e esquematização pretendem explicitar Até certo ponto, o procedimento hjelmsleviano visa a submeter o objeto ao método preconizado; a distinção entre os caracteres “arbitrário” e “adequado” da teoria assim como a independência do sistema em relação ao processo são apenas corolários dessa escolha Temos a impressão de que o percurso da semiótica, pouco mais ou pouco menos, questionou esta última Sob o estímulo de Greimas, a semiótica deu ênfase, sucessivamente, ao fazer, ao crer e ao sentir Observemos de imediato que o crer foi menos “bem servido” que as duas outras dimensões A semiótica da paixão permanece, digamos assim, aquém da semiótica da ação que, em virtude dos direitos imemoriais do “primeiro ocupante”, apropriou-se da narratividade; mas, sobretudo, em razão de sua antecedência, a semiótica da ação é sempre a referência em matéria de processo e de consecução na cadeia A introdução de Semiótica das paixões assinala com nitidez que a semiótica da paixão não vem depois da da ação, mas como um esforço de integração no que se refere às clivagens até então aceitas:“Não seria demais insistir, ainda aqui, no fato de que se as duas concepções do estado – estado de coisas, transformado ou transformável, e estado de alma do sujeito, como competência para 102

_ESQUEMA e depois da transformação – se reconciliam numa dimensão semiótica da existência homogênea, isso ocorre à custa de uma mediação somática e ‘sensibilizante’ ” 8

A questão proposta é a seguinte: integração por adoção de um ponto de vista englobante ou comutação ocasionando uma mudança de ponto de vista? Trata-se de ver mais, ou ver outra coisa ou de outro modo? Realmente, é o segundo termo da alternativa que chama a nossa atenção Nas manifestações discursivas do sentir, tudo indica que o sujeito sofre uma mudança de regime modal, ou mesmo de recção: em vez de reger e de informar o objeto, em vez de flexioná-lo, o sujeito submete-se ao objeto Essa revolução íntima – interpretável sumariamente como reversão da dependência – residia, segundo Merleau-Ponty, no próprio coração da práxis pictórica:“O pintor vive num estado de fascinação Suas ações mais particulares – esses gestos, esses traçados que só ele pode fazer e que surgem aos outros como revelação, pois que não possuem os mesmos defeitos que ele – parecem-lhe emanar das próprias coisas, como o desenho das constelações Entre ele e o visível, os papéis inevitavelmente invertem-se É por isso que tantos pintores já disseram que as coisas os observam, []”9

Entretanto, nada nos permite reservar esse dispositivo modal exclusivamente para a experiência estética e, na verdade, Cassirer propõe que se faça dele o critério do que chama de “pensamento mítico”:“O pensamento teórico adota, diante daquilo que aborda como objeto, com pretensões de objetividade e de necessidade, uma atitude de investigação, de interrogação, de dúvida e de exame: opõe-se, com normas próprias, ao objeto O pensamento mítico, ao contrário, não8 9

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 15 MERLEAU-PONTY, M L’œil et l’esprit Paris, Folio-Essais, 1989, p 31

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apresenta qualquer confronto desse gênero Só “possui” o objeto se for dominado por ele: não o possui por construí-lo, pois seria, em vez disso, absolutamente possuído por ele Esse pensamento não é impulsionado pela vontade de compreender o objeto, no sentido de abarcá-lo pelo pensamento e de incorporá-lo a um complexo de causas e conseqüências: ele é simplesmente tomado pelo objeto”10

Apreender ou ser apreendido, eis a questão De uma certa maneira, a teoria revela aqui uma de suas insuficiências: a existência de um sistema modal fundado sobre a alternância de dois esquemas modais, o primeiro acentuando o sujeito e instaurando-o como sujeito de controle eficaz, o segundo acentuando o objeto e qualificando, ou recategorizando o sujeito como sujeito de acolhimento e de escuta, ou ainda como sujeito “passível” segundo A Hénault11 O objetivo de toda esquematização é preencher uma lacuna, denunciar uma alteridade que é ameaçada de inconsistência Ora, não há alteridade mais resistente do que aquela que opõe o eu ao não-eu, seja sob a forma da relação sujeito/objeto, seja sob a forma da relação sujeito/outro sujeito Admitiremos que, graças ao fazer, o eu tenciona reduzir o não-eu; no limite, o eu propõe-se assimilálo e, de um certo ponto de vista, até anulá-lo, enquanto no caso do submeter-se, o eu é convidado a conformar-se, a dobrar-se ao nãoeu que o precede É possível levar mais longe ainda o contraste: no caso do fazer, é o não-eu que suporta a ação e, portanto, resiste, enquanto no caso do submeter-se, esse papel actancial cabe então ao eu Mas essa inversão é menos uma resposta do que uma lista de questões relativas às condições de emergência do sentir e do submeter-se Por outro lado, os conceitos operacionais da teoria lingüística, a saber a alternância, a inversão, a comutação, a polariza10 11

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, op cit, p 100 HÉNAULT, A “Structures aspectuelles du rôle passionnel”, Actes Sémiotiques, Bulletin, XI, 39, “Les passions” Paris, CNRS, 1986

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ção, não são conceitos livres, frutos de um pensamento etéreo: são condicionados, ligados ao que chamaremos de primado da tensividade (intensidade/extensidade), concebida como medida imaginária da alteridade entre o eu e o não-eu; esse valor pode ser nulo ou em via de diminuição, mas a nulidade não significa ausência O caráter geralmente compacto da predicação é uma ilusão, de modo que propomos aqui distinguir, indo do pressuposto ao pressuponente, alguns tipos de predicação: (i) uma predicação tensiva relativa ao complexo intensidade/extensidade; (ii) uma predicação existencial relativa à presença e à ausência, e correlata aos modos de existência; (iii) uma predicação diferencial e qualificativa aberta para a análise sêmica Essa ordem não é somente sincrônica: ela permite dar conta do devir da própria semiótica, se pudermos admitir, hipótese seguramente pesada, que a evolução teórica conduz progressivamente à depreensão dos pressupostos subjacentes Em primeiro lugar, essa ordenação pode ser justificada assim: a predicação das diferenças em discurso só é possível se cada uma das grandezas concorrentes estiver dotada de um modo de existência próprio; uma dada figura só se atualiza se seu contrário estiver potencializado ou virtualizado Além disso, a predicação dos modos de existência, que dá lugar às modulações da presença e da ausência discursivas, não pode ser compreendida sem referência à intensidade e à extensidade de um campo perceptivo De onde decorre a seqüência proposta: a predicação diferencial pressupõe a predicação existencial que, por sua vez, pressupõe a predicação tensiva Em segundo lugar, estamos nos limites do nominalismo, pois que a asserção tanto das

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coisas, quanto de suas qualidades, é condicional e situada no interior dos gradientes da intensidade / extensidade, como Pascal bem indicou com ênfase:“Não sentimos nem o calor extremo nem o frio extremo As qualidades excessivas são nossas inimigas e não nos são sensíveis: não mais as senti105

_ESQUEMA mos, apenas as sofremos A juventude e a velhice em demasia entravam o espírito, assim como a falta e o excesso de instrução Enfim, as coisas extremas apresentam-se a nós como se não existissem e nós, em relação a elas, também não existimos: escapam de nós ou delas escapamos”12

Do mesmo modo, uma semiótica do visível restringe-se, em sua tentativa de depreender os estados significantes da luz, aos limites que são, de um lado, o ofuscamento e, de outro, a escuridão Por isso o discurso, sempre oscilando entre o sensível e o inteligível, tende a “traduzir” em extensão o gradiente da intensidade e vice-versa A intensidade luminosa, por exemplo, só atingirá a significação em discurso ao espacializar-se em forma de brilhos, iluminação, cromatismo etc Ao contrário, a amplitude espacial só é perceptível figurativamente se for submetida ao gradiente da intensidade luminosa No nível da transformação discursiva, por sua vez, a forma sensível é a do evento, caracterizado por sua irrupção e saliência, sendo que sua conversão inteligível e extensiva engendra o processo, muitas vezes definido como um “inteiro” quantificável e divisível em aspectos; de modo inverso, o processo só é perceptível pelo sujeito do sentir se for modulado pela intensidade que o converte num evento para um observador A correlação fundadora da esquematização narrativa do discurso seria, portanto, a seguinte: evento intensidade ⇔ processo extensidade

Estamos em condições de propor um primeiro esboço do esquema: na medida em que leva em conta a tensão oriunda da desigualdade entre a intensidade e a extensidade, o esquema12

PASCAL, B �uvres Complètes Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954, p 1109

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apresenta-se como a mediação entre essas duas dimensões Hjelmslev opõe, em alguns estudos, duas dimensões do plano da expressão, a dos “constituintes”, os fonemas, e a dos “expoentes”, a prosódia Os expoentes, para o autor, são de dois tipos: os acentos, intensos e localizados, e as modulações, extensas e distribuídas Essa análise vale para os dois planos da linguagem, uma vez que:“Grosso modo, os morfemas extensos são os morfemas verbais, os morfemas intensos são os morfemas nominais”13

É nessa direção que gostaríamos de seguir No plano do conteúdo, o esquema comportaria, outra vez, dois funtivos: um funtivo intenso e um funtivo extenso O funtivo intenso corresponde ao que Semiótica das paixões chama de somação:“O primeiro gesto é um ato puro, ato por excelência: somação; []essa somação é ela mesma negação, ou melhor, captação, parada nas flutuações da tensão Com efeito, o mundo como valor oferecia-se inteiro ao sentir do sujeito tensivo; mas para conhecê-lo é preciso parar o desfile

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contínuo, isto é, generalizar o “encerramento” – essa é, pois, a fonte da primeira negação –, cercar uma zona, destacar um lugar, ou seja, negar o que não é esse lugar”14

A somação apresenta-se como a presentificação de uma relação in absentia Ela cerca e estabiliza, sob a égide da irrupção e da parada, um lugar, mas um lugar vazio, à espera de preenchi13

14

HJELMSLEV, L Ensaios lingüísticos São Paulo, Perspectiva, 1991, p 175; cf também “La syllabe en tant qu’unité structurale”, in Nouveaux essais, op cit, p 165-71; Le langage, op cit, p 131-50 GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 38 A propósito do valor gerador da parada, ver ZILBERBERG, C “Pour introduire le faire missif ”, in Raison et poétique du sens, op cit, p 97-113

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mento; numa palavra, a somação – culminância e suspensão da intensidade – é uma “pergunta” Ela provoca a espera do funtivo extenso do esquema que denominaremos resolução Desse modo, se num nível geral, o esquema conjuga a intensidade e a extensidade, no plano do conteúdo, ele associa a somação e a resolução, ou seja: esquema = somação ⇔ resolução A dimensão tensiva e a dimensão esquemática ajustam-se assim uma à outra, permitindo a passagem entre o evento e o processo, entre a categoria como “lugar vazio” e suas articulações discretas, entre a explosão e suas ressonâncias discursivas, entre o sobrevir e o devir O esquematismo elementar que propomos aqui consiste, pois, de um lado, em resolver uma somação na extensidade e, de outro, em destacar uma resolução sob a forma intensiva A partir disso, as diversas acepções que estabelecemos na recensão prévia podem ser globalmente esclarecidas: o esquematismo assegura a mediação entre o conceito (somação) e a diversidade fenomenal (resolução), entre as definições em compreensão (somação) e as definições em extensão (resolução), entre o evento (somação) e o processo (resolução), entre a junção (somação) e seu desdobramento sob a forma de “esquema narrativo canônico” (resolução) OBS: Do ponto de vista da manifestação, essa hipótese permitiria compreender como dois níveis de articulação diferentes (por exemplo, de um lado, a junção, ou a transformação narrativa elementar, e, de outro, o esquema narrativo canônico ou o processo aspectualizado), podem ser, um ou outro, alternadamente, assumidos pela predicação discursiva Nessa perspectiva, a escolha do nível pressuposto, com vistas à manifestação discursiva, é intensiva (do tipo “somação”), e a escolha do nível pressupo108

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nente, uma escolha extensiva (do tipo “resolução”) A partir disso, a manifestação direta de uma grandeza ou de uma estrutura oriunda dos níveis profundos do percurso gerativo parece sempre mais “sensível”, e a manifestação de uma grandeza ou de uma estrutura oriunda dos níveis superficiais parece mais “inteligível” A esquematização que propomos diz respeito diretamente à operação conhecida como “convocação”, cujas escolhas obedecerão, pelo menos em parte, ao princípio da correlação entre intensidade e extensidade (ver sobre esse tema o estudo dedicado à práxis enunciativa)212 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

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A partir dessa estrutura geral definida: (i) do ponto de vista antropológico, pelo comércio do sensível e do inteligível; (ii) do ponto de vista estrutural, pelo comércio da intensidade e da extensidade, estamos em condições de introduzir propriedades formais, que consideraremos de segundo grau, mesmo levando em conta que a descrição da forma não deveria ser um fim em si e que ela é apenas a “guardiã da estrutura” Assim, sugerimos modificar a definição hjelmsleviana de estrutura: entidade autônoma e deformável de dependências internas Qualificar a estrutura de “entidade autônoma”, significa que ela é circunscrita ou, como indica a própria definição de somação, que ela é contida Acrescentar que ela é “deformável”, é entender que a plasticidade da estrutura permite às valências intensivas e extensivas variar e deslocar os valores esquemáticos Essas propriedades formais são respectivamente relativas (i) à sutura entre somação e resolução, (ii) ao jogo da expansão e da síncope, (iii) e enfim, à direção, que examinaremos aqui no que tange a seus efeitos sobre os esquemas sintáxicos do discurso A primeira diferenciação diz respeito à sutura ou à transição entre somação e resolução Se examinarmos, por exemplo, as109

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variações passionais em torno da ruptura de um apego, o “inconsolável” é aquele que não chega a sair da somação disjuntiva e que não realiza o “trabalho de luto”; ao contrário, para a “viúva alegre”, a resolução já prevalece sobre a somação A segunda possibilidade recai sobre a expansão discursiva de um ou outro dos componentes do esquema Não se trata mais, nesse caso, do lugar relativo da somação e da resolução no interior da estrutura e da correlação, como anteriormente, mas no desdobramento do processo discursivo O teatro de feição clássica favorece claramente a somação e “despacha” a resolução, o que não é próprio, parece-nos, do teatro grego que apreciava as tragédias que encenavam a deploração, tragédias essas nas quais, sem desmerecê-las, quase nada acontecia Em outras palavras, o teatro grego parece ter tido a intuição de uma divisão entre peças “somativas”, violentas, e peças “resolutivas”, lentas, em vias de apaziguamento Nada impede considerar que a fusão de uma peça “somativa” e de uma peça “resolutiva”, como Édipo, reconstitua o esquema completo Nessa perspectiva, a Poética de Aristóteles, ao erigir a “peripécia” e sobretudo a “gratidão” como pivôs da emoção trágica, coloca visivelmente a somação acima da resolução Desse ponto de vista, a “elasticidade” do discurso (condensação ou expansão) recebe uma descrição operatória e sua esquematização autoriza-lhe a reformulação em termos de correlações entre intensidade e extensidade, entre efeito “sensível” e efeito “inteligível” Por síncope, agora, entendemos uma propriedade simétrica e inversa da expansão que consiste em abreviar um uso bem atestado A síncope, por natureza, incide sobre a resolução: ela opera por retirada de uma determinada seqüência intermediária, sentida repentinamente como redundante ou não pertinente Greimas definia a cólera, por exemplo, por meio da “síncope” da vingança, síncope que impede de algum modo a impetuosidade do des110

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contentamento de se resolver, e que bloqueia especialmente o processo de reequilíbrio (extensivo) das penas e dos sofrimentos A seqüência completa do enfrentamento comporta a fase resolutiva da vingança ou da justiça; a cólera é obtida, a partir dessa seqüência, por síncope da resolução15 A terceira possibilidade evoca-nos a direção e incide sobre a seguinte questão: poderia a sucessão (somação → resolução) ser reversível? Limitar-nos-emos a duas alusões: na música européia, se admitirmos que a sucessão dos movimentos na sonata obteve durante séculos um valor

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esquemático, é sabido que antes de declinar [vivo-lento-vivo], a sonata foi construída sobre a sucessão [lento-vivo-lento] Mais próximo de nós, Mallarmé, no texto intitulado Le Mystère dans les lettres, escreve:“Disposition l’habituelle On peut, du reste, commencer d’un éclat triomphal trop brusque pour durer; invitant que se groupe, en retards, libérés par l’écho, la surprise L’inverse: sont, en un reploiement noir soucieux d’attester l’état d’esprit sur un point, foulés et épaissis des doutes pour que sorte une splendeur définitive simple”16

Reduzimos, provavelmente, o alcance dessas observações, mas temos a impressão de não falseá-las ao reconhecermos, na primeira recomendação, o esquema [somação → resolução] e, na segunda, o seu inverso: [desdobramento → somação]15

16

�De la colère �, Actes Sémiotiques, Documents, III, 27 Paris, CNRS, 1981; retomado em Du Sens II, op cit MALLARMÉ, S Œuvres complètes Paris, Gallimard, La Pléiade, 1945, p 384-5 [N dos T]: “Disposição, a habitual Pode-se, de resto, começar por uma explosão triunfal muito brusca para durar, convidando que se agrupe, em retardos, liberados pelo eco, a surpresa Ao contrário: são, num recolhimento negro preocupado em atestar o estado de espírito num ponto, espremidas e apuradas dúvidas para que saia um esplendor definitivo simples”

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22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Tratar da definição sintagmática do esquema significa, na realidade, estatuir ou apostar no sentido existencial da sintaxe e, a esse respeito, Greimas tem razão, sem dúvida, quando faz do esquema narrativo o depositário do “sentido da vida” Entretanto, a investigação em curso das “formas de vida” mostrou que a exclusividade atribuída ao esquema narrativo deve ser reexaminada A problemática própria do esquema apóia-se na substituição do singular pelo plural e no discernimento das conseqüências dessa substituição: a que remete, exatamente, a multiplicidade dos esquemas? Como um determinado discurso singular chega a ajustar os diferentes esquemas que ele acolhe, já que a originalidade de um discurso depende dos esquemas que mobiliza? O corolário dessa co-presença de esquemas no discurso impõe, com toda a evidência, os conceitos de densidade e coerência esquemáticas O exame das definições sintagmáticas do esquema consistirá em formular primeiramente todos os detalhes de uma esquematização canônica e, em seguida, as condições que lhe permitam dar conta de um determinado modelo ou de um determinado percurso discursivo De fato, é próprio desses esquemas tensivos articular a intensidade sensível e o desdobramento cognitivo, mas essa articulação refere-se tanto aos percursos narrativos, descritivos, quanto aos passionais Suspeitamos da existência de esquemas canônicos gerais, mas essa problemática é tão nova em semiótica que as questões prevalecem sobre as respostas e, como sempre, confirma-se a necessidade de algumas convenções terminológicas Emprestaremos de G Guillaume, pois é sugestiva, a oposição [ascendente/decadente], e admitiremos as seguintes equivalências: esquema ascendente: desdobramento → somação esquema decadente: somação → resolução112

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Esperamos ter enfatizado, ao longo de todo este trabalho, que o esquema decadente revela-se sempre mais heurístico que o esquema ascendente É por isso que nos dedicaremos principalmente à estrutura do esquema decadente Para pensar a processualização de uma grandeza semiótica é necessário começar traduzindo-a em termos de programa e de contra-programa, transitivos ou intransitivos A partir do diagrama que segue, no qual introduzimos uma terceira fase, a sintaxe tensiva imanente ao esquema canônico pode ser examinada:Negrito = conteúdo Itálico = expressão

tonicidade

+

somação acento

INTENSIDADE

resolução modulação

atonia

– – concentração EXTENSIDADE

aforia silêncio

+difusão

O esquema decadente comporta pelo menos uma fase caracterizada pela pressuposição recíproca entre um máximo de intensidade e um mínimo de extensidade; esses dois graus tensivos podem, ou não, ser convertidos respectivamente em excesso de intensidade e em déficit de extensidade se o grau ultrapassar a fronteira de uma norma Examinemos cada caso: se o máximo de intensidade é convertido em excesso de intensidade, especialmente pelo efeito de uma moralização, diremos que esse excesso é contensivo e pede um contra-programa distensivo de resolução, destinado a preencher o déficit de extensidade: na ausência dessa avaliação, o máximo de intensidade será simples113

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mente retensivo e apresentar-se-á então como um contra-programa em relação à resolução potencial Chegamos, assim, aos estilos tensivos elementares, por exemplo, no segundo caso, a uma cultura deliberada – por vezes cínica – do excesso, do paroxismo, resumida trivialmente pela palavra de ordem sumária: que importa o frasco, contanto que possamos ter a embriaguês! Introduzimos um terceiro termo, a aforia, cuja interpretação pode ser dupla: será que deveríamos pensar esse esquema como ternário? Ou como uma “montagem” de dois esquemas binários? [somação → resolução] + [resolução → aforia] Essa �montagem � atribuiria à resolução dois valores esquemáticos distintos pois,

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se o processo atinge a aforia, então a resolução precedente vale nesse caso como uma espécie de �somação � Ambas as interpretações são plausíveis: a primeira está de acordo com o caráter atrativo dos mínimos e dá conta, por exemplo, da substituição, na sinfonia moderna, do allegro pelo adagio como o último movimento: é nesse sentido que um crítico pôde escrever, a respeito do último movimento da Nona de Mahler, que sua “escrita flutua no ar”17 Mas, por outro lado, é próprio de uma cultura particular selecionar, algumas vezes, uma determinada porção do esquema Assim, “tudo se passa como se”, por uma espécie de síncope da primeira parte do esquema, a cultura hindu quisesse conhecer e “habitar” apenas a porção do arco que vai “da” resolução “à” aforia:

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CHION, M La symphonie à l’époque romantique Paris, Fayard, 1994, p 240

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_ESQUEMA “Para a visão religiosa, o objetivo, ao contrário, é o de fazer desaparecer o tempo como totalidade, com tudo o que se encontra nele e o que recebe dele ‘forma e nome’ A chama da vida apaga-se diante da visão pura do conhecimento ‘A roda está quebrada, o rio ressequido do tempo não corre mais, a roda quebrada não gira mais: é o fim da paixão’ (Udana VII, 1; VIII, 3)”18

Ao contrário, o tempo ocidental, escatológico, só retém a primeira parte do esquema e rejeita a aforia como excessiva Mas no interior do espaço tensivo assim definido, podemos prever acentuações e diferenciações Concebemos o esquema canônico, munido de suas duas possibilidades de correlação, como um arcabouço ou uma estrutura de acolhimento para os outros esquemas Por ora, ele é apenas uma hipótese em curso de validação, que se apóia sobre: (i) a interação do sensível e do inteligível, e (ii) a direção reversível de cada uma das duas dimensões, a intensidade e a extensidade Isso posto, a incorporação de um modelo específico pelo esquema canônico supõe três condições: (i) a presença de uma dimensão patêmica, manifesta ou latente; (ii) a identificação das dimensões que, no discurso examinado, valem respectivamente como intensiva e como extensiva; (iii) a identificação dos operadores que tratam a intensidade e a extensidade Embora a escolha de um exemplo esteja sempre sujeita à cautela, gostaríamos de mostrar que a projeção do esquema canônico sobre um discurso-objeto não prejudica o texto, longe disso Assim, quando Pascal escreve no texto intitulado Le mystère de Jésus:“Jesus estará em agonia até o fim do mundo: não se deve dormir durante esse tempo”

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CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, op cit, p 153

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_ESQUEMA

ele impõe o tempo somativo da vinda, quando não da sobrevinda, de Cristo, mas suspende o tempo resolutivo Entre as tensividades possíveis, o pensamento pascaliano manifesta a escolha de uma sintaxe retensiva, no sentido de que a somação nunca é demasiadamente intensa Quando Pascal examina as vias do conhecimento, opondo o “espírito de geometria” ao “espírito de refinamento”,

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convoca as mesmas categorias, ou seja, as mesmas tensões canônicas: “Sentem-se os princípios, concluem-se as proposições”19 : os “princípios”, filiados ao sentir, advêm da somação, enquanto as “proposições”, cuja dedução é confiada à razão, são assumidas pela resolução A passagem seguinte é ainda mais explícita:“A razão age com lentidão e com tantas visões sobre tantos princípios, os quais precisam estar sempre presentes, que toda hora ela se entorpece ou se extravia por não conseguir manter todos os seus princípios presentes”20

e sua incorporação pelo esquema canônico é imediata: (i) os “princípios” que correspondem à somação baseiam-se na intensidade máxima do sensível, cujo operador declarado é “o coração”; (ii) as “proposições” que correspondem à resolução baseiam-se na extensidade do inteligível, cujo operador é “a razão” E, segundo o ponto de vista introduzido neste ensaio, o desafio que Pascal lança a uns e outros consiste, para os “espíritos refinados”, em deslocar-se da somação à resolução, enquanto os “geômetras” são convidados a transportar-se do desdobramento à somação Entretanto, poder-se-ia criticar a transposição que propusemos por não ser mais que uma tradução Nesse sentido, o esquema canônico comporta duas possibilidades de desdobramento: (i) quando a somação é retensiva, quer se trate do ser amado:19 20

PASCAL, B, op cit, p 1222 Op cit, p 1220

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_ESQUEMA “Quando se ama fortemente, é sempre uma novidade ver a pessoa amada”

ou da graça:“É um fluxo contínuo de graça que a Escritura compara a um rio e à luz que o sol envia incessantemente para fora de si, e que é sempre nova, de modo que, se deixasse um instante de enviar, toda luz já recebida desapareceria e só restaria a escuridão”21

ela tende ao que Pascal chama de “efusão”; (ii) ao contrário, se a somação tende à nulidade, a resolução torna-se, ao mesmo tempo, máxima e vazia:“É uma coisa horrível sentir que se está perdendo tudo que se possui”22

Esse esquema canônico, que anuncia aqui os rudimentos de uma gramática pascaliana, parece, pois, apresentar possibilidades de previsão, que embora bem modestas, fazem dele um modelo de compreensão e não somente de descrição

3 CONFRONTAÇÕESA cadeia do discurso é composta, segundo Hjelmslev, de dois tipos de grandezas: os constituintes e os expoentes; os constituintes ocupam a extensão da cadeia e obedecem às regras extensivas da distribuição, enquanto os expoentes são responsáveis pelas variações de intensidade na cadeia Num segundo tempo, para os expoentes, cumpre distinguir entre morfemas intensos e morfemas extensos; no plano da expressão, os primeiros reportam-se aos acentos, os segundos às modulações que afetam o21 22

Loc cit Op cit, p 1181

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_ESQUEMA

enunciado integral; no que diz respeito ao plano do conteúdo, Hjelmslev não propõe nenhum termo mas fornece como exemplo, a pessoa, a voz, o aspecto, o tempo e o modo23 Se o termo prosódia, reunindo acentos e modulações, impõe-se sem dificuldade no plano da expressão, o mesmo não ocorre no plano do conteúdo; mas se lembrarmos que uma de nossas hipóteses centrais incide sobre a dependência entre a intensidade e a extensidade, parece-nos que o termo consistência, entendido como ponto de convergência numa rede de dependências, de complexidades e de tensões que tentamos precisar, poderia designar, no plano do conteúdo, a associação do impacto e da extensão A sintaxe discursiva comportaria, pois, dois planos associados: a sintaxe da constituência e a sintaxe da consistência Na medida em que o esquema tem por princípio, no plano do conteúdo, a tensão entre somação intensiva e resolução extensiva, o seu equivalente no plano da expressão será, por essa razão, o período ou o esquema entoativo Para recapitular:PLANO DA EXPRESSÃO Prosódia Período, esquema entoativo Acento ⇔ modulação PLANO DO CONTEÚDO Consistência Esquema tensivo Somação ⇔ resolução

Para terminar, levantaremos duas questões que ajudam a estender algumas das hipóteses lançadas: (i) seria conveniente postular um esquema dos esquemas? (ii) o que significa a desigualdade recorrente entre o esquema ascendente, que mobiliza a correlação conversa das valências, e o esquema decadente, fundado em sua correlação inversa?Ver ZINNA, A “La théorie des formants Essai sur la pensée morphématique de Louis Hjelmslev”, Versus, 43, avril-juin, 1986, p 95-9

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_ESQUEMA

Será que existe um esquema dos esquemas, como o percurso gerativo, na perspectiva de Greimas, ou a estratificação, numa escala bem mais modesta? Ou somente correlações e congruências circunstanciais, “sob encomenda”, entre duas esquematizações, julgadas até aqui estranhas e subitamente identificadas por uma enunciação individual, a exemplo do que propõe Lévi-Strauss, ao final de Mythologiques, quando ele lança uma ponte entre mito e música, até então considerados estranhos um ao outro O percurso gerativo é certamente um “esquema dos esquemas”, mas que teria deliberadamente apostado na inteligibilidade do discurso, numa série de “resoluções” em cadeia a partir da primeira somação categorial, até as articulações mais finas da discursivização Mas o próprio Greimas, ao interessar-se pelo sentir e pela estesia, foi obrigado a deixar provisoriamente entre parênteses o percurso gerativo; e as pesquisas sobre as formas de vida, baseando-se cada uma sobre uma estesia característica, confirmam essa tendência: as seleções operadas a partir dessa estesia discriminante apóiam-se certamente sobre os diferentes níveis do percurso gerativo, mas para lhes propor uma deformação coerente que é a verdadeira esquematização em ato no discurso Realmente, o ensaio que lhes é consagrado e no qual elas são definidas como “esquemas de esquemas”, responde à questão precedente atribuindo às culturas a tarefa de esquematizar coleções de esquemas Desde então, o esquema dos esquemas só pode ser específico, particularizante e não genérico, assim como em I Lotman, os sistemas modelizantes secundários, ao assegurar a intersecção das estruturas, engendram a originalidade e a especificidade culturais A desigualdade

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entre esquema ascendente e esquema decadente é um dos motivos – bem involuntário –, deste trabalho Nos anos sessenta, em razão do consenso que considerava os elementos como afóricos, acrônicos e pontuais, ou seja, “incorpóreos”, a emergência do sentido era atribuída a uma com119

_ESQUEMA

binatória que proporcionava um número finito de possíveis; a partir desta combinatória, cada micro-universo procedia a uma seleção, provavelmente arbitrária, mas o discurso ficava encarregado de motivá-la pondo-a em relação com outras seleções Ora, a combinatória, a partir do momento em que precisa compor com as precondições tensivas do sentido, deve levar em conta as diferenças de potencial, e os esquemas ascendente e decadente, embora associem as mesmas grandezas, não produzem, nesses termos, os mesmos efeitos Não faríamos alusão a essa hipótese se Saussure, nos manuscritos acessíveis e em seus “Princípios de fonologia”, não tivesse enfrentado com determinação essa dificuldade A análise fonológica segundo Saussure não consiste em propor primeiramente traços binários, depois fonemas e finalmente sílabas, ou seja, em propor partes e, em seguida, compor um todo:“Aquele que proferir uma opinião determinada sobre u consoante e u vogal, sem ter de si para si uma visão perfeitamente <nítida e> precisa sobre a sílaba, não sabe do que está falando”24

Saussure passa então a preocupar-se com os constituintes próprios da sílaba, identificando-os como dois processos: a implosão (cuja notação é >) e a explosão (cuja notação é <):“Vejamos, agora, o que deve resultar da seqüência de explosões e implosões nas quatro combinações teoricamente possíveis: 1° < >, 2° > <, 3° < <, 4° > >”25

24

25

ENGLER, R Edition critique du CLG, tome 2, fasc 4 Wiesbaden, O Harowitz, 1974, 33052 SAUSSURE, F de Curso de lingüística geral, op cit, 1971, p 68

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_ESQUEMA

Entretanto, se todas elas são “teoricamente possíveis”, as duas primeiras combinações manifestam propriedades que as colocam em destaque: (i) a primeira, [< >], que pode ser aproximada do esquema decadente, produz o “ponto vocálico”; a segunda, [> <], comparável ao esquema ascendente, produz a “fronteira de sílaba” Um produziria um efeito de “centro”, o outro um efeito de “passagem”, o que quer dizer que o esquema decadente encerra-se sobre si próprio, atribuindo-se um centro organizador, enquanto o esquema ascendente remete-se sempre a um “para além de”, ou seja, a uma outra resolução O caso da falta e da sua liquidação é particularmente claro nesse sentido: quando a resolução liquida uma falta intensa, ela conduz o percurso do sujeito para um atrator que o estabiliza – é o efeito “centro” –; ao contrário, quando a liquidação é uma somação que suprime uma falta difusa e extensa, ela prepara o sujeito, como Swann em Proust, para novas aventuras – novas resoluções –, pois, sendo uma zona crítica, a “passagem” não assegura qualquer estabilidade A desigualdade entre os dois esquemas poderia ser assim resumida: o esquema decadente conduz a um equilíbrio estável (o centro atrator), enquanto o esquema ascendente conduz a um equilíbrio instável (a passagem, que poderíamos denominar “ponto de repulsão” ou

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“repulsor”) Ao término desse estudo, parece agora que o esquema tensivo canônico é dotado das seguintes propriedades: (i) pertence ao espaço tensivo pelo fato de negociar uma correlação inversa entre duas dimensões (ou profundidades): uma profundidade intensiva e uma profundidade extensiva; (ii) afeta tanto o tempo quanto a duração e a espacialidade: a somação apresenta-se normalmente como uma aceleração acompanhando uma contração do espaço e da duração; seu caráter instantâneo chega a ser, algumas vezes, a única manifestação concreta da intensidade que a define; (iii) enfim, a somação é doação, doação de objeto ou doação de sentido, enquanto a resolução, por sua vez, inscreve-se121

_ESQUEMA

do lado do saber-fazer e do poder-fazer; (iv) o esquema canônico é, pois, justamente a transição gramatical em virtude da qual o sensível evoca o inteligível que ele mesmo suspendeu26 ; se o esquema canônico apresenta-se agora como o caminho entre a somação e a resolução, então ele permite ao sujeito converter a paixão em ação, o afeto em projeto, o suportar somativo em agir resolutivo e, nesse sentido, o esquema canônico merece bem o título de saber-viver ou de arte de viver elementar

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Para uma semiótica da dependência, a distância entre ser e fazer, entre estado e processo, tende a diminuir

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_PRESENÇA

PRESENÇA1 RECENSÃOCATEGORIA presença/ausência pertence de direito, para começar, ao discurso filosófico sobre a existência (em geral oposta à essência) Neste, ela funciona quase sempre como uma categoria “impura”, cujo termo complexo presença + ausência parece mais facilmente atualizável e mais produtivo do que os outros Assim, no mito platônico da caverna, a presença sensível é construída como uma “ausência presentificada”, uma espécie de simulacro da “Idéia” obtido por apresentação indireta e deceptiva A reformulação mais recente de tal categoria pela fenomenologia, culminando, em Merleau-Ponty, na noção de “campo de presença”1 , assenta numa interpretação do par presença/ausência em termos de operações (aparecimento/desaparecimento) pelas quais os “entes” sensíveis se destacam do “ser” subjacente, e depois retornam a ele O interesse dessa reformulação, de um ponto de vista semiótico, reside no fato de estar a presença aí definida em termos dêiticos, ou seja, em suma, a partir de uma espécie de presente lingüístico; além disso, para a própria fenomenologia, a presença é o primeiro modo de existência da significação, cuja plenitude estaria sempre por ser conquistada

A

2 DEFINIÇÕESPara a semiótica, na medida em que esta se filia a Hjelmslev, a elucidação da presença, noção já em si particularmente delica1

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MERLEAU-PONTY, M Phénoménologie de la perception Paris, Gallimard, 1983, p 29-30

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_PRESENÇA

da, depara, por assim dizer, com uma proibição, visto que o autor dos Prolegômenos declara:“Estas definições baseiam-se em conceitos não específicos e indefiníveis: presença, necessidade, condição, bem como nas definições de função e funtivo”2

Sem tratar a questão a fundo, se os indefiníveis são realmente assim, tomados cada um separadamente, parece-nos que, do grupo que eles formam – aos que acabamos de indicar é preciso acrescentar ainda “descrição, objeto, dependência, homogeneidade”3 –, e de sua aproximação, destacam-se índices de correlação que permitem vislumbrar uma interdefinição21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Só se pode conceber a existência semiótica como presença se se supõe, como fazem os autores do Dicionário de semiótica, que essa existência é um objeto de saber para um sujeito cognitivo Mas haveria que dar um passo a mais e reconhecer, em tal relação cognitiva, a base perceptiva da apreensão de toda significação Consideradas como parte integrante de uma configuração perceptiva que seria constitutiva tanto da semiose quanto da enunciação, a ausência e a presença, logicamente anteriores à categorização, prefiguram contudo, como veremos, o aparecimento desta última Atrelando assim, logo de saída, a problemática da presença à da enunciação, estamos aptos a introduzir as “variedades” enunciativas da presença, controladas pela instância trinitária da enunciação: actante, espaço, tempo Nosso ponto de partida2 3

HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 40 Op cit, p 34

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_PRESENÇA

estará constituído pela pressuposição recíproca entre, por um lado, o “campo de presença”, considerado como o domínio espáciotemporal em que se exerce a percepção, e, por outro, as entradas, as estadas, as saídas e os retornos que, ao mesmo tempo, a ele devem seu valor e lhe dão corpo Isolemos cada uma das três dimensões da dêixis enunciativa e consideremo-la como categoria tensiva Para o actante, que concebemos, como a fenomenologia, em sua relação com um objeto de valor, propomos distinguir uma orientação quer para o sujeito, quer para o objeto, sem prejuízo da junção sujeito-objeto Do ponto de vista do sujeito, a presença é – de maneira quase unânime – apreendida como espanto; admitiremos que estamos diante da presença realizada Mas sendo o súbito, por definição, efêmero, sua virtualização inevitável dá lugar ao hábito Do ponto de vista do objeto, a oposição canônica, homóloga à precedente, conjunge e disjunge o novo e o antigo A semiótica não tem outra pretensão que a de compreender a prevalência de tais “vivenciados de significação” (Cassirer); por relação ao campo de presença, o espanto e a novidade carregam um valor de irrupção, o hábito e a antigüidade, um valor de estada No que tange à dêixis espacial, a categoria tensiva de primeira ordem é obviamente a profundidade, cuja melhor formulação fenomenológica foi proposta por Merleau-Ponty em L’oeil et l’esprit:

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“Da profundidade assim compreendida, não se pode mais dizer que seja ‘terceira dimensão’ Para já, se ela fosse uma dimensão, seria antes a primeira: não há formas, planos definidos a não ser que se estipule a que distância de mim se encontram suas diferentes partes Mas uma dimensão primeira e que contém as demais não é uma dimensão, pelo menos no sentido corriqueiro de uma certa proporção segundo a qual se mede A profundidade, assim entendida, é antes a experiência da reversibilidade das dimensões, de uma ‘localidade’ 125

_PRESENÇA global em que tudo é ao mesmo tempo, e de que altura, largura e distância estão abstraídas, de uma voluminosidade que se exprime numa palavra dizendo que uma coisa está aí”4

A articulação semiótica mínima é a que confronta o próximo, para a presença realizada, e o distante, para a presença virtualizada Quando a profundidade se projeta na competência do sujeito da percepção, ela dá lugar à dialética dos “pontos de vista”: aos intervalos inerentes à distância correspondem morfologias perceptivas, ora apenas distintas, ora irredutíveis umas às outras, como nas páginas que Proust dedica ao chafariz do pintor Hubert Robert em Sodome et Gomorrhe5 A morfologia dos pontos de vista deve considerar-se, na sua relação com a profundidade, como uma “função descontínua de certa variável contínua”6 No que concerne à última dimensão, o agora, a mnésia, versão despsicologizada da memória, está para a temporalidade assim como a profundidade está para a espacialidade Admitiremos que o atual manifesta a presença realizada, e o ultrapassado, forma intensiva do passado, a presença virtualizada A estrutura elementar da temporalidade parece-nos antes dual que ternária: com efeito, numerosas são as línguas, entre outras o latim, em que as formas do futuro são dadas como “tardias” Antes de seguir adiante, gostaríamos de fazer duas observações: (i) se se admite que a dimensão própria do ego não é outra que a do afeto, isto é, o estado – ou mesmo a “temperatura” – da relação do sujeito a seus entornos, a relação da profundidade e da mnesia ao afeto é da ordem da catálise, na medida em que o próximo e o atual só valem se forem “afetantes” Em razão4 5

6

MERLEAU-PONTY, M L’Œil et l’esprit, op cit, p 65 PROUST, M A la recherche du temps perdu, tome 2 Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954, p 656-7 VALÉRY, P Cahiers, tome 1 Paris, Gallimard, La Pléiade, 1973, p 789

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_PRESENÇA

de sua dependência comum por relação ao afeto, a profundidade e a mnesia tendem a “metaforizar-se” uma à outra, o que nem as línguas nem os discursos deixam de fazer: pode-se, assim, falar na “profundidade” temporal da lembrança (ii) A práxis enunciativa pode sofrer ou reagir: ela sofre se a consecução [realizado → virtualizado] prevalecer; em contrapartida, reage, se esse conteúdo for avaliado como conteúdo invertido a reclamar sua inversão em conteúdo posto A título de exemplo imediato, o empreendimento de Péguy, a partir da oposição entre o �já feito � o ultrapassado, em nossa abordagem – e o “fazendo-se” – o atual –, esforça-se por barrar o que ele chama de “amortecimento”:“Pois a madeira morta é a madeira invadida pelo já feito, inteiramente ocupada, inteiramente dedicada ao já feito, inteiramente devorada pelo já feito, inteiramente consumida, por assim dizer, pela invasão do já feito Ressequida por completo, mumificada por completo; plena de seu hábito e

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de sua memória É uma madeira que chegou ao limite de tal amortecimento É uma madeira cuja matéria foi sendo toda tomada, pouco a pouco, por esse envelhecimento É uma madeira cuja flexibilidade foi sendo toda ela, aos poucos, carcomida por esse enrijecer, e cujo ser foi inteiramente esclerosado por um tal endurecimento É uma madeira que não tem mais um átomo de espaço, nem de matéria, para o fazendo-se Para fazer um fazendo-se Logo, ela não o forma mais, ela não o faz mais”7

O seguinte quadro expõe a projeção dos modos de presença nas categorias enunciativas:

7

PÉGUY, C Œuvres en prose, 1909-1914 Paris, Gallimard, La Pléiade, 1961, p 1402

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_PRESENÇA

Presença realizada EGO PdV do sujeito PdV do objeto AQUI AGORA espantado novo próximo atual

Presença virtualizada habituado antigo distante ultrapassado

Em segundo lugar, o “eu” semiótico não se reduz ao “eu” lingüístico: o “eu” semiótico é um “eu” sensível, afetado, muitas vezes atônito, quer dizer, comovido pelos êxtases que o assaltam, um “eu” mais oscilatório do que identitário A presença se torna, por isso, uma variável, como já mostrava Descartes ao tratar da “admiração”:“Quando o primeiro encontro com algum objeto nos surpreende, julgamo-lo novo, ou bem diferente do que conhecíamos antes []; isso pode nos acontecer antes de sabermos minimamente se tal objeto nos é conveniente []; ele não tem contrário, uma vez que, se o objeto que se apresenta nada tiver em si para nos surpreender [], consideramo-lo sem paixão”8

O “eu” semiótico habita um espaço tensivo, ou seja, um espaço em cujo âmago a intensidade e a profundidade estão associadas, enquanto o sujeito se esforça, a exemplo de qualquer vivente, por tornar esse nicho habitável, isto é, por ajustar e regular as tensões, organizando as morfologias que o condicionam Se aceitarmos ver, por um lado, na duração e no espaço, possibilidades de desdobramento, e, por outro lado, na intensidade o operador capaz de efetuar, mas também, quando for o8

DESCARTES, R Traité des passions Paris, Gallimard, La Pléiade

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_PRESENÇA

caso, de inibir esses desdobramentos, o campo de presença será determinado, do ponto de vista morfológico, de um lado pelo centro dêitico que lhe serve de referente, e do outro pelos horizontes de aparecimento e desaparecimento que constituem suas primeiras modalizações e aspectualizações A profundidade espácio-temporal proporciona à presença um devir e uma extensão; ela permite

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além disso, na medida em que é sempre passível de se contrair ou se estender, de recuar ou avançar os horizontes, uma perspectivização da presença ou da ausência, uma em relação à outra, de sorte que o campo de presença aparece como modulado, mais do que recortado, por diversas combinações de ausência e presença, isto é, por correlações de gradientes da presença e da ausência Gostaríamos de mostrar mais precisamente como os termos do par presença/ausência são articulados por sua imersão no espaço tensivo A categoria que procuramos construir baseia-se, de fato, na co-presença, num mesmo domínio – ou campo de presença –, de pelo menos duas grandezas: a presença semiótica não pode ser senão relacional e tensiva, e deve compreender-se como uma “presença de x a y” Na perspectiva que nos interessa aqui, as duas grandezas em foco são os dois resultantes da função “percepção”, um sujeito e um objeto A partir disso, o domínio considerado é aquele determinado pelo alcance espácio-temporal do ato perceptivo, que pode ser expresso tanto em termos de extensão dos objetos percebidos, quanto em termos de intensidade das percepções Esse domínio tem portanto um interior e um exterior (o “campo” e o “extracampo”), cujos correlatos respectivos são a tonicidade e a atonia das percepções Pode, além disso, ser tratado como aberto ou como fechado; no primeiro caso, a percepção é considerada como um foco, e, no segundo, como uma apreensão O foco se firma, em suma, na intensidade da tensão que instaura entre seus dois resultantes, o sujeito e o objeto, ao passo129

_PRESENÇA

que a apreensão procede por delimitação de uma extensão, e demarca o domínio para aí circunscrever o objeto Nessa perspectiva, “apreender” é fazer coincidir a extensão de um domínio fechado com o campo em que se exerce a intensidade ótima da percepção No campo assim circunscrito, a intensidade e a extensidade perceptivas evoluem de maneira conversa: quanto maior o número de objetos apreendidos, mais se admite que seja intensa a percepção Em contrapartida, “focalizar” é selecionar, numa extensão aberta, a zona em que se exercerá a percepção mais intensa; é renunciar à extensão e ao número dos objetos, em prol da saliência perceptiva de alguns, ou de um único Por conseguinte, no foco, a intensidade e a extensidade perceptivas evoluem de maneira inversa: quanto menos objetos se visam de uma só vez, mais bem estes são visados A profundidade do foco e da apreensão, avaliada a partir do centro dêitico, será portanto função da tonicidade de um e outra, tonicidade essa considerada como um complexo de intensidade e extensidade perceptivas As definições respectivas do foco e da apreensão são homólogas das definições respectivas dos valores de absoluto (correlação inversa entre intensidade e extensidade) e dos valores de universo (correlação conversa), tais como aparecem no capítulo “Valor” Poder-se-ia, então, indagar, com razão: de que intensidade e de que extensão se tratava? Em que medida esses dois tipos axiológicos se fundavam nas duas grandes direções do espaço tensivo? A resposta se encontra em nossa definição da presença: os valores de absoluto, associados às operações de triagem axiológica, firmam-se no tipo perceptivo do foco; os valores de universo, associados às operações de mistura e totalização axiológicas, firmam-se no tipo perceptivo da apreensão Nessa primeira fase de elaboração da categoria, dispomos de dois gradientes da “tonicidade” perceptiva: o da apreensão e o do foco Admitiremos que a categoria presença/ausência repousa sobre a correlação entre esses dois gradientes, na medida em130

_PRESENÇA

que suas diferentes configurações resultam da associação entre um foco e uma apreensão, da tensão entre a abertura e o fechamento do campo Semelhantes tensões podem ser organizadas em rede:

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Foco tônico Apreensão tônica Apreensão átona Plenitude Falta Foco átono Inanidade Vacuidade

ou então, organizadas em quadrado homogêneo, mas não canônico:Plenitude Dêixis da PRESENÇA Vacuidade

{Falta

}

Dêixis da AUSÊNCIA

Inanidade

As modulações da presença e da ausência fornecem, em suma, a primeira modalização das relações entre o sujeito e o objeto tensivos, a modalização existencial: a plenitude é realizante, a falta é atualizante, a vacuidade é virtualizante e a inanidade é potencializante Tal sugestão supõe, de fato, (i) que as modalizações existenciais possam ser engendradas a partir das modulações da presença/ausência, e (ii) que possamos generalizar as articulações da base perceptiva ao conjunto da modalização existencial no discurso No que toca ao primeiro ponto, é fácil perceber que a categoria da presença procede de uma análise tensiva, perceptiva, e preocupada em articular as formas complexas, dos mesmos fenômenos que são analisados, por outro lado – numa perspectiva discreta, estritamente narrativa, e limitada aos termos simples –, gra131

_PRESENÇA

ças à categoria da junção Ora, a categoria da junção já foi utilizada por Greimas para fundar a tipologia dos modos de existência (cf na presente obra, o capítulo “Modalidade”), e isso em dois tempos Primeiro, de um ponto de vista epistemológico:“A teoria semiótica se coloca o problema da presença, isto é, da ‘realidade’ dos objetos cognoscíveis, problema comum – é verdade – à epistemologia científica no conjunto”9

Segue-se a apresentação dos três modos de existência então reconhecidos: o virtualizado, o atualizado e o realizado Em seguida, os mesmos modos de existência são atribuídos ao percurso do sujeito discursivo, a partir do seguinte raciocínio:“[] uma definição existencial, de ordem propriamente semiótica, dos sujeitos e dos objetos encontrados e identificados no discurso, é absolutamente necessária Dir-se-á que um sujeito semiótico não existe enquanto sujeito senão na medida em que se lhe pode reconhecer pelo menos uma determinação; ou seja, que ele está com um objeto-valor qualquer Da mesma forma, um objeto [] só o é enquanto esteja em relação com um sujeito, enquanto é ‘visado’ por um sujeito É a junção que é a condição necessária tanto à existência do sujeito quanto à dos objetos[]”10

Vê-se bem como foi que, da questão epistemológica da presença, passamos à categoria discursiva da junção: por intermédio dos modos de existência que lhes são comuns Parecenos, todavia, que, a partir do momento em que recebe, como aqui, uma definição discursiva e tensiva firmada nas correlações entre o foco e a apreensão, a categoria presença/ausência substitui facilmente, e não sem proveito, a da junção, cujas operações lógico-narrativas constitutivas permanecem, com efeito, um tanto9 10

71

Page 72: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 172 Op cit, p 173

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_PRESENÇA

distantes das questões inerentes à existência, em particular a densidade de presença e a tonicidade perceptiva Verdade que se a junção fosse tratada como uma grandeza complexa, associando, por exemplo, os avatares da intencionalidade (i e: o foco) e as vicissitudes da captura (i e: a apreensão), reencontraríamos então o complexo foco/apreensão e, com ele, toda a espessura, toda a densidade da existência semiótica Quanto ao segundo ponto, é preciso admitir que, em nosso procedimento, a tonicidade (esse complexo de intensidade e extensidade) prevalece sobre as demais grandezas Para uma semiótica da presença, a relação não vai da diferença para a tonicidade, mas sim da tonicidade para a diferença; analogamente, a física, em sua própria ordem, inverteu a relação admitida entre a matéria e a energia, e pôs a matéria na dependência dos destinos da energia A partir disso, se nós erigimos a intensidade/extensidade como dimensões ab quo, a apreensão da presença torna-se indissociável da avaliação dessa tonicidade: o simulacro semiótico, a própria semiose, resultaria, sob esse aspecto, de um compromisso entre as duas modulações extremas que são, por um lado, o excesso de presença do mundo natural (o “pleno” da expressão, a plenitude sensível das tensões) e, por outro, o excesso de ausência do mundo interior (o vazio de conteúdo, a ausência de articulações) Entre esses dois extremos, a significação se nutre de todos os graus de modulação recíproca da presença e da ausência A generalização da complexidade que propusemos leva a pensar que a existência semiótica assenta, afinal de contas, na busca de um equilíbrio tensivo entre os diferentes modos de existência (a potencialização, a virtualização, a atualização e a realização), que organizam o campo perceptivo e, transitando através do percurso gerativo, condicionam a própria semiose discursiva Mas o compromisso sensível em que se alicerçam os universos de sentido está sempre ameaçado pelo não-sentido, que espreita nas duas extremidades do gradiente da presença133

_PRESENÇA

Com base nisso, e retomando a sugestão de Semiótica das paixões, que introduz um quarto modo de existência11 , propomos a seguinte homologação:Plenitude realizante Vacuidade virtualizanter li t

Falta atualizante

Inanidade potencializante12

22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

O conteúdo das definições sintagmáticas não é autônomo; deve concordar com as definições paradigmáticas que acabamos de mencionar, e obedecer às seguintes exigências: (i) a pertença a um espaço tensivo; (ii) a divisibilidade da foria, cujo corolário é a solidariedade entre os gradientes da intensidade e da extensidade, conforme procuramos demonstrar no estudo dedicado à valência Globalmente, os percursos sintáxicos se deduzem das definições paradigmáticas, como diminuições

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ou aumentos da intensidade do foco e da extensão da apreensão, e a “presença viva” é nesse caso um produto das tensões máximas11 12

GREIMAS, A J et FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 128-36 Como já mencionamos e justificamos no capítulo “Valor”, não retomamos nem a formulação de Semiótica das paixões nem a do Dicionário de semiótica: na realidade, considerar a atualização como disjuntiva no discurso, é se servir de um emprego contra-intuitivo desse termo e colidir com sua significação epistemológica (cf Greimas & Courtés: “a existência atual, própria do eixo sitagmático, oferece ao analista os objetos semióticos in praesentia, parecendo, com isso, mais ‘concreta’ ”, Dicionário de semiótica, p 172) Se as palavras possuem um sentido, a atualização está a um passo da realização, ou seja, situa-se, como termo complementar, na mesma dêixis que esta e nunca em posição contrária

134

_PRESENÇA

221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Não há necessidade de imaginar as definições sintagmáticas: a foria, considerada como o princípio sintáxico do espaço tensivo, é precisamente aquilo cujo devir se modula pelas variações da tonicidade perceptiva A presença perceptiva deve portanto ser confrontada à “foria” que a carrega, sendo esta da ordem do puro “vivenciado”, isto é, do sentir Desse ponto de vista, a presença é o correlato perceptivo de uma grandeza puramente sensível, identificável à “lebendige Strömung der Gegenwart” segundo Husserl, ao “fluxo inapreensível” segundo Cassirer Os modos de existência, ou modalizações existenciais, fornecem-nos desde já uma sintaxe canônica, que cruza dois percursos, como no quadrado semiótico: a inanidade (a potencialização) constitui uma “perda” de densidade existencial, provocada pela anulação do foco, perda que conduz da presença (realizante) à ausência (virtualizante); inversamente, a perda (atualizante) proporciona um ganho de densidade existencial, devido à intensidade do foco, no caminho que leva da ausência à presença Assim, os dois percursos podem ser representados, respectivamente, como a saída e a entrada por relação ao domínio perceptivo:Inanidade (Potencialização)

Vacuidade (Virtualização)

Plenitude (Realização)

Falta (Atualização)

Gostaríamos de evocar o que sucede quando essa estrutura sintáxico-prosódica, cujo plano de fundo permanece constituído pelas transformações da tonicidade perceptiva (intensidade/exten135

_PRESENÇA

sidade), incide sobre as três dimensões constitutivas da enunciação, a actancialidade, a temporalidade e a espacialidade: 1 No que concerne ao actante, podemos considerá-lo, quer na perspectiva da intensidade, quer na da extensidade Assim se articula a intensidade: compacto ⇔ difuso Segundo a extensidade, ego recebe a quantificação: uno ⇔ numeroso As duas dimensões

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constitutivas da tonicidade perceptiva e da densidade de presença, a intensidade e a extensidade, podem então adotar os seguintes estilos ou regimes:Int: compacto Ext: uno Int: difuso Ext: numeroso (virtualizado)

(realizado)

Dêixis da INDIVISÃO

{(atualizado) Int: concentrado Ext: massivo (potencializado) Int: distribuído Ext: dividido

}

Dêixis da DIVISÃO

A pergunta a que estamos tentando responder está motivada pela projeção da definição de estrutura, “entidade autônoma de dependências internas”, sobre a tensividade (intensidade e extensidade) A dependência diz respeito, neste caso, à solidez do liame entre intensidade e extensidade: uma estrutura pode ser postulada se uma morfologia diferencial estiver associada, de maneira recorrente, a um determinado grau de intensidade Para simplificar, só examinamos aqui a correlação inversa entre a intensidade e a extensidade:136

_PRESENÇA

a) Com o compacto, estamos diante do que gostaríamos de chamar de presença viva: a intensidade está no auge, e a morfologia associada é a do uno, do singular b) Com o distribuído, reencontramos essa disposição que liga a diminuição das tensões a seu fracionamento, e a morfologia associada é a que resulta da cisão, geradora do dividido, e até mesmo do discreto e do serial Como já indicamos no estudo dedicado à valência, toda articulação, na medida em que contraria a fusão, vale como distensão, levando à potencialização e afinal à virtualização da própria intensidade c) Com o difuso, do ponto de vista da intensidade, e o numeroso, do ponto de vista da extensidade, a distensão se manifesta pela distância estabelecida e mantida entre o sujeito e o objeto, ainda quando benéfico A máxima difusão da cisão culmina, agora, na pluralização, que é a morfologia mais distensa Para ilustrar, lembremos que, segundo H Wölfflin, tal distensão era a categoria diretriz do estilo do Renascimento, tendo como correlato uma lassidão crescente, ou seja, uma felicidade:“O Renascimento é a arte da beleza plácida Ele nos oferece essa beleza libertadora que sentimos como um bem-estar geral e um crescimento regular de nossa força vital”13

Os paradoxos comuns denunciados acerca dos valores tomados dois a dois encontram resolução nos ajustes e concordâncias de valências d) Com o concentrado, a reconstituição da intensidade, graças à atualização, terá como correlato morfológico e quantitativo o massivo; sob essa denominação emprestada da lingüística, reconhecemos grupos indissociáveis, massas pouco articuladas porém individualizadas; o ritmo faz amplo uso destas, já que uma13

WÖLFFLIN, H Renaissance et baroque Paris, Le Livre de Poche, 1989, p 81

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_PRESENÇA

das virtudes do ritmo consiste em reunir as grandezas numerosas em grupos, ou células rítmicas, resistentes à dispersão; a retomada da intensidade (“concentrado”) e o déficit morfológico (“massivo”) são solidários um do outro Prolongando o exemplo anterior, lembremos que Wölfflin insiste na dissolução dos contornos e dos limites em que se empenhou, em sua opinião, a arte barroca:“O contorno é destruído por princípio, a plácida linha contínua cede lugar a uma zona terminal, as massas não podem ser delimitadas por linhas nítidas, mas ‘perdem-se’”14

2 Para a temporalidade, a aplicação da distinção proposta por G Guillaume entre �tempo ascendente � e �tempo decadente �15 leva a opor, para o primeiro: iminente ⇔ futuro e, para o segundo: recente ⇔ antigo A tensão entre �iminente � e �futuro �, por sua vez, é analisável a partir do momento em que a supusermos variável em tensão e lassidão, de tal forma que o pólo tenso, o iminente, possa ser relaxado, e, ao contrário, o pólo distenso, o futuro, possa ser tensionado:

14 15

Op cit, p 69 GUILLAUME, G Temps et verbe – théorie des aspects, des modes et des temps Paris, Champion, 1968, p 52 e ss

138

_PRESENÇA

Iminente Dêixis da impaciência

Futuro

{Antecipado Adiado

}

Dêixis da paciência

A tensão própria do tempo decadente, a saber, recente/antigo, também pode ser enriquecida: Recente Dêixis da permanência Antigo

{Reminiscente

} Dêixis daEsquecido

precariedade

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Page 76: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

Notemos ainda que, se os esquemas contrastam por suas respectivas direções, eles contrastam principalmente por sua diferença de tempo: a transformação da paciência em impaciência pode ser considerada como uma aceleração, e a transformação inversa, como uma desaceleração Do mesmo modo, para o tempo decadente, a reminiscência é, em maior ou menor medida, súbita, ao passo que o apagamento das recordações está marcado pela progressividade 3 Enfim, quanto à espacialidade, a tensão entre o “próximo” e o “distante” também pode ser desenvolvida graças às variações tensivas:

139

_PRESENÇA

Próximo Dêixis da integração

Distante Dêixis da } expulsão

{Familiar

Estranho

Neste estudo, como em outros, o leitor terá observado: pelo menos duas dimensões são necessárias para evidenciar os valores em cada sistema Assim, no que tange à espacialidade, a distância métrica deve se entrosar com uma distância afetiva, da mesma maneira como, na temporalidade, uma distância cronológica deve se entrosar com uma distância mnésica Tal bivalência repropõe, mais uma vez, a questão da passagem de uma correlação de valências tensivas para um quadrado semiótico, ou seja, a questão da somação e da categorização A esse respeito, o último caso de figura é particularmente revelador Com efeito, em termos de valências, e portanto de correlações tensivas, o gradiente (métrico) do “próximo” e do “distante” varia de maneira conversa com o gradiente (afetivo) do “familiar” e do “estranho”; mas a correlação entre as valências associadas duas a duas homogeneíza a categoria, de modo que, por contágio, os dois primeiros termos ficam também carregados afetivamente, e os dois últimos recebem um valor métrico Assim é que a “familiarização” se torna uma etapa da aproximação e, reciprocamente, a aproximação é a culminação do estabelecimento do contato afetivo É mediante essa condição que os limites dos gradientes conjugados tornam-se fronteiras da categoria, e que as correlações tensivas, uma vez estabilizadas, são convertidas em diferenças Mas o leitor observou, e talvez tenha estranhado, que os termos simples, que se supõem habitualmente isótopos, ficam assim estabelecidos logo de saída como complexos figurais tensivos Os quadrados construídos para explicar discursos con140

_PRESENÇA

cretos foram muitas vezes criticados por seu caráter heterogêneo: propomos inverter a perspectiva, e considerar que a semiótica do discurso lida unicamente com categorias impuras, em que o valor emerge das tensões entre no mínimo duas dimensões222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Concebemos as definições amplas como estruturas receptoras para as definições restritas Estas se obtêm aqui através da projeção das definições amplas sobre as categorias elementares da sintaxe, a saber, as de sujeito e objeto Gostaríamos agora de examinar brevemente em que medida esse

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Page 77: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

levantamento de estruturas tensivas pode contribuir, sob esse ponto de vista apenas, para enriquecer a tipologia dos sujeitos Dado que as estruturas tensivas são impulsionadas sintaxicamente pelas variações correlatas da intensidade e da extensidade, é útil comparar o percurso que, no quadrado, leva da realização à virtualização, passando pela potencialização, à prótase de um período rítmico, e o percurso que leva da virtualização à realização, passando pela atualização, à sua apódose A tipologia tensiva do sujeito assentaria, portanto, no seguinte princípio: se admitirmos que, como toda grandeza semiótica considerada do ponto de vista tensivo, a subjetividade pode ser descrita como uma relação tensiva consigo mesma, entre “ego” e “alter-ego”, a tensão interna constitutiva da subjetividade (e da “empatia”, segundo Kant) poderá ser compreendida pelo menos de três maneiras: (i) no que toca aos atos perceptivos, como uma tensão, maior ou menor, entre o foco e a apreensão; (ii) do ponto de vista do alcance das percepções, como uma tensão entre a interoceptividade (o noológico, a “consciência”, o “pensamento”, etc) e a proprioceptividade (o corpo próprio do sujeito que percebe, sede das correlações entre dimensões); e (iii) no que diz respeito à identidade modal, como uma tensão entre os papéis modais que o compõem141

_PRESENÇA

Em cada caso, o sujeito está clivado em pelo menos duas instâncias (S’ e S”) – por exemplo, S’, sujeito do foco, e S”, sujeito da apreensão; entre tais instâncias, a tensão evolui da contração máxima, por fusão, que é realizante, até a distância máxima, que é virtualizante Para cada um deles, o mundo (M) é um fator de coesão ou dispersão – em caráter de campo de presença, no caso (i), de exteroceptividade, no caso (ii), e de objeto sintáxico, no caso (iii) A realização do sujeito S, em face de um mundo M percebido como único e de presença compacta, consagra-o como contraído, unificado, na medida em que não há qualquer distância entre o foco e a apreensão, entre a interoceptividade e a proprioceptividade: a apropriação do mundo M pelo sujeito S é, de certa maneira, simultânea à sua confrontação A potencialização do sujeito S, perante um mundo M percebido como distribuído e dividido, compromete essa apropriação síncrona de M por S’ e S”, de tal sorte que a tensão interna do sujeito diminui, distribuindo-se: o sujeito estará, então, distendido A virtualização do sujeito S, ante um mundo M percebido como difuso e numeroso, compromete radicalmente a apropriação paralela de M por S’ e S”: nesse caso, é um ou outro Em razão disso, o sujeito será desligado de si mesmo A atualização defronta o sujeito S e um mundo M percebido como concentrado e massivo: assim, ela reconstitui em parte a tensão entre as duas instâncias S’ e S”, e permite, se não uma sincronização, pelo menos uma superposição parcial de seus atos e papéis respectivos, de modo que o sujeito poderá ser chamado aqui de mobilizado, tal como se diz que o exército “mobiliza” suas tropas, ou seja, convoca-as ao mesmo tempo em que as reúne Obtém-se assim uma tipologia das tensões próprias ao “diálogo” do sujeito consigo mesmo; cada “estado de alma” resulta da interação com as modulações da intensidade e da extensidade projetadas sobre o mundo M:142

_PRESENÇA

Sujeito contraído (realizado)

Sujeito desligado (virtualizado)

(atualizado) Sujeito mobilizado

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(potencializado) Sujeito distendido

Supõe-se que essa tipologia possa explicar a interação entre, por um lado, a tensão entre as instâncias clivadas do sujeito – instâncias sensíveis, perceptíveis e modais – e por outro lado as energias e morfologias que caracterizam seu mundo-objeto Pode ser declinada de acordo com os três casos de figura evocados acima (foco e apreensão, interoceptividade e proprioceptividade, papéis modais), em especial para explicitar, neste último caso, os imponderáveis da coesão interna do sujeito apaixonado Parece, contudo, depreender-se uma unidade noutro plano, se se considera por exemplo que é o próprio corpo do sujeito que, em todos os casos, constitui ao mesmo tempo o lugar e a mola da tentativa de reunião ou separação das instâncias S’ e S’’; tal tipologia diria respeito, então, à comunicação entre a linguagem do corpo e as outras linguagens A maior ou menor distância entre o próprio corpo e as outras instâncias do sujeito dá lugar às variações da tensão emocional, considerada como dependente dessas “diferenças de potencial” internas ao sujeito Assim é que um sujeito “mobilizado” será arrebatado pela emoção, vindo a tornar-se até mesmo, quando dotado das competências e dos programas de uso requeridos, “fantasmático”, conforme demonstra a leitura da fábula de La Fontaine, proposta em Semiótica das paixões Da mesma forma, um sujeito “concentrado”, cujo corpo próprio carrega consigo todo o ser, poderá ser considerado exaltado, ou até extático, o que demonstrou M de143

_PRESENÇA

Certeau em sua análise de “L’absolu du pâtir”16 A mesma figura, tensa ao máximo, poderia, mais comumente, ser considerada como a do sujeito “embevecido” Em outros contextos, este poderia até ser qualificado de “entusiasta”, quase no sentido etimológico, na medida em que o princípio mesmo de sua ação ou reação “habita” literalmente seu corpo Enfim, o sujeito “distendido”, pela negação da exaltação, estaria então “desiludido”, e o sujeito “desligado”, completando o percurso da distensão, estaria abatido A reformulação “emocional” da tipologia dos sujeitos pode ser reportada no diagrama anterior: Sujeito concentrado (exaltado, extático) Sujeito desligado (abatido)

(arrebatado) Sujeito mobilizado

(desiludido) Sujeito distendido

Se, por jogar com valores e valências, tais estases e fases tiverem alguma pertinência, torna-se então compreensível que elas tenham retido a atenção dos escritores afeiçoados à análise Pediremos a Valéry e a Nietzsche um testemunho em nosso favor No diálogo intitulado Eupalinos ou l’Architecte, Valéry demonstra claramente que o sujeito arrebatado, evocado por Fedro, é incompreensível para Sócrates, sujeito desligado:“Sócrates – Mas dado que os deuses permitem, meu caro Fedro, que nossas conversas prossigam nestes infernos, [] devemos saber agora o que é verdadeiramente belo, o que é feio; o que convém ao homem, o que deve maravilhá-lo sem confundi-lo, possuí-lo sem embrutecê-lo16

“L’absolu du pâtir”, Actes Sémiotiques, Bulletin, 9, “Passions”, Paris, CNRS, 1979

144

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_PRESENÇA Fedro – É aquilo que o eleva sem esforço acima de sua natureza Sócrates – Sem esforço? Acima de sua natureza? Fedro – Sim Sócrates – Sem esforço? Como é possível? Acima de sua natureza? Que quer dizer isso? Penso invencivelmente num homem tentando subir em seus próprios ombros! Avesso a essa imagem absurda, pergunto-te, Fedro, como deixar de ser si próprio e, depois, retornar a sua essência? E como, sem violência, pode isso acontecer?”17

Mas foi certamente Nietzsche quem mais alimentou o tema da oposição entre os dois regimes da presença, confrontando o “dionisíaco” e o “apolíneo” – que vinculamos respectivamente às dêixis intensiva e extensiva Se a intenção de Nietzsche é mostrar que a arte grega tende à complexidade, ou seja, a criar obras a um tempo “apolíneas” e “dionisíacas”, nosso propósito é muito mais modesto, pois que desejamos apenas validar dois tipos de vínculos Por um lado, o vínculo entre distensão e estabilidade morfológica, entre o “sonho” e a “aparência”:“É o contorno sóbrio, a ausência de impulsões brutais, a calma e a sabedoria do deus escultor [] Ainda quando este exprime a cólera e o ressentimento, a graça da bela aparência não o deixa”18

A obra “apolínea” é respeitosa daquilo que Nietzsche denomina “princípio de individuação”, isto é, daquilo que nos permitimos, acerca das estruturas elementares, denominar “o numeroso”:“Poder-se-ia até dizer de Apolo que a fé inabalável no princípio de individuação e a tranqüilidade encontraram nele sua expressão sublime”19

17 18 19

VALÉRY, P Eupalinos ou l’Architecte Paris, Gallimard, La Pléiade, 1960, p 89 NIETZSCHE, F La naissance de la tragédie Paris, Gallimard, Idées, 1970, p 24 Op cit

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_PRESENÇA

Pouco mais adiante, Nietzsche falará de “natureza desmembrada em indivíduos” Por outro lado, o vínculo entre intensidade e divagação morfológica, entre a “embriaguez” e a “harmonia universal”:“[] [o homem] sente-se deus, marcha extasiado e alçado acima de si mesmo, como aqueles deuses que ele viu marchar em sonho”20

Consideremos agora os regimes de presença do objeto Também aí as direções mutuamente inversas da potencialização e da atualização parecem fundar as morfologias elementares do objeto, as quais poderiam ser aproximadamente circunscritas graças às seguintes denominações:Moderno Clássico

Novo

Antigo

Não é sobre as significações objetivas – pois, nesse caso, as denominações propostas pareceriam evasivas ou muito arbitrárias – que versam nossas declarações, e sim sobre as valências que subjazem a elas As significações dependem da enciclopédia, que estabelece por debreagem a antiguidade dos começos nesta ou naquela data Mas temos em vista o comércio dos valores, ou seja, o percurso dos objetos que potencializa sua modernidade e atualiza sua antiguidade Aí, a presença se afasta mais uma vez do “estado” propriamente dito, e parece ligada a uma problemática das fases

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tensivas: (i) a conversão de um objeto “moderno” em objeto “clássico” é grosso modo distensiva, mas, se o processo20

Op cit p 26

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_PRESENÇA

for examinado de perto, a “antiguidade”, que corresponde em princípio a um limiar, pode converter-se num limite: nem tudo que é antigo se torna clássico, e essa parada pode avivar a tensão; (ii) também a transferência inversa deve apreciar o peso das valências respectivas do clássico e do moderno; mais precisamente, os sujeitos têm que medir, com efeito, a resistência a uma “novidade” que lhes parece, em maior ou menor medida, “agressiva”, e que pode, por isso, comportar-se também, quer como limiar, quer como limite Também aqui, a consagração da novidade em modernidade está na dependência do tempo, muito embora a época contemporânea, ávida, como se sabe, de velocidade “pura”, tenda a abreviar o intervalo que os distingue

3 CONFRONTAÇÕESNesta seção, gostaríamos de examinar se a problemática dos modos de presença, proposta pelo Dicionário de Sémiótica e Semiótica das paixões, é exclusiva ou não A revelar-se exclusiva, ela induzirá uma ruptura, para não dizer uma “mudança de paradigma”; ao contrário, se se admitir a diversidade de “estilos de presença”, são apenas novas perspectivas que se abrem No terceiro volume de La philosophie des formes symboliques, E Cassirer admite que existe uma região em que as distinções entre “objeto” e “propriedades”, entre “ser” e “parecer”, são ainda desprovidas de prioridade, e essa região é o mito:“Todo fenômeno ocasional [no mito] mostra um caráter de presença autêntica, e não de mera representação substitutiva: cada ente real ergue-se em plena presença, em vez de se ‘representar’ somente pela mediação do fenômeno”21

21

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, op cit, tome 3, p 83

147

_PRESENÇA

As clivagens entre o “signo” e a “coisa”, entre a “parte” e o “todo”, tidas por indispensáveis pela conduta objetivante, ainda não são nem operantes, nem exclusivas, e a própria conversão da diferença em precedência é peculiar à conduta objetivante, mas de modo algum à consciência mítica: para que esta última se reconheça na conduta objetivante, seria necessário que ela se comparasse ao procedimento científico, e que essa comparação trouxesse à tona uma falta, mas sabe-se que é o contrário que se admite, em geral, quando a comparação é efetuada a posteriori Há “mais”, e até “melhor”, no mito, do que no inventário “desencantado” do mundo ao qual a conduta objetivante se dedica, sob a denominação de “ciências” No entanto, o conhecimento dito científico e a consciência mítica possuem, pelo menos, duas categorias em comum, as de “presença” e “eficiência”, a primeira sob a insígnia do objeto e a segunda, sob a do sujeito:

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“Pois toda realidade efetiva que apreendemos é menos, em sua forma primitiva, a de um mundo preciso de coisas, erigido diante de nós, do que a certeza de uma eficiência viva sentida por nós”22

O sujeito e o objeto tensivos da eficiência e da presença podem ser afetados pela intensidade, em especial pela categoria “tônico vs átono” O actante sujeito aparece então como o emissor de certo grau de intensidade, e o actante objeto como o receptor Se o emissor for tônico, sua ação aparecerá como um golpe, e produzirá no receptor um “efeito”; se o emissor for átono, sua ação aparecerá apenas como “eficiência”, e o receptor contentar-se-á em senti-la como “presença” Para o observador, o “efeito” e a “presença” manifestam pois, respectivamente, a “ação” e a “eficiência” do emissor Ou seja, a rede:Op cit, p 90

22

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_PRESENÇA

emissor receptor

tônico ação efeito

átono eficiência presença

Equivaleria isso a pôr em xeque a semiótica greimasiana? Não e sim, somos tentados a responder Em Semântica estrutural, Greimas defendia, acerca das categorias modais e actanciais, uma concepção antes “materialista” da emergência e interação dos actantes, arriscando-se a confiá-la ao imaginário:“Dizer que uma categoria modal engloba o conteúdo das mensagens e o organiza, estabelecendo um tipo determinado de relação entre os objetos lingüísticos constituídos, quer dizer, que se reconhece que a estrutura da mensagem impõe uma certa visão do mundo Assim, a categoria da “transitividade” nos força, por assim dizer, a conceber certo tipo de relação entre os actantes, coloca diante de nós um actante como investido de um poder de agir e um outro actante investido de uma inércia O mesmo ocorre com a relação entre destinador e destinatário, que parece não apenas fundar a troca, mas também instituir, face a face, objetos dos quais um será a causa e o outro o efeito”23

Entretanto, Greimas entreabre uma porta que em seguida se apressará em fechar para não contradizer as premissas “fonologizantes” e “logicizantes” adotadas para fundar as estruturas elementares da significação Uma segunda razão pode explicar o relativo desinteresse da semiótica pela categoria da presença O privilégio concedido pela semiótica greimasiana à narratividade proppiana conservou-se ambíguo: que a narratividade proppiana detenha um grau elevado de pertinência, certamente – mas dentro de que limites? De acordo com Propp, o conto era um avatar do mito, mas23

GREIMAS, A J Semântica estrutural, op cit, p 175

149

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_PRESENÇA

tal degradação permaneceu impensada e, para evitar a espinhosa questão que esta induzia, bastava fazer como se não houvesse nada de “mais” no mito do que na narrativa, e nada de “menos” na narrativa do que no mito Semelhante redução do mito à narrativa permite compreender, até certo ponto, que a semiótica tenha tido alguma dificuldade para tratar da presença, uma vez que, para uma importante tradição da antropologia, o mito lidava precisamente com a presença! No discurso semiótico propriamente dito, essa dificuldade induziu uma distorção entre, por um lado, uma metalinguagem privilegiadora da divisão, da diairesis e da articulação – e, para além disso, das forças dispersivas –, e, por outro, uma linguagem-objeto mais sensível à indivisão, à sunagôgê – e, para além, às forças coesivas –, como no caso do discurso mítico A homogeneidade da conceptualização semiótica supunha uma solução de continuidade entre a esfera do sensível e a do inteligível, e, pelo mesmo gesto, a suficiência do inteligível, mas a ruptura não pôde ser operada nem de direito, nem de fato Para começar, de direito: como nota Hjelmslev, distinguir não é separar, e é só aparentemente que o reconhecimento do inteligível se efetua à custa do sensível:“Mas nenhuma abstração, por aprofundada que seja, pode descartar e eliminar essa camada [fundamental e primitiva da percepção] enquanto tal; [] Essa abstração é plenamente legítima para a intenção puramente teórica de construir a ordem objetiva da natureza e apreender-lhe a legalidade; não pode, porém, dissipar o mundo dos fenômenos expressivos enquanto tal”24

O dualismo do afeto e da forma estabelece, por meio de um tenaz positivismo, que a forma se impõe por si própria, ao passo que a semiótica da presença, já adotada por E Cassirer, propõe,24

CASSIRER, E, op cit, p 89

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_PRESENÇA

com convicção, que o impacto da presença deve atribuir-se ao afeto, ou seja, em seus próprios termos, à “expressão”:“Da percepção, tomada como mera percepção de coisas, nunca se poderia inferir um ser real se este já não estivesse incluído nela, de uma maneira ou de outra, graças à percepção de expressão, e se este não se manifestasse nela de modo inteiramente original”25

Se examinarmos agora a questão de fato, as coisas ficam talvez ainda mais claras O percurso próprio da semiótica consistiu, de nosso ponto de vista, em reintroduzir progressivamente os pressupostos da presença como grandezas cardeais das linguagens-objeto: a foria, indispensável para fazer “rodar” ou “avançar” o modelo transformacional; a “massa tímica” a permitir a conversão dos “valores virtuais” do saussurismo em “valores axiológicos” ou intencionais; as paixões, para imprimir aos actantes e atores as dinâmicas tensivas internas; o “espaço tensivo”, proposto em Semiótica das paixões como “pré-condição” da busca pelo sentido; enfim, determinadas propostas recentes que visam a aprofundar tanto quanto possível a hipótese de uma prosodização do conteúdo Tomada em separado, cada uma dessas hipóteses aparece como a adição de um simples toque incapaz de pôr em xeque a economia global do projeto semiótico; postas em conjunto, porém, elas conferem à semiótica uma “fisionomia” sensivelmente diversa da que prevaleceu num primeiro momento

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25

Op cit, p 90

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_DEVIR

DEVIR1 RECENSÃOS QUESTÕES sobre o devir são tão antigas quanto a filosofia e o fato de termos como objeto de uma das primeiras confrontações – a que opõe Parmênides, adepto da eternidade do ser, a Heráclito, adepto da eternidade do devir – justamente o tratamento desse tema, indica que estamos diante de uma noção de grande envergadura Realmente, as filosofias que se interessam pelo devir opõem-no ao ser: quanto mais prestamos atenção no movimento progressivo pelo qual as coisas se dão, menos o ser é detectável, a ponto de provocar dúvida se haveria, no fluxo do devir, alguma coisa além dos “estados” Nesse sentido, tanto para Husserl como para Merleau-Ponty, o mundo sensível, a partir do momento em que é considerado por um sujeito, torna-se um perpétuo devir, dividido entre retenção e protensão, dado que a série dos esboços que constituem o ser sensível se sucedem e se superpõem indefinidamente No domínio da semiótica, é bom lembrar que o Dicionário de Semiótica, seguindo as opções iniciais de Greimas, não contém este verbete B Pottier havia apontado essa reticência1 No segundo volume do mesmo dicionário (Sémiotique, II), E Tarasti, em nome da semiótica musical, insiste sobre a importância do devir que o autor identifica com a temporalidade e que situa como termo neutro regido, entre o ser e o fazer, sendo estes considerados como termos regentes: a desaceleração é a expressão de uma modalização pelo ser na exata medida em que a aceleração nos remete a uma modalização pelo fazer2 1

A

2

POTTIER, B “Un mal-aimé de la sémiotique: le devenir”, in PARRET, H et RUPRECHT, HG Exigences et perspectives de la sémiotique, tome 1 Amsterdam, John Benjamins, 1985, p 499-503 GREIMAS, A J & COURTÉS, J Sémiotique, II, op cit, p 67

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2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Não existe definição lexical exclusiva do devir porque a classe paradigmática do devir, que poderíamos tentar constituir a partir da coleta dos sinônimos ou dos quase-sinônimos elaborados pelos dicionários, é um vale-tudo Considerar que o devir denota unicamente a passagem de um estado a outro, vista por um observador atento, é privilegiar, sem maior justificativa, uma das possibilidades Para falar claramente sobre o devir, é recomendável saber previamente “o que se passa” num paradigma – o que é o caso dos paradigmas gramaticais que são, de fato quando não de

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direito, estabilizados – mas a questão que levantamos supõe uma outra: os paradigmas, independentemente do número de termos que comportam, procedem da mesma estrutura ou de estruturas diferentes? As dificuldades encontradas para definir o devir decorrem, no nosso entender, das decisões relativas à predicação Admitamos, a título de premissa, que a predicação se aplique a um “espaço tensivo” organizado em torno de um centro dêitico; esse “espaço tensivo” é caracterizado pela intensidade que nele se distribui, pelos aparecimentos/desaparecimentos dos esboços no campo, por sua extensão e seus horizontes (cf capítulo “Presença”) Nesse sentido, o devir é uma propriedade da “instância enunciante” na predicação, instância que controla as transformações referentes à presença, à sua intensidade e sua amplitude Existiriam, por decorrência, três classes predicativas na dependência dos três eixos enunciativos da predicação: (i) a intensidade, produzindo a tensão entre tonicidade e atonia; (ii) a existência, produzindo a tensão entre ausência e presença; (iii) a extensão, produzindo especialmente a tensão entre abertura e fechamento154

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O estudo dos textos, das estruturas frásticas elementares, o reconhecimento da existência de estruturas patêmicas e afetivas, mostram que “o que conta” é ser ou não impactante, ser ou já não ser mais, ser ou não desdobrado Nas palavras de Saussure, a significação do devir diz respeito à passagem de um termo a outro, mas o valor do devir em cada um desses eixos não é o mesmo em razão das relações de pressuposição que identificamos entre essas três predicações: a existência (ausência/presença) pressupõe a intensidade (tônico/átono) e a extensão (aberto/fechado, concentrado/ampliado) De maneira que os valores intensivos do sensível e os valores extensivos da percepção são – é uma de nossas orientações – determinantes em relação aos valores existenciais Na terminologia de Hjelmslev, o devir torna-se uma “variedade”, ou seja, uma variante combinatória tributária da direção do discurso e da extensão que pretende abranger Mas se a análise mal chega a distinguir as três predicações mencionadas acima, os discursos travam relação com sua simultaneidade efetiva e uma das tarefas da discursividade consiste em atualizar o tipo de devir predominante Com efeito, esses três tipos de devir são necessariamente portadores de valores e de afetos diferentes – de valores quando o devir em questão volta-se para o objeto, de afetos quando volta-se para o sujeito Uma das finalidades do discurso, seja ele pertencente a um gênero ou relativamente livre, é, como indicava Greimas a propósito da “cólera”, operar essa “regulação [social] das paixões”3 até que um limiar, julgado como suportável ou aceitável, seja atingido e estabilizado As três predicações mencionadas – a intensidade, a extensão (ou “extensidade”) e a existência – pertencem tanto ao plano da expressão como ao plano do conteúdo; assim, gostaríamos de qualificá-las de gerais para distingui-las de sua projeção sobre3

GREIMAS, A J Du sens II, op cit, p 242

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qualquer um dos dois planos Examinaremos aqui apenas a projeção sobre o plano do conteúdo A cada uma dessas predicações corresponde uma tensão singular, difícil de nomear por ser ela tributária da língua na qual foi formulada A predicação intensiva (ou “prosódica”, que dá lugar à “consistência” – cf capítulo “Esquema”), que tem como base o tempo e os perfis sintáxicos da intensidade, corresponde, no plano do conteúdo, à polaridade: evento ⇔ estado O evento seria,

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pois, decorrente da definição mínima seguinte: evento = intensidade + classema/conteúdo dado que essas propriedades se aplicam a uma predicação tensiva (cf o devir), num campo sensível e perceptivo; a “intensidade”, especialmente, implica que haja um observador, sujeito que percebe e testemunha o “impacto” próprio do evento A predicação extensiva diz respeito primeiramente à espacialidade, mas na medida em que desenha o espaço abstrato no qual surgirão os valores; determina o espaço tensivo como “fechado” ou como “aberto”, de tal maneira que os valores que por aí circularão serão considerados “concentrados” ou “ampliados”; a polaridade extensiva se estabelece, pois, assim: exclusividade ⇔ universalidade A predicação existencial, por sua vez, fundamenta-se na temporalidade e na mnésia, que é o seu correspondente subjetal Realmente, o par [ser/não ser] só é pensável, de um ponto de vista semiótico, na perspectiva de um devir, ou de uma transfor156

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mação, em relação com um parecer que o manifesta; “não ser” é, portanto, apenas a “outra” extremidade de uma direção que atravessa o “ser”; além disso, a apreensão temporal dessa diferença não é da mesma natureza se o olhar dirige-se para o passado ou para o futuro; com efeito, contrariamente à abordagem fenomenológica, o enfoque semiótico do “devir existencial” fará a distinção entre (i) uma predicação propriamente existencial: [ser/ter sido], e (ii) uma predicação alética: [ser/dever ser]; a primeira instaura, portanto, o �passado �, e a segunda, o �futuro � Assim, a predicação existencial determinada pelo classema/conteúdo incide apenas sobre a polaridade: passadificação ⇔ presentificação Do ponto de vista paradigmático, o devir é, por isso, uma classe que controla três subclasses: o devir da foria (predicação intensiva), o devir da amplitude (predicação extensiva) e, enfim, o devir da mnésia (predicação existencial) Esse tríptico da predicação tem por base, como foi sugerido, o mesmo da enunciação, a qual se relaciona com as determinações de um domínio tensivo-perceptivo, organizado a partir da dêixis e articulável de acordo com a intensidade, a extensidade e a existência Como mostramos no capítulo “Presença”, a abordagem das “modalizações existenciais” continua ligada à intensidade e à extensidade, mas num nível de articulação diferente Nesse sentido, cada uma dessas polaridades é da ordem da virtualidade, ou seja, está sujeita a um tratamento semiótico que comporta um certo número de operações semióticas elementares As três operações seguintes parecem, nesse sentido, apresentar-se como as mais pertinentes na análise concreta e as mais bem fundadas para atualizar o devir em discurso: (i) a orientação, que polariza a trajetória com valor positivo num determinado universo de discurso; (ii) a seqüencialização, que fixa o lugar e o157

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número das grandezas manifestadas na cadeia; e (iii) a segmentação, que tem como resultantes uma diferenciação e uma rítmica Esse inventário é apenas uma hipótese de trabalho, da qual já podemos ver os limites, uma vez que pressupõe a linearidade e não leva em conta, por exemplo, o devir na “espessura” e a estratificação de um discurso, ou mesmo, mais genericamente, o devir nos discursos pluri-dimensionais Decorre, entretanto, dessas considerações preliminares que o conceito de transformação – ao qual o Dicionário de Semiótica pensava se ater ao tratar do devir – revela-se muito limitado, pois que interessa exclusivamente à predicação qualificativa (ser alguma coisa ou outra – provisoriamente ou para sempre); em segundo lugar, que esse devir singular deve ser tratado como um “sincretismo resolúvel”4 , comportando respectivamente uma força, uma foria de um certo tipo, a escolha de uma cadência, uma direção e um campo de extensão Sob essas prévias, um devir estaria, pois, semioticamente descrito, desde que se tenha calculado sua dinâmica, apreciado

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seu tempo, reconhecido seu sentido e circunscrito seu domínio Na medida em que mobiliza, ao mesmo tempo, várias predicações, a semiose é necessariamente complexa e a instauração do sentido consiste em fazer prevalecer uma determinada predicação em detrimento das outras Assim, quando Greimas propunha que duas paixões fundamentais do homem seriam a “espera” – o que não é ainda, já é – e a “nostalgia” – o que não é mais, é ainda –, é evidente que ressaltava a presentificação e privilegiava a predicação existencial em detrimento das outras duas5

4 5

HJELMSLEV, L Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op cit, p 96 GREIMAS, A J De l’imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987, p 93-8

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22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Se a distinção entre “definições amplas” e “definições restritas” aplica-se de modo tão pertinente ao devir, é porque, talvez, proceda deste último221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

As definições amplas têm como discriminantes a orientação e a seqüencialização Se, apenas por comodidade, chamarmos de A e não-A os termos de uma polaridade, a orientação consiste em reconhecer se é do tipo: [A → não-A] ou [não-A → A]; a seqüencialização deve estabelecer se o esquema discursivo limita-se a esse par ou se encadeia três seqüências: [A → não-A → A] ou ainda [não-A → A → não-A] Por outro lado, a fixação do tempo do discurso é uma das prerrogativas maiores do sujeito da enunciação e determina a difusão dos afetos A ressonância do tempo nas três predicações mencionadas explica as morfologias elementares respectivas da intensidade, da existência e da extensão; eis aqui uma tipologia possível, em que as denominações não pretendem se constituir em metalinguagem, mantendo apenas um valor indicativo:Tempo: INTENSIDADE EXTENSIDADE EXISTÊNCIA Vivo choque acesso parada Neutro desdobramento expansão duração Lento profundidade difusão mnésia

Considerado em si mesmo e globalmente, ou seja, como esquema, o devir determinado pelas variações do tempo apresentar-se-ia assim:159

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advir ⇓↓ ⇓ sobrevir devir ser ↓ ↓ ↓ lance processo estado A seqüencialização, nesse caso, é de fácil formulação, pois que se apresenta ora como aceleração, ora como desaceleração A relação entre a orientação e o tempo pode ser pensada a partir de pelo menos três questões diferentes: (i) Quanto “tempo” demora para se passar de uma seqüência a outra? (ii) Quais são as forças, ou seja, as competências que permitem esse avanço? (iii) Quais são as resistências conhecidas? O avanço será feito com facilidade ou com dificuldade? O exame do tempo conduz, como vimos, a um deslocamento terminológico controlável A tradição culta e a linguagem corrente mantiveram como termo genérico o “devir”, enquanto nós propomos substituí-la nesse papel por advir, o que nos obriga a restringir o devir ao âmbito de uma forma específica Essa escolha nos satisfaz a partir dos

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dois argumentos seguintes: em primeiro lugar, os três membros da tríade participam efetivamente, cada um a seu modo, do advir, este abordando o enunciado mínimo tensivo e os demais, suas variedades; em segundo lugar, qualquer um percebe que o devir não pode ser concebido sem um freamento interno que explica, sem muito custo, sua posição mediana entre o sobrevir, que vence num só “lance” todas as resistências potenciais, e o ser, no interior do qual as forças presentes equilibram-se, pelo menos momentaneamente Cumpre insistir com veemência no fato de que o sobrevir, o devir e o ser constituem aqui grandezas semióticas, condicionadas pela função semiótica, o que significa que a cada um desses termos estão vinculadas morfologias objetais singulares, de tal modo que a aceleração e a desaceleração encontram resistências, apreensões, atrasos160

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A conjugação da orientação e da seqüencialização leva-nos a depreender dois tipos de devir ampliado: se os termos extremos do percurso permanecem distintos, o devir será considerado linear; se, ao contrário, os termos extremos do percurso são idênticos, o devir será circular Essa formulação requer, no entanto, três precauções Em primeiro lugar, considerando que os valores semióticos são sempre contextuais, num esquema discursivo do tipo [A → não-A → A], o conteúdo A não possui o mesmo valor na posição inicial ou final, assim como o fonema /r/ em posição pré-vocálica, em �Roma � por exemplo, é sensivelmente diferente do fonema /r/ em posição pós-vocálica em �amor � (em pronúncia carioca) Em segundo lugar, a veridicção intervém para confundir os dados propriamente funcionais e produzir, por exemplo, um devir aparentemente linear e de fato circular: assim, o esquema narrativo greimasiano é apresentado como linear já que vai do “conteúdo invertido” ao “conteúdo posto”, mas a própria fórmula “conteúdo invertido”, considerando que os termos possuem um sentido, faz presumir que exista um conteúdo anterior à sua inversão e, portanto, faz conceber o “conteúdo invertido” como precedido por um “conteúdo pressuposto” Ao término dessa catálise elementar, o esquema narrativo greimasiano aparece como circular, no caso em que o “conteúdo pressuposto” e o “conteúdo posto” forem idênticos Enfim, um devir ampliado pode ser descrito como linear de fato mas não de direito: se um devir circular apresenta uma suspensão durável, do tipo que ocasiona uma indeterminação ao sujeito cognitivo, tal devir corre o risco de ser apressadamente qualificado de linear As especulações sobre as evoluções conhecidas como “abertas” são desse gênero Um devir linear também pode, por certo, ser equivocadamente reconhecido como circular: é esse o caso toda vez que a novidade é prematuramente interpretada em função dos códigos invalidados pelo seu surgimento161

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A dualidade dos devires possíveis conduz assim a distinguir devires de restauração e devires de instauração, dependendo dos conteúdos, “pressuposto” e “posto”, se são idênticos ou não Assim, o discurso do socialismo considerado “utópico” no século XIX era de “restauração” e se reportava à felicidade rousseauniana das primeiras eras, enquanto o discurso do socialismo, considerado “científico”, propunha-se como sendo de “instauração”, sem falar dos discursos que quiseram compor com ambas as direções222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

As definições restritas destacam a segmentação Toda seqüência pode ser desdobrada e esse desdobramento confere ao devir uma profundidade Assim, quando da substituição da seqüência

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simples [A → não-A → A] pela seqüência desdobrada [A → (não-A1 + não-A2) → A], o desmembramento da seqüência mediana, seu incremento, e a desaceleração que ocasiona são equivalentes a um ganho de profundidade A multiplicação dos planos na análise do estilo clássico elaborada por H Wölfflin é uma ilustração – exemplar, a nosso ver – dessa prática semiótica Em primeiro lugar, as proposições inovadoras de P Aa Brandt expostas no verbete “aspectualização” no Sémiotique, II6 , relativas à “cadência”, aos “efeitos de fase”, à “progressividade” e à “intensidade”, parecem-nos proceder das definições restritas do devir No mesmo espírito, configurações como “provir”, “parvenir”, “prevenir”, “intervir”, merecem ser vistas como morfologias locais: (i) o “provir” desdobra a incoatividade, instaurando uma “origem” do começo; estamos aqui no imaginário regressivo da genealogia; (ii) o “parvenir”, que podemos aproximar ao “efeito aorístico” indicado por P A Brandt, apresenta-se6

Op cit, p 20-2

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como uma morfologia localmente tensiva, concessiva (le sujet parvient à malgré)7 e, por isso, gratificante para o sujeito, em razão da resistência subjacente de um anti-sujeito que, declaradamente, impõe obstáculo ao progresso do processo; (iii) o “prevenir” e o “intervir”, bem próximos entre si, definem-se por interromper ou modificar a trajetória de um devir com a finalidade de desviá-la do resultado esperado Essa intervenção pode situar-se no exato momento em que se instaura o processo e é justamente essa a acepção de “prevenir” no francês clássico; possui, portanto, como conseqüência, a virtualização do processo Pode ainda situar-se no curso do processo, de acordo com a definição do Micro-Robert: “suceder, produzir-se no decorrer de um processo [] Tomar partido numa ação, numa operação em curso com a intenção de infuir em seu desenvolvimento” Pode, enfim, sobrevir in extremis O “prevenir” e o “intervir” supõem uma cooperação intersubjetiva e uma espacialidade aberta favorável à comunicação É tarefa das próximas descrições reconhecer nessas configurações seu grau de dependência em relação ao tempo: o tempo do “parvenir” aparecerá, por exemplo, como “refreado”, se o compararmos com o de “prevenir”, que seria acelerado Consideramos essas definições restritas na medida em que nenhuma dessas configurações indica, mesmo depois de catálise, se o processo ampliado é linear ou circular

3 CONFRONTAÇÕESO devir intercala-se entre duas categorias importantes: a continuidade e o aspecto Sem pretender esgotar um tema tão delicado, lançamos a hipótese de que o devir deveria ser abordado como mediação entre o termo ab quo do contínuo e o ter7

[N dos T]: “o sujeito consegue apesar de”

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mo ad quem do aspecto, tal como este é definido pelos lingüistas As virtualidades do contínuo, ou ainda as esperas com as quais o sujeito muda o contínuo, ou seja, a divisibilidade e a orientação, são

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realizadas pelo devir e essas conquistas formais do devir serão utilizadas, após a estabilização, como ponto de apoio da aspectualização Mas, por outro lado, temos que introduzir a questão da relação entre o devir e o fazer ou, mais exatamente, a eventualidade da repercussão do segundo termo sobre o primeiro: o devir é algo que se faz? Realmente, de duas uma, ou o devir é concebido como sendo compacto, liso, suficiente e, nesse caso, não depende de operação particular para ser produzido Ou todo devir é um produto e, portanto, é o sincretismo de várias grandezas descontínuas; nesse segundo caso, será que o devir poderia ser, por analogia com o engendramento do número, serial num primeiro tempo, depois alisado num segundo tempo? A menos que a diferença entre um devir “rugoso” e um devir “liso” seja um efeito da distância da observação: o olhar distanciado permitiria ver apenas uma mudança contínua e orientada ali onde o olhar próximo depreenderia estados e fazeres As conseqüências da introdução do devir nas estruturas profundas aparecem especialmente em Semiótica das paixões A importância superior que hoje gostaríamos de atribuir ao devir resulta da instalação do espaço tensivo e das virtualidades esquemáticas que ele avaliza Por outro lado, o devir, de sua parte, torna-se a origem de uma série de ressonâncias relativas respectivamente à estruturação, à modalização e à patemização Na fase constitutiva da semiótica, as estruturas eram pensadas, e isso parecia por assim dizer evidente, como se fossem definitivas, fixas e acrônicas; ao serem inscritas no espaço tensivo, foram logo reconhecidas como instáveis, móveis, e temporais; e o significado, anteriormente solidário apenas a seu conteúdo sêmico, passou a depender das valências positivas e negativas164

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dos programas e dos contra-programas É o que Semiótica das paixões designa como “desequilíbrio positivo”8 Essa acentuação do devir permite reerguer a semiótica, considerando, de fato e de direito, a enunciação como estrato primeiro e, especialmente, sua base perceptiva Se essa orientação vai ao encontro do enfoque de J-C Coquet9 , suas etapas de construção basearam-se em considerações diferentes O espaço tensivo tem como tensão diretora a cisão entre demarcação e segmentação, entre demarcação discursiva e segmentação enunciva, entre uma demarcação que pretende abranger o todo e uma segmentação que tenta cercar as partes do todo A segunda ressonância diz respeito a uma melhor compreensão da modalização no interior do percurso gerativo De acordo com o ensinamento de Saussure, um conceito detém, por si mesmo, uma significação e recebe seu valor a partir do lugar que ocupa num dispositivo teórico Nesses termos, ainda hoje compreende-se melhor a significação da modalização do que o seu valor Para progredirmos na compreensão desse valor, duas hipóteses podem ser lançadas: a primeira, de cunho descritivo, prevê que a modalização e a aspectualização pertençam ao mesmo nível de classificação e que estejam em distribuição complementar: a aspectualização estaria voltada para o processo e o objeto visado, enquanto a modalização para o sujeito em devir A segunda, de cunho normativo, prevê que a modalização seja induzida por uma aspectualização que, abandonando a programação das fases do processo, se encarregaria de sancionar os excessos e as faltas e se desdobraria em duas direções: uma modalização predominantemente deôntica, quando possui como objeto o excesso, e outra predominantemente volitiva quando tem como objeto a falta Ambos os “regimes” ou “estilos” aspectuais, um descritivo e o

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GREIMAS, A J & FONTANILLE, J, op cit, p 33 COQUET, J-C Le discours et son sujet, op cit, e La quête du sens Paris, PUF, 1997

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outro normativo, situam-se, cada um com seus próprios recursos, na vizinhança da modalização Enfim, a solução de continuidade entre a estrutura e o tímico parece decrescer A semiótica e a episteme dos anos 60, restritivas em relação às aquisições dos anos 30, concebia uma solução de continuidade necessária entre a estrutura e o afeto A imersão da estrutura no espaço tensivo permite fugir desse dilema O espaço tensivo não é um espaço de completo repouso, ainda que uma semiótica do repouso – esboçada especialmente por G Bachelard em A dialética da duração – possa reivindicar seus direitos tanto quanto qualquer outra O espaço tensivo é um espaço inquieto, o que pode ser comprovado pela paixão como pano de fundo da existência É também uma das razões pelas quais preferimos o termo advir, que implica uma certa instabilidade, como termo genérico, ao termo devir, que já supõe certa continuidade controlada inerente à mudança A patemização pode ser atribuída ao sujeito e creditada a sua sensibilidade ou passibilidade, segundo A Hénault10 , mas essa interpretação, amplamente calcada na percepção, não leva em conta todos os casos e especialmente aqueles que poderiam ser descritos como “efeitos sem causa” A partir das definições sintagmáticas amplas estabelecidas anteriormente, parece possível, de um lado, proceder a uma dedução imanente do afeto e mesmo da única coisa que importa de fato, qual seja a violência do afeto, e, de outro, prever devires críticos do passional Se uma grandeza demarcativa, relativa ao todo, vem substituir, num tempo bem rápido, uma grandeza segmentativa, relativa a uma parte, essa substituição improvisada suscita, em virtude da função semiótica, um afeto possante, do tipo “pequena causa, grande efeito”, imediatamente qualificado de “catástrofe” – no sentido corrente do termo A substituição inversa, a saber a troca inespe10

HÉNAULT, A “Structures aspectuelles du rôle passionnel”, op cit, p 35-41

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rada de uma parte (grandeza segmentativa) pelo todo que a compreende (grandeza demarcativa) parece estar no princípio do “entusiasmo”, e, especialmente para os gregos, da presença do divino no humano Está em jogo também o tratamento que a teoria semiótica dispensou à discursividade Esse tratamento ficou longe de um nível satisfatório, pois que a semiótica mostrou-se incapaz de estudar a noção de gênero, um dos pontos de passagem obrigatórios da discursividade, conforme já demonstrou Fr Rastier11 Por outro lado, as estruturas narrativas de superfície convocam, e o fazem de maneira exclusiva, um gênero dentre outros, o discurso narrativo, projetam-no sobre o mito e, feito isso, admitem que a forma do primeiro vale – sem ressalvas – para o segundo Enfim, a teoria semiótica leva em consideração, com razão, as “estratégias discursivas”, mas sem expor com clareza o liame entre essas “estratégias” e o discurso narrativo Sem ter a intenção, bem entendido, de esgotar o assunto, pode-se perguntar se a focalização das definições paradigmáticas do devir não permitiria atenuar a dependência – sem a romper – da semiótica em relação à narrativa proppiana e, ao mesmo tempo, compreender melhor a presença incontestável dos gêneros em toda elaboração discursiva Na medida em que nos apoiamos em três tensões predicativas – intensiva, extensiva e existencial, respectivamente – supomos que cada uma dessas tensões esteja impregnada de devires, cada um convocando um tipo de discurso cioso de sua especificidade Essa diferenciação do discurso em tipos discursivos produz por recorrência um efeito apreciável de “congruência” e serve de apoio à práxis discursiva Seguindo essas noções preliminares, parece-nos que: a) a predicação

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intensiva (tensão tônico/átono) requer primordialmente o relato e todo discurso de cunho narrativo, pois que este11

RASTIER, Fr Sens et textualité Paris, Hachette, 1989, p 35-53

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último constitui-se de um esquema no qual estão associados os eventos salientes, que são extraídos, em virtude de sua própria intensidade, do repositório pré-narrativo do devir; b) a predicação extensiva (tensão aberto/fechado, amplo/concentrado) estaria relacionada, antes de tudo, à lei e a todo discurso de tipo normativo, na medida em que determina, em termos de limites e de gradações, o domínio de aplicação de um determinado devir; c) e, enfim, a predicação existencial fundaria o mito, mais de acordo com a acepção de Cassirer do que com a de Lévi-Strauss ou Greimas, na medida em que proporciona ao advir a autenticidade de uma ausência revivificada, convocada certamente como uma “presença”, mas uma presença validada por sua imersão anterior num passado imemorial e irreversível Esse tipo, de sua parte, engendra, por degenerescência e por derivação, toda uma classe de discursos históricos, ou simbólicos e alegóricos Pode-se desenhar um esboço de tipologia:Predicação INTENSIVA EXTENSIVA EXISTENCIAL Tensão predicativa evento ⇔ estado exclusividade ⇔universalidade tipo discursivo o relato a lei

passadificação ⇔ presentificação o mito

Esse esboço deveria permitir esclarecer o estatuto da narratividade na semiótica greimasiana e o lugar que deve ser atribuído ao modelo proppiano A significação desse modelo não está em causa, mas o seu valor ainda precisa ser fixado a partir do instante em que admitimos tratar-se de um uso da narratividade, estando este precisamente na dependência de um esquema mais geral, ainda por constituir Por mais insuficiente que seja, esse esboço denuncia uma das dificuldades persistentes da teoria greimasiana, a saber o paralogismo, que consiste em examinar168

_DEVIR

uma grandeza genérica sob o enfoque das singularidades de uma grandeza específica Para falarmos de maneira mais simples, uma vez neutralizada a diferença entre mito e relato – enquanto para Propp o conto era um avatar do mito – as características do relato tornaram-se as mesmas do mito, mas como há “mais” no mito que no relato, a análise deste não era suficiente para o estudo do primeiro É esse resto, inestimável, que nosso esboço tenta discernir e preservar Podemos presumir que o mesmo se dê no caso daquilo que gostaríamos de chamar “discurso da lei”, que possui suas especificidades mesmo que mantenha relações de vizinhança e de imbricação com os dois precedentes Em outras palavras, a pluralidade dos tipos discursivos teria qualquer coisa a ver com a pluralidade dos devires possíveis A semiótica, em razão da generalização conferida ao relato proppiano, vinculava a narratividade à inversão do conteúdo; ora, numerosas mudanças ocorrem nos discursos concretos sem que se produza uma inversão do conteúdo; além disso, ainda podem ser encontrados nesses discursos certos estados instáveis que dispensam a presença de um operador manifesto, assim como certas rupturas que contestam o eixo semântico

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

PRÁXIS ENUNCIATIVA1 RECENSÃOE UM PONTO DE VISTA terminológico, a “práxis” evoca, em primeiro lugar, uma concepção materialista e realista da atividade de linguagem, quer no domínio da sociolingüística (Bourdieu, por exemplo1 ), quer no da lingüística guillaumiana, conhecida como “praxemática” A “praxeologia”, a exemplo do que propunha a Escola polonesa (Kotarbinsky), torna-se, nesse sentido, uma das formas possíveis da teoria da ação, tendendo a relegar ao segundo plano as dimensões cognitivas e passionais Numa perspectiva comparável, porém com pressupostos ideológicos diferentes, Greimas e Courtés propunham ressaltar, de modo peculiar, as “práticas semióticas”:“[] denominaremos práticas semióticas os processos semióticos reconhecíveis no interior do mundo natural, e definíveis de modo comparável aos discursos (que são ‘práticas verbais’, isto é, processos semióticos situados no interior das línguas naturais)”2

D

Fundando-se em tal precedente, P Stockinger sugerirá posteriormente3 oporem-se o “discursivo” (práticas verbais) e o “praxeológico” (práticas não-verbais) Haveria contudo alguma contradição, pelo menos no plano terminológico, em definir essas duas semióticas como “práticas”, reservando em seguida o termo de “práxis” ou “prática” ao1 2 3

BOURDIEU, P Esquisse d’une théorie de la pratique Genève, Droz, 1972 Dicionário de semiótica, op cit, p 344 Sémiotique, II, op cit, p 173-4

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

domínio não-verbal, chamado “do mundo natural” Uma das hipóteses subjacentes à noção de “práxis” aplicada ao domínio lingüístico, e de que partiremos aqui, é que tendo a língua – e, de maneira geral, a competência dos sujeitos enunciantes – o estatuto de um simulacro e de um sistema virtual, a enunciação é uma mediação entre o atualizado (em discurso) e o realizado (no mundo natural) Em suma, a enunciação é uma práxis na exata medida em que dá certo estatuto de realidade – a ser definido – aos produtos da atividade de linguagem: a língua se destaca por definição do “mundo natural”, mas a práxis enunciativa a reincorpora nele, sem o que os “atos de linguagem” não teriam qualquer eficácia nesse mundo Existem de fato dois tipos de atividades semióticas, as atividades verbais e as não-verbais, mas ambas estão ligadas a uma só “práxis” Benveniste evoca, por sua vez, o “exercício da língua”4 , ou sua “colocação em funcionamento”, e está claro que, para ele, a língua e seu “exercício” não têm o mesmo estatuto de realidade, pois que é o segundo que reinsere a língua na vida social, na cultura e na história A distinção entre esses dois registros lingüísticos é, para ele, fundadora da distinção entre o “semiótico” e o “semântico”, e, para além do aparelho formal da enunciação, ele faz votos por uma “metassemântica” da enunciação, capaz justamente de analisar os efeitos de sentido da “práxis” Atentemos, todavia, para o fato de que o

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programa de investigação esboçado por Greimas no Dicionário também incluía uma distinção desse tipo:“[] o espaço das virtualidades semióticas, cuja atualização cabe à enunciação, é o lugar de residência das estruturas semionarrativas, formas que, ao se atualizarem como operações [grifo nosso], constituem a competência semiótica do sujeito da enunciação” 54 5

Problemas de lingüística geral São Paulo, Edusp/Ed Nacional, 1976, p 288 Dicionário de semiótica, op cit, p 146

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

As “formas” convertidas em “operações”: eis, nitidamente desenhado, o campo de exercício da práxis enunciativa, claramente distinto, por outro lado, da enunciação enunciada:“Freqüentemente insistimos numa confusão lamentável entre a enunciação propriamente dita, cujo modo de existência é ser o pressuposto lógico do enunciado, e a enunciação enunciada (ou narrada), que é apenas o simulacro que imita, dentro do discurso, o fazer enunciativo” 6

Tal “modo de existência” peculiar serviu não raro de pretexto para se desistir do estudo da “enunciação propriamente dita” – ou seja, das operações inerentes ao ato de discurso –, e para se considerar que só a enunciação enunciada era semioticamente reconhecível Já é tempo de enfrentar o desafio

2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕESPARADIGMÁTICAS PARADIGMÁTICAS AMPLAS

211 DEFINIÇÕES

Na história recente da semiótica, a reflexão sobre a enunciação, as instâncias enunciantes e o discurso levou muitas vezes a pôr em questão o percurso gerativo, a buscar-lhe alternativas, quando não a invalidá-lo Assinalaremos, quanto a nós, que o conceito de práxis enunciativa começou a atrair atenção a partir do momento em que se procurou tratar a heterogeneidade das grandezas convocadas no discurso, especialmente na análise das paixões-efeito de sentido; ora, é patente que o percurso gerativo foi concebido para engendrar grandezas homólogas e isomorfas O fato crítico geral é o seguinte: a todo momento da6

Dicionário de semiótica, op cit, p 147-8

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

evolução de uma cultura e dos discursos que a constituem, em todo ponto de sua difusão, convivem ao menos dois tipos de grandezas: as engendradas a partir do sistema e as fixadas pelo uso De tal forma que, como todo discurso dispõe, hic et nunc, desses dois tipos de grandezas, a exigência

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mínima de coerência impôs, de certo modo, o conceito de práxis enunciativa, para explicar sua co-presença discursiva Jean-Marie Floch7 escolheu abordar essa questão através de uma metáfora emprestada de Lévi-Strauss, a da “bricolagem”; tal ponto de vista, essencialmente figurativo, expõe a maneira pela qual os conjuntos de figuras e motivos, tomados a universos semióticos heterogêneos e quase sempre estranhos uns aos outros, são reunidos, enunciados e recategorizados na perspectiva de outro discurso, e submetidos a outras axiologias Adotaremos aqui um ponto de vista antes “figural” e dinâmico, complementar ao anterior, e vamos nos interessar mais particularmente pela forma da convivência e suas transformações Para que grandezas de estatuto diferente convivam num mesmo discurso, postularemos que estas devem ligar-se a diferentes modos de existência: a copresença discursiva não se reduz à coocorrência As modalizações existenciais – o virtualizado, o atualizado, o potencializado e o realizado – convertem, de certa forma, a co-presença em espessura discursiva, e projetam distensões modais nessa profundidade (ver, a respeito, o capítulo “Presença”) Preliminarmente, poderíamos projetar esta primeira distribuição: 1) As formas semionarrativas (o sistema) constituem a competência enunciativa virtual; 2) A primeira operação da práxis é a convocação dessas formas em discurso, isto é, uma primeira ativação-seleção no percurso gerativo, que as atualiza;

7

FLOCH, J-M Identités visuelles Paris, PUF, Formes Sémiotiques, 1995

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

3) Os produtos dessa convocação são de duas ordens: por um lado, ocorrências, que se realizam em discurso; por outro, praxemas (os tipos, particularmente), os quais são potencializados pelo uso; 4) Os produtos potenciais ou são postos em memória (em disponibilidade, de algum modo), ou são realizados por uma nova convocação em discurso; 5) Estes experimentarão, então, dois devires diferentes: ou são convocados para serem virtualizados, isto é, “denunciados” em prol de uma reabertura da combinatória virtual; ou, ao contrário, são por sua vez realizados em ocorrências, desde que o discurso explore diretamente as formas canônicas disponíveis Parece portanto fácil fazer a distribuição entre os “produtos” da práxis enunciativa e os modos de existência, da seguinte maneira: (i) virtualizado: estruturas e categorias; (ii) atualizado: regimes selecionados; (iii) potencializado: praxemas; (iv) realizado: ocorrências em discurso Os modos virtualizado e potencializado correspondem ambos ao estado latente das formas disponíveis, à linguagem “em potência”, segundo Guillaume, ao “sistema”, segundo Hjelmslev Convém provavelmente distinguir o “virtual”, puro pressuposto sistêmico do discurso, e o “virtualizado”, obtido por desprendimento de um praxema; do ponto de vista da análise discursiva, porém, esses dois modos se superpõem de maneira exata, na medida em que – memória da coletividade (sistema virtual) ou memória das operações do discurso (grandezas virtualizadas) – ambos aparecem como a memória da práxis enunciativa Em contrapartida, os modos atualizado e realizado correspondem ao estado manifesto, à linguagem em ato, ao “processo”, segundo Hjelmslev Em cada um desses dois regimes, o aberto (o foco) e o fechado (a apreensão) entram em ação; chegamos assim a uma rede definicional das modalidades da práxis:175

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

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sistema (em potência) foco apreensão virtualizado potencializado

processo (em ato) atualizado realizado

Tal repartição se complica, no entanto, ao se examinarem os discursos concretos, dado que a práxis só pode ser apreendida em discurso por contraste, ou seja, se pelo menos dois modos de existência forem explorados concorrentemente; ocorre então uma superposição modal que regula o “conflito das interpretações” (cf P Ricoeur) Por exemplo, no seguinte slogan publicitário utilizado por uma marca de lubrificantes automotivos:“Des mécaniques qui roulent”8

O trocadilho e a ruptura de isotopia (automóvel/musculatura) firmam-se na superposição, para uma mesma figura, de dois modos de existência diferentes, a caracterizar respectivamente cada uma das duas isotopias: um deles diz respeito a um praxema cristalizado (rouler les mécaniques) que a imagem associada ao slogan confirma pela presença de bíceps reluzentes; o outro diz respeito a uma ocorrência comum, construída de acordo com um princípio combinatório mais aberto, e que apresenta certas possibilidades comutativas (uma mecânica automobilística roda – avança, recua, acelera) Graças à adoção da construção intransitiva cujo sujeito é mécanique, apenas a segunda dessas isotopias está realizada no discurso; a outra, que exige uma construção transitiva direta cujo objeto seria mécanique, fica, por conseguinte, potencializada O praxema, assim, continua a ser potencial, pois sua sintaxe não pode atualizar-se ao mesmo tempo que a da8

[N dos T]: Literalmente, “mecânicas que rodam” Alusão à expressão francesa rouler les mécaniques, em que mécaniques remete a “ombros musculosos” (exibidos por um atleta) Legenda de outdoors amplamente difundidos numa campanha publicitária francesa

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

ocorrência; a estrutura virtual está atualizada como forma sintáxica, e realizada como ocorrência Como se vê nitidamente pelo exemplo, estaria aí o ponto de partida para uma reflexão sobre o funcionamento dos tropos, na perspectiva da práxis Mesmo potencializado, o praxema continua todavia a produzir efeitos em segundo plano, como se o discurso guardasse, em cada ponto da cadeia, a memória das operações cujo resultado final será, contudo, o único a ser exposto no plano da expressão De tal sorte que a figura convocada fica dotada de uma profundidade enunciativa, graças à perspectiva que lhe imprimem os quatro “graus de existência” superpostos: virtual, atual, potencial e real A práxis enunciativa instalaria, em suma, uma terceira dimensão no discurso realizado, a da profundidade dos modos de existência (dimensão praxemática?), dimensão que conviria associar às duas primeiras, a saber, a dimensão paradigmática e a sintagmática É em tal profundidade que se instalam as figuras de retórica e de estilo, bem como, de modo mais geral, todas as figuras do discurso fundadas na competição entre pelo menos dois conteúdos, dimensões ou regimes, com vistas à manifestação No plano do discurso como um todo, essas tensões podem ser reguladas e distribuídas numa polifonia (cf Bakhtin, Ducrot etc); podem também ser fixadas por convenção, sob a forma de gêneros discursivos Desta maneira, pode-se reconhecer no exemplo anterior uma figura da práxis pertencente ao gênero “publicitário com pretensão humorística”212 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

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Semelhante definição, em termos de modos de existência (ou modalidades existenciais), reclama dois tipos de observações complementares Em primeiro lugar, não se podendo apreender a práxis, de um ponto de vista semiótico, senão quando esta177

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

tensiona pelo menos dois modos de existência, o mínimo definicional requerido consistirá pois no emparelhamento de duas modalizações existenciais Mas esse emparelhamento é regulado por um princípio que merece atenção Com efeito, para retomarmos o exemplo anterior, se a interpretação for átona, ou seja, “rasa”, não adotará nada além da isotopia que respeita a sintaxe de superfície: a isotopia “automóvel” será então realizada, e a isotopia “musculatura”, virtualizada Se, em compensação, a interpretação for tônica, conservará as duas isotopias em tensão, uma na perspectiva da outra: a isotopia “automóvel” será apenas atualizada, e a outra, potencializada O efeito da práxis será, então, bem outro No primeiro caso, o enunciado refere-se a uma única figura de cada vez, e é percebido como puramente icônico (e distensivo), constituindo sua realização efetiva uma das condições dessa iconicidade No segundo caso, o enunciado refere-se a duas figuras ao mesmo tempo, e é percebido como um tropo (e contensivo) Uma vez que a práxis se define como tensivização de modos de existência, ela se inscreve ipso facto no âmbito de uma dimensão tensiva, que, no caso evocado, resumiremos assim:Práxis tônica Estatuto do conteúdo latente Estatuto do conteúdo manifesto Potencializado Atualizado Práxis átona Virtualizado Realizado

Sugerir que a práxis poderia gerir a variação das tensões entre as grandezas que manipula é reconhecer que ela deve obedecer a coerções esquemáticas, no sentido em que o propusemos no capítulo sobre os esquemas Lembremos que um esquema tensivo assenta na correlação entre a intensidade e a extensidade, e, por homologação, entre o sensível e o inteligível Como hipótese geral, o modelo básico da práxis será o da dupla correla178

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

ção entre intensidade e extensidade, correlação conversa e correlação inversa Em cada gradiente, o da intensidade e o da extensidade, podemos isolar duas zonas principais, uma correspondente aos valores fracos, e outra aos fortes Assim, no espaço dos valores que elas definem, aparecem consecutivamente quatro grandes zonas típicas, que transcrevemos no seguinte diagrama:+Somação Amplificação

INT

Desdobramento Atenuação Resolução

– – EXT +

As operações típicas da práxis serão, portanto, as seguintes: 1 em relação conversa: a amplificação e a atenuação 2 em relação inversa: a somação e a resolução (ou o desdobramento) Esclareçamos, de imediato, que os movimentos são sempre mais “fáceis” num sentido que no outro: a amplificação impõe, como a somação, apenas um aumento de intensidade, ao passo que a atenuação e a resolução impõem um esforço para conter a intensidade

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS 221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

A práxis tem a seu cargo a regulação global, em diacronia e sincronia, dos diversos modos de existência das grandezas utilizadas pelos discursos Tal regulação compreende, na tradição lingüística bem como nas semânticas cognitivas mais recentes, uma condição intersubjetiva, além de condições de iteração e tipificação A condição intersubjetiva é central em Benveniste, de tal maneira que a iteração das formas não resulta em nada, se a sanção dos alocutários for desfavorável O raciocínio de Benveniste é particularmente explícito acerca do presente lingüístico: a cada nova enunciação, o sujeito do discurso inventa um novo presente, mas esse presente só pode ser atualizado na interlocução, contanto que o alocutário o aceite como seu próprio presente Após afirmar:“Tal presente é reinventado cada vez que um homem fala, pois trata-se, literalmente, de um momento novo, ainda não vivido” 9

ele esclarecerá:“[] a temporalidade do locutor, embora literalmente estranha e inacessível ao receptor, é identificada por este à temporalidade que informa sua própria fala quando ele se torna, por sua vez, locutor [] O tempo do discurso [] funciona como fator de intersubjetividade, convertendo-o, de unipessoal que ele teria de ser, em onipessoal Só a condição de intersubjetividade permite a comunicação lingüística”10

9

10

Problèmes de Linguistique Générale, II Paris, Gallimard, Tel, rééd 1980, “Le langage et l’expérience humaine”, p 74 Ibid, p 77

180

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

Sem o compartilhamento intencional que a intersubjetividade permite, a freqüência de uso de uma forma não passa de pura repetição: a formação e o desaparecimento de uma norma se firmam nesse princípio; os sujeitos que tentam fazer evoluir a norma não podem ter esperança de consegui-lo sem encontrar um auditório, sem suscitar seu próprio “horizonte de expectativa” Generalizando um pouco o raciocínio de Benveniste, inclinamo-nos a considerar que é a troca social, a circulação dos objetos semióticos e dos discursos no seio das culturas e comunidades que adota ou rejeita os usos inovadores ou cristalizados, e que de certo modo “canoniza” as criações do discurso A semântica do protótipo não escapa a tal regra, visto que, como assinala G Kleiber:“Uma instância só será um protótipo, ou melhor exemplar, se houver um acordo entre os sujeitos para considerá-la como tal”11

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A práxis alterna portanto duas direções: pelo lado do sujeito, o “unipessoal” (concentrado) e o “onipessoal” (difuso); pelo lado dos objetos que ele manipula, entre o único “melhor exemplar” e a multiplicidade dos usos Essa dimensão da extensidade está, além disso, associada à intensidade Nota-se por exemplo que a freqüência de uso não pode ser dissociada do impacto de uma sanção intersubjetiva, e que a saliência de um protótipo depende do acordo de um número suficiente de sujeitos A aceitação intersubjetiva abre a porta para a recorrência de uma forma; a difusão sociocultural garante a estabilidade de um protótipo A correlação conversa entre a intensidade e a extensidade assegura, assim, o valor de troca de uma forma11

KLEIBER, G Sémantique du prototype, op cit, p 49 Essa posição corresponde à “teoria standard estendida”, ou seja, a que leva em conta as especificidades culturais e reconhece uma pertinência para o observador

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

Mas encontraremos também evoluções em que a recorrência dessemantiza o conteúdo trópico, a tal ponto que, uma vez lexicalizado (cf boire un verre)12 , este se torna literalmente insensível, esquecido A “inflação” discursiva, que corrói neste caso o valor de uso de uma forma, assinala uma correlação inversa entre intensidade e extensidade Os diversos modos de existência dos conteúdos manipulados pela práxis enunciativa (por exemplo, o potencial, para um protótipo, ou o virtual, para o conteúdo trópico esquecido de uma catacrese) são controlados pelas operações que recaem sobre a intensidade e a extensidade, no nível da sintaxe geral da práxis Em correlação conversa, os sintagmas disponíveis são os seguintes: 1 a “amplificação” explicita a seqüência [adoção → integração] de uma forma; 2 a atenuação descreve a seqüência [reconhecimento → obsolescência]� � de uma forma; Tais operações se referem à regulação do valor de troca das formas na comunicação Em correlação inversa, os sintagmas são os seguintes: 1 a resolução ou desdobramento descreve a� � � � seqüência [formação → desgaste] de uma forma; 2 a somação explicita a seqüência [difusão →� � ressemantização] de uma forma Essas operações dizem respeito à regulação do valor de uso das formas Falta examinar, agora, a passagem de uma correlação conversa a uma correlação inversa Uma forma em via de desgaste

12

[N dos T]: Ao pé da letra, “beber um copo”

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

será apesar de tudo adotada; depois, por um aumento contínuo de sua extensão, será mais amplamente reconhecida Ao contrário, uma forma pode ser adotada, integrada e, depois, por simples difusão – caso sua expansão continue a aumentar –, desgastar-se e cristalizar-se Trata-se de duas transformações diferentes, tendo como pivô, num caso, um mínimo de intensidade e, no outro, um máximo de intensidade e como elemento indutor, um aumento (ou uma diminuição) contínuo da extensidade A primeira transformação supõe uma “energia” particular (um querer, um poder), ou até mesmo uma mudança de classe de sujeitos da enunciação, para desenterrar e fazer reconhecer

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uma forma já desgastada A segunda transformação não requer nenhuma energia particular para que a difusão geral de uma forma a conduza progressivamente ao desgaste Podem-se prever também as duas seguintes transformações, cujo pivô seria, num caso, um mínimo de extensidade, e, no outro, um máximo de extensidade, e cujo elemento indutor seria um aumento ou uma diminuição contínua da intensidade: uma forma reconhecida cai em desuso e, apoiada em sua raridade, recobra um brilho efêmero, antes de se desgastar por difusão; por fim, uma forma adotada é integrada e, em seguida, com base numa difusão relativamente restrita, vê-se ressemantizada em virtude de um suplemento de brilho Esses quatro percursos podem ser cumpridos nos dois sentidos; dispomos, portanto, de oito transformações possíveis que caracterizam a sintaxe da práxis enunciativa A simbolização e a dessimbolização operam assim Globalmente, poderiam ser descritas como “encenações” da assunção enunciativa Quando a categoria da pessoa é embreada em categorias figurativas exteroceptivas, como no verso de Verlaine:

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA “Votre âme est un paysage choisi”13

a simbolização se funda na apropriação, pelo sujeito da enunciação, de categorias próprias ao enunciado Aqui, a predicação associa dois sintagmas que, por sua vez, remetem a duas operações sobre a extensidade e a intensidade das figuras: sua singulariza alma, referindo-a à dêixis, e eleita concentra e intensifica paisagem; os versos seguintes retratam depois a “paisagem” e enumeram seus ocupantes, sem que a embreagem e a identificação inicial entre a pessoa e a extensão se ressintam disso Logo, a correlação é conversa; estaríamos, nesse caso, diante de um “aumento” (cf acima), que nos conduz da simples “adoção” de uma figura até sua “integração” A dessimbolização busca reencontrar em seu princípio a embreagem constitutiva do símbolo estereotipado, para desfazêla e substituí-la por uma encenação inédita Quando Bruegel pinta O transporte da cruz, escolhe um motivo simbólico e fortemente estereotipado pela tradição; mas ele retrata a cena de tão longe – com o Cristo perdido numa multidão de personagens minúsculas e numa paisagem imensa –, que o símbolo se desfaz: a partir daí, o motivo evangélico já não é mais que uma ocorrência qualquer de suplício público Mas, para tanto, Bruegel teve de identificar o ponto de vista responsável pela embreagem e simbolização, ou seja, o ponto de vista restrito e intenso de um próximo que segue a via-crúcis, identificando-lhe os incidentes e “passos”, e teve de substituí-lo por outro ponto de vista, estendido, indefinido e átono, que arruína os efeitos simbólicos, vedando, em particular, a embreagem responsável pela simbolização Por conseguinte, na medida em que o desdobramento da figura no espaço e na extensão compromete sua identificação, põe em xeque a embreagem e arruína o efeito simbólico, pode-se consi13

“Clair de lune”, Fêtes galantes Paris, Gallimard, 1973, p 97 [N dos T]: “Sua alma é uma paisagem eleita”

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

derar que a correlação entre a intensidade (do reconhecimento, da identificação simbólica) e a extensidade (do desdobramento) foi invertida A simples mudança de ponto de vista, substituindo um dispositivo perceptivo por outro, levou-nos de um “aumento” a uma “resolução”222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

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Já identificamos, no cerne da práxis enunciativa, dois tipos de operações associadas, as que recaem sobre a intensidade e as que recaem sobre a extensidade; vamos agora examiná-las separadamente a) Operações intensivas Partimos da idéia de que a práxis punha em perspectiva os modos de existência dois a dois A sintaxe intensiva da práxis consistirá pois num conjunto de operações que incidem sobre as tensões entre modalizações existenciais No espaço tensivo em que se desenvolvem, as modalizações existenciais articulam as modulações da presença e da ausência, e, em especial, a travessia dos horizontes do campo, segundo o princípio descrito pelo seguinte diagrama:(Potencialização)

(Virtualização)

(Realização)

(Atualização)

As operações elementares são de duas ordens: (i) as operações ascendentes, pelas quais as formas são convocadas visando à manifestação:185

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

Virtualização → Atualização [Virt → At] representa a emergência de uma forma; Atualização → Realização [At → Real] descreve seu aparecimento; (ii) e as operações decadentes, pelas quais as formas são implicitadas, estocadas em memória, ou até mesmo apagadas e esquecidas: Realização → Potencialização [Real → Pot] é a condição do declínio de uma forma num discurso singular, e eventualmente sua fixação no uso enquanto praxema potencial; Potencialização → Virtualização [Pot → Virt] descreve o desaparecimento de uma forma Como a práxis só pode ser apreendida se se referir a duas grandezas e dois modos de existência em competição, as operações intensivas combinam duas operações elementares: uma ascendente e uma decadente Ou seja: 1 [At → Real] ↔ [Pot → Virt]: o aparecimento de uma forma, correlacionado ao desaparecimento de outra, constitui uma revolução semiótica A clássica substituição lingüística é exemplo disso 2 [Virt → At] ↔ [Real → Pot]: a emergência de uma forma, correlacionada ao declínio de outra, é uma distorção semiótica Excelentes exemplos disso são os tropos vivos, pondo em concorrência uma forma atualizada (o conteúdo figurante e sensível) e uma forma potencializada (o conteúdo reconstituído, conceptual ou parafrástico) 3 [Virt → At] ↔ [Pot → Virt]: a emergência de uma forma, conjugada ao desaparecimento de outra, é um remanejamento semiótico, que afeta as relações entre os primitivos culturais e o sistema A isso se liga, por exemplo, toda operação tendente a promover a combinatória virtual num estereótipo, como na seguinte troca entre duas personagens de Ionesco, em que uma ocorrência livre vem desfazer e virtualizar o estereótipo:186

_PRÁXIS ENUNCIATIVA Jean: Vous rêvez debout! Béranger: Je suis assis14

4 [At → Real] ↔ [Real → Pot]: o aparecimento de uma forma, conjugado ao declínio de outra, é uma flutuação semiótica É o caso, principalmente, quando duas isotopias, ligadas por uma metáfora, manifestam-se uma após outra na superfície; sua alternância supõe então que a isotopia figurante vai e vem entre atualização e realização, e a isotopia figurada oscila entre potencialização e realização Recapitulando: a noção genérica de “transformação”, tal como definida por Greimas,

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levava unicamente em conta, em seu nível de pertinência, a inversão de conteúdo entre dois estados não concomitantes, e somente no plano dos valores semânticos Em razão da atenção aqui concedida às tensões – no nível das valências – entre estados concorrentes, tal noção especifica-se em quatro transformações elementares, e quatro transformações tensivas Obtemos, dessa maneira, a seguinte rede de figuras sintáxicas:(Ascendência) (Decadência) Declínio Desaparecimento Distorção Remanejamento Flutuação Revolução Emergência Aparecimento

b) Operações extensivas As operações tensivas que incidem sobre a extensão e a quantidade referem-se tanto à percepção dos estados de coisas (unitários, parciais, holísticos), quanto à enunciação, pois que a debreagem é, em si própria, pluralizante, e a embreagem, homogeneizante Entre os dois graus extremos14

(Rhinocéros, Le Livre de Poche, p 34) [N dos T]: “Jean: Você está sonhando em pé! / Béranger: Estou sentado”

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

da extensidade, que são a nulidade e a totalidade, as línguas naturais dispõem segmentos Tais segmentos constituem uma série, que evocamos aqui em caráter ilustrativo:globalidade – totalidade (totus)nulidade – unidade – dualidade - pluralidade

↑↑

generalidade universalidade (omnis)

A sintaxe extensiva consiste então, a partir de cada segmento, em deslocar-se de maneira ascendente ou decadente, rumo a outro segmento O número de transformações possíveis (cerca de quarenta) desestimula qualquer veleidade de denominação sistemática Podem-se todavia extrair, dentre as operações ascendentes: 1 nulidade → unidade: emergência de um hápax; 2 unidade →� � dualidade: partição (principalmente conflituosa); 3 pluralidade → totalidade: integração; 4 pluralidade → universalidade: homogeneização; e, dentre as operações decadentes: 1 pluralidade → dualidade: polarização; 2 pluralidade → unidade: singularização

3 CONFRONTAÇÕESA relação com o plano da expressão é particularmente significativa do funcionamento da práxis Um praxema é uma rede188

_PRÁXIS ENUNCIATIVA

de dependências, mais que de diferenças; ele explora as diferenças próprias ao sistema, para instalar dependências Se a práxis convocar conjuntamente duas diferenças, A/B e x/y, tais diferenças caracterizam o sistema subjacente, mas o efeito de sentido em discurso assentará nas duas

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dependências conjuntas A-x e By Eluard compreendeu bem essa conversão, no interior da metáfora, da diferença em dependência, ao escrever:“Comme le jour dépend de l’innocence Le monde entier dépend de tes yeux purs Et tout mon sang coule dans leurs regards”15

As diferenças paradigmáticas convocadas, dia/mundo e inocência/olhos puros, são suspensas pelo “como” comparativo, que as substitui por uma correlação (neste caso, por uma equivalência) de dependências: “dia depende de inocência” equivale a “mundo depende de olhos puros” O fundamento da dependência só aparece a posteriori: é o traço /incoativo/, alçado à qualidade de condição axiológica Logo, não são apenas os traços distintivos convocados a partir do sistema lingüístico que instalam a isotopia – aqui, a isotopia do incoativo –, mas igualmente a presença sensível de uma rede de dependências, que suscita a presunção de isotopia Tal procedimento é do âmbito da estratificação, dado que toda dependência, especialmente no que toca aos sistemas semi-simbólicos e à metáfora, associa um plano da expressão e um plano do conteúdo Ademais, quando da constituição de um praxema, a correlação entre o plano da expressão e o do conteúdo obedece a certas regras responsáveis por sua “cristalização” Um exemplo tomado à publicidade permitirá esclarecer este ponto; no seguinte slogan, ligado a uma grande marca de uísque:15

ELUARD, P Capitale de la Douleur, in Œuvres complètes Paris, Gallimard, 1966, p 139 [N dos T]: “Como o dia depende da inocência/O mundo todo depende dos teus olhos puros/E todo o meu sangue escorre em seus olhares”

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA “C’est pas donné, mais c’est souvent offert”16

lê-se uma tentativa de virtualização do praxema No início do slogan, o praxema está fechado, não comutável; no final, o enunciado está diretamente realizado a partir das possibilidades virtuais da estrutura; está aberto, comutável Na primeira parte, as restrições impostas à interpretação, no plano do conteúdo, decorrem do fechamento da forma sintáxica O juízo que ele comporta é tratado como um bloco autônomo, direta e maciçamente convocável Em compensação, a segunda parte suspende, no plano da expressão, o vínculo sintáxico forte do segmento precedente, graças à inserção de uma locução adverbial circunstancial (muitas vezes) e à comutação entre de graça e de presente; por conseguinte, desaparecem as restrições de interpretação no plano do conteúdo, e o sujeito da enunciação pode explorar todas as virtualidades de uma verdadeira cena de troca A questão da dependência se coloca, neste caso, de duas maneiras: (1) Trata-se, primeiramente, da dependência/independência entre a expressão e o conteúdo, a qual justifica a evolução inversa da densidade respectiva das articulações do plano da expressão e do plano do conteúdo (2) Em seguida, trata-se da dependência/independência entre os constituintes de cada plano: quanto mais forte o vínculo, mais resistente o praxema Isso se traduz, porém, diferentemente em cada plano: no plano da expressão, por uma sobredeterminação das coerções sintáxicas; no plano do conteúdo, por uma redução das possibilidades interpretativas A práxis enunciativa interessa, além disso, à semiótica das culturas Com efeito, ela produz “taxionomias conotativas”, ou seja, recortes da macrossemiótica do mundo natural, que são próprios de uma área ou época cultural; essas taxionomias são,16

[N dos T]: “Não é de graça, mas é ofertado muitas vezes de presente”

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por sua vez, constituídas de microssemióticas, lingüísticas ou nãolingüísticas, nas quais cada termo, em razão dos laços de dependência e diferença que o unem aos demais, conota a filiação a um universo cultural particular Mais precisamente, é a distribuição das figuras numa determinada microssemiótica que acrescenta a cada uma delas uma carga semântica particular, a que chamamos “conotação” Mas, nesse caso, não há, sob essa perspectiva, semas especificamente “conotativos” Se examinarmos, por exemplo, a “microssemiótica” da “autoestima” em francês, encontraremos aí, sem preocupação de exaustividade: l’orgueil, la vanité, la fatuité, la suffisance, la fierté, la dignité, le narcissisme etc17 O recorte do domínio obedece aos seguintes princípios: (1) Funda-se em alguns traços distintivos: estima justificada/não justificada, juízo comedido/excessivo, manifestação ostensiva/discreta, referência moral/social, certeza/incerteza, ofensivo/defensivo etc; (2) A formação dos sememas não chega a recorrer a todos os pares de traços distintivos, de maneira que o recobrimento da rede de traços pela dos sememas é irregular, e desprovido de regra aparente Assim, cada termo aparece como intersecção entre várias dimensões semânticas, estando, nesse sentido, duas vezes submetido à práxis cultural: (i) em primeiro lugar, pelo número e natureza dos traços disponíveis, que caracterizam o valor de cada um no domínio; (ii) depois, pelo número e natureza dos traços selecionados por uma intersecção, os quais caracterizam a valência própria do termo Contudo, a práxis intervém ainda de outra maneira, quando se trata de confrontar as microssemióticas entre si Opera por superposição de microssemióticas conotativas, tentando homologá-las A pedra de toque que permite verificar a congruência de tais superposições é a convocação enunciativa Por exemplo, se, ao convocarmos em discurso um determinado bloco modal (isto17

[N dos T]: O orgulho, a vaidade, a fatuidade, a presunção, a altivez, a dignidade, o narcisismo etc

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é, um elemento da microssemiótica modal de uma cultura particular), pudermos sempre convocar simultaneamente o mesmo arranjo rítmico, deduziremos que as duas microssemióticas de que eles fazem parte são superponíveis e congruentes Ocorrenos outro exemplo, mais geral: a superposição do “sensível” e do “risível” aparenta ser um critério particularmente significativo da estabilidade e evolução das culturas Sabe-se, por exemplo, que, se os avarentos fazem rir a aristocracia francesa no século XVII, quando Molière os põe em cena, já não divertirão ninguém no século XIX, nos romances de Balzac; a mudança de gênero é instrutiva: não se cogitaria mais, em 1830, fazer do avarento uma personagem de comédia A correlação entre as duas taxionomias pode ser inversa ou conversa: os regimes totalitários, que suscitam a indignação dos vizinhos, inspiram mais facilmente a sátira dentro de sua própria nação No primeiro caso, o risível se apaga diante do sensível; no segundo, eles se reforçam mutuamente Percebe-se facilmente que as razões são históricas, táticas, sociológicas – isso nada retira ao fato de que a variação cultural se traduz por modos de superposição e formas de correlações diferentes entre taxionomias culturais A teoria da semioesfera proposta por I Lotman poderia acolher tal observação O centro da semioesfera seria, nesse sentido, definido como o topos cultural em que se concentra a maioria das taxionomias superponíveis: seria

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constituído, então, de microssemióticas homologadas e altamente correlacionadas A periferia da semioesfera – lugar de trocas com as culturas vizinhas no espaço, ou próximas no tempo, lugar de instabilidade e fonte dos remanejamentos da semioesfera – seria constituída por taxionomias de frágil correspondência Ali onde a cultura como um todo – o sujeito da enunciação coletivo – não promove a congruência dos recortes culturais, a iniciativa dos sujeitos individuais e as influências periféricas podem ocorrer livremente192

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O conceito de “episteme”, considerado por Greimas e Courtés como“a organização hierárquica – [] – de vários sistemas semióticos, capaz de gerar, com a ajuda de uma combinatória e de regras restritivas de incompatibilidade, o conjunto das manifestações (realizadas ou possíveis) recobertas por esses sistemas, dentro de uma dada cultura”18

poderia, conseqüentemente, ser completado por uma sintaxe fundamentada nos deslocamentos relativos das taxionomias entre si, bem como nas transformações das regras de correlação e compatibilidade Poderíamos identificar, assim, operadores de transformação cultural, cujo princípio já foi proposto no capítulo dedicado às “formas de vida” Com efeito, o que é, por exemplo, o “belo gesto”, senão uma tentativa de modificar as correlações existentes entre os papéis sociais, éticos e passionais? Analogamente, quando um discurso (verbal ou não-verbal) deixa de respeitar a correlação admitida entre o risível e o sensível, ele é qualificado de “cínico” Não será o cinismo filosófico, mais radical, uma forma de vida que se inventa buscando um deslocamento das axiologias, umas em relação às outras, assim como uma dissociação mútua das taxionomias, através do exercício da derrisão? Pelos próprios termos de Lotman, uma forma de vida convencional, canônica e amplamente compartilhada (como o espírito “burguês”, segundo Barthes) ocuparia o centro da semioesfera, enquanto as formas de vida inventivas, contestatórias, as correlações inesperadas e não canônicas ocupariam a periferia, esperando ser logo mais admitidas no centro, ou sair definitivamente da semioesfera A sintaxe que se desenha, no vaivém entre centro e periferia, compreenderia três fases principais: a congruência, no cen18

Dicionário de semiótica, op cit, p 150

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tro, a ascendência e a decadência, na periferia As formas de vida emergentes vêm alimentar a congruência, no centro da semioesfera, onde se estabilizam; as formas de vida em declínio retiram-se para a periferia, onde se desfarão Dessa maneira, compreende-se melhor como se pode qualificar de “decadente” uma forma artística ascendente emergente, sem modificar sua posição na semioesfera, mas apenas invertendo sua orientação sintáxica No âmbito da cultura como um todo, a forma semiótica do “campo de presença”, e a sintaxe existencial que a modula, ainda sustentam a práxis coletiva Em sua teoria da semioesfera 19 , Lotman insiste sobre várias propriedades estritamente homólogas às do campo discursivo: (i) a semioesfera, centrada no “nós” (a cultura, a harmonia, o interior) e excluindo o “eles” (a barbárie, a estranheza, o caos, o exterior), está limitada por fronteiras; (ii) ocorrem incessantes transformações, entre o centro e a periferia, entre o interior e o exterior Ademais, e isso nos aproxima em particular da práxis enunciativa epistolar, os movimentos e deformações da semioesfera são determinados pelas operações de um diálogo entre

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domínios, isto é, pelas modulações de uma tensão enunciativa entre o interior e o exterior do campo discursivo No caso, o que há de mais notável é a sintaxe proposta por Lotman: (a) em primeiro lugar, o aporte externo é percebido como impactante e singular, superestimado como prestigioso ou inquietante; (b) tal aporte é então imitado, reproduzido, traduzido e transposto nos termos do “próprio” e do “nosso”, difundido e digerido em todo o campo interno, de maneira que perde todo seu impacto;

19

LOTMAN, I Universe of the mind Londres, IB Tauris, 1990, p 123 e ss

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(c) assim integrado por completo, ele já não será reconhecido como estrangeiro, de tal forma que o domínio externo recuperará toda sua especificidade e singularidade, e tornará a aparecer como confuso, falso, não pertinente; (d) por fim, o aporte primeiro, agora irreconhecível, será erigido em norma universal, proposta retroativamente não apenas dentro dos limites do mundo interno, senão também ao mundo externo, como parâmetro para toda e qualquer cultura Tal seqüência de diálogo entre “campos” semióticos encerra de fato: (i) operações de abertura e fechamento do campo; (ii) aumentos e diminuições da intensidade (intensidade da percepção-recepção); (iii) operações de aumento e retraimento da extensão e da quantidade As modificações da semioesfera, tanto quanto as da práxis, recaem, assim, sobre duas dimensões essenciais: a intensidade (em função da operação de foco) e a extensão e quantidade (em função da operação de apreensão) As quatro fases definem-se, portanto, assim: – fases a e b: a intensidade do foco e a extensão da apreensão evoluem em razão inversa uma da outra; em a, a irrupção impactante do aporte externo engendra um afeto intenso, porém sem extensão; em b, a difusão intervém, e o aporte externo é ao mesmo tempo domesticado, negociado, diluído, conquistado: todo o campo é afetado por ele, mas de modo tênue – fases c e d: a intensidade do foco e a extensão da apreensão evoluem no mesmo sentido, conjuntamente; em c, tanto a extensão quanto a intensidade se encontram no mínimo; em d, a amplificação, enfática, conquistadora e normativa, faz seu trabalho, e afeta simultaneamente a intensidade (do reconhecimento) e a extensão (da difusão)

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_PRÁXIS ENUNCIATIVA

O esquema da práxis assume então a seguinte forma:D e s dob ra m e n to do unive rsa l

tôn ico

Im p a c to do e s tra nho

FO CO inte ns ida de

áto no

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E xc lu sã o do específico e s pe c ífic o áto no A PREEN SÃ O de s d obra m e nto e difu sã o

D ifus ã o do fa m ilia r

tôn ico

O ângulo agudo da cúspide determina uma zona de descontinuidade; com efeito, uma vez que um fato cultural seja considerado como universal, todas as fases anteriores são esquecidas: a universalização de uma forma poderia até mesmo – e vale a observação para as teorias pretensamente universais – ser definida como o descarte da práxis que a produziu A zona crítica do “desdobramento universal” é, na verdade, o local onde se introduz um metadiscurso que redefine até o próprio referente do discurso e da cultura Nesse sentido, é em tal zona que se realizam e estabilizam os remanejamentos do campo discursivo, para formar novos “universos” A “práxis” enunciativa deve também ser confrontada a essas grandes distinções da lingüística do século XX que são a língua, a fala, o discurso e a norma A posição que lhe reconheceremos, no interior desse conjunto, estará ligada aos modos de existência das instâncias da linguagem A lingüística saussuriana opõe a língua e a fala, ou seja, o virtual e o realizado, sem grande preocupação com a mediação entre as duas Como recorda M Arrivé, uma vez definida a língua como um “todo”,196

_PRÁXIS ENUNCIATIVA “Evidentemente, resta identificar o objeto que, adicionado ao todo da língua, vai constituir o não-todo (perdoem essa antecipação lacaniana) da linguagem saussuriana”20

Trata-se da fala, cuja relação com a língua é assim esclarecida pelo próprio Saussure:“A faculdade de linguagem é um fato distinto da língua, mas que não pode se exercer sem esta Pela fala, designa-se o ato do indivíduo ao realizar sua faculdade através da convenção social que é a língua”21

Na linguagem, a língua é portanto um todo homogêneo e virtual, em relação ao qual a fala – o que resta – não pode ser definida senão negativamente, ela que no entanto possui um inegável estatuto de realidade Essa “realização”, que a lingüística só pode descrever negativamente e não sabe assumir, constitui decididamente uma dificuldade Tendo já sobejamente frisado tal aspecto, não insistiremos nisso; ainda assim, cumpre ressaltar que Saussure também fala em “exercer” uma competência lingüística (cf a dinâmica homogeneizante da motivação e da analogia), e que esse “exercício” é igualmente considerado nãopertinente de um ponto de vista estritamente lingüístico, isto é, do ponto de vista exclusivo do sistema da língua A lingüística guillaumiana vai introduzir aqui outro modo de existência, depois de redefinir os termos iniciais: em vez de opor a língua e a fala, o “todo” e o “não-todo”, Guillaume opõe a língua e o discurso, par de noções comparável ao par hjelmsleviano “sistema/processo” Sem entrar nos pormenores de tais distinções, salientaremos apenas a operação constitutiva da lingüística guillaumiana: em vez de apenas opor uma competência –20

21

Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p 36 ENGLER, R Edition critique du “Cours de Linguistique Générale”, I Wiesbaden, Harrassowitz, 1989, p 41

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um saber dizer – a um discurso realizado – um dito efetivo –, Guillaume alarga de certo modo a fronteira entre os dois, aí instalando a “efetivação”: potência / efetivação / efeito Como o nome indica, a “efetivação” é um processo de conversão do virtual em real, processo constituído de diversas operações, mas que, por isso mesmo, só pode se desenrolar num tempo mínimo, porém irredutível, o chamado tempo “operativo”– a saber, literalmente, o tempo das “operações” Projetado sobre a dicotomia hjelmsleviana sistema/processo, esse alargamento da fronteira entre as instâncias poria à mostra o heterodoxo “processo” (processus), que Hjelmslev por si próprio jamais considerou, pois para ele, apoiado num raciocínio tipicamente saussuriano, o “processo” (procès) é tudo o que resta quando se levou em conta o sistema E Coseriu, por sua vez, distingue a língua, a norma e a fala22 , concebendo o segundo termo como um filtro que, limitando as possibilidades de atualização da língua, predetermina a realização dos discursos concretos, ou seja, a fala Por princípio, o poder de mediação e seleção da norma é comparável ao que admitimos para a práxis; também ele funda-se nos usos que, a título de atualização, aparecem como produtos da combinatória lingüística, mas, a título de potencialização, restringem, de fato, a extensão dos possíveis numa dada cultura A diferença entre a norma e a práxis consiste essencialmente no fato de que o ponto de vista de Coseriu ainda é estático, na medida em que a norma, assim como a língua, é um “depósito” de estruturas e formas fixas; a práxis produz tais formas, decerto, mas também todas as demais, inventi22

“Sistema, norma e ‘parola’” Studi linguistici in onore di Vittore Pisani Brescia, Paideia Editrice, p 235-53

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vas e extranormas, e o ponto de vista que adotamos é o das operações, e não o das “formas depositadas” Por outro lado, a enunciação de que tratamos aqui é concebida como um conjunto de operações; numerosos autores já adotaram semelhante ponto de vista; mencionaremos apenas as propostas mais próximas de nossas preocupações, a saber, as de Saussure, Benveniste e Greimas Em “O aparelho formal da enunciação”23, Benveniste explica-se com firmeza acerca do que entende por ato de enunciação, essa “entrada em funcionamento” ou “efetuação” da língua Até onde se podem reconstituir as diversas operações, através de sua explanação, estas seriam quatro: (i) a mobilização da língua; (ii) a apropriação da língua; (iii) a alocução; e (iv) a referência Sua definição semiótica seria a seguinte: A mobilização pressuporia, de certo modo, um conjunto inerte a ser ativado globalmente: consideremos que isso corresponderia à ativação do percurso gerativo, à “entrada em ressonância” de seus diferentes níveis A apropriação é, de acordo com Benveniste, o ato “que introduz aquele que fala em sua fala”24, mas tal definição, situada no contexto do aparelho formal da enunciação, foi geralmente interpretada de maneira restritiva, ou seja, apenas em termos dêiticos e modais Na verdade, o sujeito do discurso se apropria mais amplamente da língua, dado que ele escolhe categorias, seleciona para cada qual um ou vários regimes, põe-nos em relação, esforça-se por estabelecer congruência entre os regimes adotados – e principalmente entre os usos que deles decorrem –, e é assim também que ele se instala em seu discurso A alocução, por meio da qual o locutor “implanta o outro diante dele” implica entre outras coisas o compartilhamento, a23

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24

Problèmes de Linguistique Générale, II, op cit, p 79-88, primeiramente publicado em Langages 17 Paris, Didier/Larousse, 1970, p 12-8 Op cit, p 82

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comunhão fática, e a possibilidade de uma sanção intersubjetiva das convocações efetuadas por cada um dos parceiros Por conseguinte, a práxis discursiva é interativa Enfim, a referência, que Benveniste por vezes reduz, quer à referência dêitica, quer à referência ao mundo descrito, deve ser compreendida também como estabelecimento de uma rede de referência interna ao discurso, a partir, bem entendido, do centro de referência constituído pela instância de discurso; D Bertrand propôs denominar “referenciação” a “construção enunciativa do referencial”, e “referencialização” os “procedimentos internos ao tecido discursivo”25 Greimas, por sua vez, concebe a enunciação a partir de três operações: (i) a debreagem e a embreagem; e (ii) a convocação Não obstante seu ar de parentesco etimológico, que inspirou a H Parret o termo genérico “breagem”26 , a debreagem e a embreagem não operam no mesmo nível: a primeira é a operação fundadora da instância de discurso, a “esquizia”, que atualiza num só gesto as categorias enunciativas (dêiticas, essencialmente) e as categorias do discurso (ator, espaço, tempo); a segunda é uma tentativa, sempre adiada, de regresso das categorias do discurso às da enunciação A debreagem instala as condições de realização do discurso, e a embreagem não pode neutralizar seus efeitos, sob pena de proibir qualquer fala Vale dizer, se a debreagem instala as condições de uma enunciação, a embreagem não pode operar, e portanto “simular” essa enunciação, a não ser no interior das condições impostas pela debreagem É por isso que, de um ponto de vista sintáxico, a debreagem promove a passagem de uma realidade indizível (logo, vir-

25

26

In L’espace et le sens, Germinal d’Emile Zola Paris/Amsterdam, Hadès/John Benjamins, Actes Sémiotiques, 1985, p 32 “L’énonciation en tant que déictisation et modalisation”, in PARRET, H (Ed), “La mise en discours”, Langages, 70 Paris, Larousse, 1983, p 92

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tual) a um discurso realizado; por conseguinte, de um modo de existência a outro Em compensação, a embreagem, apoiando-se nas categorias atualizadas pela debreagem, propõe apenas um simulacro da instância de discurso, a “enunciação enunciada”, a qual deve ser considerada como “potencial”, na medida em que ela é convencional e, em maior ou menor grau, fixa Voltaremos a isso em breve Outra propriedade insuficientemente salientada da debreagem é a de ser pluralizante: dissociando a pessoa da não-pessoa, ela instala ao mesmo tempo uma multiplicidade de não-pessoas (de “eles”) disponíveis, ao passo que a pessoa subjetiva é sempre, ou singular, ou massiva (“nós”) e coletiva Da mesma maneira, a pluralidade dos espaços e momentos resultantes da debreagem funda a própria

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possibilidade dos deslocamentos, dos pontos de vista, dos jogos da memória etc Como a embreagem visa à homogeneização entre enunciado e enunciação, compreende-se que as operações extensivas/intensivas da práxis fazem, aqui também, seu trabalho, e que a embreagem e a debreagem são seus avatares, aplicados à própria instância de discurso, isto é, refletidos É então que intervém a noção de “convocação”27 A metáfora do “chamamento” em discurso recobre, de fato, o processo de discursivização do conjunto das categorias semionarrativas disponíveis De acordo com o procedimento a ser apresentado no capítulo dedicado às formas de vida, chamar uma categoria em discurso é: (i) selecionar este ou aquele de seus regimes, e (ii) desenvolver os usos do regime selecionado Tal processo, que se supõe válido para todas as categorias constitutivas do discurso, recebeu aqui uma descrição em termos de efeitos de apresentação e representação: a convocação permite às categorias aceder à presença discursiva, sendo portanto controlada pelas modalidades existenciais27

Cf Semiótica das paixões, op cit, especialmente p 12-4 e 69-70

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As operações propostas por Greimas correspondem às de Benveniste, redistribuindo-as diferentemente: a “mobilização” e a “apropriação” deixam-se identificar sem dificuldade a operações constitutivas da convocação (chamamento das categorias, seleção de um regime, principalmente enunciativo28 ) A “alocução” procede da embreagem, pois que instala um dos termos do regime pessoal, ao passo que a “referência” (referenciação ou referencialização) procederia da debreagem, dado que, já por separar cada categoria da instância de discurso em duas ou várias grandezas, esta suscita entre elas uma tensão que reclama sua resolução, o que se designa, justamente, pelo termo “referência” A referência, nessa perspectiva, nada seria senão a lembrança de uma unidade perdida do indizível Contudo, a diferença não é nada negligenciável: para Benveniste, a referência pressupõe a alocução, pois não poderia haver referência a não ser compartilhada, isto é, já uma “co-referência”; a referência enunciativa é para Greimas, por outro lado, inerente à debreagem, ou seja, independente da alocução A razão é simples: o sujeito da enunciação greimasiano é um actante único, que só vai cindirse em dois atores, enunciador e enunciatário, no momento da manifestação, independentemente da debreagem em si

28

Lembremos que, para Benveniste, “o locutor se apodera do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor” graças à mesma operação, chamada de “apropriação” Cf PLG, II, op cit, p 82

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FORMA DE VIDA1 RECENSÃONOÇÃO de forma de vida aparece nas Investigações filosóficas de Wittgenstein, que a utiliza para generalizar os “jogos de linguagem”: a significação de uma expressão não se pode estabelecer senão

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em seu “uso”, que por sua vez pertence a um “jogo de linguagem”, o qual por sua vez pertence a uma “forma de vida”“O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”1

A

O projeto de Wittgenstein vai na direção de uma pragmática generalizada, que de fato concederia primazia ao cultural, à labilidade dos usos lingüísticos e semióticos, sobre o sistema e a estrutura O encadeamento conceptual que propõe: expressões → usos → jogos de linguagem → formas de vida permite substituir usos, em si mesmos lábeis, imprevisíveis e insignificantes, por formas intencionais e/ou codificadas, capazes de ancorar em cada expressão o sentido da práxis cotidiana O controle do sentido das expressões é, assim, assumido por um duplo procedimento de condensação e expansão, que permite passar das figuras locais às formas de vida mais gerais que as subsumem e fazem-nas significar Nesse sentido, toda manifestação de uma forma de vida é então considerada como um1

WITTGENSTEIN, L Investigações filosóficas, Primeira Parte São Paulo, Nova Cultural, Os Pensadores, 1999, p 35

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condensado da forma de vida inteira O princípio subjacente, da coexistência entre uma significação constante e múltiplos níveis de articulação, está, por um lado, em conformidade com a análise semiótica em “variedades” e “variações”, tal como a concebe Hjelmslev no capítulo dezesseis dos Prolegômenos, e, por outro, bem próximo do percurso gerativo2 , cujos diferentes níveis são considerados “homotópicos” – na medida em que conservam a significação ao rearticulá-la –, porém “heteromorfos”, para permitir a complexificação das articulações, de um nível a outro Ou seja, nesse sentido, o “estilo” de uma forma de vida é ao mesmo tempo o condensado, a manifestação e a garantia de coerência dos diversos níveis de articulação subjacentes Mas o recurso ao percurso gerativo, nesse dispositivo, permite orientar a condensação e a expansão, pois pode-se admitir que as estruturas narrativas, tanto profundas quanto superficiais, condensam as estruturas discursivas, na exata medida em que estas estendem e transpõem aquelas, em concordância com o axioma hjelmsleviano segundo o qual o conteúdo semiótico é tributário de sua extensão A mesma noção, em outra acepção, encontra-se também em Cassirer, que, no segundo tomo de La philosophie des formes symboliques, dedica mais de oitenta páginas ao mito concebido como “forma de vida” Ela permite então, numa perspectiva que já não se vincula apenas à pragmática da linguagem, e sim, mais amplamente, à semiótica das culturas, evidenciar o enraizamento sensível das organizações simbólicas coletivas

2

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 206-9

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2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕESPARADIGMÁTICAS

Levar em conta as formas de vida é algo comparável à passagem do uníssono para a “polifonia” Por concepção “em uníssono”, entendemos a dupla redução operada pela semiótica greimasiana numa primeira fase: antes de mais nada, a redução da diversidade semiótica à narratividade, fazendo a semiótica aparecer como uma “narratividade generalizada”; em seguida, a redução da narratividade geral à narratividade proppiana No entanto, um comentário de Greimas, no verbete “Esquema narrativo” do Dicionário de semiótica, permaneceu por muito tempo inexplorado:“O esquema narrativo constitui como que um quadro formal em que vem se inscrever o ‘sentido da vida’”3

Tal referência ao “sentido da vida” está aqui duplamente modalizada e distanciada, como menção (com as aspas) e como aproximação (com o “como que”); compreende-se essa distância, quando, no mesmo verbete, se afirma que:“[] a semiótica francesa pretendeu ver aí, desde o início, um modelo, perfectível, capaz de servir de ponto de partida para a compreensão dos princípios de organização de todos os discursos narrativos”4

Claro que essa pretensão à universalidade era pouco compatível com as variações culturais previsíveis do “sentido da vida”, aqui concebido a partir da tripartição das provas respectivamen3 4

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Dicionário de semiótica, op cit, p 298 Op cit, p 297 (grifo nosso)

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te qualificante, decisiva e glorificante Já na época, entretanto, o modelo proppiano aparecia como esquematização de uma ideologia do fazer humano – na verdade, própria do mundo indoeuropeu, o qual atribui ao fazer uma dimensão causativa e “poiética” – assentada na busca, a tal ponto que, por exemplo, dentre as narrativas do medo, só as organizadas como busca pareciam ter “algum” sentido; as narrativas organizadas como simples fuga não o tinham5 A interrogação própria às formas de vida deve agora ser precisada: qual o conteúdo categorial investido numa forma de vida reconhecida? Esse conteúdo é esquemático, se se convencionar definir o esquema pela seleção, discursivização e valorização de um dos regimes de uma categoria reconhecida como dominante em dado discurso Tais regimes podem corresponder, por exemplo, às dêixis positiva e negativa do quadrado semiótico, mas, como nem todas as “categorias” são construídas de acordo com esse modelo, essa equivalência só pode ser parcial Um exemplo tomado a A Camus vai nos permitir esclarecer o ponto O autor de L’homme révolté descreve o “romanesco” como busca de uma forma, dado que “a vida [] não tem estilo”, e apresenta assim o percurso narrativo das personagens romanescas:“Os heróis têm nossa linguagem, nossas fraquezas, nossas paixões Seu universo não é nem mais belo, nem mais edificante que o nosso Mas eles, ao menos, correm até o fim de seu destino; aliás, não há nunca heróis tão comoventes quanto aqueles que vão até a extremidade de sua paixão,

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Kirilov e Stavroguine, Mme Graslin, Julien Sorel ou o príncipe de Clèves É aí que perdemos sua medida, pois eles concluem aquilo que não perfazemos nunca”65

6

Sobre a singularidade do modelo proppiano, ver ZILBERBERG, C “Le schéma narratif à l’épreuve”, Protée, 21,1, hiver 1993 CAMUS, A L’homme révolté Paris, Gallimard, 1954, p 325

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A categoria selecionada por Camus, a aspectualidade, é a do processo discursivo, mais que a do programa narrativo definido pela liquidação de uma falta; considera-se que essa categoria admite, como regimes ou subcategorias, o perfectivo e o imperfectivo Isto posto, o romance, de acordo com Camus, discursiviza a superioridade progressivamente afirmada do acabado sobre o inacabado As observações de Camus ganham todo seu sentido se lembrarmos que são numerosos os universos semióticos e formas de vida que, ao contrário, privilegiam o incoativo, como por exemplo a poesia de Eluard O conceito de forma de vida pertence ao paradigma das esquematizações semióticas Mas ele teria, em princípio, a peculiaridade de integrar as esquematizações atualmente conhecidas: salvo melhor juízo, um esquema discursivo, um esquema narrativo, um esquema modal, um esquema tensivo e até mesmo, caso acompanhemos J Petitot neste ponto, um esquema relativo às estruturas elementares da significação, em sua interpretação topológica Porém a particularidade dos esquemas – a de encontrar-se dispostos entre o sistema, que sustentam, e o uso, do qual se alimentam – incita a pô-los em relação com a problemática dos modos de existência Seja, apenas para a comodidade da explanação, uma categoria C, munida de seus regimes C’ e C’’; cada um desses regimes, por sua vez, admite usos, ou seja, um desdobramento Para C’: c’1, c’2, c’3; para C’’: c’’1, c’’2, c’’3 A discursivização da forma de vida solidária de um regime afeta cada um dos modos de existência Suponhamos aqui que a forma de vida examinada se ligue ao regime C’; nesse caso: (a) A atualização de C’ em discurso vem acompanhada, em primeiro lugar, pela convocação das diferentes estruturas associadas, pertencentes ao sistema e passíveis de se manifestarem em discurso (seria o caso do quadrado semiótico ou do esquema actancial); em segundo lugar, pela realização dos usos correspon207

_FORMA DE VIDA

dentes a C’: c’1, c’2, c’3; quer um certo uso do quadrado semiótico, por exemplo a prevalência do termo neutro ou complexo sobre os termos simples, quer ainda uma certa disposição do esquema actancial; os diversos patamares do percurso gerativo, assim convocados, constituem formas receptoras para tais usos canônicos, de que o esquema narrativo continua a ser, hoje em dia, o melhor espécime (b) Mas a atualização de C’ é solidária de uma virtualização, parcial ou total, do outro regime C’’ e de uma potencialização de seus usos prováveis, c’’1, c’’2, c’’3 Semelhante potencialização do uso adota não raro as vias da pejoração, da ironia, da derrisão, do burlesco etc: os conteúdos c’’1, c’’2, c’’3 são depreciados e relegados à categoria de estereótipos insignificantes Voltando ao exemplo tomado a Camus, diremos que a forma de vida, subjacente à subclasse dos romances focalizada, por um lado atualiza a perfectividade e virtualiza a imperfectividade e, por outro, realiza os usos associados, ao mesmo tempo em que potencializa os do outro regime, para depreciá-los; disso dá testemunho a disjunção enfática: “Mas eles, ao menos” E, para prolongar esse

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exemplo, o suplemento modal inerente à perfectividade é, no mundo helênico, atribuído a uma vontade divina; num universo laicizado, à teimosia estúpida aos olhos de uns, e à perseverança meritória aos olhos de outros Em tais condições, as formas de vida exploram, por um lado, as latitudes oferecidas pela alternância dos regimes “no interior” de uma mesma categoria e, por outro, as possibilidades de expansão ou condensação, de complicação ou depuração dos usos previstos para o regime que prevaleceu Simplificando, a práxis enunciativa seria solicitada aqui para responder a duas perguntas prioritárias: (i) a alternância dos regimes permitiria responder à questão: a seleção inerente à convocação opera sobre o quê? (ii) a marcha do discurso, por seu turno, responderia à questão: o que pode ser associado ao regime selecionado? É fácil reconhecer, no primeiro procedimento,208

_FORMA DE VIDA

a somação abordada em Semiótica das paixões e, no segundo, a resolução (cf o capítulo “Esquema”) A singularidade própria às formas de vida, e que lhes confere valor, aparece a partir de então como o sincretismo entre a sensibilização de uma dada “região” do sistema (o regime) e de uma extensão variável do processo que a manifesta (seus usos) As latitudes paradigmáticas (regimes) e sintagmáticas (usos), que são propriedades da semiose, tornam-se assim, para a práxis enunciativa, possibilidades efetivas de intervenção As formas de vida apresentam a peculiaridade de integrar e ajustar os esquemas particulares que já reconhecemos A pregnância de uma forma de vida para aquele que a promove poderia também ser formulada como uma implicação do tipo: se C, então c1, c2, c3 Assim, o esquema narrativo canônico, privado de sua exclusividade, põe a significar juntos: um esquema actancial a serviço do destinador, dispositivos modais orientados pela aquisição da modalidade do poder-fazer, um esquema discursivo extensível das provas, modos de existência do sujeito dominados pela “paciência” e a confrontação, no mínimo, de dois programas narrativos concorrentes Uma forma de vida constituiria, pois, um “esquema de esquemas” responsável pela coerência e significação de todos os esquemas imanentes a um conjunto discursivo vinculado a uma enunciação Enfim, na conceptualização da esquematização, a forma de vida acrescenta um ponto de vista diferente e complementar Já não se trata somente de identificar uma forma, estrutura ou dispositivo na imanência discursiva, e sim de abordar-lhes o efeito estético Quer do ponto de vista do emissor, quer do ponto de vista do receptor, construir ou interpretar uma forma de vida é focalizar, para o emissor, ou apreender, para o receptor, a estética, ou seja, o plano de expressão adequado de um sistema de valores, tornado sensível graças à disposição coerente das esquematizações por uma enunciação209

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22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Do ponto de vista enunciativo, a noção de forma de vida permitiria responder à seguinte questão: o que é que garante a conservação da categoria, em primeiro lugar, e em seguida do regime, através dos outros níveis em que a primeira seleção repercute? Voltando ao exemplo tomado a Camus, em que é que se funda a ascendência da perfectividade sobre os outros níveis? Por meio de quais modalidades a perfectividade afeta os outros níveis do percurso gerativo ou da estratificação? Tendo obtido das definições paradigmáticas indicações relativas à morfologia geral das formas de vida, resta-nos examinar-lhes as formas sintáxicas Na medida em que tais propriedades morfológicas são relativas aos modos de existência, a sintaxe das formas de vida é levada a

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encarregar-se das tensões inevitáveis surgidas entre os modos de existência, e notadamente das duas tensões a seguir: (a) a tensão entre a atualização de C’ e a virtualização de C’’ Para pensar semioticamente tal confronto, porém, parece indispensável considerar C’ e C’’ como funtivos da função C, função que chamaremos de totalizante quando C’ e C’’ são julgados compatíveis entre si, e partitiva no caso contrário O verdadeiro dilema se converte no seguinte: C’ e C’’ seriam conjugáveis ou exclusivos? E, para cada opção: em que medida? (b) a tensão entre a realização dos derivados c’1, c’2, c’3 e a potencialização correlativa dos derivados c’’1, c’’2, c’’3 Assim, seguindo o exemplo emprestado a Camus, a relação pertinente entre imperfectividade e perfectividade é de tipo transitivo: segundo Camus, a imperfectividade reclama, espera, conta com a perfectividade; segundo outros, o valor, para o sujeito, reside no inacabamento, logo, numa intransitividade Mas tal descrição aborda apenas “metade” da problemática: a imperfectividade é, quase unanimemente, avaliada como dinâmica, e a perfectividade, como estática, de sorte que a atualização da perfectividade210

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e do estatismo seria correlativa da virtualização da “dinâmica” Na mesma ordem de idéias, porém ainda com inversão das valências, poderíamos citar a superioridade, aos olhos de Baudelaire, da obra “feita” sobre a obra “acabada” Essa dialética conflui com a problemática das triagens e das misturas, evocada por Fr Bastide acerca do “tratamento da matéria” Do ponto de vista descritivo, procede por projeção e distribuição de faltas e, literalmente, de restos; quando a triagem é adotada como ponto de vista pertinente, o “todo” é avaliado como mau, pois que comporta partes julgadas impuras – ou seja, restos a serem extraídos ou eliminados; o bom tratamento é então “defectivo” Ao contrário, quando prevalece a mistura, a direção se inverte: o “todo” é avaliado como bom se for completo, e mau, se apresentar faltas; desta vez, o bom tratamento é “aditivo” Consideradas como operações axiológicas, isto é, concebidas para elaborar objetos de valor, a triagem o faz por eliminação, e a mistura, por adjunção Assim, o “belo gesto”7 que o cavalheiro pensa cumprir ao jogar sua luva na face da donzela Cunegunda prende-se inegavelmente a um tratamento “partitivo”, numa forma de vida dirigida pela triagem, cuja manifestante discursiva é uma práxis, estrondosa, de ruptura E, caso suspendamos as variáveis históricas contingentes, ou seja, os investimentos temáticos, esse orgulhoso cavalheiro estará de fato irmanado em pensamento com o dândi baudelairiano:“O homem rico, ocioso, e que, mesmo blasé, não tem outra ocupação que a de correr no encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado, desde a juventude, à obediência dos outros homens, aquele, enfim, que não tem outra profissão a não ser a elegância, gozará sempre, em todos os tempos, de uma fisionomia distinta, completamente à parte”87 8

Cf GREIMAS, A J & FONTANILLE, J “Le beau geste”, RSSI, op cit BAUDELAIRE, Ch “Le peintre de la vie moderne”, in Œuvres complètes, op cit, p 906-7

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Na medida em que a intensidade atravessa de um lado a outro o campo semiótico, podemos discriminar os operadores mencionados, projetando a diferença de intensidade como critério:Totalização (mistura) Tônico Átono fusão adição Partição (triagem) distinção subtração

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As formas de vida estabilizadas seriam portanto oponíveis entre si, em primeiro lugar conforme fossem, do ponto de vista da direção, totalizantes e acumulativas, ou partitivas e eletivas; em seguida, do ponto de vista do acento, estrondosas ou discretas Assim, se o cavalheiro e o dândi focalizam ambos a partição – a “distinção”, de acordo com Baudelaire –, o primeiro acrescenta a modalidade do alarde público, ao passo que o dândi se faz notar, de certo modo, “discretamente”:“Assim, aos seus olhos, ávidos, antes de mais nada, de distinção, a perfeição do vestuário consiste numa simplicidade absoluta, que é, com efeito, a melhor maneira de se distinguir”9

O primeiro deles busca o alarde que o segundo evita, mas as denominações nesse caso são embaraçantes, pois a “distinção” de um é, do ponto de vista dos regimes modais, o antônimo da do outro: o cavalheiro se “distingue” dando mostras disso (acentua-se portanto seu querer fazer), enquanto o dândi se esforça por dissimulá-lo (deslocando-se então o acento para seu saber fazer) Necessitaríamos aqui de um terceiro patamar, de tipo modal, que sobredeterminaria as operações axiológicas “tônicas”9

Op cit, p 907

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ou “átonas” Dessa maneira, os regimes intersubjetivos do fazer saber evidenciados por E Landowski vêm aqui sobrepor-se ao alarde de um regime de triagem ou mistura10 Assim, do ponto de vista sintagmático, uma forma de vida reconhecer-se-ia (i) pela presença de uma seleção saliente, detectável principalmente como ruptura por relação à norma ou ao uso mais freqüente, como no caso do “belo gesto” do cavalheiro; (ii) por um conjunto de “comutações em cadeia” daquilo que chamamos de usos ou derivados, comutações que promovem a repercussão e conservação de tal seleção em todas as configurações heterogêneas atravessadas No âmbito dessas configurações, das estratégias narrativas e dos esquemas interativos e passionais, uma forma de vida obedece, de fato, aos mesmos critérios que a isotopia no âmbito dos semas e sememas De outro ponto de vista, na medida em que essas diversas configurações pertencem necessariamente a diferentes níveis de abstração, uma forma de vida poderia ser considerada como a concatenação, a partir das triagens e misturas, das seleções operadas nos diferentes níveis do percurso gerativo Em outros termos, há forma de vida a partir do momento em que a práxis enunciativa apareça como intencional, esquematizável e estética, ou seja, preocupada com um plano da expressão que lhe seja peculiar De fato, é papel da práxis enunciativa produzir, por tipificação e esquematização, formas sensíveis imediatamente reconhecíveis, os “praxemas” (cf o capítulo “Práxis enunciativa”), bem como garantir a coerência de um conjunto de “praxemas” dentro de uma cultura histórica e ideologicamente determinada Se uma intencionalidade do uso é concebível, como sugere Wittgenstein, só pode ser no âmbito de uma práxis orientada, a afetar de maneira coerente um conjunto de “praxemas”10

LANDOWSKI, E A sociedade refletida São Paulo, Educ/Pontes, 1992, p 85-101

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3 CONFRONTAÇÕESDo ponto de vista semiótico, uma forma de vida é ao mesmo tempo questão de coerência e de congruência O “sentido da vida” é, antes de mais nada, efeito de coerência de um percurso em que se revela a posteriori um projeto axiológico Vale dizer, o princípio da esquematização se funda, em semiótica, na possibilidade de tornar sensível a coerência de uma forma de vida graças à construção, pelo uso e pelas culturas, de dispositivos canônicos imediatamente reconhecíveis – no decorrer de uma estesia, por exemplo É nesse sentido que se poderia dizer que o esquema narrativo é “belo”: como coerência, como manifestação esquematizada (logo, sensível), a mostrar uma “imagem” do sentido Por conseguinte, a coerência é antes sintagmática, e assegura a identidade do percurso A congruência diz respeito à concatenação das seleções operadas em cada nível, ou seja, dos regimes Com efeito, uma forma de vida pode ser caracterizada por um tipo de equilíbrio ou desequilíbrio interno à função semiótica, por um tipo de mediação proprioceptiva, por papéis modais, actanciais e passionais, por regimes de objeto A concatenação paradigmática de tais direções proporciona um efeito de individuação do actante coletivo, assim como do actante singular O conjunto, cujo efeito é a congruência, assenta, como já sugerimos, num princípio de “comutação em cadeia” Assim, em muitos discursos, o aspecto perfectivo é não raro associado à obrigação, e o imperfectivo, como valor, “abandonado” à iniciativa individual: não é necessário, por força, tradicionalmente, terminar o que se começou? Nessas condições, a seleção de um certo regime, operada num nível qualquer, acarreta uma cadeia de seleções congruentes nos demais níveis O conjunto aparecerá depois como coerente, contanto que uma forma de vida identificável assuma a intencionalidade dessa “comutação em cadeia” Desse ponto de vista, a214

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congruência das seleções e a coerência global da deformação assim operada tornam-se manifestação de um projeto de vida subjacente Além disso, nessa comutação em cadeia, elas modificam a forma do campo de presença, uma vez que afetam obrigatoriamente as estesias do sujeito sensível Consideraremos, portanto, os seguintes dados (cf o capítulo “Presença”): (i) a organização do campo de presença do sujeito a partir de um centro dêitico; (ii) a identificação dos limites de tal campo de presença com os horizontes de aparecimento e desaparecimento das figuras percebidas; (iii) a extensão do campo, medida pela distância entre os horizontes e o centro dêitico, isto é, sua profundidade; (iv) enfim, a mobilidade dos horizontes Para sermos breves, examinemos apenas o caso da profundidade Esta pode ser salientada por uma forma de vida que concederá sua atenção, isto é, seu acento, à extensão do campo de presença, como no caso da poesia baudelairiana:“L’opium agrandit ce qui n’a pas de bornes, Allonge l’illimité, Approfondit le temps, creuse la volupté, Et de plaisirs noirs et mornes Remplit l’âme au-delà de sa capacité”11

As flutuações do campo de presença dizem respeito: (i) à alternância entre o foco, que abre o campo, e a apreensão, que o fecha; (ii) à alternância entre a ativação do sujeito (é ele que focaliza ou apreende) e sua passivação (ele é, então, focalizado ou apreendido por seu meio) As variações da profundidade do cam11

BAUDELAIRE, C op cit, p 122 “O ópio acrescenta ao que nunca terá contornos,/ Todo o ilimitado amplia,/Sabe o tempo sondar e aprofunda a alegria,/De negros prazeres mornos/Enche a alma muito além do que ela conteria” Tradução de Jamil Almansur Haddad São Paulo, Difel, 1958, p 176

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po, que pode ser ampla ou restrita, são efeitos da sintaxe e do tempo relativo das apreensões e dos focos; por exemplo, em relação a um foco que ao desdobrar-se provoca a extensão do campo, se uma apreensão intervier rapidamente ou quiçá prematuramente, a profundidade será mínima; caso esta intervenha lenta e tardiamente, a profundidade será maior As intersecções formais dessas variáveis entre si caracterizam tipos estésicos, ou seja, morfologias do campo de presença que determinam e diversificam o fazer perceptivo, morfologias que servirão de plano da expressão para determinadas formas de vida reconhecíveis A intersecção das variáveis em foco resulta nas seguintes formas de vida:

ATIVAÇÃO Foco Sujeito focalizante a busca Apreensão Sujeito apreendedor a dominação

PASSIVAÇÃO Sujeito focalizado a fuga Sujeito apreendido a alienação

Gostaríamos de acrescentar um comentário sucinto de cada uma de tais posições: (a) Com a busca, um sujeito focaliza e abre o campo, para com este englobar um valor que pressente como externo (b) Com a fuga, um sujeito que é alvo de um foco, num campo aberto e em expansão, tenta escapar disso (c) Com a dominação, um sujeito apreende o mundo, garante seu mando e faz valer sua eficiência, seu poder ou seu “encanto” sobre o campo que ele fecha216

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(d) Com a alienação, é o mundo que se apodera do sujeito, absorve-o e encerra-o; ou, mais concretamente, “seqüestra-o” Semelhante alternância de regimes permite compreender por que um comportamento que aparece somente como negativo sob um regime, pode ser, de fato, positivo sob o outro regime Assim, Greimas concedeu alto preço, em seu estudo sobre o “belo gesto”12 , ao caráter “criador” da negação: o “belo gesto” do cavalheiro recusa o sistema de trocas que a dama propõe e abre uma pluralidade de possíveis, mas ao mesmo tempo oferece o espetáculo de uma forma de vida outra que a que lhe querem impor, forma de vida em que os perigos corridos13 não admitem remuneração, em que a elegância reside na própria intransitividade do processo Assim fazendo, ele afirma portanto, através dessa comutação de regime, um foco puro e intransitivo Ademais, em razão da dinâmica própria à configuração, todo o percurso pode ser descrito como uma sucessão de impulsões (a busca e a fuga) e paradas (a dominação e a alienação), as quais caracterizam diretamente a “respiração” e a prosódia da profundidade perceptiva e, indiretamente, os diversos estilos narrativos associados a tais formas de vida (cf o capítulo “Presença”, § Definições sintagmáticas) Admitindo que cada “posição” já é em si uma tensão entre o aberto e o fechado, e, sintaxicamente falando, entre a extensão e a retenção, teríamos então de compreender essa sintaxe como informadora de um fluxo subjacente em concordância com o princípio da modulação da profundidade, sugerido acima Por exemplo, se a alienação-seqüestro interromper bem cedo a abertura inerente à busca, ela a transformará em privatização: o sujeito, ainda encerrado na área estreita de seu domínio imediato,12 13

Ver nota 7 O cavalheiro desceu à fossa dos leões para buscar uma luva que a dama deixara cair lá, e em seguida recusa as tentativas de aproximação que esta lhe faz à guisa de agradecimento

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tenta circunscrever aí o valor que focalizava A exploração de tais variedades está apenas começando Mas sobretudo uma forma de vida definir-se-ia por seu grau de complexidade: a depender de uma única configuração, ela seria simples; complexa, caso subsumisse no mínimo duas configurações Intuitivamente, uma forma como a avareza parece pôr em jogo ao mesmo tempo a busca e a dominação As formas de vida selecionadas nessa rede seriam, assim, absolutas quando exclusivas, e integradas quando associadas a pelo menos uma outra forma de vida Embora as denominações sejam sempre perfectíveis, a corrida desgovernada conjugaria a busca e a fuga; assim, a libertinagem, tal como a apresenta Molière em Don Juan, de maneira incompreensível para os demais protagonistas da peça, Esganarelo, Don Luís, Elvira e seus irmãos, também procede da “corrida desgovernada”, já que, para Don Juan, seduzir e desfazer-se imediatamente da mulher seduzida são indissociáveis A “evasiva”, por sua vez, conjugaria a fuga e uma forma abrandada de alienação; os programas que recorrem à “armadilha”, à “astúcia”, operariam ao mesmo tempo por dominação num campo que o sujeito procura manter sob seu controle, e por alienação, já que o fechamento para o qual ele contribuiu converte-se em sua própria prisão Também as combinações de formas, portanto, que supomos simples, engendram formas de vida reconhecíveis como “estilos de comportamento”, individuais ou coletivos, e como representações estabilizadas de “filosofias do cotidiano” As formas de vida estão também em conexão imediata com os efeitos de sentido passionais Como as paixões, de fato, elas comportam papéis e arranjos modais estereotipados, a que estão associadas, além de axiologias, formas aspectuais e tensivas Diferenciam-se delas por seu alcance: as paixões infletem apenas a dimensão tímica dos discursos, enquanto as formas de vida218

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afetam todas as suas componentes Poderíamos todavia considerar, como hipótese de trabalho, que uma forma de vida se organiza em torno de uma paixão prototípica, como, por exemplo, a busca a partir da espera Em vez de nos indagarmos, num contestável procedimento apriorístico, quais são as paixões imanentes, partiremos do par formado pela apreensão e foco, que consideraremos, em razão das correlações que associam entre si as grandezas, como valências A variação de intensidade/extensidade, tanto para o foco quanto para a apreensão, engendra formas tônicas e formas átonas; e a correlação entre tais variações pode ser conversa ou inversa Quando a apreensão e o foco evoluem de maneira conversa, a zona átona comum corresponderia ao tédio, “fruto da sombria incuriosidade”, segundo Baudelaire, e a zona tônica, à felicidade Quando a apreensão e o foco evoluem de maneira inversa, se o foco for tônico, admitiremos estar em presença da espera; caso prevaleça a apreensão, estaremos diante, grosso modo, da nostalgia Ainda para Baudelaire:“Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique, Piétinant dans la boue, et cherchant, l’oeil hagard, Les cocotiers absents de la superbe Afrique Derrière la muraille immense du brouillard”14

Esse sistema das paixões elementares, subjacentes às formas de vida, pode ser representado assim:

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Op cit, p 159 [N dos T]: “Vou pensando na negra a fanar cor de terra / Busca de pés na lama e de olhar tão bravio/Ausentes coqueirais que sua África encerra / Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio”; In: As flores do mal, op cit, p 245

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_FORMA DE VIDA+tônico FELICIDADE

+tônico

NOSTALGIA

APREENSÃO TÉDIO átono

APREENSÃO

– –átono FOCO tônico

átono

ESPERA

+

átono

FOCO

tônico

+

A descrição dessas configurações relança o problema, sempre delicado, da utilização dos lexemas da língua natural na metalinguagem Admitiremos que a felicidade, o tédio, a espera e a nostalgia são aqui concebidos como morfologias singulares descritíveis de acordo com: (i) o tipo de correlação, conversa ou inversa; (ii) o estatuto do actante, focalizante ou focalizado, apreendente ou apreendido; (iii) a relação com o campo de presença; (iv) a distribuição taxionômica das asserções e negações Até aqui, consideramos o sistema das paixões elementares subjacentes às formas de vida Abordemos agora as mesmas paixões do ponto de vista do processo: o modelo que então se impõe é o mesmo que articulava, no capítulo “Presença”, a categoria presença/ausência, a saber, o das

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modalizações existenciais O conjunto das quatro posições forma assim um quadrado que pode ser percorrido sob o controle dos modos de existência:F e licid a d e (P le n i tu d e re a l iz a n t e ) T é d io (V a c u id ad e vi rtu a li z a n te )

E s p era (F a lt a a t u a li z a n te )

N o s ta lg ia (In a n i d ad e p o t e n c ia l iz a n te )

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Obtemos, dessa maneira, uma dinâmica dos estados de alma que subtendem as formas de vida, capaz de analisar sua tonalidade própria Tal dinâmica se encarrega de reconhecer os percursos possíveis, ou seja, os macrossintagmas canônicos: passagens progressivas entre a felicidade e a nostalgia, ou entre a espera e o tédio, unicamente pela variação de intensidade do foco; passagens progressivas, também, entre a espera e a felicidade, ou entre a nostalgia e o tédio, apenas pela variação de intensidade da apreensão; passagens catastróficas enfim, entre a espera e a nostalgia, ou entre a felicidade e o tédio, em virtude da inversão das correlações entre as valências do foco e da apreensão Observemos, de passagem, que o tempo, suspenso na abordagem sistemática, recobra sua prerrogativa na abordagem dinâmica Essa observação nos convida a examinar de mais perto a relação que uma forma de vida mantém com sua prosódia As considerações sobre a “base perceptiva” das formas de vida ressaltaram inevitavelmente a espacialidade Em conformidade com as hipóteses propostas no capítulo sobre a presença, a estrutura regente das formas de vida parece ser a seguinte: próximo ⇔ distante Cada uma dessas figuras é dependente de um operador: o distante parece depender da abertura, dado que todas as formas de vida tidas por extensivas comportam o traço /aberto/, na exata medida em que as formas de vida consideradas retensivas resultam no traço /fechado/ Admitiremos portanto que a abertura dos horizontes do campo de presença é induzida no sentido [próximo → distante], e o fechamento, no sentido [distante → próximo] No que diz respeito ao tempo e à temporalidade, admitiremos: (i) que o tempo apresenta como principal polaridade a tensão entre o vivo e o lento, que justifica, num sentido, a aceleração, e,221

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no outro, a desaceleração; (ii) que a temporalidade está submetida à tensão entre o efêmero e o durável, produzindo numa direção a “perenização” e, na outra, a “evanescência” O conjunto de tais tensões é engendrado pela tensão geral própria à tonicidade perceptiva:Tônico Espacialidade Temporalidade Tempo próximo efêmero vivo Átono distante durável lento

A partir disso, as operações identificadas acerca de cada uma das três categorias são também homologáveis:[Tônico → Átono] Espacialidade Temporalidade Tempo abertura perenização desaceleração [Átono → Tônico] fechamento evanescência aceleração

A escolha deste ou daquele regime, em cada uma das três categorias indicadas, proporciona outras variedades de formas de vida Assim é que a forma de vida descrita por Tanizaki no Elogio da sombra se encontra sob a influência da desaceleração Tudo concorre para isso: uma arquitetura em que a profundidade aumenta a escuridão (abertura) e atenua os perceptos; texturas materiais cujas

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camadas aprisionam o tempo (perenização) e desaceleram ainda mais a apropriação perceptiva; a recusa, por efêmeros, do alarde, do nítido e do brilhante, em proveito do fosco, que se impregna de uma luz ínfima porém eterna, aprisionada dentro da matéria15 Já em Céline, a abjeção projetada sobre o mundo natural, que o transforma em mundo potencialmente em decomposição, ressalta15

Cf FONTANILLE, J “Le ralentissement et le rêve”, op cit

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a evanescência, de tal sorte que, por exemplo, o único esquema narrativo detectável na Viagem ao fim da noite é o de uma degradação esperada, que procede, não por inversão de conteúdo, e sim como a realização mais ou menos rápida de uma dessemantização potencial, inerente aos estados de coisas Conforme as homologações propostas acima, a “evanescência” é obtida por aceleração de uma decomposição até então mantida em suspenso16 Uma vez que as formas de vida podem ser consideradas tanto em condensação quanto em expansão, podemos nos perguntar se algumas delas não seriam isomorfas de certas figuras de retórica Assim, o belo gesto aparenta ser de fato o homólogo do anacoluto, na concepção extensiva proposta por R Barthes:“[] o anacoluto [] é ao mesmo tempo quebra da construção e irrupção de um sentido novo”17

Em ambas as morfologias, o surgimento de um foco vale como abreviação de uma apreensão Da mesma maneira, como a busca da justeza, estudada por D Bertrand, evitaria a aproximação com a lítotes e a síncope18 ? Tal aproximação entre as figuras de estilo e as formas de vida parece, à primeira vista, muito promissora De fato, assim como as formas de vida se definem como arranjos congruentes e coerentes de esquemas semióticos – a que empresta uma certa estética a esquematização global a consolidá-los –, poder-se-ia dizer que o estilo é (i) uma correlação de correlações, capaz de tornar sensível a coerência de um conjunto de “procedimentos”; e (ii) uma motivação icônica e estética da intencionalidade subjacente a esse conjunto de procedimentos16

17

18

Cf FONTANILLE, J “Le schéma de la peur: phobie, angoisse et abjection dans Voyage au bout de la nuit de L F Céline”, Kodicas, 16, 1/2 Tübingen, Gunter Narr, 1994 BARTHES, R “La voyageuse de nuit”, in Chateaubriand, La vie de Rancé Paris, 10/18, 1965, p 15 BERTRAND, D “La justesse”, RSSI, 13, 1-2

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O estilo obedece, por conseguinte, às mesmas regras que uma forma de vida, um mais como estilo da expressão, outro mais como “estilo do conteúdo”, digamos Mas ele principalmente está regulado da mesma maneira pela práxis enunciativa: assim como as formas de vida, os estilos nascem, surpreendem, caracterizam por sua recorrência um texto, uma obra, uma escola ou época, em

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seguida cristalizam-se em figuras, e finalmente morrem, confundindo-se com as formas mais gastas da norma Analogamente à sociologia, que tenta apresentar, ao lado dos “papéis sociais”, uma tipologia dos “estilos de vida”, a semiótica se esforça por explorar, ao lado dos “papéis semióticos”, as “formas de vida” Uma e outra encontram-se confrontadas à seguinte dificuldade: a diversidade dos níveis de pertinência, em que estão definidos os “papéis”, obriga a indagar-se, por um lado sobre sua coexistência em dado ponto do percurso de um sujeito (a congruência), e, por outro, sobre sua compatibilidade no percurso do mesmo sujeito (a coerência) No caso da sociologia, tal diversidade está representada, por exemplo, pela multiplicidade das “redes” a que um mesmo sujeito pode pertencer em um ou vários momentos de sua existência; ou ainda, pela diversidade dos sistemas de legitimação aos quais ele pode se referir, ou, segundo L Boltanski, das diferentes “cidades” às quais pertence19 No caso da semiótica, essa diversidade é a dos papéis actanciais, modais, temáticos, passionais e figurativos que se encontram sob a identidade dos mesmos atores A noção de “estilo de vida” para uns, e de “forma de vida” para outros, permite pôr a significar em conjunto esses diferentes papéis, numa perspectiva operatória A questão pode ser reformulada em termos de “identidade”, como se propõe no capítulo “Práxis enunciativa” Para o sociólogo, os “estilos de vida” permitem determinar, através do conjunto dos papéis adotados por uma classe de indi19

BOLTANSKI, L “Agir et vivre en commun”, entretien avec L Boltanski, Sciences humaines, 5, mai-juin 1994, p 13-5

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_FORMA DE VIDA

víduos, os princípios de escolha e decisão em matéria de consumo, voto, lazeres etc, que constituem a homogeneidade do grupo Para o semioticista, as “formas de vida” permitem apreender a globalidade de uma prática significante ligada às escolhas axiológicas próprias a um indivíduo ou a uma cultura inteira Terminam aí, contudo, as semelhanças, pois, para o sociólogo, a preocupação axiológica não resultará nem numa concatenação congruente de todos os níveis de pertinência da descrição sociológica, nem no cálculo das diversas posições atribuíveis no sistema O “estilo de vida” pode, é verdade, ser eventualmente identificado pelo sociólogo a uma “filosofia do cotidiano”, mas sem a dimensão antropológica e sem a perspectiva de uma estética da ética, que comportam por sua vez as formas de vida do semioticista Se admitirmos, agora de um ponto de vista mais geral, que as “formas de vida” mobilizam as diferentes categorias de figuras até aqui evocadas – a saber, especialmente, a escolha de um centro no interior de um campo de presença, de direções “centrípetas” ou “centrífugas”, a transposição da extensão do campo assim desdobrado em valor, e o reconhecimento de sua mobilidade –, como não reconhecer que, no texto abaixo, E Cassirer resume novamente as pré-condições a partir das quais uma determinada forma de vida formula, ao mesmo tempo contra e como todas as demais, um ”sentido da vida”:“A construção do mundo perceptivo tem por condição a organização interna do conjunto dos fenômenos sensíveis, em outras palavras, a criação de certos centros aos quais nos referimos, e a partir dos quais orientamos e dirigimos, de certo modo, tal conjunto Pode-se seguir a formação de tais centros em três grandes direções distintas: ela é requerida para a ordenação dos fenômenos, tanto do ponto de vista da «coisa» e da «propriedade», quanto do ponto de vista da contigüidade espacial e da sucessão temporal Ao se realizarem e instaurarem tais ordens, trata-se sempre de inter225

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_FORMA DE VIDA romper, de uma maneira ou de outra, o fluxo da série uniforme dos fenômenos, para isolar certos «pontos privilegiados»”20

Com relação a seu devir, uma forma de vida é uma grandeza perecível, sensível aos usos, a seu aparecimento e desaparecimento Mas, aparentemente, seu desaparecimento não é completo: se sua dimensão estética desaparece, permanece contudo a dimensão ética, imanente à nostalgia que se concretiza, como, por exemplo, a nostalgia da “grandeza” de um século em que o libertino e o asceta rivalizavam um com o outro, como no terceiro ato de Don Juan Quanto à emergência de uma forma de vida, ela restaura a estética do sentido da vida, a partir de um fundo informe e no entanto normativo que é a sina cotidiana É o caso do absurdo, do belo gesto, do cinismo, da armadilha, que põem em xeque a fidúcia generalizada em que se assenta a sociabilidade, ou da marginalidade, que denuncia a asfixiante gregaridade; são reconhecidas como formas de vida autênticas apenas por se apresentarem como a negação estetizada das formas cristalizadas sobre cujo fundo se destacam Uma forma de vida se apresenta sempre em discurso como uma coerência nascente elevada contra a incoerência estabelecida

20

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, tome 3, op cit, p 250

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_MODALIDADE

MODALIDADE1 RECENSÃORECENSÃO de todas as contribuições para o conhecimento do fenômeno modal, se tivesse de ser exaustiva e detalhada, ocuparia toda a extensão deste trabalho Limitar-nos-emos de um lado a um breve panorama das disciplinas que se ocuparam disso e, de outro, a um apanhado das principais etapas da elaboração de uma teoria das modalidades em semiótica As modalidades são de início objeto da lingüística, que as define como predicados a sobredeterminar outros predicados A abordagem morfossintáxica, que as tratava como “semi-auxiliares”, ficou hoje abandonada em grande parte, de um lado, porque tinha alguma dificuldade em estabelecer a diferença entre os semi-auxiliares modais e aspectuais e, de outro, porque não permitia definir claramente as fronteiras da categoria (o que fazer com o “tendre à” ou o “parvenir à”1 em francês, por exemplo?) A abordagem contemporânea é antes semântica2 e atribui às modalidades a função de “exprimir a posição do enunciador por relação ao seu discurso”3 Essa evolução é correlativa de uma mudança de perspectiva, já que a concepção morfossintáxica é puramente enunciva (a modalidade deve ser considerada entre as partes do discurso e entre as funções sintáxicas), enquanto a modalização concerne hoje, via de regra, à lingüística enunciativa As modalidades são também tratadas pela lógica, que, impossibilitada de decidir o valor de verdade de certas proposições em termos de verdade e falsidade, escolhe apreendê-las sob o ângulo alético, deôntico, epistêmico etc A abordagem das modali1 2 3

A

[N dos T]: “Tender a” e “conseguir, chegar a” Cf POTTIER, B Théorie et analyse en linguistique Paris, Hachette, 1992, p 173 POTTIER, B op cit, p 9

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dades leva, em lógica, a um enfraquecimento e, ao mesmo tempo, a um refinamento da teoria da referência, visto que aparece então, entre a proposição e o estado de coisas a que ela se refere, uma mediação modal diversificada e hierarquizada: é assim que somos levados, por exemplo, a nos perguntar como as modalidades aléticas (o necessário e o contingente) podem condicionar as modalidades epistêmicas (o certo e o plausível) Tal abordagem abre enfim a porta dos mundos possíveis, para dar conta da diversidade dos modos de referência, e também a da subjetividade, na medida em que essas grandezas que fazem a ligação entre as proposições e os estados de coisas podem ser compreendidas como “estados de alma” Sob a dupla égide da lingüística e da lógica, a teoria das modalidades aparece primeiro em semiótica como uma reformulação do esquema narrativo, uma vez que cada etapa do percurso pode ser caracterizada como a aquisição ou a mobilização de uma modalidade: querer-fazer e dever-fazer, saber-fazer e poder-fazer A generalização da análise modal para o conjunto da predicação narrativa (a performance se torna o fazer-ser, a manipulação, o fazer-fazer e a veridicção, o parecer-ser) permitiu uma reformulação global da teoria narrativa e pôs particularmente em evidência o caráter específico e relativo do esquema narrativo canônico, o qual se apresenta, daí por diante, apenas como baseado em uma das seqüências modais possíveis A generalização da teoria modal comporta ao mesmo tempo uma dimensão epistemológica – na medida em que podemos homologar o percurso modal com um percurso de uma generalidade muito grande, o dos modos de existência semiótica – e também uma dimensão metodológica, em virtude de procedimentos como as confrontações (A J Greimas) ou o estabelecimento das dimensões, isotopias e seqüências modais (J-Cl Coquet) que de um jeito ou de outro proporcionaram os instrumentos de um “método modal”228

_MODALIDADE

Em seguida, o movimento de generalização tomou várias direções, das quais quatro são particularmente marcantes Para J-Cl Coquet4 , o estatuto do discurso como um todo, e não apenas de sua dimensão narrativa, definido a partir de suas instâncias enunciantes e dos predicados que as caracterizam, depende da modalização: a tipologia das instâncias enunciantes se baseia então no número de modalidades implicadas na predicação, numa série que é hierarquizada e cumulativa (P0, P1: saber ou poder, P2: saber e poder, P3: com meta-querer ou P4: com dever) Para Cl Zilberberg5 , a modalização se estende até o espaço tensivo, e especialmente nele: partindo da idéia de que o plano do conteúdo é isomorfo ao plano da expressão, ele explora os efeitos de uma projeção das categorias emprestadas da fonologia, por exemplo, tensão/relaxamento ou difuso/compacto, nessas grandes dimensões do conteúdo que são o actante, a junção, o tempo, o espaço, o cognitivo etc As modalizações tomam então o aspecto de modulações de um continuum tensivo P Aa Brandt propõe uma generalização da teoria modal6 sob três condições principais: (i) as modalidades são engendradas como deformações topológicas de potenciais que esquematizam conflitos de forças e de limiares; (ii) se supomos que as entidades que elas afetam são intrinsecamente “nervosas” e “turbulentas”, a modalização se torna então co-extensiva ao campo semiótico por inteiro, esquematizado pelas catástrofes elementares; (iii) a teoria do “controle” (o epistêmico controla o alético que, por sua vez, controla os estados; o deôntico controla o ôntico etc) permite perceber explicitamente – numa concepção bem próxima das hierarquias modais da lógica ou da lingüística – a conversão das modalidades umas nas outras e, por conseguinte, a sintaxe inter-modal4 5 6

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Le discours et son sujet, op cit Essai sur les modalités tensives Amsterdam, John Benjamins, 1981 La charpente modale du sens Aarhus/Amsterdam, John Benjamins, 1990

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A J Greimas e J Fontanille7 , enfim, mostram como uma teoria das paixões pode ser vista a partir de uma concepção das modalidades articulada sobre a tensividade e a aspectualidade A generalização opera aqui, pois se (i) toda a sintaxe narrativa e discursiva se baseia nos encadeamentos de modalidades, e se (ii) toda combinação modal é capaz, sob certas condições, de produzir efeitos de sentido passionais, então a questão da paixão não se apresenta mais como complementar à da ação, mas como um outro ponto de vista epistemológico e, talvez, como sintoma de um novo paradigma2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

A centralidade da teoria das modalidades e a abundância dos trabalhos que decorreram disso, ao invés de simplificar-lhes a definição, complicam-na singularmente Com respeito ao ponto de vista paradigmático, uma vez admitida a definição geral da modalidade como “predicado que determina outro predicado”, permanece intacta a questão de determinar tanto a compreensão quanto a extensão dessa noção Se seguirmos A J Greimas no Dicionário de semiótica, ou P Aa Brandt em La charpente modale du sens, toda a sintaxe, com exceção dos estados, é modal, já que fazer e ser podem eles próprios funcionar como modalidades Isso quer dizer que só haveria duas maneiras de captar os estados: por um lado, em si próprios, isto é, insignificantes; por outro, em sua condição de dados transformáveis e, portanto, modais e significantes A significação, de um ponto de vista sintáxico, se confundiria pois com a modalização Examinaremos este ponto nas definições sintagmáticas amplas7

Semiótica das paixões, op cit

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Mas uma tal generalização logo cria uma dificuldade para a definição paradigmática das modalidades, tanto do ponto de vista do número de elementos da categoria quanto do ponto de vista dos traços distintivos que fundam sua tipologia Em princípio, a maioria dos autores declara proceder dedutivamente, independentemente dos lexemas modais da língua natural utilizada, mas, de fato, bem poucos fazem outra coisa a não ser justificar (esquematizando-o) o quadro das chamadas modalidades “de base”: saber, poder, querer, dever & crer Examinemos, para começar, os diferentes parâmetros tomados, e suas conseqüências sobre o número de termos e o esquema da categoria modal No Dicionário de semiótica8 , as modalidades são engendradas a partir de dois parâmetros: os modos de existência (virtual, atual, real) e as relações entre o sujeito do predicado modal e o do predicado modalizado (relação transitiva-exógena ou reflexiva-endógena) Propomos aqui mesmo (cf o capítulo “Presença”) uma organização diferente dos modos de existência, que nos parece mais adequada aos usos atestados de suas denominações respectivas; mas isso não acarreta

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modificação na distribuição das modalidades, que continua a parecer intuitivamente válida Obtemos um quadro de seis casas:modalidades virtualizantes modalidades exógenas modalidades endógenas DEVER QUERER modalidades atualizantes PODER SABER modalidades realizantes FAZER SER

O número de elementos nesse caso é de seis modalidades e sua definição é posicional, numa rede que já se baseia nas etapas8

Op cit, p 283

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de um percurso sintáxico Mas não se consegue escapar aqui da lista dos lexemas modais da língua francesa Em Semiótica das paixões9 , as chamadas modalidades “de base”, isto é, sempre pertencentes à mesma lista lexical restrita, são engendradas a partir das variedades da tensão, projetadas num quadrado semiótico em que cada posição define um tipo de modulação tensiva:C o n ten sivo(m o d u la ç ã o p o n tu a liz a n te )

E x ten s ivo(m o d u la ç ã o cu r siv a )

R eten s ivo(m o d u la ç ã o d e e n ce r ra m e n to )

D is ten s ivo(m o d u la ç ã o d e a b e r tu r a )

Cada modalidade é então obtida pela seleção de um tipo de modulação: a pontualização do devir – ou seja, em suma, sua neutralização em um puro prazo – subjaz ao “dever”; a abertura, por seu turno, é característica do “querer”, na medida em que dá livre curso a outros possíveis, e até mesmo a bifurcações e a uma reorientação do devir; o “poder”, que tem como tarefa sustentar o curso de uma orientação já empreendida e permitir-lhe encontrar sem desvio os obstáculos e os contra-programas, será considerado como um produto da modulação “cursiva”; o encerramento, enfim, provisório ou definitivo, é necessário à medida, à apreensão, até mesmo à avaliação do percurso concluído, e nesse sentido seria subjacente ao “saber” O progresso realizado por relação à combinatória inicial é duplo: por um lado, a tipologia modal é isotópica, pois fundada9

Op cit, p 42

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numa só categoria tirada da discretização das modulações tensivas; por outro, deixa entrever a natureza das operações sintáxicas que permitem passar de uma modalidade a outra: operações incidentes na modificação dos equilíbrios internos da tensividade, isto é, conforme nossa hipótese geral, da interação e do equilíbrio entre a intensidade e a extensidade Bem entendido, o inconveniente maior reside na redução (provisória) do número de elementos modais a quatro posições: é o preço a pagar por uma interdefinição isotópica As propostas de P Aa Brandt, em La charpente modale du sens e em “The dynamics of modality: a catastrophe analysis”10, vão mais longe nessa direção, visto que a utilização da catástrofe elementar esquematizada pela cúspide autoriza dois novos desdobramentos da categoria: de um lado, cada tipo modal pode ser declinado em duas versões: uma “O-Topologia” centrada no objeto (por exemplo, a modalização alética), e uma “D-Topologia”, centrada na instância de decisão (por exemplo, a modalização epistêmica); de outro lado, cada categoria modal esquematizada por uma cúspide pode ser declinada ao mesmo tempo em posições discretas (como, por exemplo, dever ser e não dever ser) e em posições graduais, como a série em português “ele pode”, “ele poderia”, “ele deveria” etc Poderíamos perguntar, com justa razão, frente às lexicalizações acima mencionadas em português, bem como no inglês (can, may, might, should, would), se os graus não são de fato o resultado de modalizações superpostas, acrescidas por camadas sucessivas quando da enunciação do processo Nesse caso, o efeito de modulação contínua, entre os dois limiares da cúspide, não seria devido às propriedades tensivas intrínsecas de uma categoria modal, mas, antes, resultaria à primeira vista da com-

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“The dynamics of modality: a catastrophe analysis” RSSI, 9, 1-2-3, 1989

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plexificação discursiva produzida pela sobredeterminação progressiva (pelo modo verbal, entre outras) do predicado modal De modo global, a definição das modalidades baseia-se numa rede de parâmetros heterogêneos cujo domínio de validade convém precisar: 1) Os parâmetros tensivos (A J Greimas e J Fontanille, Cl Zilberberg), como também a esquematização topológica das diferenças modais de potencial (P Aa Brandt) trazem uma definição tensiva, em que a modalização é então remetida a um campo perceptivo articulado por intensidades e extensidades variáveis e conflituais 2) O caráter transitivo ou reflexivo (A J Greimas e J Courtés) acrescenta à definição a orientação actancial implicada na predicação modal 3) Os modos de existência (A J Greimas e J Courtés) asseguram a homogeneidade com o percurso epistemológico da elaboração do sentido, sublinhando assim o papel das modalidades na busca do sentido pelos sujeitos 4) A esquematização pela cúspide permite vincular a um mesmo espaço topológico vários estratos de modalização, trazendo assim à tona a distribuição dos conteúdos modais entre as zonas de evolução gradual, e tanto de um lado como de outro dos limiares de transformação discreta Tal esboço de síntese põe em evidência a amplitude do domínio de pertinência da modalização, (i) como modulação dos efeitos intencionais associados ao estabelecimento de uma dêixis perceptiva; (ii) como regulação da comunicação interactancial; (iii) como mediação para a atualização e realização dos universos semióticos, quer se trate de modos de existência, em Greimas, quer de hierarquia entre espaços de controle, em Brandt O número de elementos da categoria modal depende, de fato e de direito, do nível de articulação adotado: limitado a so234

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mente quatro nas definições isotópicas, que só tomam um parâmetro de cada vez, o número de elementos pode chegar a seis, oito ou mais, assim que essa coerção seja suspensa e que a tipologia entrecruze vários parâmetros; e esse número pode até mesmo expandir-se indefinidamente quando convocamos toda a rede definicional Decorre disso a organização interna da categoria: do quadrado semiótico, que prevalece no primeiro caso, passamos para uma rede no segundo caso e, enfim, para uma esquematização catastrofista no terceiro22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS 221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Vários dos traços convocados para a definição paradigmática implicam de fato as propriedades sintáxicas das modalidades Nós as evocaremos ao longo da exposição A primeira propriedade sintáxica é de tipo narrativo e se baseia na pressuposição: sendo um sujeito narrativo concebido como um puro operador de transformação, a lógica das pressuposições leva a lhe destinar os atributos necessários a essas operações; trata-se então de dar a essas “capacidades” e esses “prérequisitos”, indispensáveis ao fazer, um estatuto semiolingüístico e não psicológico Em vista disso, a semiótica se voltou para a noção lingüística de “modalidade”, que designa a classe dos predicados que permitem, como lembramos acima, apreender os outros predicados (os predicados de base, os do ser e do fazer), não na perspectiva de sua efetivação, mas na perspectiva das condições necessárias a sua efetivação Além disso, essa noção permitiria dar um conteúdo semântico explícito e calculável às “provas qualificantes” e às peripécias ligadas ao aparecimento dos adjuvantes e oponentes, de resto reconhecidos empiricamente na análise dos contos235

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Na medida em que as modalidades traduzem as condições e as qualificações prévias ao fazer, favoráveis ou desfavoráveis, elas constituem de fato uma reformulação mais abstrata e mais facilmente generalizável dos papéis de “adjuvante” e de “oponente” provenientes dos trabalhos de V Propp, e que foram considerados durante algum tempo como actantes narrativos de mesma natureza que os outros Realmente, as modalidades traduzem o “ser” do sujeito narrativo, seja ele manifestado por um só ator ou por vários, simultânea ou sucessivamente; não podem, portanto, ser postas no mesmo plano que os actantes narrativos propriamente ditos, já que elas os determinam Os papéis chamados de “adjuvante” e “oponente” são, pois, apenas acidentes superficiais (realizados sob a forma de figuras actoriais particulares) do procedimento muito mais geral da modalização dos actantes narrativos, que acompanha sua imersão num espaço tensivo e agonal, onde programas e contraprogramas sempre se pressupõem uns aos outros As modalidades do fazer são, pois, os pressupostos e os determinantes do fazer Como tais, obedecem em tudo às regras da pressuposição, visto que, num enunciado como “João quer dançar”, o predicado “dançar” pode ser suspenso ou negado sem que a modalidade “querer” seja por isso afetada, enquanto o inverso não é automaticamente verdadeiro De fato, a regra de pressuposição estritamente aplicada só caracteriza uma classe de enunciados e relatos, classe estereotipada e ideal Em muitos casos, com efeito, é porque “João não quer dançar”, mas dançará mesmo assim, que há relato: ele dançará, seja porque um dever ou um não poder não fazer de força superior neutralizará seu querer negativo, seja porque ele decidirá por si próprio (não querer não fazer) dançar Isso significa que poucas combinações modais são incompatíveis com o desdobramento narrativo, e que as “pressuposições” que ligam o fazer à competência modal são, na maior parte do tempo, pelo menos paradoxais A exploração das correlações236

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entre competência modal e performance não foi de fato nem mesmo começada; encontraríamos aí tanto (i) a implicação (se querer, saber, poder, então fazer) quanto (ii) a concessão (embora querer, saber, no entanto não fazer; ou apesar de não saber, não querer, mesmo assim fazer) A pressuposição narrativa é uma operação retrospectiva, projetada sobre uma ligação mais ou menos necessária entre uma competência e uma performance, ou entre duas competências de diferente ordem Ela pode ter por correlatos prospectivos duas operações bem diferentes: a implicação e a concessão A concessão é uma alternativa à implicação quando a ligação entre competência e performance não é mais necessária, mas impossível ou contingente A forma implicativa é talvez a mais estudada, mas também a menos propícia a manter a atenção de um narratário, na medida em que a força da ligação de necessidade cria, numa área cultural determinada, uma espera e uma previsão muito premente: por exemplo, “se ele quer, ele pode” deixa pouca margem à surpresa; em contrapartida, a forma concessiva, que põe em jogo confrontações e conversões modais complexas, está entre as mais ricas em desdobramentos e efeitos passionais, na medida em que ela põe em xeque a coerência do percurso sintáxico Em outros termos, a implicação seria da ordem do devir, e a concessão, do sobrevir (cf o capítulo “Devir”) Desse ponto de vista, a implicação e a concessão, catalisáveis diretamente a partir de toda estrutura sintáxica complexa (associando ao menos dois enunciados), aparecem como os operadores discursivos da esquematização (cf o capítulo “Esquema”) Comparemos por exemplo a configuração da “sanção pragmática”, por punição, com a do “perdão” A primeira, tal como Greimas descreve no seu Maupassant11 , baseia-se numa implicação: se os dois amigos são espiões, então serão executados Para11

Maupassant La sémiotique du texte: exercices pratiques Paris, Seuil, 1976, p 175-88

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provar que não o são, devem dar a senha, o que acarreta a seguinte reformulação: se os dois amigos não dão a senha, então são espiões, então serão executados A implicação está aqui, além do mais, sobre determinada pela veridicção e pela “reinterpretação” (nos termos de Greimas) que o actante dominante está em condições de impor A segunda, a do perdão, é mais particularmente descrita por Eco & Violi12 ; ela associa num mesmo sintagma um “S1 should be punished” e um “S2 not punish S1” Para Eco, a implicação seentão continua a funcionar se supomos que os dois enunciados pertencem a dois momentos diferentes e remetem a duas tramas diferentes: admitamos que seja preciso um certo tempo para mudar de idéia (e de trama), mas não é menos verdade que a estrutura sintáxica, lingüística (e não lógica), é a de uma concessão (embora “S1 should be punished”, no entanto “S2 not punish S1”) e não a de uma implicação (*se “S1 should be punished”, então “S2 not punish S1”) Vemos claramente que a formulação implicativa, ou é contra-intuitiva, ou então renuncia a todo caráter explicativo e se apóia inteiramente em condições suplementares (no caso, para Eco, temporais e enciclopédicas) A alternância entre implicação e concessão pode ser compreendida como uma inversão da correlação entre duas valências No caso da sanção comum, quanto maior a falta, maior o castigo (correlação conversa); no caso do perdão, quanto mais grave a falta, maior o perdão (correlação inversa) Esta observação traz à tona o eco de velhas discussões jurídicas e morais sobre a proporção do castigo ou do perdão, mas é também pesada de implicações semióticas: faria supor (i) que as modalidades (aqui, do “dever fazer”) são graduais e (ii) que essa conversão em valências correlatas acompanha (precede? segue?) o aparecimento das

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In “Instructional semantics for presuppositions”, Semiotica, 64, 1/2, 1987, p 1-39

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avaliações axiológicas das posições modais Retomaremos isso logo mais É certo que, de um ponto de vista de semântica lexical (o lexema ou a noção de “perdão” pressupõem que haja algo a perdoar), bem como de um ponto de vista sêmio-pragmático, o “perdão” pressupõe que alguém deva ser punido Com efeito, o ato de perdão só tem sentido se uma falta foi cometida: aplicando-se ou não o castigo esperado, a falta permanece cometida A pressuposição, na verdade, é apenas o efeito de sentido lógico-formal da correlação tensiva das valências; mas é o sentido da correlação entre as duas valências modais que permite dizer se há, por conseqüência, castigo ou perdão De fato, na concepção puramente lógica da pressuposição (proveniente da lógica proposicional), a atualização do pressuponente (eu castigo ou não castigo) seria estritamente aleatória, não permitiria distinguir o castigo e o perdão, e menos ainda permitiria reconhecer a cada um deles uma intencionalidade própria, ao passo que a correlação tensiva proporciona a cada configuração sua significação diferencial Se o mecanismo das estruturas sintáxicas implicativas pode ser considerado como conhecido, o futuro da pesquisa, como pressentimos por esse esboço de discussão, parece-nos pender mais para o lado das estruturas concessivas Os encadeamentos sintáxicos de modalidades não se apresentam portanto como desdobramento das estruturas modais (concebidas como quadrados modais, cada um dos quais produz seus próprios encadeamentos de negações e asserções), mas como sintagmas heterotópicos e heterogêneos, em que seqüências de papéis modais estão ligadas por pressuposição, implicação ou concessão Para caracterizar essas novas configurações sintagmáticas e heterotópicas foram propostas novas denominações: “seqüências modais”, “dispositivos modais”, “papéis modais”, conforme salientemos respectivamente o arranjo seqüencial, a com239

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binação global ou a identidade modal transitória do sujeito Seja qual for o ponto de vista ou a denominação, o essencial no caso é a capacidade que esses arranjos modais possuem de produzir efeitos de sentido passionais, em virtude de sua própria heterogeneidade: uma paixão-efeito de sentido será sempre analisável como uma seqüência de papéis modais que realizam progressivamente um certo dispositivo, numa busca da coerência e da identidade do ser do sujeito222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Por outro lado, as pesquisas sobre a identidade modal dos sujeitos, desenvolvidas não mais nos limites do enunciado narrativo elementar (nível semionarrativo) ou do predicado (nível discursivo), mas nos domínios mais amplos do programa narrativo e do processo discursivo – as de J-Cl Coquet, entre outras –, mostram que as transformações modais do ser também dão origem a programas, a percursos autônomos que podem ser considerados por si próprios, independentemente da busca dos objetos de valor A história modal dos sujeitos, que caracteriza as transformações do “ser” discursivo destes últimos, desenvolve-se como um percurso complementar e paralelo à busca dos chamados valores “descritivos” A possibilidade de uma busca de identidade supõe que o objeto visado possa ser um certo “dispositivo” modal, definido independentemente das axiologias

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descritivas e, por conseguinte, compatível ou incompatível com elas Suporemos então que o sujeito não visa os objetos modais apenas como condições necessárias à obtenção dos objetos de valor propriamente ditos, mas que, ao contrário, a busca dos objetos de valor se torna, no limite, pretexto para a construção de uma identidade modal Mais exatamente, quando a isotopia do discurso se funda na recorrência da relação aos objetos de valor, a busca das competências240

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modais que a acompanham é secundária (da ordem dos chamados programas “de uso”) Em contrapartida, se a isotopia do discurso assenta na busca recorrente de um mesmo tipo de modalização (por exemplo, o poder), não importando quais sejam os objetos de valor em foco, então fica claro que o sujeito discursivo é semantizado por um certo dispositivo modal que define a identidade modal que ele visa, e não pelas axiologias descritivas que encontra Essa possibilidade de uma “história modal dos sujeitos” abre pois a porta a um outro tipo de narratividade, complementar e parcialmente autônoma, fundada numa espécie de “projeto de realização” do ser do sujeito Esse outro tipo de narratividade foi explorado progressivamente sob a forma de “dimensões”: dimensão cognitiva, dimensão fiduciária, dimensão tímica, entre outras É em parte com esse pano de fundo que se edifica a teoria das paixões em semiótica Mas surge imediatamente a questão das relações que se devem estabelecer entre a busca de valores descritivos e a busca de identidade: de que forma os sujeitos se constroem, em termos de modalidades, ao mesmo tempo em que perseguem objetos de valores e se reconhecem nas axiologias “descritivas”? Quanto a isso, podemos entrever dois tipos de resposta: a primeira consiste em homologar ao menos parcialmente os “valores-tipo” com os valores modais, de modo que os dois percursos possam ser considerados como fundados nas mesmas valências; a segunda consiste em examinar a possibilidade de fundar uma tipologia de valores descritivos sobre a dos valores modais Os valores-tipo são definidos, no capítulo “Valor”, a partir da tensão entre a intensidade e a extensidade, e a oposição de base que resulta disso, “valores de absoluto/valores de universo”, é homóloga à oposição “intenso/extenso”; os valores de absoluto definem-se não apenas por sua “intensidade” mas também por seu caráter fechado, exclusivo e singularizante; os valo241

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res de universo, além da sua “extensidade”, definem-se pelo caráter aberto, participativo e pluralizante O traço “aberto/fechado” diz respeito, na verdade, ao modo pelo qual os valores investem e estruturam o campo de presença do sujeito sensível Ora, os autores de Semiótica das paixões propuseram justamente reconhecer, nas modulações tensivas do devir (de abertura, de encerramento, cursiva e pontualizante), as primeiras articulações que prefiguram as modalidades com base no princípio evocado mais acima Desse ponto de vista, a categoria tensiva “aberto/fechado” seria portanto comum aos valores-tipo e aos valores modais de base Mas talvez caiba examinar mais precisamente em que medida a correlação “intenso/extenso” estrutura o conjunto das modalidades Seja qual for a modalidade considerada, uma vez que seja tomada como um valor e não apenas como fragmento de competência e simples pressuposto do fazer, obedece à mesma lei dos valores descritivos Como nos lembra oportunamente o adágio popular – “Quem muito quer, nada tem” –, todo valor modal que aumenta em extensidade perde em intensidade, na medida em que fragmenta e dispersa esta última; querer muitas coisas é querê-las fracamente; um poder que se estende é um poder que se dilui etc O caso do saber é particularmente interessante, visto que os dois regimes lhe são aplicados de modo bem contrastado; se é considerado apenas sob o ângulo da competência (acumulação de conhecimentos ou de savoir-faire), a correlação entre

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extensidade e intensidade é conversa: um saber amplo é um saber superior Mas logo que seja considerado como um valor, capaz notadamente de fundar um projeto de vida, de caracterizar a identidade de um sujeito, a correlação se inverte: o saber amplo se torna um saber superficial e a restrição do campo de conhecimento permitirá, por exemplo, aplicar-lhe os sistemas axiológicos da “especialização” ou da “erudição”, posteriomente depreciados como “coisas vãs” em nome da outra valência (a extensidade)242

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Quanto ao crer, também ele obedece a essa distinção: considerado como simplesmente necessário ao fazer, sua extensão em nada contribui para sua eficácia Mas, assim que o crer é submetido a uma avaliação axiológica, a correlação se inverte mais uma vez: crer em tudo é ser crédulo e, em conseqüência, dar mostras de uma fé sem valor, diluída e enfraquecida O paradoxo do crédulo é justamente o de não podermos mais confiar nele, já que suas crenças não são seletivas Ao contrário, aquele que crê por demais intensa e seletivamente se vê logo criticado por seu “sectarismo” ou seu “fanatismo”, em nome da extensidade Quanto às modalidades puramente “instrumentais”, voltadas ao fazer, o que lhes é característico é não obedecer a nenhuma correlação, escapar por discretização da tensividade; em contrapartida, os valores modais, que nos interessam aqui mais de perto, supõem uma correlação tensiva, inversa ou conversa, que instala uma diferença de potencial entre duas valências É por isso que a avaliação das modalidades promove freqüentemente a concentração modal e deprecia correlativamente a diluição e a dispersão, mas também por vezes sanciona a restrição e a seletividade O segundo tratamento nos é sugerido, em essência, por Jean-Marie Floch, nas suas pesquisas sobre os valores da sociedade de consumo13 Com efeito, ele propõe distinguir quatro tipos de valores capazes de articular a comunicação no que tange aos produtos de consumo: valores míticos, lúdicos, técnicos e práticos Esses tipos de valores descritivos na verdade se baseiam nas modalizações dominantes: o poder-fazer subjaz aos valores “práticos”, o saber-fazer, aos valores “técnicos”, o querer-fazer, aos valores “lúdicos” e, por fim, o crer, a partir dos exemplos dados por J-M Floch, responderia pelos valores “míticos” O inventário modal é incompleto, mas o que importa é o princípio subjacente13

Sémiotique et marketing Sous les signes, les stratégies Paris, PUF, 1990

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que gostaríamos de salientar: na perspectiva adotada por J-M Floch, as modalidades são acima de tudo características do produtor (no caso, a empresa ou a marca); a tecnicidade, por exemplo, é em princípio indicativa do saber-fazer de um destinador, e o objeto que ele propõe ao destinatário está investido no plano figurativo desse saber-fazer, reformulado como “tecnicidade” Poderíamos dizer em suma que o valor modal dominante, que caracteriza a identidade do destinador, é transmitido ao destinatário sob a forma de um valor descritivo; do ponto de vista do destinatário, os valores descritivos, na medida em que investem os objetos de busca, ativam de maneira diferenciada esta ou aquela modalidade: por exemplo, a “tecnicidade” do objeto vai solicitar o saber-fazer do destinatário, ou então, seu caráter “lúdico” vai solicitar-lhe o querer-fazer Vale dizer que o programa de base que os convoca será preferencialmente submetido a um dado tipo de programa de uso (conforme o poder, o querer, o crer etc) Enfim, o destinador comunica valores modais a um

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destinatário pelo intermédio de objetos de valor de tipo “descritivo” Os dois tratamentos aqui propostos permitem compreender (i) por que os valores descritivos e os valores modais podem ser convertidos uns nos outros e (ii) de que modo, no próprio movimento da circulação dos valores, os valores modais podem ocupar a linha de frente da cena narrativa se a busca de identidade prevalecer sobre a busca de objetos No entanto, a conversão das modalidades da competência em valores modais, inscritos nos dispositivos modais característicos da identidade dos sujeitos, suscita outras dificuldades, em particular a da coerência do dispositivo modal durante todo o percurso de um sujeito Essa questão pode evidentemente ser abordada, como o propunha Greimas em Du sens II, pelas confrontações entre os diversos quadrados modais Mas as confrontações não permitem explicar, no caso por exemplo do acento incidir sobre determinada modalidade da cadeia, como uma outra será enfraquecida, invertida ou simplesmente suspensa244

_MODALIDADE

Isso se esclarece um pouco mais se levarmos em conta o alcance sintáxico das modalidades De fato, se em lingüística a modalidade sobredetermina um predicado, isso quer dizer, em semiótica e por transposição, que ela afeta um enunciado de junção ou um enunciado de fazer Podemos então considerar que a modalização pode incidir sobre o objeto, sobre a própria junção ou ainda sobre o sujeito O princípio básico continua sendo o da transferência da modalização do objeto para o sujeito, passando pela junção Mas cada um desses “alcances” modais adquire uma certa autonomia, bastando para isso que uma perspectiva subjetiva disponha as modalidades em diversos planos de profundidade, a tal ponto que possam chegar a se contradizer umas às outras Por exemplo, o despeito amoroso se organiza em torno de três modalizações divergentes: o objeto é indispensável, a conjunção se tornou impossível, e o sujeito converteu seu desejo, no melhor dos casos, em indiferença Uma outra abordagem é possível e, para isso, é preciso observar de início que, do ponto de vista da estrita competência (puramente instrumental frente ao fazer), a questão não se põe assim: seja qual for a intensidade ou a extensão por exemplo de um querer, as das outras modalidades da competência não serão afetadas, em particular a intensidade e a extensão do dever e do poder Mas quando a perspectiva é a dos valores modais, isto é, de modalidades que participam das axiologias e definem a identidade dos sujeitos, logo aparecem tensões entre os diversos papéis modais do sujeito Para ficar no mesmo tipo de exemplo, se o querer é um fator de identidade para um sujeito, ele vai concorrer com o dever: o sujeito que atribui valor à intensidade ou à extensão do seu querer resistirá às injunções e prescrições tão mais fortemente quanto maior for esse valor Também é bastante conhecido o caso dos asmáticos14 , que se atribuem um querer14

Cf FONTANILLE, J “Les passions de l’asthme”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 6 Limoges, PULim, 1989

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_MODALIDADE

intenso, e que explicam desse modo as crises que os deixam em estado de incapacidade (não-poder) Mas a correlação pode ser também conversa, se uma modalidade extensa impuser sua intensidade às outras modalidades, como no caso do querer e do dever, que têm propensão a reger todo o dispositivo Por exemplo, o chamado sujeito “resoluto”, “decidido”, “enérgico”, ou ainda, sob certos aspectos, o sujeito corneliano (“quero, logo posso”), todos eles são dotados de um querer-fazer que

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conduz de alguma forma o poder-fazer na mesma direção O caso é particularmente revelador, uma vez que, conforme a definição do dicionário, “resoluto” é aquele “que sabe tomar com audácia uma decisão e sustentá-la firmemente”; embora a correlação entre querer e poder seja conversa, ela é no entanto tensiva, pois a intensidade do querer permite atravessar todos os obstáculos encontrados e nutre portanto o poder que, em contrapartida, sustenta a “firmeza” do querer A modulação “cursiva” (isto é, a que sustenta o curso de um devir) do poder assume, de algum modo, as funções da modulação “de abertura” do querer, e assegura a continuidade do percurso Estamos, assim, diante de um complexo modal tensivo A sintaxe inter-modal se baseia, pois, para o caso dos dispositivos modais característicos da identidade dos sujeitos, nas correlações tensivas entre a intensidade e extensidade correspondentes às diferentes modalidades que os compõem

3 CONFRONTAÇÕESA lingüística15 classifica hoje a modalização entre as operações que caracterizam o foco enunciativo, a saber: a aspectualização, a perspectiva ou topicalização, a diátese e a modalidade Podemos assim declinar um mesmo processo (“eu danço”) sob a15

Cf POTTIER, B Sémantique générale Paris, PUF, 1992, p 204-23

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_MODALIDADE

forma de quatro focos enunciativos diferentes: (i) o foco aspectual: eu me ponho a dançar; (ii) a perspectivização: sou eu quem dança; (iii) a orientação da diátese: a música me faz dançar; (iv) o foco modal: eu sei dançar O foco em perspectiva (a topicalização) e o foco diatésico (ativo, passivo, factitivo etc) dizem respeito à orientação informativa ou actancial do processo, e modulam em conseqüência o “fluxo de atenção” de um sujeito de enunciação considerado como uma instância perceptiva, ao mesmo tempo caracterizada pela direção (o ponto de vista que ele adota) e pela intensidade e tempo de seu foco (as modulações do fluxo de atenção) O foco modal, assim como o aspectual, são focos mediatos, parciais e indiretos do processo Uns e outros baseiam-se na imperfeição e no efeito particularizante de todo “foco”, a aspectualização e a modalização ainda mais do que os dois primeiros Com efeito, a perspectiva temática e a diátese escolhem um “primeiro plano” para fixar a atenção, mas as outras grandezas, mantidas no plano de fundo, não desaparecem da cena atualizada em discurso Em contrapartida, a aspectualização desiste de tratar o processo como um todo, e segmenta-o para realizar apenas uma fase, ficando as outras potencializadas (quando são “requisitadas” pela primeira) ou então virtualizadas (quando são excluídas pela primeira), conforme o caso Quanto à modalização, ela se baseia mais particularmente na potencialização do processo, na medida em que a consideramos não sob o ângulo de sua realização em discurso, mas sob o das condições prévias desta realização: “eu devo dançar” suspende de fato a atualização do processo em si, em proveito de um de seus pressupostos, a condição deôntica A sobredeterminação lingüística dos predicados pelas modalidades implica, por decorrência, como para a semiótica narrativa, uma forma particular de intencionalidade Nesse caso, um observador-enunciador focaliza um processo enunciável, e o défi247

_MODALIDADE

cit de ser (incompletude) que ele verifica é então um déficit de atualização discursiva Esse foco instala de um lado um “efeito sujeito” (fonte) e de outro um “efeito objeto” (alvo, preenchimento

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condicional) O próprio fato de enunciar a condição modal do processo instala uma defasagem entre o foco modal e o processo em si mesmo, de modo que o foco modal impõe uma orientação, um devir que leva da condição à realização Uma das mais interessantes interpretações em lingüística cognitiva (Talmy, Sweetser) consiste em supor um dispositivo conflitual subjacente a partir do qual nasceriam tanto a aspectualidade quanto a modalidade O verbo “conseguir” (parvenir à, em francês) é característico desse tipo de funcionamento, visto que supõe (i) uma série de obstáculos implícitos; (ii) uma apreensão modal do processo sob o ângulo poder/querer fazer que permite superar os obstáculos; e (iii) uma apreensão “terminativa” do processo Mais genericamente, só captamos um processo sob o ângulo de sua modalização e de sua aspectualização se pressupomos que ao mesmo tempo forças contrárias se interpõem à sua realização e desenvolvimento completo No limite, até mesmo um desenrolar cômodo e sem obstáculos de um processo só ganha sentido se não perdemos de vista uma avaliação (justa ou falaciosa) que minimiza o contra-programa Se nos atemos apenas às correlações entre valências modais, constatamos por exemplo que: (i) se o querer e o poder forem convergentes, os progressos do fazer serão “encorajadores”, no sentido de que as duas modalidades sustentam-se, intensificam-se mutuamente; (ii) se o querer e o poder forem divergentes, os progressos do fazer serão “desencorajadores”, no sentido de que as duas modalidades se neutralizam entre si, gerando desse modo ou a impotência ou o desgosto Entre “eu danço” e “eu devo dançar”, a primeira diferença vem de que a segunda versão (versão modalizada) é indiferente ao fato de eu “dançar” ou “não dançar” (do ponto de vista da248

_MODALIDADE

implicação narrativa) Mas a análise em termos de pressuposição não basta, visto que, do ponto de vista do ato de enunciação, neste caso, não podemos enunciar a versão modalizada a não ser que reconheçamos ao mesmo tempo a possibilidade de “não fazer” tanto quanto a de “fazer” Isso significa que atualizamos o processo com base no processo contraditório ou contrário e que, na impossibilidade de atualizar o processo visado, atualizamos indiretamente a estrutura conflitual subjacente, com o predicado modal O “déficit de atualização” implica enfim, quanto ao processo, uma estrutura tensiva e agonista e, quanto à enunciação, uma polifonia Em outras palavras, o “déficit de atualização” (isto é, para nós, a “potencialização”), fica interpretado aqui como resultado de um certo equilíbrio (ou desequilíbrio) entre forças antagonistas: forças coesivas, favoráveis ao acabamento do processo; forças dispersivas, desfavoráveis a tal acabamento Do lado da aspectualização, isso permite, por exemplo, eliminar a ambigüidade entre as duas versões da terminatividade: uma, “interruptiva”, pela qual o processo é interrompido antes de seu término, consagra a vitória das forças antagonistas; a outra, “acabada”, pela qual o processo chega a termo, consagra a vitória das forças agonistas: a pseudo-sinonímia se deixa analisar, de fato, como uma contrariedade O mesmo poderia ser dito das modalidades; por exemplo, as duas (pelo menos) acepções da modalidade dever, em português, a chamada acepção deôntica e a chamada acepção epistêmica, não se diferenciam, nesse particular, a não ser pelo tipo de equilíbrio entre as forças antagonistas que a elas subjazem Num exemplo como “creio que ele deve vir hoje” (acepção “epistêmica”), tornamos implícitos e atualizamos certos fatores dispersivos, os diversos obstáculos que tornam a coisa simplesmente plausível, mas que se caracterizam (i) mais por sua extensidade que pela intensidade, e (ii) pelo fato de não serem previsíveis Por seu turno, em “ele deve vir, se quer receber” (acepção deôntica), os eventuais obstáculos são249

_MODALIDADE

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considerados (i) exclusivamente sob o ângulo da intensidade, (ii) previstos e calculados e (iii) neutralizados pelo menos no simulacro modal, e por antecipação, isto é, virtualizados Por trás de cada aspectualização ou modalização lingüística, toda a história, a memória e o devir das relações agonísticas se desenham em filigrana Além disso, a concepção guillaumiana da modalização como obstáculo à atualização do predicado – e que faz eco à concepção semiocognitiva da chamada estrutura agonal –, permite apreender esse obstáculo de duas maneiras diferentes e complementares De fato, a resistência à atualização pode ser compreendida tanto a partir de um contra-programa que torna duvidosa ou mais difícil a realização do programa em pauta, quanto a partir de uma polifonia conflitual – o “obstáculo” é então enunciativo Neste último caso, supomos que o foco enunciativo, caracterizado pela concorrência entre ao menos duas vozes (dois pontos de vista diferentes sobre o processo), modaliza o predicado em função da força relativa dos dois pontos de vista que ele compõe: logo, a realização se tornará tanto mais certa e previsível quanto o ponto de vista “otimista” prevalecer sobre os outros Sabe-se que, na imanência, as duas formas se pressupõem mutuamente, mas a realização discursiva, sob pena de parecer ambígua, é em geral obrigada a escolher entre as duas Por exemplo, e fora de contexto, no que se refere ao enunciado “O antigo ministro poderia reaver sua cadeira de deputado”, poderíamos debater indefinidamente para saber se a modalização epistêmica manifesta um certo grau de possibilidades de êxito ou a capacidade do sujeito de enunciação de avaliar essas mesmas possibilidades: em geral o contexto discursivo permite decidir isso Enfim, a modalização abre um “imaginário”, na medida em que a convivência dos dois tipos de forças multiplica as tramas possíveis Com efeito, um enunciado descontextualizado como “eu danço”, atualizando o processo, não deixa lugar a mais que250

_MODALIDADE

uma só trama, a que se realiza; enquanto “eu quero dançar” deixa aberta uma infinidade de tramas possíveis, até mesmo do ponto de vista das variedades previsíveis da própria realização Claro está que não existem, nos discursos concretos, enunciados do tipo “eu danço” em estado “puro”, na medida em que toda realização mantém a memória das modalizações por que o processo passou Por exemplo, “eu danço”, enquanto realização do processo, produz efeitos divergentes conforme o saber fazer tenha sido ou não apropriado de imediato, conforme o querer seja “de bom grado” ou “de resignação” etc Desse ponto de vista, a modalização, explícita ou implícita, pontual ou cumulativa, aparece como a instância de controle de um imaginário sintáxico posto à disposição do sujeito do discurso De um ponto de vista estritamente lingüístico, a diferença entre a versão modalizada e a versão não modalizada do processo pode ser compreendida como uma diferença de estatuto veridictório: a versão não modalizada do processo pode ser avaliada como verdadeira ou falsa, conforme a transformação tenha ocorrido ou não; em contrapartida, no caso da versão modalizada, seria preciso considerar a avaliação veridictória de todas as tramas possíveis e, como elas são em número infinito, o valor veridictório do processo modalizado é indefinível, enquanto não for atualizado As análises do modo verbal em Guillaume procedem da mesma maneira, visto que para ele, de um lado,“o modo é função do contato ou do não-contato do foco com a atualidade”16

e que, de outro, a distância que separa o que ele denomina “foco” e a “atualidade”, sempre segundo ele, é função da proporção en16

Op cit, p 37

251

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_MODALIDADE

tre as “capacidades” e “incapacidades” de atualidade de uma grandeza, isto é, em nossos termos, do número de tramas possíveis, que se supõe cada vez mais restrito, na passagem da virtualização à realização Poderíamos dizer em suma que, com as modalidades virtualizantes, o imaginário se desdobra e, depois, se retrai pouco a pouco até se acantonar na única trama realizada Todas essas observações permitem compreender por que a modalização foi muito cedo considerada como uma operação enunciativa, na medida em que a extensão desse “imaginário modal” é função, para o sujeito da enunciação, da sua capacidade de realizar em discurso as figuras que convoca A enunciação deitiza e modaliza o enunciado, e as diversas modalidades utilizadas pelo sujeito da enunciação permitem caracterizar seu próprio percurso, distinto do encadeamento dos processos e, por conseguinte, independente do percurso dos sujeitos do enunciado: ele sabe, ele crê, ele pensa, duvida, supõe As diferentes propriedades da modalização lingüística (foco enunciativo, déficit de atualização, dispositivo conflitual subjacente, abertura de um imaginário) permanecem pertinentes em semiótica narrativa, e explicam além disso, como tentamos mostrar, por que o desenvolvimento da teoria semiótica das modalidades desembocou na das paixões Gostaríamos também aqui de mencionar algumas das conseqüências e dificuldades ligadas à aproximação, que evocamos muitas vezes, entre as modalidades, de um lado, e os modos de existência e as valências, de outro Com efeito, o “déficit de atualização” é uma das “imperfeições” que fundam a intencionalidade semiótica: assim como as imperfeições da coerência semântica, da consistência merológica, ou da estesia, a imperfeição da predicação tem por correlato uma demanda de plenitude, uma tensão para a completude ou a perfeição Por conseguinte, tal imperfeição pode ser gradualizada e segmentada em diferentes modos de existência, caracterizados por sua “densidade de presença”; reencontramos252

_MODALIDADE

aqui o traço distintivo adotado por Greimas e Courtés, e que G Guillaume já definira da seguinte maneira:“ No [regime do] possível, lemos no vocabulário filosófico de Goblot, as chances de ser e de não ser são iguais; quanto ao provável, é um possível que tem mais chances de ser que de não ser O termo ‘chances de ser’, empregado nessa dupla definição, pode ser substituído por outro, equivalente e mais estrito: capacidade de atualidade Pois ser, é possuir a realidade; ora, a realidade supõe a atualidade, que é o ponto preciso onde o virtual passa ao real”17

Mas os graus da presença comportam hoje um modo que nem Guillaume nem Greimas no Dicionário de semiótica concebem, a saber, o “potencializado” Retomemos em caráter indicativo a série completa (cf o capítulo “Presença”):

Realizado

Virtualizado

Atualizado

Potencializado

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Se a distribuição das modalidades em três deles está já fixada, a que corresponde ao quarto modo de existência, o potencializado, ainda está por determinar Semiótica das paixões define a potencialização a partir da não-disjunção, prévia à asserção que leva à conjunção (e ao sujeito realizado)18 ; os autores levantam também a hipótese de que a modalidade correspondente poderia ser o crer, sem apresentar quanto a isso um argumento decisivo1917

18 19

Temps et verbe, op cit, capítulo III: “La réalisation de l’image verbale dans le temps in fieri ”, p 32-3 GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 52 Op cit, p 54

253

_MODALIDADE

Falta na série das modalidades básicas (querer, dever, saber e poder) uma das condições da realização; de fato, não basta que o sujeito disponha de todas as competências virtualizantes e atualizantes para que aja e se realize É preciso também que ele creia querer, creia dever, creia saber e creia poder; em suma, que creia em sua competência e, de modo mais geral, creia no sistema de valores em cujo seio sua ação vai se inscrever Obviamente, nem todos os sujeitos que agem crêem obrigatoriamente no que são e no que fazem; na verdade, aquilo que em tais casos substitui essa “crença” é particularmente revelador Pascal propõe por exemplo, ao libertino, que retorne à igreja, que faça o sinal da cruz, que recite as preces, para que adquira ou readquira a fé: a ritualização do fazer substitui a crença na identidade modal do sujeito; ademais, ela pode aparecer tanto como uma degradação da crença (como uma “automatização” que a dessemantizaria) quanto como um procedimento de restauração da crença De igual modo, em Proust, Swann, antes da descoberta da pequena frase de Vinteuil e, portanto, antes da restauração da crença, só conhecia programas ritualizados, atrações estereotipadas e repetitivas A repetição, a fixação, a ritualização produzem “tipos” (aqui, “estereótipos” e “ritos”) disponíveis a todo momento para o sujeito nutrir sua programação discursiva Para nós, literalmente, trata-se de grandezas sintáxicas “potencializadas” (cf o capítulo “Práxis enunciativa”) que não estão nem “virtualizadas”, nem “atualizadas”, porque já foram realizadas em uso, nem mesmo propriamente “realizadas”, dado que estão de algum modo “postas em memória”, à disposição dos sujeitos de enunciação A comutação é clara e probante: quando a crença já não cumpre mais, ou ainda não cumpre, seu ofício de potencialização, o rito, o hábito, o estereótipo, produtos de usos discursivos, podem também desempenhar esse papel A “crença” seria qualquer coisa como a versão “tônica” e “intensiva” do modo potencializado, enquanto o “tipo” e o “rito” seriam sua versão “átona” e “extensiva”254

_MODALIDADE

Além disso, para que o sujeito se realize, a competência modal deve ser por ele ancorada na fidúcia, a mesma da qual emergem os valores que ele visa Muitas inibições, muitos fracassos aparentemente inexplicáveis vêm do fato de que o sujeito não está em condições de perceber a coerência entre sua competência e os valores a que ela deve facultar o acesso Aquilo que chamamos cotidianamente “falta de autoconfiança” procede raramente de falta de competência, e menos ainda de um sentimento de incompetência, pelo menos antes do fracasso; dizemos de modo geral, a respeito de um sujeito que tem “segurança”, que ele “acredita em si mesmo” Compreendamos: ele crê em seu

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ser modal O crer é então a modalidade que corresponde para nós ao modo potencializado, primeira etapa da construção da competência, a partir da qual todas as outras modalidades poderão se desdobrar Essa proposição está de acordo com a análise que faremos adiante da fidúcia, pois trata-se, para o sujeito prestes a agir, de perceber (ou de sentir) sua competência não como simples competência, mas como “eficiência” (cf capítulo “Fidúcia”), assim como Perrette, em La Fontaine, põe-se a crer na eficiência sem limites dos objetos modais de que está dotada Essa crença pode tomar duas formas: a primeira é uma crença que, do ponto de vista do caráter predicativo, será endógena e, do ponto de vista tensivo, abertura: é a assunção (o sujeito assume sua competência como uma eficiência sentida como que “do interior” ou, de todo modo, com plena “autonomia”); a segunda é uma crença exógena e, do ponto de vista tensivo, fechamento: é a adesão (o sujeito adere à sua competência como uma eficiência sentida “do exterior”; estamos então diante da “heteronomia”) A série completa dos modos de existência fica agora vinculada à das modalidades, como a seguir:

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_MODALIDADE

Potencializada Endógena Exógena ASSUMIR ADERIR (crenças)

Virtualizada Atualizada QUERER DEVER SABER PODER

Realizada SER FAZER

(motivações) (aptidões) (efetuações)

Os modos de existência engendram pois a tabela máxima das modalidades simples, pela mera projeção da alternância entre modalizações endógenas e modalizações exógenas, isto é, pela mera combinação com o parâmetro da perspectiva predicativa e actancial Em conseqüência, os modos de existência podem ser considerados como proto-modalizações, as quais podemos considerar como modalizações existenciais Mas tal posição levanta uma nova dificuldade Com efeito, durante o longo tempo em que o ser e o fazer ficaram fora do campo modal, as quatro modalidades admitidas podiam passar por modalidades do fazer e do ser Mas, a partir do momento em que o ser e o fazer são considerados de mesma classe que as outras modalidades, coloca-se a seguinte questão: o que então as modalidades modalizam? E, mais precisamente, o que as modalidades existenciais modalizam? A resposta se encontra no capítulo “Presença”, em que os diferentes modos de existência são caracterizados em termos de “densidade de presença” As modalizações existenciais modalizariam pois a presença, isto é, uma predicação diretamente saída do ato perceptivo (cujo correlato lingüístico é o chamado predicado de “existência”: cf “Há alguém”) Dessa forma, tais modalizações da presença podem ser interpretadas como diferentes equilíbrios do desdobramento da intensidade e da extensidade num campo perceptivo, considerado como coextensivo a um “domínio” semântico ou um “universo” semiótico Se as modalizações existenciais são formas tensivas, as modalidades que lhes correspondem não podem ser encaradas simplesmente como categorias fixas ocupando, de maneira discreta, casas fechadas e inamovíveis numa rede definicional256

_MODALIDADE

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Reencontramos aqui, portanto, a questão da gradação das modalidades, já postulada a propósito das correlações tensivas que as unem nos dispositivos passionais Para uma teoria discursiva das modalidades, isso implica que seu caráter gradual ou discreto, tensivo ou massivo, depende concretamente do instrumental do analista: conforme esteja equipado para isolar unidades modais ou para estabelecer correlações, ele as tratará como entidades discretas ou como entidades graduais Além disso, o “obstáculo à atualização”, na teoria guillaumiana do modo, está associado a um retardamento da atualização: noutros termos, a modalização afeta o “tempo operativo”, qual seja, para Guillaume, o tempo gasto para conceber e atualizar o processo em discurso; pois o lingüista, a partir da idéia de que “o modo é essencialmente um problema de foco”, propõe que se leve em conta20 :“um quantum q, apreciável, que representa a distância que o foco teria ainda a percorrer antes de atingir a linha de atualidade”21

Nesse caso, não se trata de uma simples distância espacial entre a “linha” de foco e a “linha” de atualidade, mas, como a primeira é tomada no desdobramento do “tempo operativo”, trata-se de uma distância ou espessura que refreia, em maior ou menor medida, o tempo do foco enunciativo De qualquer modo, a modalização retarda mais ou menos (ou acelera, se for sincopada) o processo enunciativo Para esclarecer esse ponto, tomemos como exemplo este diálogo extraído de Rhinocéros, de Ionesco:Jean: Bon N’en parlons plus Béranger: Vous êtes bien gentil Jean: Et alors?

20 21

Op cit, p 30 Op cit, p 36

257

_MODALIDADE Béranger: Je tiens quand même à vous dire que je regrette d’avoir soutenu avec acharnement, avec entêtement, avec colère, oui, bref, bref, j’ai été stupide Jean: Ça ne m’étonne pas de vous22

O empilhamento de modalizações é aqui particularmente notável na última réplica de Béranger, já que contamos aí pelo menos cinco níveis: “soutenir” (“afirmar”) modaliza o conteúdo das proposições evocadas; “avec acharnement, avec entêtement, avec colère” (“com obstinação, com teimosia, com cólera”) modalizam “afirmar”; “je regrette” (“lamento”) modaliza tudo o que precede; “tenir à” (“fazer questão de”) modaliza “dire” (“dizer”), e “quand même” (“mesmo assim”) modaliza “tenir à” O retardamento imposto à atualização do predicado é tanto mais evidente uma vez que, nesse caso extremo, a proposição de base, encarregada de suportar todo o peso dessa modalização, não é sequer mencionada, como se isso fosse esquecido no fim de uma interminável cadeia de modalizações A modalização torna mais lento, pois, o processo de enunciação, ao introduzir mediações, vários estratos predicativos que segmentam e estendem o foco do sujeito, ao distender em suma a interação, introduzindo pouco a pouco as condições de um foco comum Concretamente, no próprio plano da expressão, essa desaceleração do processo de enunciação pode até mesmo se manifestar, como por vezes para Béranger, sob a forma de autocorreções, por meio das quais ele desdobra “em tempo real” (isto é, em tempo mensurável da expressão) o tempo lento das diferen22

[N dos T]: Jean: Bem, não falemos mais nisso Béranger: Você é muito gentil Jean: E então? Béranger: Faço questão de dizer, mesmo assim, que lamento ter afirmado com obstinação, com

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teimosia, com cólera, sim, quer dizer, enfim, fui estúpido Jean: Não me espanta isso vindo de você (In: Rhinocéros Paris, Le Livre de Poche, p 140-1)

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_MODALIDADE

tes operações enunciativas Ao contrário, a raridade da modalização no discurso de Jean aparece no caso como uma aceleração, um atalho enunciativo, mesmo porque a única modalização utilizada (o espanto) implica um tempo mais rápido, tempo que, além do mais, está conjugado à negação, o que anula de fato qualquer instante mínimo para a surpresa Mas, se observamos mais de perto, notamos que Béranger não dispende todos os seus esforços para apagar a incongruência de voltar a uma discussão declarada encerrada pelo outro, que acaba justamente de dizer: “N’en parlons plus” (“Não falemos mais nisso”) “Tenir à” manifesta um querer intenso que parece motivar a transgressão “Quand même” é a forma concessiva que ao mesmo tempo reconhece a regra rompida e anuncia que ela não será respeitada Béranger se vê então pego entre dois percursos: no primeiro, que corresponde à espera manifesta de Jean (“N’en parlons plus”), ele parece ter ultrapassado o limite “terminativo” No segundo percurso, ele se põe em posição “durativa”, até mesmo “iterativa”, visto que já o disse uma vez A modalização traduz aqui o esforço de postergar o fechamento da discussão, evitando romper o fio da conversação com Jean A distorção entre os dois percursos é, pois, ao mesmo tempo aspectual (terminativo/ durativo) e modal (não dever dizer/querer dizer) Nesse sentido, a modalização aparece como um meio de ajustar uma diferença de potencial, de distender uma valência inversa entre dois gradientes e de atenuar a velocidade de transição entre o percurso esperado e o percurso proposto Em suma, seja-nos perdoada a metáfora, a espera frustrada sobremodalizada estaria para a espera frustrada simples assim como o plano inclinado está para o desnivelamento puro Aliás, Béranger se perde nos meandros de suas modalizações e, para acabar, adota uma enunciação mais “abrupta” (“Bref, j’ai été stupide” [“Enfim, fui estúpido”]), cujo aspecto rápido é até mesmo sublinhado pelo comentário “bref ”, e que recebe de volta um enunciado de mesmo tipo, semelhante a um259

_MODALIDADE

“corte” (“Ça ne m’étonne pas de vous” [“Não me espanta isso vindo de você”]) As variações de tempo ligadas à modalização não são, pois, acrescentadas aos valores modais, ao contrário, são os valores modais que têm a incumbência de negociar e ajustar a tensão inerente ao foco predicativo: quer acelerem, quer tornem lento o foco, eles exprimem e modulam um “tempo interno” da predicação, independente da temporalidade própria ao desenvolvimento do processo, mas também diferente de direito, quando não de fato, do tempo da enunciação Por conseguinte, na perspectiva de uma apresentação global da instância da enunciação, conviria inscrever de início o tempo da predicação, o qual receberia em seguida as determinações dêiticas, de um lado, e as modais, do outro Esse exemplo mostra fartamente que as modalizações não são simples “pressupostos” do fazer, a não ser numa certa distância dos fenômenos predicativos, distância suficiente para impedir de distinguir a imbricação da modalização com a aspectualização e com o tempo da predicação Se tomarmos distância suficiente, não vemos mais o que liga a transformação e as aquisições modais Mas a análise discursiva, “rente aos fatos”, constata, como no exemplo que precede, que o poder de um dos actantes pode bastar para apressar um fechamento, que o querer do outro lhe permite retardar um pouco o efeito desse decreto terminativo, e enfim que a incidência das modalizações sobre uma ou outra fase aspectual do processo determina as variações profundas do tempo

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Paralelamente, os efeitos de sentido passionais são o “cheiro”, o “perfume”, como se diz, dos arranjos modais: do mesmo modo que o perfume emana não da estrutura da matéria, mas de combinações provisórias entre moléculas, a paixão é um efeito de sentido não das estruturas modais, mas de seus arranjos provisórios De fato, não são as estruturas modais, enquanto estruturas – por exemplo o quadrado semiótico do “querer fazer” ou260

_MODALIDADE

do “poder ser” –, que estão em pauta, mas antes as intersecções, as combinações e as correlações tensivas entre diferentes estruturas modais Por exemplo, um efeito de sentido passional poderá nascer da combinação (simultânea ou seqüencial, conforme o caso) de um “querer ser”, de um “não poder ser” e de um “saber não ser”; um outro poderá ser construído a partir de um “dever ser” e de um “não querer ser” etc Do mesmo modo, uma interação conversacional em que circulam simulacros modais dos parceiros só se torna passional se as modalizações de um são correlatas às do outro: então, a intensidade do querer de um acarreta, por exemplo, o enfraquecimento do poder do outro, e os efeitos passionais entram em cena Assim, a dinâmica modal das paixões não está inscrita nas estruturas modais: é um efeito de seu uso É o uso que determina, numa dada cultura, quais são as combinações modais aceitáveis, quais delas têm efeito de sentido passional e qual é o princípio pelo qual as modalidades que os compõem se transformam umas nas outras no curso do processo passional É notório efetivamente que, se as modalidades são universais ou generalizáveis, as paixões são por sua vez características de áreas ou épocas culturais bem determinadas Por exemplo, é em decorrência do uso que, no caso da obstinação, um “não poder fazer” induz a um reforço e uma reafirmação do “querer fazer”, uma vez que tal efeito não é diretamente calculável apenas a partir da definição geral dessas duas modalidades Do mesmo modo, é também por efeito de um uso que a “impulsividade” aparece como forma particular de “querer & poder”, afetada por um traço /incoativo/ e por um traço / intensivo/: com efeito, nada permite prever, no nível próprio das estruturas modais, que essa combinação modal deva ser acompanhada desses dois traços tensivos e aspectuais O produto do uso seria, por conseguinte, um dispositivo modal estereotipado, apresentando correlações e síncopes entre as modalidades, e sobredeterminado pelos perfis de intensidade261

_MODALIDADE

e pela aspectualidade Somos pois levados a considerar que as combinações modais, responsáveis pelos efeitos de sentido passionais, constituem uma espécie de “estoque” de blocos fixos, de que os sujeitos podem lançar mão para manifestar as paixões da cultura à qual pertencem Mas logo notamos que as modalidades por si sós não bastam: assim como elas, são também estocadas outras grandezas, de tipo tensivo e aspectual, que lhes permitem engendrar umas às outras, entrar em choque, reforçar-se ou combater-se no interior de um mesmo “bloco”, de uma mesma paixão, ou até mesmo de uma interação Chamaremos “estilo semiótico” o conjunto dos traços aspectuais, existenciais e tensivos que acompanham as modalidades nos dispositivos fixos, por pouco que esses traços sejam recorrentes e característicos de uma paixão-efeito de sentido Por exemplo: o /incoativo & intensivo/ para a “impulsividade” O estilo semiótico aparece, dessa forma, como uma modulação coerente, aplicada ao processo passional, e identificável sob a forma de fenômenos rítmicos, aspectuais e quantitativos, entre outros, ao longo do percurso do sujeito Nos termos do próprio Hjelmslev, as modalidades seriam os “constituintes” da sintaxe modal, e o estilo semiótico, o conjunto de seus “expoentes”, formando uma “modulação” De acordo com a proposta indicada no

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Page 143: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

capítulo “Esquema”, é a modulação tensiva que esquematiza as configurações passionais Os estilos semióticos, na medida em que trazem aos esquemas passionais sua dimensão sensível, têm virtudes heurísticas nada desprezíveis, já que permitem uma identificação imediata dos papéis passionais, notadamente nas estratégias da interação A dimensão passional dos discursos aparece então como uma espécie de “perfil prosódico” do conteúdo modal, em que estão inscritas as variações de intensidade dos afetos e das emoções

262

_FIDÚCIA

FIDÚCIA1 RECENSÃOS DICIONÁRIOS não dão grande importância à fidúcia: para o Littré como para o Robert, ela apenas concerne ao vocabulário jurídico; “fiduciário” é mais bem tratado, já que sua definição depreende a ligação entre valor e confiança: “diz-se dos valores fundados na confiança depositada naquele que os emite” Como sempre em semiótica, a interrogação não incide sobre os termos, mas sobre a predicação que os capta em conjunto: será que os valores estariam todas as vezes sob o controle da confiança? Qual a significação dessa relação intersubjetiva? Seria essa relação intersubjetiva, por sua vez, dependente de uma relação reflexiva, isto é, da confiança em si? Se a confiança tem por verbo pivô crer, o campo da fidúcia se torna também o da fé, isto é, da relação entre destinador e destinatário Mas como o crer remete a um fazer-crer, os papéis temáticos do tolo e do trapaceiro, tais como aparecem na literatura antiga e notadamente no teatro, chamam também a atenção, como se a trapaça e a astúcia fossem, diante dos privilégios do poder, instrumentos, programas de uso de uma justiça imanente: já que o mestre dispõe legalmente do monopólio da força, o trapaceiro recebe aplausos de um público cuja simpatia soube conquistar O campo da fidúcia parece de fato coextensivo ao campo semiótico desde que admitamos que concerne ao valor e, conseqüentemente, às condições de sua emergência e circulação: entendemos com isso que a fidúcia é inerente às linguagens-objeto, mas igualmente às metalinguagens, embora estas tendam a pensar que a “cientificidade” é medida pela distância tomada e conservada perante o crer, enquanto a verdadeira cientificidade consiste talvez em conseguir admitir que o crer se mantém à custa de constantes deslocamentos e dissimulações, tal como Greimas263

O

_FIDÚCIA

sugere no artigo brilhantemente intitulado O saber e o crer: um mesmo universo cognitivo1

2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Oscilando entre a “simples opinião” e a “convicção profunda”, é tamanha a dispersão e polarização axiológica da fidúcia que, para a maioria dos comentadores, um modelo único seria pouco apropriado Admitindo a instalação da tensividade fórica na estrutura profunda, podemos supor que a cisão protoactancial obedece a duas opções: a alteridade, que engendra a distinção entre o sujeito e o objeto, ou a ipseidade, que produz a distinção entre o sujeito e o outro Esse dispositivo mínimo – um objeto e dois sujeitos –, que supõe ao menos um foco possível, já se funda assim na fidúcia,

143

Page 144: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

que se manifesta em duas versões: a confiança para a relação intersubjetiva, e a crença para a relação sujeito/ objeto Haveria de fato três regimes diferentes da fidúcia, conforme o alcance que lhe seja atribuído: (i) o regime neutro, ou átono, comprometeria apenas o próprio sujeito (alcance subjetivo), o que é testemunhado em francês, por exemplo, pela construção direta do verbo crer – “Je te crois”, “Il croit que p” –, considerada de imediato como uma modalidade enunciativa subjetiva; (ii) o regime diferenciado, ou tônico, introduziria quer a relação do sujeito com o objeto (alcance objetivo), e seria então a crença – em francês: “je crois à” –, quer a relação intersubjetiva, e estaríamos diante da confiança – em francês: “je crois en lui”2 Essa definição baseia-se num dispositivo de três actantes: um objeto e1

2

GREIMAS, A J “Le savoir et le croire: un seul univers cognitif ”, in Du sens II, op cit, p 115-33 [N dos T]: Pela ordem: “Acredito em você”, “Ele acredita que p” (dar crédito a; ter como verdadeiro), “Creio em”, “Creio nele” (no sentido de “crença num objeto” e “confiança intersubjetiva”)

264

_FIDÚCIA

dois sujeitos, em que o valor do objeto seria condicionado por uma certa relação entre os dois sujeitos A fidúcia seria, desse ponto de vista, um espaço de acolhimento das valências, concebidas como “condições do valor” Seja pois:Fidúcia (S)

Confiança (S1/S2)

Crença (S/O)

Antes de examinarmos as relações entre esses dois sistemas, convém esboçar-lhes as articulações elementares Examinaremos primeiramente o sistema da crença Se nos limitarmos, para comodidade da exposição, às operações e seu resultado estabilizado ou em via de estabilização, chegaremos a esse quadro simplificado:A fir m a r (c er tez a ) N eg a r (n iilis m o )

C re r (co n vic çã o )

D u v id a r (c eticis m o )

O crer é uma das seqüências de um complexo discursivo que compreende também o conhecer e o saber: conhecer + saber + crer Situamos o conhecer num espaço cognitivo onde um sujeito, modalizado pela curiosidade e a atenção, e que se atribui ou a quem é atribuída certa perspicácia, dispõe-se a “penetrar” um objeto que considera – ou que é considerado – como misterioso e mal conhecido Do ponto de vista discursivo, esse sujeito, ao265

_FIDÚCIA

144

Page 145: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

cabo de sua investigação, acrescenta ou retira um predicado p, ou então substitui o predicado p por um predicado p’ O saber, por sua vez, depende da acessibilidade desse conhecimento e, por conseguinte, das interdições ou facilidades que o sujeito encontrará: o enunciado a que o conhecimento chegou, será protegido ou revelado? Por fim, o crer, que com razão foi identificado a um “ter por verdadeiro”3 , acrescenta ou não um valor de verdade cuja base é fiduciária A partir disso, uma tipologia dos discursos deveria se empenhar em reconhecer, num discurso-objeto, o jogo dos componentes respectivamente heurístico (conhecer), esotérico (saber) e fiduciário (crer) A tipologia do crer proposta acima é uma representação simplificada, visto que não distingue o sujeito do fazer do sujeito de estado, e que não leva em conta as configurações instáveis da suspeição, da hesitação e até mesmo do questionamento Para nós, trata-se apenas de pôr em relevo a especificidade do crer O caso da confiança é, ao menos num primeiro momento, diferente do da crença, já que a confiança está manifestamente face a face diante do temor, de modo que ela se instala diretamente na dimensão patêmica Na configuração passional que se desenha então, é preciso observar de imediato o papel organizador de uma figura proprioceptiva, a agitação, cuja emergência ou supressão decidem o “estado de espírito” do sujeito e respondem pelo “estilo tensivo” da confiança (cf o capítulo “Paixão”) Os estados extremos, a saber, a inquietação e a firmeza, são relativos à presença e à ausência da agitação, enquanto os subcontrários, cada qual conforme seu “estilo”, portam os graus intermediários da agitação: a serenidade informa que o sujeito está em disjunção com a agitação ou desprendeu-se dela, ao passo que o medo mostra um sujeito tomado pela agitação Notemos de passagem que a agitação concerne também, ou antes de tudo, a um componente prosódico3

Encyclopédie philosophique universelle, tome 1 Paris, PUF, 1990, p 522 [N dos T]: Estamos traduzindo esse “crer” (vide nota anterior) por “acreditar”

266

_FIDÚCIA

do conteúdo, e em especial às estruturas que P Aa Brandt qualificou judiciosamente de “nervosas” Atingimos as estruturas elementares da confiança pela somatização, isto é, pelo plano da expressão, mas, mesmo assim, não estamos fora da abordagem semiótica, uma vez que as formas da somatização são correlatas a efeitos de sentido passionais Tomando por fio condutor a agitação expressa pelas definições dos dicionários [colocadas entre colchetes], chegamos às seguintes estruturas elementares tímicas:Inquietação[agitação decorrente do temor]

Firmeza[qualidade daquele que não se abala]

Medo[emoção decorrente da tomada de consciência de um perigo]

Serenidade[estado tranqüilo, sem agitação]

145

Page 146: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

O fato de que a agitação se apresenta como uma grandeza que circula entre os papéis patêmicos parece indicar que a direção em pauta é a do tempo e da intensidade, como bem demonstra um texto de Malebranche:“ [o temor] impõe ao espírito abalos imprevistos que o atordoam e perturbam: penetram logo até o mais secreto da alma e derrubam a razão de seu trono, proferem juízos de erro ou iniqüidade sobre todos os assuntos, para favorecer sua loucura e sua tirania”4

4

Malebranche, Recherche de la vérité, V, 12 Esta citação é tirada da Encyclopédie philosophique universelle, tome 1, op cit, verbete “Crainte”, p 503

267

_FIDÚCIA

22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS 221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS DA CONFIANÇA

Não tentaremos aqui surpreender a gênese da confiança e da desconfiança Podemos nos contentar com um levantamento sincrônico a partir dos estados e dos vaivéns patêmicos vividos pelos sujeitos Trata-se agora da relação com o outro, isto é, da comparação entre dois simulacros, aquele que o outro procura fazer prevalecer e aquele que eu mesmo, informado desse quererparecer do outro, tento estabelecer da forma mais exata Cada posição do percurso fiduciário é, pois, construída como um duelo entre o simulacro do outro – sua força ilocutória, se se preferir – e a resposta do ego – o efeito perlocutório – que será mencionada, no esquema a seguir, entre colchetes A categoria da agitação conserva aqui seus direitos, mas desta vez ela é o desafio das “gesticulações” fiduciárias dos dois parceirosAmeaçador[→ inquieto]

Benevolente[→ tranquilo] ü

Impiedoso[→ assustado]

Confortante[→ confortado]

Esquematizamos aqui apenas a versão mais simples do percurso fiduciário, mas podemos imaginar sem dificuldade interações em que o ego responderia por exemplo à ameaça com a maior tranqüilidade Mas nesse caso, trata-se ou de um fracasso da manipulação (não se crê na ameaça, ela não é “levada a sério”), ou então de uma contra-manipulação: à primeira ameaça se opõe, como ameaça maior, a firmeza do ego A intersubjetividade268

_FIDÚCIA

146

Page 147: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

se desdobra, desse modo, a partir das diferentes confrontações possíveis5 entre o quadrado que define as posições do destinador da confiança e o que define as posições de seu destinatário O quadrado proposto acima corresponde apenas às “conformidades”; a rotação dos dois quadrados, um por relação ao outro, exibe além disso as “complementaridades”, as “incompatibilidades” e as “contradições” Embora formalmente calculáveis, as posições do destinatário não são, pois, direta e ingenuamente induzidas pelas do destinador222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS DA CRENÇA

Para Greimas, a determinação dos valores veridictórios na intersubjetividade tem por pivô o que chama de “contrato veridictório” 6 Tal contrato permite estabilizar a interação fiduciária, notadamente introduzindo um coeficiente veridictório nos simulacros de cada parceiro Para que o contrato funcione, é preciso, com efeito, no caso em que o outro aparece benevolente ou ameaçador, que o ego esteja seguro de que o outro é efetivamente benevolente ou ameaçador Para pôr em destaque as definições restritas, retornaremos aos papéis temáticos do trapaceiro e de seu tolo, e admitiremos que o fazer crer do trapaceiro é um “iludir”, mas contentando-nos com o primeiro grau; o segundo grau é aquele em que o tolo, prevenido ou particularmente perspicaz, começaria por sua vez a “trapacear” seu trapaceiro O iludir elementar do trapaceiro se apresenta assim:

5

6

Cf GREIMAS, “De la modalisation de l’être”, Du sens II, op cit, p 89-90, onde está definido o princípio das confrontações GREIMAS, A J “Le contrat de véridiction”, Du sens II, op cit, p 103-13

269

_FIDÚCIARevelar[→ olhos abertos ]

Iludir[→ estar iludido]

Desiludir[→ estar desiludido]

Dissimular[→ estar cego]

Assim, no exemplo escolar, a raposa revelada, isto é, precedida por sua deplorável reputação,� � esforça-se por cegar o tolo escolhido para, em seguida, iludi-lo O percurso do tolo se inscreve no mesmo espaço, mas na outra direção Também nesse caso, a resposta é, de direito, independente da manipulação; contra-manipulações são sempre previsíveis O tolo pode certamente deixar-se ludibriar por completo pelos planos do trapaceiro, mas, quer porque o trapaceiro se traia, quer por se beneficiar com informações seguras vindas de terceiros dignos de fé, pode entrar na fase da suspeita, ser desiludido e a partir daí começar a desmascarar o trapaceiro, mascarando-se por sua vez Observemos de passagem que Molière, em seu Tartufo, depois de instalar Orgon no papel de tolo e Tartufo no de trapaceiro, inverte os papéis fiduciários a partir do quarto ato: Tartufo, traído

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por sua paixão, torna-se um trapaceiro logrado e Orgon, pela intervenção de Elmira, um tolo “trapaceador” Orgon, vítima de Tartufo, se torna seu duplo223 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS CANÔNICAS DA CRENÇA E DA CONFIANÇA

Em sua análise da promessa, Brandt usa conjuntamente a fórmula da inferência (“seentão”) e o par prótase/apódose:“Numa primeira fase, de manipulação, um Enunciador propõe a fórmula condicional a um Enunciatário: ‘se você fizer isso, eu faço aquilo’ Podemos dizer que esse ato linguageiro constitui uma arqui270

_FIDÚCIA promessa (que, num outro nível, poderá se dividir em promessa e ameaça)”7

O enunciador aciona um fazer-crer ao qual responde ou não um crer do enunciatário: se a “boa vontade” fiduciária vier a faltar, então, segundo Brandt, surge a ameaça, mas ficamos assim mesmo dentro do espaço fiduciário, visto que o enunciatário deve decidir, por sua conta e risco, se tal ameaça é “séria” ou não Mas a fórmula da inferência só tem aparência de raciocínio formal Com efeito, a implicação (“seentão”) apóia-se numa dependência, mas admite igualmente a crença numa eficiência Sob o regime ambivalente da promessa e da ameaça, estabelecer a dependência entre dois enunciados é torná-la eficiente Para ampliar a perspectiva, examinemos de igual modo a imbricação entre a promessa e o sacrifício Tanto quanto a ascese, o sacrifício é uma renúncia que se torna condição da oferenda, numa relação de troca gentil e interessada:“‘Dá-me e dar-te-ei Estende-te para mim e estender-me-ei para ti Apresenta-me uma oferenda e apresentar-te-ei uma oferenda’ É assim que o sacrificador se dirige ao deus numa fórmula védica Esse ato de dar e de tomar contém apenas a necessidade recíproca que une o homem e o deus e que os liga na mesma medida e no mesmo sentido”8

No caso da promessa-ameaça, de acordo com Brandt, um destinador manipula um destinatário para reduzir uma disjunção e chegar a uma conjunção No caso do sacrifício, é o inverso que se produz, na medida em que uma disjunção que se tornou irreversível – o sacrifício – permite ao destinatário obter em troca que o destinador, por sua vez, aceite disjuntar-se da oferenda7 8

GREIMAS, A J & COURTÉS, J Sémiotique, II, op cit p 48 CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, tome 2, op cit, p 263

271

_FIDÚCIA

Torna-se possível propor um sistema que compreenda algumas das grandes categorias fiduciárias O par promessa-ameaça conjuga a intensidade da espera de junção e uma orientação: (i) a espera de junção é evidentemente mais intensa na promessa que na ameaça, visto que, nesta, aparece um risco de disjunção para cada um dos parceiros; a ameaça vem de alguma maneira preencher um déficit na espera da junção; (ii) a orientação do dispositivo actancial vai do destinador ao destinatário que ele manipula Mas no sacrifício, essa orientação fica invertida e podemos admitir que, nesse outro caso, o destinatário se empenha em manipular o destinador A promessa e a ameaça procedem do mandamento e o sacrifício, de sua parte, da súplica Se aceitamos ver no sacrifício uma súplica indireta, então falta identificar a súplica direta, isto é, o quarto termo da proporção: nada mais é do que a prece, nos próprios termos de Cassirer Com efeito, para este, assim como para Lévi-Strauss:

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Page 149: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

“A prece está destinada a superar o abismo que separa o homem de seu deus”9

O programa de uso não é mais aqui a oferenda, mas a eficácia da palavra O sistema que articula conjuntamente ameaça, promessa, sacrifício e prece apresenta-se, pois, assim:

MANDAMENTO(manipulação do destinatário pelo destinador)

SÚPLICA(manipulação do destinador pelo destinatário)

Tensão para a conjunção Tensão para a disjunção

Promessa Ameaça

Prece Sacrifício

9

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, tome 2, op cit, p 268

272

_FIDÚCIA

Em termos de valências, isto é, de correlações entre gradientes tensivos, o mandamento e a súplica funcionam ao inverso um do outro Ambos associam a força de uma condição – a criada pela implicação – e a de uma confiança Do ponto de vista do manipulador, no mandamento, a condição é forte e a confiança, fraca, de modo que a primeira aparece como uma pressão exercida para compensar a fragilidade da segunda Em contrapartida, na súplica, a condição é relativamente moderada e a fé, intensa Mas do ponto de vista do sujeito manipulado, essas correlações podem a todo momento inverter-se, em função da credibilidade que ele atribui ao manipulador: abaixo de um certo limiar, a força da promessa ou da ameaça pode crescer no mesmo sentido que a confiança; para além desse limiar de credibilidade, torna-se excessivamente forte a condição que, imagina-se, o manipulador seja capaz de suportar Por isso, ela não parece mais verossímil, e a correlação se inverte: a partir desse limiar, quanto maior a promessa ou a ameaça, menor a confiança Inversamente, no caso do sacrifício e da prece, a condição deve ultrapassar um certo limiar para suscitar a confiança, na medida em que ela será realizada antes que o destinador manipulado tenha de responder A combinação desses dois pontos de vista permite interpretar a progressividade das estratégias: por um aumento gradual da condição, o manipulador pode, ao mesmo tempo, testar a confiança de seu parceiro e tentar recuar o limiar da credibilidade que lhe é atribuída

3 CONFRONTAÇÕESNa introdução de Des dieux et des hommes, Greimas estabelece uma correspondência entre crença e complexidade:273

_FIDÚCIA “Como o crer é uma atitude relativa e não categórica, o grau de crença atribuído a um ou outro relato é bastante variável De outro lado, o crer se manifesta freqüentemente sob a forma de

149

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termos complexos, o que significa que as pessoas têm tendência a crer e a não crer simultaneamente num fato ou num dizer”10

No texto intitulado “Le contrat de véridiction”, que já mencionamos, Greimas retomava o liame entre crença e complexidade, mas aproximando as noções de complexidade e pacto:“Como interpretar esse fenômeno do crer ambíguo que se apresenta como a coincidência dos contrários, como o termo complexo que reúne certeza e improbabilidade, senão pelo fato de que pertence a dois contextos ideológicos incompatíveis e, em última análise, a duas epistemes coexistentes?”11

Mas, ao lado dessa complexidade elementar, convém reservar um lugar para outras espécies de complexidade de tipo aspectual A primeira diz respeito à confiança nas coisas e, de maneira geral, à confiabilidade: chama-se de “confiável”, segundo os dicionários,“um material no qual podemos ter confiança, cuja probabilidade de quebrar ou de deixar de funcionar é muito pequena”

Examinemos de perto a confiabilidade dos materiais, isto é, a solidez: ela se baseia nas alterações de equilíbrio entre as forças de coesão, que perenizam, e as forças de dispersão, que destroem, de modo que os termos da categoria emergem como formas aspectuais:

10 11

GREIMAS, A J Des dieux et des hommes Paris, PUF, 1985, p 22 GREIMAS, A J Du sens II, op cit p 112-3

274

_FIDÚCIAEfêmero Durável

Precariedade

{Frágil Resistente

}

Solidez

A fragilidade e a resistência são sempre graduáveis e um dos eixos do fazer tecnológico consiste justamente em fazer crescer a resistência dos materiais, isto é, deslocar o ponto de equilíbrio entre as forças antagonistas Como o salienta M Hammad,“[] a inscrição dos valores modais na matéria só é interessante porque a matéria é estável Noutros termos, é apenas por ser destituída de um querer próprio que a matéria tende a não mudar por si mesma e a perseverar no seu ser, e que o actante encarregado do controle da fronteira pode aí inscrever seu próprio querer a ser transmitido”12

Mas esse estudo mostra igualmente que a simples questão de confiabilidade de um “estado de coisas” deriva para uma questão de confiança num “estado de alma”, isto é, que a natureza acaba

150

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por receber obrigações, suscitando expectativas, decepções, alívios Entretanto, o exame atento de certas estruturas modais parece indicar que os sujeitos estão, eles também, em busca de uma “confiabilidade passional”, isto é, de sua perseverança passional: como garantir a estabilidade de uma paixão? Quanto a essa questão singular, Semiótica das paixões apresenta alguns elementos para resposta, indicando, a propósito da avareza:

12

HAMMAD, M “La privatisation de l’espace”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 4-5 Limoges, Trames/PULim, 1989, p 40

275

_FIDÚCIA “três segmentos definicionais: (1) o apego excessivo ao dinheiro, (2) a paixão de acumular e (3) a paixão de reter as riquezas”13

Separemos o primeiro segmento, que está ligado à problemática dos pontos de vista: “excessivo” procede do redator do dicionário, pois, se o avarento fosse interrogado, provavelmente acharia que o excesso não é dele, e sim da incrível leviandade da conduta dos outros, que “jogam dinheiro fora” O segundo e o terceiro segmentos são disjuntos e conjuntos: são disjuntos na medida em que o segundo segmento refere-se à apreensão, ao até agora, enquanto o terceiro concerne ao foco, isto é, a partir de agora Por outro lado, eles são literalmente conjuntos na medida em que se juntam, “tocam-se” no presente precisamente a fim de assegurar essa continuidade passional essencial:“[] tudo se passa como se a eficácia da competência passional dependesse de sua aspectualização: com efeito, a paixão do avaro só se exerce e só é reconhecível em razão do caráter iterativo da conjunção e do caráter continuativo da não-disjunção”14

A certeza de uma permanência passional estaria, pois, na dependência de uma transitividade singular que faria do agora não um termo duplamente negativo, isto é, neutro, mas um termo complexo, que compreende o último termo da apreensão conjuntiva e o primeiro termo do foco não disjuntivo O avaro só acumula para guardar, e só guarda o que acaba de acumular: esse encavalamento, ou melhor, esse encadeamento sem hiato entre a apreensão e o foco, essa “espessura” aspectual do instante passional não deixa de evocar a concepção guillaumiana do presente, como complexo de decadência e ascendência

13 14

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 102 GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Sémiotique des passions, op cit, p 116 [N dos T]: Neste trecho, recorremos ao original

276

_FIDÚCIA

O “nascimento” e a “morte” de uma paixão – muitas vezes considerados tão incompreensíveis um quanto o outro – tomariam a forma, do ponto de vista do objeto, de crises aspectuais e, do ponto de vista do sujeito, de crises fiduciárias, tanto umas quanto as outras assegurando ou não a continuidade passional

151

Page 152: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

277

_EMOÇÃO

EMOÇÃO1 RECENSÃO

S

E FOSSE PRECISO prova suplementar para o fato de que uma disciplina em via de constituição tem por verdadeiros objetos justamente aqueles que, de início, exclui de suas preocupações, o destino reservado à emoção traria essa prova Para a lingüística e para a semiótica, o significado não é, por certo, o conceito, mas é muito semelhante; assim como ele, deixa transparecer uma desconfiança diante do sensível e da emoção que é, por assim dizer, a unidade elementar do sensível Mais que isso, uma tradição intelectual serve-se de um certo uso das modalidades veridictórias para desaconselhar sua investigação: o conhecimento é desperdício, só o mistério é gratificante Se mais ninguém pensa seriamente em negar a significação das emoções e das paixões, fica a questão de saber se a semiótica da emoção se conformará às aquisições já consolidadas, ocupando aí alguma lacuna, ou se levará a um reexame, e, nessa hipótese, qual a extensão desse reexame Entretanto, pormenores à parte, não poderíamos empreender este estudo sem assinalar que, também para outras abordagens, a emoção é concebida como portadora de significação: para Sartre, por exemplo, na esteira da fenomenologia, a emoção é uma resposta, se não uma solução, a uma situação vivida como problemática, ou mesmo insuportável Retomaremos isso Sabemos ainda que a emoção tem hoje seu lugar nas pesquisas cognitivas, sempre compreendida como resposta adaptativa, mas também é reconhecida como fundamento de nossa representação do mundo natural, notadamente por meio da metáfora, como propõe Lakoff1 1

LAKOFF, G & KOVÉCSES “The cognitive model of Anger inherent in American English”, in HOLLAND, D & QUINN, N (Eds) Cultural models in Language and Thought Cambridge, Cambridge University Press, 1987

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_EMOÇÃO

A tradição semiolingüística nos legou a “função expressiva” (K Bühler) e a “função emotiva” (R Jakobson) A posição de Jakobson2 é no fundo bem próxima da cognitivista, uma vez que sua “função emotiva” é concebida como transmissão direta de informação sobre o destinador da mensagem; a natureza eventualmente afetiva dessa informação não recebe qualquer tratamento especial Em contrapartida, K Bühler3 menciona já dois modos de “expressão” do sujeito da fala: a “ressonância” e o “índice” Trata-se de dois modos de expressão (isto é, de manifestação semiológica) da interioridade do sujeito da enunciação Para Bühler, apenas o segundo, o índice de interioridade, comparável ao sintoma, pertenceria verdadeiramente ao domínio semiológico; de fato, a “ressonância”, na qual se manifesta indiretamente toda a “profundidade” dos estratos discursivos, e sobre a qual Bühler diz pouca coisa, deveria atrair muito mais nossa atenção Assinalemos enfim que D Savan4 realizou uma releitura magistral da obra de Peirce sob o ângulo das emoções A partir da teoria do interpretante, a emoção pode ser considerada sob três aspectos

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diferentes: (i) como hipótese imediata, pura qualidade sem valor representativo; (ii) como afeto dinâmico, remetendo a um sentimento: a emoção é vista aqui como um representamen; e (iii) como uma norma, lei ou princípio de explicação sistemática dos comportamentos humanos Vemos assim que a emoção é tratada como um signo, signo de si própria ou signo de outra coisa, e é desse modo que ela tem sentido, ou sentidos Seja qual for o interesse dessa exploração da tipologia semiótica das emoções, ela continua sendo cognitiva, isto é, só tem significação se for traduzida numa linguagem que já não é2

3

4

JAKOBSON, R “Lingüística e poética”, in Lingüística e comunicação São Paulo, Cultrix, 1969 Notadamente em BÜHLER, K Ausdruckstheorie Das System an der Geschichte aufgezeigt Stuttgart, Fischer Verlag, 1933 SAVAN, D “La théorie sémiotique de l’émotion selon Peirce”, Nouvelle Revue d’Ethnopsychiatrie, 11, 1988, p 127-46

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_EMOÇÃO

mais a sua Sob esse aspecto, a abordagem peirciana da emoção está para a própria emoção assim como a descrição estrutural da metáfora está para a metáfora Em outras palavras, trata-se de uma interpretação, interpretação de uma figura já traduzida, cujo efeito em discurso e em ato já está portanto perdido Cabe agora abordar o “sensível”, não como algo a ser traduzido em “inteligível”, mas como algo que deve ser apreendido na tensão que o liga ao inteligível

2 DEFINIÇÕESA emoção partilha com alguns outros termos da metalinguagem o incômodo privilégio de pertencer à língua natural e de ter recebido aqui e ali múltiplas definições em diversas disciplinas5 Em francês6 , o termo “emoção” (= “estado afetivo intenso, caracterizado por brusca perturbação física e mental”) pertence a uma nomenclatura de estados afetivos, em cujo seio se distingue da “paixão” (= “viva inclinação para um objeto que alguém persegue e ao qual se apega com todas as forças”), do “sentimento” (= “estado afetivo complexo, bastante estável, bastante durável”), da “inclinação” (= “movimento afetivo, espontâneo, para um objeto ou um fim”), da “disposição” (= “tendência a”) ou do “temperamento” (= “conjunto de caracteres inatos numa pessoa, complexo psicofisiológico que determina seus comportamentos”) É um conforto para o semioticista perceber que essa nomenclatura se constrói em torno de algumas grandes categorias semióticas: (i) modais: o querer e o poder, assim como o saber relativo a essas modalidades; (ii) aspectuais: o contínuo e o descontínuo, o singulativo e o iterativo, o acabado e o não acabado; (iii) factitivas: o fazer-fazer; (iv) estruturais: a complexida5 6

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Semiótica das paixões, op cit, p 83-7 [N dos T]: As considerações a seguir podem em geral ser estendidas ao português

281

_EMOÇÃO

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de e a estabilidade; (v) prosódicas, enfim, com a intensidade e a subitaneidade A questão se formula por si própria: tais categorias formariam ou não um sistema, uma estrutura, isto é, conforme Hjelmslev, “uma entidade autônoma de dependências internas”? Tal estrutura estaria em condições de produzir uma morfologia e uma sintaxe suficientes, capazes de acolher os usos, os estilos próprios de cada cultura?21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Houve quem tentasse resolver a dificuldade reduzindo-a à dualidade de um confronto entre a emoção e a paixão, como o lembra H Parret:“Menciona-se sempre a distinção entre a paixão e a emoção proveniente da Antropologia de Kant: ‘A emoção age como água que rompe seu dique, a paixão como torrente que cava mais e mais profundamente seu leito A emoção é como uma embriaguez que se dissipa; a paixão, como uma doença resultante de uma constituição viciada ou de um veneno ingerido’”7

Th Ribot desenvolve a metáfora kantiana opondo o “agudo” e o “crônico”, o “choque brusco e violento” e a “obsessão permanente ou intermitente”8 Se falta à emoção o traço /duratividade/, este se inscreve firmemente na paixão Podemos admitir que a emoção se transforma em paixão quanto ela molda o percurso inteiro do sujeito Embora plausível, essa redução não é perfeita Primeiramente, está longe de integrar o conjunto das categorias assinaladas7

8

PARRET, H Les Passions Essai sur la mise en discours de la subjectivité Liège, Mardaga, 1986, p 124-5 Citado por PARRET, H, op cit, p 125

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_EMOÇÃO

mais acima Em seguida, baseia-se numa dupla petição de princípio: supõe o que se trata precisamente de demonstrar, isto é, que não haveria nada “além” ou “aquém” dos dois termos considerados, e também nada “entre” eles Mas isso é insistir na insuficiência comum do binarismo Para chegarmos a uma integração que não estabeleça prematuramente o número de possíveis, devem ser introduzidas certas premissas, de modo a conjugar a aspectualidade, a modalidade e a tensividade Todas essas definições trazem como elemento constante a afirmação da existência de um liame funcional entre dois complexos: um complexo modal e um complexo fórico O complexo modal associa duas dimensões: a dimensão do querer, patêmica, dividida entre o desejo e o apego, e uma dimensão do poder, dividida entre a impotência, a inibição, de um lado, e a aptidão, a mobilização para um fazer, do outro A foria estaria ligada ao mundo e às suas perguntas, e a modalidade, ao sujeito e às respostas que enuncia É a partir da dimensão do poder que a emoção entra em relação com o fazer: o horror, sempre avaliado como um ápice afetivo, pode provocar a náusea tanto quanto a fuga: no primeiro caso, a energia é, segundo Freud, “desviada” para a somatização e a anulação de programas; no segundo caso, a emoção fica regida pela mobilização e desencadeia um fazer do qual, para um observador, ela se torna uma explicação racional O complexo “fórico” compõe-se igualmente de duas dimensões: a do tempo, que varia entre rapidez e lentidão, e a da duração, que varia entre o alongamento e a brevidade; o complexo fórico admite ainda o ritmo como termo mediador entre os termos extremos que são a subitaneidade “tônica” e

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uma duração “átona” Assim, podemos compreender que a paixão, também situada em posição mediana, seja afetada por um ritmo, uma escansão e uma pulsação – numa palavra, um “estilo tensivo” (cf capítulo “Paixão”) –, enquanto a emoção, nesse aspecto, não passaria de uma explosão, um “golpe” ou um acento283

_EMOÇÃO

No interior de cada complexo, assim como entre os complexos, uma correlação associa, dois a dois, os gradientes concorrentes das diversas dimensões É claro que no caso da nomenclatura passional do francês (e do português), essa correlação entre valências é inversa Admitindo que as denominações sejam boas aproximações da interação das valências, podemos introduzir um sistema que organize as evoluções correlatas, não necessariamente sincrônicas, das diferentes dimensões tomadas:

subitaneidade sem duração

EMOÇÃO

INCLINAÇÃO ritmo de uma duração PAIXÃO SENTIMENTO

lentidão do estado durativo

desejo

(querer)

apego

impotência

(poder)

aptidão

Torna-se possível agora precisar a significação imanente, figural, do que poderíamos denominar – sem desprezar as conseqüências dessa transferência terminológica – as fases de um esquema afetivo elementar que se baseia em valores ao mesmo tempo antagonistas e solidários: a) Do ponto de vista da “foria”, a emoção se define pelo regime da subitaneidade, que podemos interpretar como “produto” da rapidez e da intensidade que, por sua vez, evoluem nesse caso de maneira conversa b) Do ponto de vista aspectual, a emoção corresponde à síncope da duratividade284

_EMOÇÃO

c) Do ponto de vista modal, a preponderância das valências de inibição sobre as valências de impulsão constitui a razão da surpresa: à subitaneidade própria do complexo fórico corresponde a surpresa no complexo modal De modo global, constatamos que as valências tônicas do tempo e da intensidade resultam afinal num enfraquecimento das valências durativas e modais Entretanto, a

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correlação inversa não é generalizável: num ou noutro idioleto, até mesmo numa teoria das emoções adaptativas, a subitaneidade estará associada à mobilização das energias com vistas ao fazer, enquanto o sentimento estendido na duração estará associado à diminuição das energias e da capacidade de reagir Isso significa, no caso, que a correlação entre o complexo fórico e a modalidade do poder será conversa Se pensarmos na dimensão volitiva, o caso é mais raro, mas possível de direito22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Não temos condições de dizer, por certo, se as quatro dimensões indicadas (tempo, ritmo, poder, querer) são suficientes para dar conta do esquema afetivo e dos diversos usos possíveis que ele é capaz de produzir Mas podemos, ao menos provisoriamente, conceber a sintaxe dos afetos como a travessia, parcial ou total, do “esquema afetivo” e, a partir do diagrama proposto, como um percurso no arco que o representa Logo, as questões não têm nada de original: o arco é percorrido de uma extremidade a outra? Ou antes fase por fase? Se um sujeito, individual ou coletivo, adota uma direção afetiva, a fixação numa fase do esquema seria assimilável a um “estilo afetivo”? Além do mais, ser-lhe-ia possível adotar a direção contrária, desejá-la sem alcançar, alcançá-la sem desejar? A primeira questão será tratada nas definições amplas, a segunda e a terceira, nas definições restritas285

_EMOÇÃO

221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Admitiremos, pois, que o sentido de um afeto se deixa identificar à fase atravessada pelo sujeito, respectivamente fase emotiva, tendencial, passional ou permanente Antes de avançar, precisemos que essa solução significa aplicar o ponto de vista chamado “extensional”, tal como é apresentado na Categoria dos casos9 de Hjelmslev, aplicá-lo a um “continuum”, a uma “substância”, o que os Prolegômenos não parecem ter previsto O complexo nascido da agregação de um complexo fórico e um complexo modal pode apresentar-se sob certas condições no estado concentrado e, em outras condições, no estado difuso A concentração e a difusão são para os afetos aquilo que os estados da matéria, reconhecidos como extremos nas condições normais, são para a matéria em si: um sistema de “variedades” sensíveis e no entanto acessíveis ao conhecimento Instalando-nos na isotopia amorosa, a definição sintagmática ampla nos põe na presença da configuração do “amor à primeira vista” Do ponto de vista semiótico, este se deixa ver como um sincretismo das fases, ou antes, como um percurso instantâneo – num átimo, conforme pensam alguns – de todas as fases que distinguimos, percurso que neutraliza os prazos que suas morfologias impõem A leitura da passagem em que o cavaleiro Des Grieux encontra Manon, em Manon Lescaut, mostra que as diferentes dimensões examinadas são percorridas com a maior velocidade possível: (i) para o complexo fórico que conjuga a rapidez e a intensidade:“Ela me pareceu tão charmosa que eu, que jamais havia pensado na diferença dos sexos, nem reparado numa jovem com algum cuidado,9

HJELMSLEV, L La catégorie des cas, op cit, p 95-104

286

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Page 157: Fontanille - TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

_EMOÇÃO pois bem, eu, cuja sabedoria e prudência todos admiravam, eu me vi inflamado de repente até o êxtase”10

(ii) para a dimensão volitiva, que vai do desejo ao apego:“Tinha o defeito de ser excessivamente tímido e fácil de desconcertar; mas, longe de ser detido por essa fraqueza, avancei para a dona do meu coração”

(iii) para a dimensão potestiva:“Eu lhe assegurava que, se ela quisesse fiar-se na minha honra e na ternura infinita que já me inspirava, daria a vida para livrá-la da tirania de seus pais, e para fazê-la feliz Fiquei mil vezes pasmo, pensando nisso, de onde me vinha então tanta audácia e facilidade para me exprimir, mas não se faria do amor uma divindade, se ele não operasse tantos prodígios”

O momento da emoção reduz a duração narrativa a um “ponto”, e reorganiza o conjunto do percurso em torno do centro dêitico e sensível De fato, o momento presente é sensibilizado porque compõe uma apreensão, isto é, um “já”, e um foco, isto é, um “doravante” Tal sincretismo inibe a possibilidade da debreagem narrativa, a história de um amor é “vivida” num instante, o da dêixis, ao invés de ser desdobrada e relatada num espaço-tempo narrativo: é assim que poderíamos compreender, em ato e em discurso, o que Semiótica das paixões chama de “reembreagem sobre o sujeito tensivo”11 Em suma, a definição ampla opera na simultaneidade, “de uma só vez”, enquanto as definições restritas procedem “passo10

11

Esse trecho, bem como os que seguem, foram tirados das primeiras páginas do romance GREIMAS, A J & Fontanille, J, op cit, p 72-3 e 137-9

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_EMOÇÃO

a passo”, contabilizando a emoção Na definição ampla sobrevém uma contração dos programas previstos, contração à qual a fidúcia vem dar seu aval No entanto, coloca-se a questão: para um sujeito aprisionado pelo afeto, como pode a sucessão dar margem à simultaneidade? A mudança de tempo que se dá é apenas um elo da explicação O comentário deve estar à altura de seu objeto, ou seja, da revolução que convulsiona o sujeito e lhe dá condições de convocar num só ponto de seu percurso todas as fases que o compõem Mas para pensar essa revolução, convém voltarmos ao divórcio entre o sensível e o inteligível Quanto a isso, Cassirer sublinha que, para muitos espíritos, as entidades, as partes sensíveis precedem o sistema inteligível, e ele preconiza a inversão da direção:“ [] o todo não é adquirido a partir das partes, e [] toda posição de uma parte implica a posição do todo; não certamente no seu conteúdo, mas na sua estrutura e forma gerais Cada singularidade, nesses domínios, faz parte originariamente de um determinado complexo, cuja regra exprime”12

Constatando que essa função não recebeu denominação válida, Cassirer propõe designá-la como “função de integração”, a qual permite a uma dada parte retomar incessantemente o todo que a precede:

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“[] toda percepção encerra um certo ‘caráter de direção’ e de mostração ao qual ela remete para além do seu aqui e agora Na qualidade de simples diferencial da percepção, ela não deixa de conter a integral da experiência”13

A apreensão sensível e simultânea das diferentes fases da afetividade seria da mesma ordem que essa catálise fulgurante, e12 13

CASSIRER, E La philosophie des formes symboliques, tome 1, op cit, p 45 Op cit, tome 3, p 230

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_EMOÇÃO

portanto afetante para o sujeito, do todo a partir de uma das partes, catálise autorizada por essa “função de integração” que, segundo Cassirer, é prerrogativa da consciência222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

A passagem que leva de uma fase a outra, por exemplo da emoção à inclinação, pode ser descrita como uma transição de fase, mais precisamente, como uma desconcentração, uma explosão controlada, e essa descrição pode intervir convocando as dimensões constitutivas da figuralidade Na perspectiva do tempo e da intensidade, se a emoção comporta o traço /brusco/, a inclinação comporta apenas o traço /espontâneo/ Do ponto de vista da duração, a emoção, definida pela “perturbação”, é desprovida de duração, tal como a linha, em geometria, não apresenta espessura, nem o ponto, extensão; com a inclinação, é introduzida a duração, já que comporta o traço /movimento/ Na perspectiva da espacialidade, a emoção é localizada, visto que o sujeito e o objeto ainda se confundem, ao passo que a inclinação já pressupõe uma cisão actancial e uma orientação do sujeito para o objeto Assim, a desaceleração, do ponto de vista do tempo, e a atenuação, do ponto de vista da intensidade, as quais determinam a transformação da emoção em inclinação, são expressas pela restauração da duração através da espera e pela reconstituição de uma identidade modal; um objeto desejável é então identificado e o sujeito projeta os meios e os programas com vistas a se conjuntar em seguida a esse objeto Conduzida a partir da figuralidade, essa descrição dispõe, entre a emoção e a inclinação, o sentido de uma operação, um operador e grandezas operadas determináveis O sentido da operação é essencialmente uma desconcentração; o operador é hoje o “corpo-próprio” – tempos atrás, era o “coração” –, como289

_EMOÇÃO

sede do sentir, isto é, como instância de medida das tensões; as grandezas operadas são as valências aferentes às diversas dimensões mencionadas acima A questão anunciada mais acima (o arco deve ser percorrido de uma extremidade à outra?) diz respeito ao sujeito apaixonado É sua prerrogativa deixar as virtualidades e as tensões do programa seguirem ou não seu curso; neste último caso, cabe ao sujeito obstruí-lo, parar numa dada fase e manter-se aí pela ativação dos programas cabíveis Um estilo afetivo se caracteriza, pois, pela fase que elege no dispositivo, e pela decisão, implícita ou explícita, de manter-se no regime afetivo inicial, ou então de deixar os atratores operarem a próxima desconcentração A confrontação de Dom Juan e de Elvira, em Molière, parece-nos aqui exemplar O percurso afetivo de Dom Juan leva-o da emoção à inclinação, mas detém-se no limiar da paixão A emoção é expressa pelo “encanto” do instante mágico,

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“Para mim, a beleza me encanta onde quer que a encontre, e eu cedo facilmente a essa doce violência com que ela nos arrasta”14

e do desejo ainda sem objeto; o “encanto” cede a vez à inclinação, à projeção de um objeto por conquistar Mas o percurso de Dom Juan exclui a duratividade da paixão e, com maior razão, o apego:“Mas, uma vez que a conquistamos, nada mais há a dizer, nada a desejar; toda a beleza da paixão se foi []”15

A duração que Dom Juan consente é apenas um prazo, o “não-ainda” da junção; ele não aprecia a duração em si de um14 15

MOLIÈRE Don Juan, ato 1, cena 2 Loc Cit

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sentimento que evolui, mas apenas o “tempo gasto para” eliminar a distância entre o sujeito e o objeto: a duração está, portanto, excluída do foco O percurso seguido por Elvira é complementar ao de Dom Juan: ela parte da paixão para atingir o sentimento Por certo, Elvira declara:“Para mim, já não tenho por ti a mínima sombra de apego”

mas confessa, no entanto, um sentimento fundado na duração:“Mas, neste retiro, sentiria uma dor extrema se alguém que eu quis com ternura se tornasse um exemplo funesto da justiça do Céu”16

Assim, nesse ponto do desenvolvimento da peça, Dom Juan e Elvira recusam ambos a paixão, mas de modo diferente: sendo a orientação de referência a que vai da concentração para a difusão, Dom Juan fica aquém da paixão Na dimensão do querer, Dom Juan é desde o início sensível à “impetuosidade de [seus] desejos” ou, segundo a expressão de R Char, ao “desejo perpetuado como desejo”; na dimensão do poder, a aptidão de Dom Juan não é outra senão o saber/poder fazer adquirido pelo sedutor Quanto a Elvira, ela se situa para além da paixão Na dimensão volitiva, ela mesma denuncia os “enlevos de uma paixão condenável”; na dimensão potestiva, reencontrou o domínio de si, visto que menciona os “desvios de [sua] conduta”, em conformidade com os cânones clássicos Além disso, a estrutura subjacente à emoção permite compreender certos paradoxos afetivos Um estilo afetivo apresentaria dois componentes Em primeiro lugar, é identificável à pre16

Op cit, ato 4, cena 6

291

_EMOÇÃO

ponderância atribuída a uma ou outra fase afetiva: o sujeito poderá ser considerado “sensível” se se atém à emoção, “atraído” se sente uma inclinação, “passional” se cultiva a paixão, “terno” se atinge o sentimento Em segundo lugar, o estilo afetivo comporta uma decisão implícita, relativa à transitividade das fases: por exemplo, é freqüente que o sujeito “passional” recuse transformar-se

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em sujeito “terno” E para isso, se sua convicção é forte, isto é, se seu coeficiente fiduciário pessoal é forte, não hesitará em sacrificar o objeto que busca, a fim de permanecer na fase afetiva que escolheu para sua existência La Rochefoucauld menciona sempre essas reviravoltas:“As paixões engendram não raro seus contrários: a avareza produz por vezes a prodigalidade e a prodigalidade, a avareza; somos freqüentemente firmes por fraqueza, e audaciosos por timidez” (Máxima 11) “A avareza é mais oposta à economia que a liberalidade” (Máxima 167)

Uma das regras da gramática afetiva estipularia portanto a possibilidade de subordinar o ter e o fazer ao ser: para continuar sendo aquele que sou, ao menos aquele que creio ser, do ponto de vista das afeições, não hesito em substituir o programa praticado até agora por um programa oposto A fidelidade a mim mesmo, isto é, a meu regime afetivo, me impõe essa mudança segundo o ser Essa dialética da direção e do programa reencontra um dos temas da “metapsicologia” freudiana, a saber, a “conversão no contrário”17

3 CONFRONTAÇÕESVer o item “Confrontações” do próximo capítulo, “Paixão”

17

FREUD, S Métapsychologie Paris, Gallimard, Idées, 1976, p 25

292

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PAIXÃO1 RECENSÃOTEMA das paixões concerne tradicionalmente à filosofia e à psicologia, mas a extensão desses dois domínios e a extrema diversidade das acepções sobre a paixão, que encontramos aí, pouco contribui para uma recensão sistemática De maneira global, paixão se opõe a entendimento, a cognição, ou, mais correntemente, a razão A psicologia tenderia a reservá-la a disciplinas distintas: psicologia das emoções ou psicanálise (distintas da psicologia cognitiva) A filosofia, em contrapartida, explora geralmente as perturbações induzidas no entendimento por meio da classificação dos universos passionais, fundando-se até mesmo por vezes num prejulgamento negativo da vida passional Com efeito, são raros os sistemas que põem a paixão no cerne da reflexão sobre a “natureza humana” Desse ponto de vista, o freudismo constitui na modernidade uma exceção, mas é preciso desde já moderar o seu alcance: por um lado, a noção de paixão em si não é explorada por Freud, e temos de nos contentar em reconhecê-la indiretamente no “destino das pulsões”, seja como “reversão” da relação ao objeto em seu contrário, seja como “retorno contra a própria pessoa”1 Por outro lado, a correspondência com a definição semiótica da paixão só pode ser parcial, na medida em que, segundo Freud, o destino das pulsões transcorre à margem das modalidades que definem os sujeitos, quando não contra elas Não obstante, o exame das definições filosóficas, consideradas como pano de fundo cultural de toda a reflexão sobre o sentido da paixão, permite reconstituir a “base classemática” dessa1

O

Cf ZILBERBERG, C “Les passions chez Freud”, Actes Sémiotiques, Bulletin, 9, 1976, p 46-8

160

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noção, para retomar uma expressão de H Parret A paixão seria legível nas nossas culturas, lembra-nos ele, sobre o fundo de uma oposição forte entre o pathos e o logos, oposição que se traduziria em dois imaginários distintos: o imaginário “lógico”,“[] o da razão, da vida, da clareza, do cosmo, da harmonia, do celeste, da universalidade, da regularidade, da distintividade”

e o imaginário “pático”, o“[] da loucura, da morte, da obscuridade, do caos, da desarmonia, do subterrâneo, da variabilidade, da particularidade, da irregularidade, do indistinto” 2

Mas em nome dessa própria divisão imaginária, a paixão opõe-se também à ação, de vez que a perturba, confunde seu sentido, ou a perverte Tanto na filosofia do conhecimento, como na filosofia da ação, a paixão é abordada como anti-objeto, a ser combatido, a ser reduzido ou sublimado, e raramente a ser explorado como tal Sobram os dois paradigmas imaginários, feixes de figuras reunidas em dois “estilos” axiológicos coerentes, cuja remanescência nas nossas culturas vai muito além do domínio passional, visto podermos encontrá-la em parte tanto na reflexão de Wölfflin sobre os estilos clássico e barroco quanto nos “regimes” imaginários de G Durand É para escapar desse dilema que a semiótica rompeu o elo com as definições tradicionais Afinal, quando precisas, as definições filosóficas e psicológicas da paixão não oferecem realmente base classemática estável3 ; quando homogêneas, são gerais o bastante para caracterizar estilos de relação do homem2

3

Esses paradigmas são estabelecidos por PARRET, H em Les passions Essai sur la mise en discours de la subjectivité, op cit, p 9-15 É de certo modo a conclusão de PARRET, H, op cit, p 15

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com o mundo ou consigo mesmo ou, noutros termos, para envolver o imaginário por inteiro, e não apenas a paixão propriamente dita A abordagem semiótica filia-se, de início, à lingüística da enunciação Para esta, com efeito, a afetividade provém do componente modal, complementar ao componente dêitico: por exemplo, os chamados adjetivos “afetivos”, bem como as conotações passionais, fazem parte da classe dos “modalizadores” Entretanto, mesmo no domínio semiótico, a noção de paixão só se impôs tardiamente, tendo sido descartada nos anos 60 e 70 pelas exclusões próprias do estruturalismo: o Dicionário de semiótica não comporta o verbete “paixão”; no segundo volume desse dicionário4 , a paixão vem definida, sob a assinatura de F Marsciani, como “uma organização sintagmática de estados de alma, entendendo com isso a vestimenta discursiva do ser modalizado dos sujeitos narrativos”5 e exclusivamente presa aos “atores” No mesmo verbete, P Aa Brandt propõe uma definição intersubjetiva da paixão, como modalizações estratégicas da troca, as quais não teriam “recebido a devida análise em termos de narratologia das ações”6 Essas restrições – restrição ao domínio dos atores, restrição à troca intersubjetiva, restrição ao que ultrapassa o

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quadro da ação – impediam que a teoria da paixão se apresentasse pelo menos em pé de igualdade com a teoria da ação É apenas em Semiótica das paixões que vemos aparecer uma definição suficientemente abrangente para permitir um desdobramento teórico sistemático: a “paixão” se distingue agora da “ação”, não como resíduo da análise narratológica, mas como mudança de ponto de vista A paixão é então considerada (i)4 5 6

[N dos T]: GREIMAS, A J & COURTÉS, J Sémiotique, II, op cit Op cit, p 162-3 Op cit, p 163

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sobre o fundo de uma problemática tensiva e sensível; (ii) como uma organização sintagmática, modal e aspectual; e (iii) como matéria de investigação da práxis enunciativa sob a forma de taxionomias conotativas Doravante a semiótica das paixões não aparece mais como um complemento da semiótica da ação: ela a engloba e a compreende, sob seu próprio ponto de vista Para apreciar a pertinência de um ponto de vista teórico, é necessário ao menos avaliar sua coerência Do ponto de vista da ação, a paixão é apenas um efeito superficial, até mesmo uma perturbação, é da ordem da exceção ou do excesso; nesse sentido, a paixão é o “irredutível” da ação, e o irredutível é, no limite e por definição, incognoscível Do ponto de vista da paixão, a ação é um caso particular submetido a regras de restrição: discretização dos enunciados, orientação exclusiva segundo o fazer, reconstrução das modalidades por estrita pressuposição a partir da performance etc Nessa segunda perspectiva, definida a ação a partir da paixão e submetida a um pequeno número de condições redutoras, fica salvaguardada a coerência de conjunto do dispositivo teórico A história da teoria das paixões, no domínio semiótico, poderia ser resumida sob a forma de uma série de deslocamentos: a) da taxiomia à sintaxe: sendo a taxionomia submetida às variações culturais, somente a sintaxe passional pode ter pretensões à universalidade; b) da sintaxe à modalização: ao mesmo tempo que a sintaxe narrativa se torna uma sintaxe modal, em parte independente dos investimentos axiológicos nos objetos de busca, a modalização passa a ser considerada como o fundamento dos efeitos passionais; c) da modalização à aspectualização: a identidade modal dos sujeitos aparece daí em diante como sobredeterminada por traços aspectuais e rítmicos que caracterizam os tipos passionais;296

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d) da aspectualização à intensidade: in fine, os fenômenos passionais parecem regular a intensidade no discurso Em suma, passamos da sintaxe narrativa à sintaxe tensiva Mas, por outro lado, do ponto de vista do método, outro deslocamento foi levado a efeito Durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise dos lexemas ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, a nostalgia, a indiferença, a avareza ou o ciúme No curso dos anos 90, ela se consagra cada vez mais ao estudo da dimensão passional do discurso, e notadamente às manifestações passionais não-verbais, ou “não verbalizadas”, como por exemplo a do “vivenciado” feita por A Hénault7

2 DEFINIÇÕES21 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS 211 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS AMPLAS

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Uma paixão é antes de mais nada uma configuração discursiva, caracterizada ao mesmo tempo por suas propriedades sintáxicas – é um sintagma do discurso – e pela diversidade dos componentes que reúne: modalidade, aspectualidade, temporalidade etc Com as paixões, a semiótica deve obter meios de tratar de conjuntos heterogêneos e de dar conta da sua coerência Se comparamos esse tipo de sintagma com os sintagmas propriamente narrativos, como os da manipulação, percebemos que os chamados sintagmas narrativos são obtidos por redução a apenas um de seus componentes, o modal, ao passo que os sintagmas passionais associam várias dimensões Desse ponto de vista, o efeito passional residiria antes nas correlações entre7

HÉNAULT, A Le pouvoir comme passion Paris, PUF, Formes Sémiotiques, 1994

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diferentes dimensões: a semiótica da ação escolheu a simplicidade, para reduzir o domínio de pertinência e aumentar a inteligibilidade da lógica da ação propriamente dita, enquanto o ponto de vista da semiótica das paixões é o da complexidade, isto é, o das correlações entre dispositivos e dimensões provenientes de diversos níveis do percurso gerativo A associação de diversas dimensões correlatas entre si no seio de um sintagma discursivo constituiria em suma um primeiro núcleo de definição da paixão Ao cabo dessa tarefa, parece: 1 que as dimensões envolvidas seriam de dois tipos: modais e fóricas; 2 que as modalidades implicadas se referem tanto à existência (modalidades existenciais) quanto à competência (querer, dever, saber, poder e crer); 3 e que a foria conjuga essencialmente a intensidade e a extensidade, com seus efeitos induzidos por projeção no espaço e no tempo, os efeitos de tempo e de ritmo Um complemento se impõe de imediato: tais correlações são isotopantes para o discurso, tendo em vista que sensibilizam a manifestação discursiva e atualizam nele as isotopias fóricas, em particular a proprioceptividade Com efeito, as correlações entre intensidade e extensidade induzem tensões que, por sua vez, afetam o corpo próprio e se traduzem por manifestações proprioceptivas em discurso Uma paixão é, pois, uma configuração – tal como definida acima – em que as correlações são ao mesmo tempo inteligíveis e sensíveis Na verdade, a partir do momento em que deixamos de lado uma abordagem moralizada da paixão, somos levados a ficar com tal definição e a abandonar as oposições clássicas entre a razão e a paixão (a paixão é uma forma de racionalidade discursiva), entre a ação e a paixão (a ação é uma redução da complexidade discursiva) e mesmo entre a natureza (passional) e a cultura O298

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efeito de sentido passional é de fato, na perspectiva que defendemos, eminentemente cultural, repertoriado numa “enciclopédia” específica do domínio passional peculiar a cada cultura De certo modo, vivenciar uma paixão seria mesmo conformar-se a uma identidade cultural e buscar a significação de nossas emoções e afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acumuladas em nossa própria cultura Por conseguinte, não pode haver configuração passional sem observador culturalmente competente: uma emoção ou um afeto exigem apenas um corpo que sente, e são por isso simples acidentes do devir proprioceptivo, um fazer reativo ou adaptativo de primeiro grau Já uma paixão é um “acontecimento” em sentido estrito, isto é, uma transformação apreendida e reconhecida por um observador O não reconhecimento dos signos da paixão é um dos motivos mais estereotipados de todas as histórias de amor Todos os sinais, todas as condições podem estar

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reunidas, mas é necessário que os parceiros se entendam sobre o lugar desse conjunto na taxionomia passional própria à sua cultura, e até mesmo que eles identifiquem e pronunciem de comum acordo o nome dessa paixão Tal é provavelmente o papel da “declaração” de amor, como também a razão de seu poder programático: como teme o conde Mosca, em A cartuxa de Parma, uma vez pronunciado o nome, o sintagma evolui, e a paixão virtual se realiza, como uma lição bem aprendida Em suma, é a práxis enunciativa que decide in fine o que é paixão e o que não é, por meio de uma espécie de sanção intersubjetiva e social, uma intencionalidade que deve ser reconhecida e partilhada para ser operante Isso significa que, assim que uma paixão é identificada e denominada, não estamos mais na ordem da dimensão passional viva, mas na dos estereótipos culturais da afetividade Não podemos portanto começar a descrição das paixões identificando “unidades” ou “signos” passionais, sobretudo lexicais, pois tal identi299

_PAIXÃO

ficação está de imediato submetida ao crivo cultural do observador; em compensação, é lícito passar pelo campo intermediário de seus “efeitos de sentido em discurso” De fato, a paixão em discurso será caracterizada pela natureza e pelo número de dimensões correlatas, como também pelos formantes sintáxicos capazes de sensibilizar a manifestação discursiva212 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

“Paixão” foi escolhido como termo genérico do conjunto da problemática e extraído para isso de uma nomenclatura que já evocamos no capítulo dedicado à emoção Sem retornar a essa escolha tática, podemos contudo procurar o lugar da paixão no conjunto das manifestações “afetivas” O gradiente já proposto a partir da correlação entre a dimensão modal e a dimensão fórica (limitando-se aqui a foria à intensidade) dispõe as principais manifestações afetivas da seguinte maneira: emoção - inclinação - paixão - sentimento Do ponto de vista da dimensão fórica, a emoção e a inclinação são tônicas; do ponto de vista da dimensão modal, são átonas A paixão e o sentimento, do ponto de vista da foria, são átonos e, do ponto de vista modal, tônicos Conseqüentemente, o conjunto do complexo modal e fórico toma a forma de um “esquema tensivo canônico” no qual a emoção e a inclinação ocupariam o lugar da “somação” e a paixão e o sentimento, o da “resolução” Isso quer dizer que, se quisermos apreender as correlações entre dimensões, conforme a definição que demos do “ponto de vista passional”, somos obrigados a escolher a região intermediária do esquema afetivo “decadente”, em que os complexos fórico e modal estão igualmente manifestados Como em todo esque300

_PAIXÃO

ma tensivo, a zona central se impõe como zona genérica, aquela em que as dimensões concorrentes atingem seu equilíbrio Do ponto de vista das modalidades, a paixão e o sentimento permitem especialmente a identificação das isotopias modais dominantes, tanto quanto a dos dispositivos modais: a competência dos sujeitos se exprime aí de maneira distinta, enquanto, no caso da emoção, ela fica violentamente “compactada”, ou suspensa, e em todo o caso, ilegível Do ponto de vista da foria, a paixão e o sentimento dão lugar à duração e ao ritmo; a conseqüência principal disso é seu poder isotopante no discurso Ao contrário, a emoção é um puro hápax: nem mesmo sua repetição permite constituir uma isotopia Cada manifestação, mesmo desviante ou transformada, de uma paixão ou de um sentimento vem reforçar a homogeneidade do percurso discursivo; em contrapartida, cada manifestação de uma mesma emoção, se não puder ser inscrita numa paixão permanente, é ao contrário apenas uma ocorrência irredutivelmente singular, cujo efeito de “fratura” discursiva é sempre igualmente vivo Entretanto, a paixão não pode ser definida sem o valor que

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visa Foi demonstrado em várias ocasiões, notadamente a propósito da avareza8, que a paixão não estava fixada ao conteúdo semântico do objeto (a avareza não é a cupidez, a cobiça do dinheiro), mas às determinações tensivas impostas ao valor desses objetos, determinações que houvemos por bem chamar de “valências” Uma primeira distinção vem então à mente, a que decorre dos dois grandes tipos de valores identificados atrás, a saber, os valores de absoluto e os valores de universo: obteríamos assim paixões de absoluto (como por exemplo o ciúme) e paixões de universo (como o amor ao próximo, seja qual for) Tal distinção se baseia, como sabemos, no caráter exclusivo ou participativo,8

Semiótica das paixões, op cit, Segundo capítulo

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concentrado ou extenso da valência; além disso, a distinção diz respeito tanto às valências (intensivas e extensivas) do sujeito quanto às do objeto É assim que a avareza escolhe os valores de absoluto, já que visa à concentração e, pela recusa da troca que implica, nega os valores de universo Mais precisamente, será a correlação entre a intensidade afetiva investida no objeto, por um lado, e sua quantidade ou extensão, por outro, que definirão o “tipo axiológico” da paixão Na correlação conversa, quanto mais encontramos objetos numa paixão, mais ela é intensa, e reciprocamente Via de regra, tal profusão de objetos constitui uma classe genérica (cf o título de Truffaut, O homem que amava as mulheres), e esse tipo de paixão é considerado, em língua portuguesa, como um “pendor” A intensidade de um pendor é medida pela quantidade de objetos cobiçados, isto é, pelo seu poder de propagação: por exemplo, quanto mais se bebe, mais o pendor pelo álcool é grande Na correlação inversa, a restrição a um objeto único, fixo e exclusivo, caracteriza as paixões maníacas, pois são então particularmente intensas; na outra ponta do arco de correlação, a difusão da paixão num grande número de objetos a enfraquece Se tal difusão ocorrer em simultaneidade, falaremos em português de “propensão” (seria de uma forma ou outra a versão átona do pendor); se ocorrer numa sucessão de objetos diferentes, falaremos, como Lacan o fez para o desejo, de paixão “lábil” Essas posições, que compõem um foco intensivo e uma apreensão extensiva, aparecem no seguinte diagrama:+manias paixões propagativas e habituais

INT (pendores) paixões pontuai s propensões ou paixões lábeis EXT

– –

+

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22 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

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A sintaxe passional pode ser apreendida de dois pontos de vista complementares: quer como dimensão discursiva, eventualmente esquematizável (definição sintagmática ampla), quer no interior dos limites de um sintagma passional, que se apresenta essencialmente como um dispositivo modal (definição sintagmática restrita)221 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Do mesmo modo que as definições paradigmáticas amplas distinguem dois grandes tipos de dimensões, a dimensão modal e a dimensão fórica, assim também a sintaxe da paixão será caracterizada por duas dimensões: a dimensão modal lhe proporciona os constituintes, os dispositivos modais, e a dimensão fórica, os expoentes, os dispositivos tensivos que se aplicam aos precedentes Os primeiros serão estudados como sintaxe da constituência, e os segundos, como sintaxe da consistência A sintaxe da constituência passional introduz uma série de fases cujo teor proporciona a cada paixão sua definição Com efeito, as definições por classificações esbarram sempre nos limites das taxionomias culturais; adotando decididamente um procedimento sintáxico, a semiótica se obriga a buscar os formantes dos sintagmas passionais e, portanto, a se situar aquém das paixões efeitos-de-sentido: a partir de uma série de formantes modais, cada cultura, individual ou coletiva, seleciona aqueles que lhe são necessários para constituir seus próprios sintagmas passionais O modelo geral dessa sintaxe é o de um encaixe de esquemas:

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Pi Pii P1, P2, P3,Piii Pn Piv Px Semiótica das Paixões oferece um exemplo de realização desse modelo, a respeito do ciúme9 , notando-se que cada fase é a denominação de um dispositivo modal bem definido:inquietude Apego exclusivo → Desconfiança arredia → suspeita visão exclusiva emoção moralização → Amor/ Ódio

O princípio do encaixe de uma micro-seqüência no interior de uma macro-seqüência permite prever a organização das paixões complexas e, sobretudo, reservar um lugar aos precedentes e subseqüentes passionais da paixão examinada Assim, cada paixão, em si mesma analisável como uma micro-seqüência, vem precedida e é seguida de outras paixões, que lhe fornecem o contexto no qual adquire seu sentido O ciúme se compõe de inquietude, de suspeita etc, mas pressupõe o apego exclusivo e a desconfiança arredia, sem o que não pode ser compreendido Mas é preciso observar que o desdobramento detalhado da microseqüência, aplicado aqui à forma canônica da crise de ciúme, poderia ser igualmente aplicado a cada uma das três outras posições da macro-seqüência, se fossem estas, por sua vez, o objeto central da análise É certo que o conjunto não corresponderia9

GREIMAS, A J & FONTANILLE, J Sémiotique des passions, op cit, p 268 [N dos T]: Neste trecho, recorremos ao original

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mais ao que reconhecemos geralmente como sendo o “ciúme”, mas essa abordagem caracteriza-se justamente por tentar livrarse das limitações do léxico, multiplicando as possibilidades de expansão

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e de condensação A sintaxe da consistência, por sua vez, obedece globalmente à esquematização tensiva, isto é, à alternância entre o esquema ascendente [desdobramento → somação] e o esquema decadente [somação → resolução] A somação responderia, no próprio seio da paixão, pelo momento da crise, e até mesmo da emoção; a resolução asseguraria seu desdobramento e difusão e, notadamente, seu poder isotopante, no conjunto do percurso de um sujeito Alguns dos conselhos distribuídos prodigamente por Sêneca para lutar contra a cólera são particularmente esclarecedores quanto a isso:“ O melhor remédio para a cólera é o adiamento Pede-lhe de início não para perdoar, mas para refletir São os primeiros ímpetos que são graves: ela cessará, se houver espera Não tentes suprimi-la de uma só vez; tu a vencerás inteira, arrancando-a por pedaços”10

Quando sentimos aumentar a irritação, diz ele em essência, é necessário imediatamente adiar suas conseqüências e manifestações, evitar a todo custo a explosão, ou até mesmo dispor as etapas devidamente calculadas de uma eventual réplica Nos próprios termos do capítulo sobre os esquemas, tal estratégia consiste em antecipar a resolução e em sincopar a somação: se a resolução intervém antes do pivô do componente modal, que permite a passagem ao ato, a somação perde algo de sua eficiência Ora, a “resolução” é aqui explicitamente descrita como (i) cognitiva e (ii) extensiva; (i) trata-se de refletir, e até de calcular – e o De ira é prolixo quanto aos meios de tornar “inteligível” o pano de fundo da cólera, como atesta a seguinte dedução:10

SÉNÈQUE Dialogues, I, De Ira, Livre II, XXIX, 1, p 54

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_PAIXÃO “ Se o adiamento pedido não produzir qualquer efeito, isso provará que então obedecemos ao juízo, e não à cólera” 11

(ii) trata-se ao mesmo tempo de fragmentar, de “arrancar por pedaços”, ou seja, de desdobrar em extensão, de restaurar os direitos da quantidade e da resolução onde antes se impunham a intensidade e a somação Eis uma validação inesperada, com a pátina da tradição, do eterno conflito entre intensidade e extensidade no seio do esquema tensivo! Ora, os remédios propostos por Sêneca se baseiam num conhecimento do esquema tensivo da cólera, longamente exposto em outros trabalhos, mas que justifica por si só a escolha do remédio: estruturalmente, de alguma maneira, a cólera se caracteriza por crescer violentamente, por arrastar tudo que está no seu caminho, e também por declinar com a mesma rapidez Esse esquema “prosódico” é até um dos argumentos de Sêneca contra Aristóteles: não, a cólera não pode servir para punir a injustiça, pois“ [] começa com ímpeto, em seguida enfraquece, fatigada antes do tempo e, depois de meditar apenas crueldades e suplícios extraordinários, quando chega a hora de castigar, ei-la abatida e tíbia” 12

A cólera para Sêneca tem, pois, um “perfil tensivo”, o perfil dos equilíbrios e desequilíbrios sucessivos entre a intensidade e a extensidade Esse perfil corresponde ao que vimos chamando de “estilo tensivo” da paixão No caso da cólera, a sucessão de11

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Op cit, Livre III, XII, 4, p 78 O interesse da concepção estóica para a semiótica vem do fato de que não estabelece uma fronteira categórica entre paixão e razão Como explica o próprio Sêneca: “Repito: paixão e razão não ocupam lugares particulares e separados, são apenas modificações do espírito, para o bem e para o mal” (Op cit, Livre I, VIII, 3, p 11) Daí a facilidade com que podemos reconhecer um esquema que associa o sensível e o inteligível na sua descrição da cólera Op cit, Livre I, XVII, 5, p 21

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uma prótase e de uma apódose se explica de certo modo pela correlação entre intensidade e extensidade: 1 Durante a prótase passional, intensidade e extensidade reforçam-se mutuamente: a violência que está aumentando se nutre da quantidade de queixas que se acumulam, e multiplica por sua vez as medidas de retaliação (imaginárias, ao menos) 2 Passado um certo limiar (que poderia ser característico de indivíduos, ou de situações), a relação se inverte: a violência se esvai num gasto extensivo, consome-se nas múltiplas “crueldades” e “suplícios” que inspirou: trata-se da apódose, quando a extensidade continua a aumentar mas a intensidade diminui Propomos generalizar esta concepção: o “estilo tensivo” de uma paixão é um esquema cujo perfil seria diretamente calculável a partir das mudanças no equilíbrio e na direção da correlação entre a intensidade e a extensidade passionais Entretanto, a sintaxe da consistência não se limita ao esquema tensivo O exemplo da cólera, descrita por Sêneca, ainda nos será útil: falando de “adiamento”, Sêneca não se contenta em manipular a intensidade e a extensão da violência; nesse sentido, segundo ele, é como se, uma vez desencadeado, o processo fosse irreversível e imutável Em troca, a solução que adota implica que esse esquema tensivo esteja inscrito no espaço e no tempo: trata-se então de pôr em defasagem a duração própria da paixão e a das ações, ou de desviar os efeitos dessa violência para um lugar outro, diferente daquele em que produziria as mais graves conseqüências Para nós, tal solução consiste, fazendo uso da debreagem espaço-temporal, em dissociar a sintaxe modal, que leva ao fazer, da sintaxe tensiva dos expoentes, que impõe à primeira seu esquema imperioso No entanto, quer se trate de adiar, descartar ou dissociar as duas dimensões sintáxicas, a estratégia supõe sempre que o perfil tensivo esteja relacionado a um espaço e a um tempo, os do campo de presença do sujeito As culturas codificam esses tempi e esses prazos – por exemplo, a duração de307

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um luto – confirmando de certo modo seu papel na definição das configurações culturais da paixão Haveria aí o esboço de uma “economia tensiva”, uma vez que as operações consistem nesse caso em suspender, deslocar, retardar, sincopar, antecipar, economia tensiva de que Freud já se valia com a noção de “deslocamento”, mais decisiva para ele do que a de “condensação” 13 A projeção de um “estilo tensivo” sobre o campo de presença (centro, horizontes, fluxo espaço-temporal) transforma-o em “estilo semiótico” Entendemos por essa expressão o conjunto dos expoentes característicos de uma paixão: perfil tensivo, tempo, ritmo e aspectualidade, fatores cuja consideração já permite identificar um efeito de sentido passional Entretanto, mais geralmente, é a identidade tensiva dos sujeitos que está em questão A fraseologia cotidiana fornece, a respeito, descrições bastante pitorescas: o estilo “pavio curto”, o estilo “lerdo” etc14, são todos especificações do esquema tensivo, cuja sutura ou modo de expansão tem sido particularmente afetado por certos usos recorrentes e estereotipados (cf o capítulo “Esquema”)

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222 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

A sintaxe restrita da paixão é também chamada de “sintaxe intermodal” Como foi longamente desenvolvida no capítulo “Modalidade”, lembraremos aqui apenas os princípios e remetemos o leitor ao capítulo indicado para maiores precisões As modalidades podem ser tratadas quer como grandezas simples e discretas – e nesse caso seu domínio de validade é a descrição da competência dos sujeitos narrativos – quer como grandezas complexas e tensivas, caso em que entram na composição dos dispositi13 14

FREUD, S Le rêve et son interprétation Paris, Gallimard, Idées, 1977 [N dos T]: Cf o original “soupe au lait”, “long à la détente” e “esprit de l’escalier” Esta última expressão, de difícil tradução em português, designa o espírito de quem remói a posteriori uma viva réplica que deixou de desferir na ocasião oportuna

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vos passionais No segundo caso, trata-se de valores modais que obedecem inteiramente à definição tensiva dos valores em geral Seu “valor” está condicionado por uma correlação, conversa ou inversa, entre sua intensidade e sua extensidade A sintaxe interna dos dispositivos passionais se explica ao admitirmos que as diferentes modalidades que os compõem entram em correlação, não por seu conteúdo modal propriamente dito (querer, saber, poder, dever ou crer), mas por suas valências intensivas e extensivas Os dispositivos em questão não são pois seqüências que acumulam apenas conteúdos modais (enfim, “seqüências” modais), mas configurações cuja sintaxe interna é assegurada pelo jogo das correlações tensivas Um exemplo permitirá explicitar o mecanismo interno dessa sintaxe; trata-se de uma declaração de Ferrante, velho rei de Portugal, em A rainha morta, de Montherlant:“Para mim, tudo é retomada, refrão, ritornelo Passo meus dias a recomeçar o que já fiz, e a recomeçá-lo menos bem Há trinta e cinco anos que governo: é demais Minha fortuna envelheceu Estou cansado de meu reino Estou cansado de minhas justiças, e cansado de minhas beneficências; estou farto de agradar a indiferentes Tudo aquilo em que fui bem ou mal sucedido tem hoje para mim o mesmo gosto [] Uma após outra, as coisas me abandonam [] E em breve, na hora da morte, o contentamento de dizer a mim mesmo, pensando em cada uma delas: ‘Mais uma coisa que não lamento’”15

A “lassidão” tem aqui todos os traços de uma configuração passional, já que conjuga uma dimensão modal (não poder, não querer, sobretudo) e uma dimensão fórica (atonia, extensão excessiva) O desgaste do poder se reconhece ao menos em duas indicações: recomeçar menos bem e minha fortuna envelheceu; o desgas15

MONTHERLANT, H de La reine morte Paris, Gallimard, 1947, Acte II, Scène 3, Folio, p 77

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te do querer está pressuposto no desaparecimento das lamentações: com efeito, só se lamenta aquilo que se quis e ainda se quer Globalmente, a desmodalização do sujeito se explica pela repetição:

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banal conseqüência, em suma, da correlação inversa entre a extensidade e a intensidade modais Esta observação leva a outra: para que sua intensidade seja assim afetada pela repetição, as modalizações devem ter o estatuto de valores modais Cabe aqui sugerir, do ponto de vista da semiótica das paixões, que a aspectualidade é a expressão em discurso do devir das correlações tensivas que caracterizam os valores modais Isso explicaria que a repetição possa aparecer no texto, com certa evidência, como a causa da desmodalização Do mesmo modo, as interrupções (aspecto “não-acabado”) do esquema propostas por Sêneca têm por objeto, conforme mostramos, a reversão precoce e antecipada das correlações entre intensidade e extensidade próprias à cólera Além disso, a mesma correlação inversa das valências degrada também, em Ferrante, os valores descritivos, que são apenas “coisas”: as coisas me abandonam sanciona o desinvestimento axiológico e passional dos objetos de valor associados ao exercício do poder Em conseqüência, os “objetos de valor” tornados “coisas”, tendo perdido sua carga axiológica, não estão mais em condições de investir o sujeito com seu conteúdo semântico Mas uma outra questão permanece sem resposta: como pode ocorrer que apenas algumas modalidades sejam afetadas pela repetição? Por que somente o poder e o querer (lembremos que o saber e o dever conservam a mesma força de antes)? Noutros termos, por que, ao diminuir a intensidade, apenas o poder e o querer permanecem ligados um ao outro, e não ao saber nem ao dever? Por que, em suma, esse rei fatigado e desgastado é, de fato, um “entediado”? Resposta em quatro pontos: 1 Poder e querer estão aqui em correlação conversa: para Ferrante, tudo o que alimenta o poder aumenta-lhe o querer, e qualquer310

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diminuição de um repercute no outro Tudo seria diferente se a correlação fosse inversa: a diminuição do poder, ao contrário, estimularia o querer 2 O poder em si, enquanto valor modal central em A rainha morta, só diminui por ser demasiado extenso, e por ter sido exercido durante tempo excessivo, estereótipo bem conhecido em política 3 A extensão do poder é avaliada por um observador (o próprio Ferrante), incumbido de medir seus danos e de contar os “abandonos” sucessivos A intensidade do poder está, na verdade, em correlação inversa com a extensão do saber – digamos, da experiência acumulada – que permite avaliar a extensão do poder e sua diminuição 4 A conjugação das correlações que precedem permite deduzir uma última: a extensão do saber e a intensidade do querer também se encontram em correlação inversa (o “desânimo”) Em resumo: demasiado saber (a experiência de um velho) enfraquece um poder exercido por tempo excessivo (um reinado absoluto de trinta e cinco anos) e desanima (não querer) de continuar a exercê-lo Eis a “lassidão” de Ferrante A seqüência modal [saber, não poder, não querer] descreveria a identidade do sujeito passional, mas não a sintaxe interna dessa identidade Ora, o “segredo” semiótico das paixões reside em parte na solidariedade estrutural entre as modalidades de uma mesma seqüência, solidariedade que podemos agora descrever como um jogo de correlações entre gradientes Além do mais, do ponto de vista da sintaxe geral da identidade passional, estaríamos vendo aqui a conversão de um papel em atitude: no fim de seus dias, o velho rei se vê com efeito tentado a abandonar o papel (estabelecido por recorrência, em extensão) ditado por seu passado, e a adotar uma atitude (fundada por um foco, em intensidade) que daria uma outra significação à sua morte próxima311

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Outra configuração, de certo modo oposta à precedente, ocorre-nos: à lassidão geral (ou distonia), induzida pela repetição dos papéis e sua distribuição na duração, o estoicismo contrapõe a eutonia e a contenção passionais de cada atitude Para sermos breves, podemos identificar o princípio da

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eutonia estóica16 ao esforço que mantém as tensões internas do sujeito estóico num equilíbrio que não se desfaz Para nós, isso significa que as diferentes modalidades constitutivas da identidade são consideradas solidárias, passíveis de evoluir de maneira inversa, e que a coesão dessa identidade exige que nenhuma predomine sobre as outras A todo momento, e sobretudo em situação de crise trágica, o sujeito estóico deve ser capaz de inventar sua “atitude” e de conter esse equilíbrio interior Assim, Hércules, herói estóico por excelência, no meio das chamas de sua fogueira, consegue ainda bem dispor a lenha para que o fogo seja eficaz, contínuo e bem feito Ao contrário, o furor e a cólera ignoram ou põem em xeque a conciliatio, a coesão na identidade do sujeito, sob o efeito de uma explosão, de uma dispersão e de um desequilíbrio que se acentua por si próprio 17 Isso quer dizer que o efeito de coerência no percurso de um sujeito apaixonado pode resultar de duas causas: (i) no campo da sintaxe passional ampla, trata-se da sedimentação dos papéis ou da perseverança das atitudes; (ii) no campo dos dispositivos modais localizados, trata-se da força e do equilíbrio das tensões entre modalidades Em ambos os casos, a coerência do percurso depende da coesão sensível que a consistência (fórica) proporciona à constituência (modal) e, reciprocamente, da inteligibilidade que a segunda proporciona à primeira16

17

Expresso notadamente em Sêneca (De brevitate vitae A Bourgery, (Ed) Paris, Les Belles Lettres, Budé, 1980; Hercule furieux/Hercule sur l’Oeta L Nerrman, (Ed) Paris, Les Belles Lettres, Budé, 1967) Esses diferentes aspectos do estoicismo foram enfatizados por Clara-Emmanuelle Auvray em Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur l’Oeta, Recherches sur l’expression esthétique de l’ascèse stoïcienne chez Sénèque Frankfurt am Main-Bern, New York, Paris, Peter Lang, 1989

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3 CONFRONTAÇÕESA paixão não é concebível sem o valor: valor investido nos objetos, axiologias descritivas, obviamente, mas sobretudo valores modais e aspectuais, controlados pelas valências tensivas Se tomamos a dimensão passional do discurso por inteiro, ela se deixa ver como globalmente dedicada à emergência, ao reconhecimento e à circulação dos valores Nessa perspectiva, a dimensão passional dos discursos é indissociável do devir das axiologias Mas então introduz-se a questão do modo de acesso ao valor Para tal questão, duas vias são propostas: ou os valores são dados a serem conhecidos pelo sujeito semiótico, por exemplo na forma de um mandamento, sob a responsabilidade de um Destinador cognitivo; ou então são apresentados à sua sensibilidade, são dados a serem sentidos, sob modos figurativos De um lado, o encontro com o valor é mediatizado por um papel actancial específico; do outro, o timismo difuso investido na figuratividade, e notadamente nas suas qualidades sensíveis, faz seu trabalho É assim que os dois amigos do conto de Maupassant, analisado por Greimas, vão à pesca literalmente empurrados pelo sol nascente que lhes esquenta as costas; nas palavras mesmas de Greimas:“É, no fim das contas, o ‘ar quente’ que completa a persuasão do sujeito (‘termina de inebriá-lo’), criando a ilusão de um /poder fazer/ capaz de passar à execução”18

Claro que é sempre possível reconstruir em profundidade a ação de um Destinador, nesta ocorrência o Sol, mas é igualmente verdade, no plano do discurso, que o acesso aos valores (aqui, deceptivo,

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segundo Greimas) é mediatizado pelo timismo investido na figuratividade Aristóteles já tinha identificado essa propriedade:18

GREIMAS, A J Maupassant, La sémiotique du texte: exercices pratiques, op cit, p 90

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_PAIXÃO “O ser se deixa apreender sob muitos sentidos; num sentido, significa o que é a coisa, a substância e, noutro sentido, significa uma qualidade, uma quantidade, ou um dos demais predicados desse tipo”19 “Chama-se afecção (pathos), num primeiro sentido, a qualidade segundo a qual um ser pode ser alterado, por exemplo, o branco e o preto, o doce e o amargo, o peso e a leveza, e outras determinações desse gênero”20

Os valores passionais apresentar-se-iam em suma de duas maneiras diferentes e complementares: pelo viés do conteúdo e do saber, ou pelo da expressão e da sensibilidade Enfim – será preciso relembrar? – o discurso não é apenas um agenciamento de palavras e, por conseguinte, a dimensão passional do discurso não se reduz a seu léxico afetivo O discurso é uma ordenação dinâmica de forças em devir, em que emergem, circulam e trocam-se valores, por vezes estabilizados sob a forma de isotopias Com maior razão, como já observamos, quando estamos diante de um discurso não-verbal, a dimensão passional deve ser buscada em outros lugares e não nas palavras A definição das paixões como resultantes da correlação entre um complexo modal e um complexo fórico nos proporciona de imediato uma estrutura: assim como o plano da expressão conjuga expoentes e constituintes, no plano do conteúdo a dimensão passional associa a dimensão sensível (intensidade, extensidade, tempo etc) e a dimensão inteligível (modalidade) Os contornos prosódicos da consistência dizem respeito à primeira; a sintaxe modal restrita e ampla, isto é, a constituência, concerne à segunda É por essa razão que pudemos dizer que a dimensão passional acolheria a sintaxe modal, do lado dos “componentes”, e os estilos semióticos da consistência, do lado dos “expoentes”19 20

ARISTOTE Métaphysique, 1028a, 10-33 Op cit, 1022b, 15

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_PAIXÃO

Noutros termos, a estrutura modal da paixão se manifesta, para um observador, sob a forma dos estilos semióticos que comentávamos acima Entretanto, na ordem das pressuposições, é claro que o estrato “modal” pressupõe o estrato “fórico”, assim como os constituintes fonemáticos pressupõem o contorno prosódico e as modulações silábicas, e não o inverso Isso explica que, na qualidade de estrato pressuposto, o estrato fórico se manifesta em todos os casos, seja sozinho, seja por meio do estrato modal Mas a questão da manifestação da paixão e da emoção nos discursos não-verbais ainda está por resolver Com efeito, nos discursos verbais é possível escapar, com relativa facilidade, dos lexemas passionais e concentrar-se nos constituintes modais da sintaxe passional; mas nos discursos não-verbais, logo que tentamos sair das expressões passionais figurativas, representadas por exemplo num quadro ou fotografia, colocase imediatamente a questão da ancoragem plástica das emoções O problema é duplo: é preciso perguntar-se ao mesmo tempo qual é, no caso, o equivalente das modalidades, e em que lugar residem as tensões de que se nutrem, por definição, as

172

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paixões Dizíamos que as modalidades modulam o retardamento imposto a um processo cuja realização ficou suspensa; reduzidas a seu princípio geral, e independentemente de seus diferentes conteúdos específicos (querer, poder etc), elas medem as diferenças de potencial, e especialmente as tensões existenciais, entre as fases do processo discursivo Se admitimos que a organização plástica de um objeto visual é regida por um processo discursivo, entre os diversos formantes do componente plástico da imagem também aparecem diferenças de potencial, interpretáveis como valores modais Supondo-se, por exemplo, que a organização cromática de um quadro manifesta uma transformação cromática e axiológica, então as diferentes fases desse processo corresponde315

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rão a diferentes valores modais, em função da magnitude da diferença de potencial que os separa da fase final21 No domínio musical, E Tarasti conseguiu dar um conteúdo explícito e operatório às modalidades musicais, partindo da impulsão energética (para o querer), do jogo de normas, gêneros e regras (para o dever), do estoque de informações disponíveis e conhecidas numa dada época (para o saber), da virtuosidade e da tecnicidade da partitura (para o poder), e dos diferentes efeitos veridictórios (para o crer)22 Nem sempre será possível, talvez, uma identificação assim tão completa nos discursos não-verbais, mas ao menos parece que o plano do conteúdo das paixões não-verbais é acessível, e que reside nas diferenças de potencial que modulam o campo perceptivo Quanto à dimensão fórica – intensidade, extensidade, ritmo e tempo –, ela é imediatamente apreensível no plano da expressão das semióticas não verbais, como a outra face, por assim dizer, dos valores modais: ritmos plásticos, intensidade musical, aspectualizações do espaço e do tempo, nada deixa de comparecer Além disso, os próprios sistemas semi-simbólicos podem ser tratados como correlações tensivas; se, por exemplo, “o próximo e o distante” têm como plano da expressão “o grande e o pequeno”, é apenas por zelo de simplicidade que são tratados geralmente como categorias discretas Na verdade, a profundidade visual assenta numa correlação de gradientes: quanto menor é X, mais ele está afastado, e a correlação semi-simbólica funciona então como uma correlação tensiva A solução às vezes adotada por alguns semioticistas consiste em referir-se à psicanálise: a metapsicologia freudiana, sobretudo, daria os elementos necessários para abordar a paixão21

22

Ver, a respeito, FONTANILLE, J “Sans titre, ou sans contenu?”, in F Saint-Martin (Ed) Nouveaux Actes Sémiotiques, 34-35-36, “Approches Sémiotiques sur Rothko” Limoges, PULim, 1994 TARASTI, E Sémiotique musicale Limoges, PULim, 1996

316

_PAIXÃO

no discurso, em particular no discurso visual A posição de F SaintMartin, por exemplo, baseia-se na hipótese segundo a qual:“a atividade de simbolização, como qualquer outra atividade vital, é motivada pela busca de estados de equilíbrio, prazer ou felicidade” 23

Depois, apoiando-se na teoria de M Klein, segundo a qual o processo de simbolização visa a estabelecer relações de “inclusão”, a autora esclarece:

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“Os significantes de afetos eufóricos se apresentam como contínuo, fusão, inclusão e encaixe [] enquanto os significantes de afetos disfóricos se revelam através das separações, disjunções, exclusões[]” 24

A exploração dessas propostas teóricas na descrição confirma o que já podíamos calcular a partir de seu próprio enunciado: numa perspectiva psicanalítica, a partir do momento em que a análise não tem mais o suporte das palavras – ainda que para ler entre as palavras –, o afeto é diretamente inferido das tensões internas da obra: tensões voltadas à fusão e à inclusão, tensões de rompimento e dispersão Por exemplo: as tensões entre as formas que se aproximam das formas prototípicas, sob o efeito da pressão gestáltica, e os processos de ruptura e subversão dessas mesmas formas Com ou sem a autoridade da psicanálise, a exploração da dimensão passional desse tipo de discurso não pode prescindir de uma verdadeira semântica tensiva Permanece a questão de método: como construir a dimensão passional de um discurso sem se apoiar nos lexemas passionais? A definição proposta no início deste capítulo, em termos de

23 24

SAINT-MARTIN, F “La tragédie, l’extase et les autres émotions”, op cit, p 118 Op cit, p 118

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_PAIXÃO

correlações entre uma dimensão modal e uma dimensão fórica, traz uma pista, não um método, pois trata-se doravante de identificar as figuras de manifestação capazes de dar acesso aos efeitos passionais, ao que A Hénault denomina o “vivenciado” O vaivém entre a reflexão teórica e a prática de textos nos permite reconhecer pelo menos oito dessas figuras de manifestação, agrupadas em três blocos: 1 Provenientes do espaço tensivo e da foria: (i) os efeitos de campo, sobretudo as variações de intensidade e extensidade dos focos e das apreensões (cf o capítulo “Presença”); (ii) o tempo e o ritmo (cf, acima, a sintaxe da consistência) 2 Provenientes do espaço semionarrativo: (i) o foco do dispositivo actancial, sobretudo nas relações de junção, endereçamento e mediação entre o sujeito, o outro e o objeto (cf o capítulo “Modalidade”); (ii) as modalizações convertidas em valores modais e correlatadas entre si (cf o capítulo “Modalidade” e, acima, a sintaxe da constituência) 3 Provenientes do espaço discursivo: (i) as predicações concessivas, que manifestam as correlações inversas, as mais propícias aos efeitos passionais (cf os capítulos “Modalidade” e “Práxis enunciativa”); (ii) as aspectualidades, convertidas em valores aspectuais, isto é, também submetidas à regulação das valências tensivas; (iii) a figuratividade, visto que ela se manifesta por meio de suas qualidades sensíveis, indissociáveis de seus efeitos proprioceptivos; (iv) por fim, a própria somatização, o sobressalto ou o frêmito, o rubor ou a agitação, a náusea ou a aquietação, que manifesta a recepção das tensões modais, actanciais e figurativas pelo próprio corpo Todas essas figuras são isoladamente capazes de induzir efeitos passionais, e levam a encatalisar as outras dimensões; além disso, sua superposição no discurso é em geral uma boa indicação das zonas segmentáveis do percurso passional Numa boa metodologia, o elenco das manifestações lexicais da afetividade318

_PAIXÃO

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deveria ser levantado apenas por último: perceberíamos então (i) que a maior parte das formas passionais assim construídas não é denominável e (ii) que as propriedades atribuídas pelo discurso a esta ou aquela paixão lexicalizável não seriam em nada previsíveis a partir da definição em língua

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_BIBLIOGRAFIA

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177

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SAPIR, Ernst, SAUSSURE, Ferdinand de,

SAVAN, David, TARASTI, Eero,

328

_Índice Remissivo(com exceção das noções que constituíram capítulos)A acento, acentuação 19, 34, 107, 113, 115, 117, 118, 212, 215, 283 apódose 141, 270, 307 apreensão, apreender 19, 31, 32, 45, 64, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 141, 142, 143, 175, 176, 195, 209, 215, 216, 219, 220 221, 223, 232, 248, 276, 287, 302, 318 ascendência, ascendente 112, 113, 119, 120, 121, 138, 185, 186, 187, 188, 194, 276, 305 atitude 311, 312

C catástrofe, catastrofista 89, 90, 91, 229, 233, 235 coesão, forças coesivas 15, 94, 142, 143, 150, 249, 274, 312 complexo, complexidade 12, 18, 32, 44, 45,47, 52, 66, 68, 67, 69, 71, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 88, 89, 91, 92, 101, 118, 123, 133, 140, 145, 208, 218, 273, 274, 276, 281, 283, 284, 285, 286, 288, 298, 300, 314 concessão, concessivo 10, 43, 44, 75, 77, 88, 163, 237, 238, 239, 318 consistência 118, 156, 303, 305, 312, 318 constituência, constituinte 93, 94, 107, 117, 118, 120, 262, 303, 312, 314, 315, 318 convocação, convocar 27, 109, 174, 175, 191, 200, 201, 202, 207, 208 D decadência, decadente 112, 113, 118, 119, 120, 121, 138, 139, 186, 187, 188, 194, 276, 300, 305 dependência, interdependência 11, 12, 15, 22, 25, 29, 32, 36, 43, 66, 70, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 87, 88, 89, 90, 92, 101, 103, 109, 118, 124, 136, 147, 189, 190, 191, 271 diferença, diferencial 12, 22, 29, 30, 34, 42, 43, 66, 76, 77, 78, 79, 83, 89, 105, 133, 136, 140, 189, dispersão, forças dispersivas 44, 74, 94, 142, 150, 249, 274, 317 E eficiência 148, 149, 271, 305 estilo 14, 33, 37, 82,

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94, 95, 114, 136, 137, 147, 162, 165, 177, 204, 218, 223, 224, 225, 262, 266, 282, 283, 285,290, 291, 292, 294, 306, 307, 308, 314, 315 exclusão, exclusivo, exclusividade 27, 28, 29, 30, 32, 34, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 56, 57, 59, 147, 156, 168, 210, 218, 301, 302, 304 existência, modos de existência, modalidades existênciais 9, 12, 24, 27, 105, 112, 123, 124, 131, 132, 133, 134,155, 157, 158, 159, 173, 177, 194, 197, 201, 253, 256, 262, 298 expoente 19, 107, 117, 262, 303, 307, 308, 314 F foco, focalizar 19, 29, 45, 73, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 141, 142, 143, 175, 176, 195, 215, 216, 217, 219, 220, 221,223, 247, 248, 250, 251, 252, 257, 258, 260, 264, 276, 287, 291, 302, 311, 318 foria, fórico 102, 135, 151, 157, 158, 264, 283,

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_284, 298, 300, 301, 303, 309, 318, 285, 286, 314, 315, 317 G grupo de Klein 70, 86, 87, 88 I identidade, identitário 86, 128, 214, 224, 240, 241, 242, 244, 245, 246, 254, 299, 308, 311, 312 implicação, implicativo, implicar 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 80, 82, 86,209, 237, 238, 239, 249, 271, 273 L limiar 147, 155, 273 limite, limitado, limitado, delimitação 15, 28, 29, 31, 32, 41, 44, 47, 49, 74, 130, 138, 140, 147, 215, M merológico 31 metáfora, metaforizar 82, 127, 189, 279, 281 metonímia 82 mistura 29, 30, 33, 34, 36, 37, 47, 49, 52, 53, 55, 82, 130, 211, 212, 213 modulação, modular 31, 80, 118, 133, 217, 232, 233, 234, 246, 262 P participação, participativo 27, 28, 29, 32, 49, 50, 51, 52, 56, 57, 242, 301 praxema 175, 176, 177, 188, 189, 190, 213 profundidade 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 34,

47, 52, 81, 82, 91, 121, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 159, 162, 174, 177, 215, 216, 217, 222, 280, 316 prosódia, prosódico, prosodização 107, 118, 151, 217, 221, 262, 266, prótase 141, 270, 307 protótipo 15, 22, 23, 64, 92, 93, 94, 181, 182 Q quantidade, quantificação, quantitativo, quantificável 15, 16, 19, 32, 33, 48, 49, 63, 64, 65, 83, 106, 136, 137, 187, 195, 262, 302, 306, 314 R rede 29, 67, 69, 70, 71, 74, 75, 78, 81, 83, 87, 88, 89, 92, 95, 101, 235, 245, 247, 256, 261, 296 regime 27, 28, 29, 33, 37, 46, 48, 49, 50, 51, 56, 59, 82, 103, 136, 145, 146, 165, 175, 177, 199, 201, 202, 206, 207, 208, 209, 210, 212, 213, 214, 217, 222, 242, 264, 284, 290, 294 resolução, resolutivo 89, 94, 95, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 118, 121, 122, 179, 182, 185, 202, 209, 300, 305, 306 retórica, figuras de retórica 10, 82, 94, 177, 223 reversibilidade, reversível 43, 44, 91, 111, 115, 125 ritmo, rítmico 31, 137, 138, 192, 283, 285, 298, 301, 308, 316, 318 S simbolização, dessimbolização, simbólico 183, 184, síncope, sincopar 109, 110, 111, 114, 284, 305, 308 somação, somativo 73, 76, 94, 95, 97, 107, 108,

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_109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 118, 119, 121, 122, 179, 182, 209, 300, 305, 306 sutura 109, 308 T tempo 30, 31, 121, 147, 156, 158, 159, 160, 163, 166, 216, 221, 222, 247, 257,

258, 259, 260, 267, 283, 285, 288, 289, 298, 307, 308, 314, 316, 318 tímico, timismo 18, 19, 20, 23, 166, 313 triagem 29, 30, 33, 36, 37, 47, 48, 49, 52, 53, 55, 82, 97, 130, 211, 212, 213 V veridicção 79, 88, 161, 228, 238

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