17
Bartolomeu Campos de Queirós LEITURA DELEITE

Foram muitos, os professores

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Foram muitos, os professores

Bartolomeu Campos de Queirós

LEITURA DELEITE

Page 2: Foram muitos, os professores

Minha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor em pedaços, baba-de-moça, casadinho, e fazia o olho de sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordado, com nomes camuflados em pesares: ponto atrás, ponto de sombra, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro ela escondia longas poesias boiando em sofrimentos: “A louca de Albano”, “Tédio”, “O beijo do papai”. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia o todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.

Page 3: Foram muitos, os professores

Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas, sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava seu silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. (...)

Page 4: Foram muitos, os professores

Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida, acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. (...)

Page 5: Foram muitos, os professores

Maria Turum, empregada antiga de meu avô, sabia de tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de chuva com comida de angu, carne moída e quiabo, sem consultar cadernos de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e se tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os dedos um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para secar os lençóis. (...)

Page 6: Foram muitos, os professores

Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abandonavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugadas e fugas, casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos o destino de cada coisa: o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seu significado. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela capacidade de não negar sentido às coisas.

Tudo lhe servia de pretexto. Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras.

Page 7: Foram muitos, os professores

Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, fichas de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que eu acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre os muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha de agulha para minha avó chulear. (...) Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.

Page 8: Foram muitos, os professores

Mesmo assim eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranquilas suas aulas, e o maior encanto era ver meu avô cultivar suas dúvidas. (...) Às vezes ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe, um parágrafo mais alto. (...)

Page 9: Foram muitos, os professores

Não sei se aprendi a fazer contas com o meu avô. Ele mais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não possuía cartazes de cartolina na parede, vidros com sementes de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. (...)

Page 10: Foram muitos, os professores

(...) Meu avô não usava toquinhos coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essa minha paixão pelos abraços e pelos laços.

Page 11: Foram muitos, os professores

Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenção e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre: “Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar o que fazer”.Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. (...) Mas logo me veio uma ideia: quando entrar para escola, eu faço de conta que esqueci tudo e começo a aprender de novo. (...)

Page 12: Foram muitos, os professores

Cheguei (à escola) de uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápis Johann Faber com borracha verde na ponta e mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando com o acordeom do Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância.

Page 13: Foram muitos, os professores

Fui acolhido por Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha mão e a fila foi andado em direção à sala de aula. Mão fina e macia como algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. (...)

Page 14: Foram muitos, os professores

(...) Ela (a professora) me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo cuidado era pouco para não perder o seu amor. (...)

Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. (...)

Page 15: Foram muitos, os professores

(...) Eu lia os cartazes, colava as sílabas recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim em silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado como um menino aplicado cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me esqueci de sua presença valeu a pena.

Page 16: Foram muitos, os professores

(...) Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da leitura e da escrita. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro.

Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um de meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo que aprendi, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria dúvidas.

Page 17: Foram muitos, os professores

Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de Sant’Ana, a mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. (...)