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Em relação ao tema “religião”, a postura “mais avançada” dos críticos tem sido sempre a do “ateísmo”, se opondo ao fenômeno religioso. Essa postura de simples negação, porém, além de não compreender o próprio fenômeno religioso, apresenta limitações na compreensão da própria realidade que possibilita a existência da religião. Deste modo, o crédulo ateu não pode compreender que a própria realidade na qual ele vive é também metafísica, tão religiosa e incoerente quanto às religiões que combate. Deste modo, pretendemos demonstrar que a crítica radical de base marxiana constitui-se igualmente em crítica do ateísmo. Esperamos, com isso, retirar alguns preconceitos que se tornam um impeditivo a priori para a militância utilizar o que há de emancipador por debaixo do invólucro místico das religiões. O “MECANISMODA RELIGIÃO Pode-se dizer que o mecanismo básico de funcionamento da religião é a alienação, ou seja, a transferência para outro ser de seu destino, de seu controle, de sua essência. Este outro ser, a divindade, é, no entanto, criado pela projeção das próprias relações sociais entre os homens. Na religião, os homens acabam por substituir sua autoconstrução consciente por um ser criador de si mesmo. Até aqui em quase nada diferimos do ateísmo em seu sentido tradicional, vez que deus aparece até agora como algo subjetivo, que depende da subjetividade humana para existir. Este subjetivismo religioso se opõe ao mundo real, onde as coisas acontecem de fato e não apenas em pensamento, o que justificaria a caracterização da divindade como um mero delírio. Tomando as religiões como mera alienação subjetiva, o ateísmo não consegue perceber que elas têm um sentido de desenvolvimento na história que vai de religiões mais simples para mais complexas no desenvolvimento do mundo dos homens. Como os ateus veem o divino como algo do pensamento e não da realidade (onde deus “não existe”), deixam de, por vezes, procurar na própria realidade a causa da formação de tal imaginação no cérebro e na vida do homem. Não compreendem assim como a própria religião é um fenômeno constituído e constituidor dessa própria realidade. Não percebem como essa mesma realidade é por si “religiosa”. A pergunta mais importante para o esclarecimento não é a clássica “Deus existe?”, mas sim a que, superando este ponto, acaba por questionar: Por que o homem se aliena? Por que ele acredita ter sido criado pela divindade que ele mesmo criou? Como uma idéia que ele mesmo cria “adquire vida”, torna-se relação social e passa a lhe dominar? A resposta para isso não pode ser dada a partir da constatação de casos individuais de conversão, como, por vezes, o senso comum busca fazer. Para entendermos a verdade da religião temos que recorrer à análise histórica, levando em conta a estrutura das sociedades que deram origem às diversas representações religiosas de mundo. A história das religiões é a história das formas de representação do mundo pelas sociedades; compreendendo o desenvolver das religiões, entende-se o desenvolver da consciência do homem, abrindo-se a porta para uma crítica do próprio caráter irracional da forma atual de representação do mundo, inclusive aquela que se apega ao ateísmo. O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DAS RELIGIÕES A divindade é criada na mente das pessoas, mas não na de uma só e sim nas mentes e relações sociais do conjunto das pessoas que vivem aquela realidade social. Em sua história, os homens quase nunca puderam escolher uma religião. A escolha livre de religião é um fenômeno tipicamente moderno. Isso porque nos tempos passados a dita “religião” é uma forma total de cultura, uma forma completa de entender o mundo que se articula como direito, como moral, como política, como economia etc. O considerado justo ou correto não era de acordo com algum tipo de lei que pudesse ser diferente da religião, pois a religião era a própria lei; aliás, só se pode falar de “uma religião”, como algo separado das outras esferas da vida, no próprio capitalismo, vez que só neste os vários aspectos da vida se fragmentam e se autonomizam. O mesmo fenômeno que no passado podemos atribuir o nome de religião pode igualmente ser compreendido com o nome de cultura, pois representa o todo indistinto da visão de mundo das pessoas em determinada sociedade e não uma opção de crença desvinculada de outros conjuntos da vida social, como hoje, que a religião é um aspecto tão subjetivo - e por vezes menos importante – que a escolha de um time de futebol. Nos primórdios das sociedades humanas, quando o homem começava a desenvolver a linguagem e com ela a sua consciência, a representação do mundo era dominada por elementos que hoje consideraríamos místicos, ilusórios. Na infância da humanidade, para nossos ancestrais, cada ser vivo e cada objeto tinha uma anima (uma alma, uma vontade). Tudo tinha alma, pois o próprio jeito de entender a existência de algo era atribuindo-lhe uma; como hoje, ainda, para podermos transportar o significado de algo, precisamos de um nome. A mera atribuição de uma alma para cada coisa é um avanço da consciência que possibilita conhecer cada coisa em separado. Quando o homem entende que sua alma não é forte para vencer a alma da árvore, mas que quando FORMAÇÃO TEÓRICA A CRÍTICA RADICAL DA RELIGIÃO É A CRÍTICADO ATEISMO THIAGO LION E THIAGO CALHEIROS * 7

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Em relação ao tema “religião”, apostura “mais avançada” dos críticos temsido sempre a do “ateísmo”, se opondo aofenômeno religioso. Essa postura de simplesnegação, porém, além de não compreendero próprio fenômeno religioso, apresentalimitações na compreensão da própriarealidade que possibilita a existência dareligião. Deste modo, o crédulo ateu nãopode compreender que a própria realidadena qual ele vive é também metafísica, tãoreligiosa e incoerente quanto às religiõesque combate. Deste modo, pretendemosdemonstrar que a crítica radical de basemarxiana constitui-se igualmente em críticado ateísmo. Esperamos, com isso, retiraralguns preconceitos que se tornam umimpeditivo a priori para a militância utilizaro que há de emancipador por debaixo doinvólucro místico das religiões.

O “MECANISMO” DA RELIGIÃOPode-se dizer que o mecanismo básico

de funcionamento da religião é a alienação,ou seja, a transferência para outro ser deseu destino, de seu controle, de sua essência.Este outro ser, a divindade, é, no entanto,criado pela projeção das próprias relaçõessociais entre os homens. Na religião, oshomens acabam por substituir suaautoconstrução consciente por um sercriador de si mesmo. Até aqui em quasenada diferimos do ateísmo em seu sentidotradicional, vez que deus aparece até agoracomo algo subjetivo, que depende dasubjetividade humana para existir. Estesubjetivismo religioso se opõe ao mundoreal, onde as coisas acontecem de fato enão apenas em pensamento, o quejustificaria a caracterização da divindadecomo um mero delírio.

Tomando as religiões como meraalienação subjetiva, o ateísmo não consegueperceber que elas têm um sentido dedesenvolvimento na história que vai dereligiões mais simples para mais complexasno desenvolvimento do mundo doshomens. Como os ateus veem o divinocomo algo do pensamento e não darealidade (onde deus “não existe”), deixamde, por vezes, procurar na própria realidade

a causa da formação de tal imaginação nocérebro e na vida do homem. Nãocompreendem assim como a própriareligião é um fenômeno constituído econstituidor dessa própria realidade. Nãopercebem como essa mesma realidade épor si “religiosa”. A pergunta maisimportante para o esclarecimento nãoé a clássica “Deus existe?”, mas sima que, superando este ponto, acaba porquestionar: Por que o homem sealiena? Por que ele acredita ter sidocriado pela divindade que ele mesmocriou? Como uma idéia que ele mesmocria “adquire vida”, torna-se relaçãosocial e passa a lhe dominar? A respostapara isso não pode ser dada a partir daconstatação de casos individuais deconversão, como, por vezes, o sensocomum busca fazer. Para entendermos averdade da religião temos que recorrer àanálise histórica, levando em conta aestrutura das sociedades que deram origemàs diversas representações religiosas demundo. A história das religiões é a históriadas formas de representação do mundopelas sociedades; compreendendo odesenvolver das religiões, entende-se odesenvolver da consciência do homem,abrindo-se a porta para uma crítica dopróprio caráter irracional da forma atualde representação do mundo, inclusiveaquela que se apega ao ateísmo.

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DASRELIGIÕES

A divindade é criada na mente daspessoas, mas não na de uma só e simnas mentes e relações sociais doconjunto das pessoas que vivemaquela realidade social. Em sua história,os homens quase nunca puderam escolheruma religião. A escolha livre de religião éum fenômeno tipicamente moderno. Issoporque nos tempos passados a dita“religião” é uma forma total de cultura,uma forma completa de entender o mundoque se articula como direito, como moral,como política, como economia etc. Oconsiderado justo ou correto não era deacordo com algum tipo de lei que pudesse

ser diferente da religião, pois a religião eraa própria lei; aliás, só se pode falar de “umareligião”, como algo separado das outrasesferas da vida, no próprio capitalismo, vezque só neste os vários aspectos da vida sefragmentam e se autonomizam. O mesmofenômeno que no passado podemos atribuiro nome de religião pode igualmente sercompreendido com o nome de cultura, poisrepresenta o todo indistinto da visão demundo das pessoas em determinadasociedade e não uma opção de crençadesvinculada de outros conjuntos da vidasocial, como hoje, que a religião é umaspecto tão subjetivo - e por vezes menosimportante – que a escolha de um time defutebol.

Nos primórdios das sociedadeshumanas, quando o homem começava adesenvolver a linguagem e com ela a suaconsciência, a representação do mundo eradominada por elementos que hojeconsideraríamos místicos, ilusórios. Nainfância da humanidade, para nossosancestrais, cada ser vivo e cada objeto tinhauma anima (uma alma, uma vontade). Tudotinha alma, pois o próprio jeito de entendera existência de algo era atribuindo-lhe uma;como hoje, ainda, para podermostransportar o significado de algo, precisamosde um nome. A mera atribuição de umaalma para cada coisa é um avanço daconsciência que possibilita conhecer cadacoisa em separado. Quando o homementende que sua alma não é forte paravencer a alma da árvore, mas que quando

FORMAÇÃO TEÓRICAA CRÍTICA RADICAL DA RELIGIÃO É A

CRÍTICADO ATEISMOTHIAGO LION E THIAGO CALHEIROS *

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unida à alma da pedra é possível vencer,ele estabelece uma relação de causalidadeentre usar uma coisa (pedra) paraderrubar outra (árvore). Assim elesignifica e articula relaçõesincompreensíveis para quem ainda nãoidentifica todos os seres como portadoresde uma alma, como “algo” que existe.

Quando uma tribo de coletoresprimitivos encontra cereais selvagens eos consome, devolvendo parte para aterra de onde o cereal brotou, percebemque mais cereal brotou na estaçãoseguinte. Assim, formam-se os mitosligados à origem da agricultura. Forma-se, assim, um ritual para os deuses danatureza, um ritual que a nossos olhosseria irracional, mas que representa umavanço geral na consciência do homemem relação aos estágios anteriores,articulando uma causalidade que permiteo início da agricultura, abrindo as portaspara o surgimento da civilização. Arepresentação destes níveis dedesenvolvimento cultural muitoprimitivos não são mera ilusão, mas sãoformas reais de conhecimento dofuncionamento do mundo, a descobertade uma causalidade antes nãoconhecida. Aqui não se podecaracterizar os mitos como merodelírio subjetivo, eles não são umconhecimento falso do mundo; osmitos representam a verdade destepróprio mundo dos homens, o quetambém é, por outro lado, um dadonível novo de esclarecimento sobreo funcionamento deste. Se, para osateus, isso parece delírio é só porqueeles estão tão crentes de sua verdadee de sua ciência que ficaram cegos.Esta cegueira, a cegueira do dogma,justamente a que pensam combater,os coloca no mesmo nível do cristãoque critica o pagão, do jesuíticocolonizador europeu que entendeu ascrenças indígenas como absurdas.Esta cegueira impossibilitacompreender como a própriarealidade é até hoje metafísica, comoainda se sustenta por ídolos criadospelo próprio homem.

A forma de representação totêmica,existente nas sociedades mais primitivasem que o homem ainda está muitosubmerso na natureza, é substituída poroutra forma de entendimento do mundoquando começam as primeiras civilizações.De uma tribo que produz coletivamentea sociedade adquire pouco a pouco uma

forma hierarquizada onde há a exploraçãode uma classe social por outra. A produçãode excedente entãoalcançada possibilita que surja toda umaclasse social que sobreviva à custa de outra.As primeiras grandes civilizações do Egito,Mesopotâmia e China têm formaçõessociais com líderes despóticos, gerandouma nova forma de representaçãoreligiosa. Todo poder da comunidade,antes projetado no totem (uma árvore ouum canguru, por exemplo), agora éprojetado em um homem e refletidosecundariamente sobre outros integrantesde sua classe social. Há assimuma inversão, e o que é fruto dodesenvolvimento social, dodesenvolvimento coletivo, pareceagora derivar de algumas figuras(pessoas) que se tornam deuses. Omundo passa a ser visto como um todocomandado por uma divindade encarnadana figura do rei – um faraó com umséquito de súditos igualmente sobre-humanos. Estas figuras em geralantropomórficas (corpo de homem ecabeça de animal), não escondem seusresquícios ainda não eliminados da épocatotêmica. Tais formas animais serãocompletamente apagadas quando oshomens não estiverem mais submetidos aum único rei, mas quando astransformações sociais os impelirem acomeçar a produzir por sua própria contapara vender em um mercado onde possamexprimir sua vontade como comerciantesem pé de igualdade – colocando assim umarelação de identidade clara entre oshomens e em oposição ao resto da natureza.Esta identidade entre homens é que entãopassará a ser projetada por sua consciência.

Com o começo da produção empequenos clãs possibilitada pelo domínioda metalurgia do ferro, entre os gregossurge um panteão de deuses que refleteeste novo avanço. Sua representaçãoreligiosa cria deuses com feiçõeshumanas, deuses que representamrelações, desejos e atributos claramentehumanos. É que a sociedade já se afastaratanto da natureza que não se identificamais com o restante do mundo natural,e novos sentimentos, que se tornarãopróprios da humanidade a partir destemomento, surgem projetados nos deuses.Estes sentimentos representados pordeuses, no entanto, não deixam dúvida:são na realidade sentimentos que estãonascendo nos humanos, mas que estessó podem compreender vendo-os

projetados na divindade. Na Gréciaantiga, por volta do século VIII A.C,surge Diké, a deusa da justiça querepresenta a igualdade em oposição àdivindade mais antiga, a Titã Thêmis,encarada como a justiça da nobreza, quese pautava por relações servis desiguais,guardiã do justo como tradiçãodependente da linhagem. Esta forma deluta ideológica projetada nos deuses é elamesma a luta entre a classe doscamponeses e dos mercadores (quecomeça a surgir) e seu ideal de igualdade(dos quais o comércio depende) emoposição à antiga nobreza, que defendiaseu privilégio, visto como algo divino.

O processo de desenvolvimentoda religião é, antes de qualquer outracoisa, um processo deautoconhecimento do homem, noqual ele capta a realidade a partir daprojeção de sua organização social.Quanto mais se desenvolve o homem,mais esta projeção das qualidadeshumanas pela identificação do homemcom seu gênero, e não com a natureza,se torna nítida, e mais os deuses assumemformas humanas. No cristianismo, talveza mais “desenvolvida” das religiões, esteprocesso alcança um ponto em que semostra de maneira ainda mais clara: aprojeção da humanidade na divindadeacaba gerando Jesus Cristo, um deusnascido de uma humana e que existe soba forma humana de carne e osso. Ohomem se vê em Jesus, ele vê seu reflexocomo humano, mas um reflexo aindavirado de ponta-cabeça, pois o humanolá revelado, ainda que de carne e osso, seprojeta como Deus. No sacrifício deCristo, se mostra simbolicamente a culpaque todos temos e pela qual ao mesmotempo não somos responsáveis; a culpagerada pelo fetichismo que nos controlae que, assim, fazemos sem saber. Amar opróximo como a si mesmo, tolerar, dividiro pão, essa é a boa nova que deve serpraticada e ensinada a todos para quesejamos salvos. Essa é a mensagem quedeu origem no começo de nossa era aocomunismo cristão primitivo, e que, noessencial, desvencilhada do invólucromístico, não difere daquele que será olema de uma sociedade emancipada “decada um conforme sua necessidade, acada um conforme sua capacidade”.

Conforme se vê, o fenômenoreligioso, aqui, não é um falseamentoda realidade, não é uma mera ilusão,antes é um avanço na forma de

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interpretação do mundo por contados avanços da própria sociedade –constituindo assim uma formahistoricamente válida e real deconhecimento do mundo. É claro que,com novos passos de entendimento darelação da natureza, a manutenção deformas anteriores de entendimento torna-se uma contradição reacionária – emesmo mera ilusão subjetiva, o que nãoeram no passado.

O caráter progressista que pode seratribuído ao ateísmo encerra-se na críticadesta contradição, pois num mundo ondeo agir religioso se mantém pela emulaçãodas práticas mercantis (numa verdadeirasubsunção dos preceitos religiosostradicionais à vida mercantil) ou mesmonuma sociedade em que o agir religiosotradicional praticamente já desapareceu(no sentido de uma vida de acordo coma religião e não meramente de ir às missasao domingo) aparece o ateísmo comouma irracionalidade também gigantesca,quando o mesmo continua a se limitar adizer “o deus metafísico não existe”. Istoé, por si, se colocar no mesmo âmbito“dos céus”, tal qual o religioso; quandoque, verdadeiramente, o que deve serfeito é uma crítica “terrena da terra”.

A RELIGIÃO DE NOSSOS DIASEm nossos dias a religião se torna

cada vez mais um fenômeno subjetivo,ligado às preferências individuais de cadapessoa. O caráter obrigatório anterior,com o qual as diversas formas de religiãose originaram, já desapareceu. A vidaprática é cada vez mais determinada pelomodo de funcionamento do capitalismo– as pessoas têm que ter um emprego,têm de obedecer às leis do Estado emcujo território estão, seguem uma formalógico-sistemática de pensamento nosestudos, etc. Sobra para a religião o espaçona mente daqueles que “crêem”; a fédeixa de ser um fenômeno socialimperativo e assume assim uma forma

individualizada. Hoje, mesmo o maisfiel cristão não consegue cumprir umdécimo do que a bíblia prescrevecomo modo de vida exemplar, e issonão porque não queira, mas porqueé impossível sequer comer nos diasatuais sem estar diretamenteconectado à prática capitalista emsuas categorias básicas comodinheiro, trabalho, direito, ciênciaetc. O cristão já não é mais seguidorda mensagem libertadora de Cristo,mas da reinterpretação do que há demístico em sua figura a partir doimperativo capitalista do lucro. Nãolhe importa mais a solidariedade, atolerância, a divisão de seus benscom todos, mas sim enriquecer,acumular. Por isso, diz o filósofo epsicanalista Wilhelm Reich, quehoje, se voltasse à terra, quemassassinaria Jesus Cristo seriam ospróprios cristãos.

A prática religiosa foi desbancadapela prática mercantil; mas como esta éa prática do individualismo, é possívelmanter a religião como algo individual –contanto que não atrapalhe ofuncionamento do sistema econômico; ouseja, que fique restrita só ao pensamentoou mesmo sirva para manter eaprofundar o sistema então vigente. Acrítica ateísta se preocupa em combatereste pensamento que ainda se colocacomo véu na mente de muitos, mas elaprópria não se dá conta de que a práticareligiosa em seu sentido tradicional jádesapareceu e outra prática, igualmenteincoerente, tomou seu lugar. Na lutacontra a incoerência, que é a parte dareligião criticada pelos ateus, o querealmente importa é criticar a prática quepossibilita o individualismo e o capitalismocomo um todo, que possibilita amanutenção da incoerência. É penetrarno que ainda há de religioso em nossaprópria prática, mas não no religioso nosentido estritamente divino, e sim no

sentido real de umaprojeção social quegera uma alienação,um controle cego danossa sociedade poralgo que nós mesmosc r i a m o sinconscientemente.Aqui o ateísmo nãotem nada a dizer, poisapenas declara a nãoexistência daquilo

que já não existe. É preciso trazer adescrença para a própria prática do ateupossibilitando perceber nela a alienação.

Na divindade o homem aliena ocontrole de sua vida para uma ideia queele mesmo criou conforme seu convíviosocial; no capitalismo, um fenômenomuito parecido opera cotidianamente. Ascoisas que o homem produz com seutrabalho acabam, uma vez produzidas sobesta determinada forma, dominando ohomem – do mesmo jeito que sua ideiaantes o dominava. Isso se dá não apenasno sentido classicamente afirmado de quea máquina domina o homem – e assim ocapital domina o trabalho, mas em sentidomuito mais profundo. A relação socialmercadoria é uma relação humanade comparação abstrata entre ascoisas, efetuada por meio da troca,que acaba por projetar nestesprodutos um valor, seu “parâmetrode comparabilidade”. O valor não éalgo próprio da matéria, não é algofísico e nenhum cientista conseguirávê-lo com um microscópio, pois eleé a projeção de um tipo de relaçãosocial sobre as coisas, que assim setornam mercadorias. Em umacomunidade primitiva, o produto dotrabalho não era trocado; assim, ascoisas não se apresentavam comotendo um valor (uma certaquantidade de trabalho, representadapelo dinheiro). Com o comércio, inicia-se esta projeção que dominará toda asociedade com a chegada do capitalismo;o capital (uma relação social caracterizadacomo utilização do dinheiro para gerarmais dinheiro) decide nosso destino. Pelaprópria prática das pessoas no mercadoas coisas se tornam portadoras de valore assim os homens se relacionam por meiodas coisas, como se esta fosse a única formapossível de ser. De modo similar, relaçõessociais pré-capitalistas projetavam, pelaprópria prática das pessoas, a aparênciade que o mundo era habitado pordivindades que estabelecem o destino dasociedade. Nos dois casos, as relaçõessociais projetam uma forma deentendimento do mundo que servejustamente à manutenção daquelasmesmas relações, que aparecem comodecorrências naturais, ou “justas”, masque uma análise mais profunda revelacomo incoerentes.

Tentando ser mais claro: aalienação religiosa é a projeção dasrelações sociais na ideia de uma

“ HOJE, MESMO O MAIS FIEL CRISTÃO NÃO

CONSEGUE CUMPRIR UM DÉCIMO DO QUE A BÍBLIA

PRESCREVE COMO MODO DE VIDA EXEMPLAR, EISSO NÃO PORQUE NÃO QUEIRA, MAS PORQUE ÉIMPOSSÍVEL SEQUER COMER NOS DIAS ATUAIS SEM

ESTAR DIRETAMENTE CONECTADO À PRÁTICA

CAPITALISTA EM SUAS CATEGORIAS BÁSICAS COMO

DINHEIRO, TRABALHO, DIREITO, CIÊNCIA ETC ”

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divindade, que aparece como setivesse criado a humanidade – e nãoo contrário. A sociedade passa a serdominada de fato por meio destaideia que ela mesma criou, e passa aseguir rituais, sacrifícios (inclusivehumanos) etc. No capitalismo, asrelações de troca conduzidas peloshumanos, fazem as coisas terem umvalor (uma propriedade que elasfisicamente não têm, senão por meioda própria ação humana) e gerar o“mercado”, que acaba por dominartoda a sociedade. O mercado, para oqual são produzidas todas as coisas,aparece como uma vontadeindependente dos homens, como setivesse vida e até humor próprio. Saltaaos olhos a cega ideia de que o mercadoseja o promotor do “bem comum”, queem qualquer tempo ou situaçãoassegurará o melhor a todos por meio desua “mão invisível”, termo que por si járevela um dogma de perfil tipicamentereligioso. Muitos, como os defensores deum “estado de bem-estar social”,percebem a irracionalidade do sistemaneste nível, mas ao invés de criticá-la eavançar para construir algo novo quesupere tal estado de coisas, advogam umnovo tipo de ritual para agradar os ânimosdo Deus-mercado – criar trabalhodesnecessário, ou necessário apenas doponto de vista da própria criação de valorabstrato. A tosca afirmação de que omodo atual de funcionamento dasociedade é derivado da própria naturezaé só uma atualização do mito de que ascoisas são como são por vontade divina– nos dois casos os homens afastam suaresponsabilidade na construção de suaprópria realidade, projetando-a para oexterior, seja para Deus ou para oMercado.

O mercado e seu domínio abstratonão se limitam à própria economia. Asdecisões em todas as instâncias e áreassão baseadas nas “vontades” destemecanismo abstrato, umaverdadeira divindade prática. Tudo emnossa sociedade é feito no intuito de gerarmais dinheiro e não de diretamente suprirnecessidades humanas. Na relaçãosocial mercadoria, o produto da mãodo homem passa a dominá-lo comose fosse de uma realidadeindependente da ação dos sujeitos,algo inescapável. Este fetiche queestá na cabeça dos homens controlasua vida social, pois são suas próprias

relações sociais, decidindo mesmosobre a vida e a morte. Hoje maisde um bilhão de pessoas passamfome e única razão para isso é que aprodução de comida para eles nãoé tão rentável quanto a de artigos deluxo. Esta abstração que existe narealidade é ela mesma criada pela práticasocial dos homens e não um fenômenonatural e inescapável, algo independentede nossas relações. De modo similar aoque as pessoas eram atiradas à fogueirana inquisição, por conta de uma crençacega em deus oriunda da própria práticainconsciente dos homens, no capitalismo,pela própria prática por nós reproduzida(que nos aparece como algo existente porsi só) milhões morrem de fome. Nossasociedade ainda não é conscientementeadministrada, mas antes guiada por umente abstrato, o mercado, que nós mesmoscriamos, mas não controlamos. Este entederivado de nossa própria prática ésemelhante ao primitivo totem, semelhanteàs várias divindades que guiaram nossavida por entre os séculos, umarepresentação fetichista das relações quenós mesmos reproduzimos, algoque fazemos sem saber.

Assim, podemos dizer que odesenrolar histórico da religião é odesenrolar das formas decompreensão de relações sociais quelhe deram causa. Declarar a nãoexistência do divino não basta; énecessário compreender como elesurgiu, se desenvolveu e desapareceuna história. Por detrás darepresentação, há uma história real dasrelações nas sociedades e dodesenvolvimento da consciênciahumana. Compreendendo-se o feticheexistente na religião, facilita-se acompreensão do fetiche em suasmisteriosas formas “terrenas”, comoo mercado, o Estado,o direito, o dinheiroetc. Adentrar aqui emprofundidade na baseteórica que permitec o m p r e e n d e rconjuntamente todosestes fenômenos, acrítica dochamado fetichismoda mercadoria, noentanto, só tornariamais confusa aexplicação deste tema jámuito amplo e

complicado. Deste modo, contentamo-nosaqui em explicitar a inconsciência de nossaprática social, deixar evidentes asincoerências “religiosas” de nosso modo deser no mundo, para que o ateu entenda ofetichismo de sua própria posição e liberte-se de seu preconceito.

Na luta pela superação daexploração precisamos do apoio de todasas tendências que historicamente contraela se levantaram; precisamos de umafrente ampla a favor da socialização, dasolidariedade. O cristianismo representa,em sua mensagem original, um poderosoargumento contra a exploração. Por quea esquerda crítica não consegue utilizareste discurso que a princípio lhe seria tãofavorável? Entre outros motivos, isto sedeve a seu preconceito de tomar oessencial do fenômeno religioso não comoforma de consciência, mas comomistificação. Assim se nega a priori comoilusão, como delírio, todo o conhecimentoque a humanidade reuniu por milênios nanarrativa religiosa. Nega-se também acompreensão do fetichismo da mercadoria,espécie de fenômeno religioso queconstitui a base de funcionamento dopróprio capitalismo, e, talvez, ainda pior:nega-se ao debate ideológico por dentroda religião, deixando para a direitacapitalizar politicamente os que creem eque ainda representam a esmagadoramaioria da população. Ainda: isola edesmobiliza aqueles progressistas erevolucionários que tem algum tipo decrença religiosa, colocando a identidadecomo ateu antes da identidade comopessoa que quer superar o capitalismo.Esperamos ter contribuído para acabarcom este preconceito.

*Adaptação reduzida, por ThiagoCalheiros, do artigo Para a Crítica doAteísmo, de Thiago Lion, com revisão dopróprio autor.