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Formação de Quadros Para o Setor Cultural

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n. 06�008

Viagem para Dentro, Maria Bonomi,�975xilogravura, P.A.�60 x 86 cm

Integra o acervo do Banco Itaú S.A.Reprodução fotográfica: João L. Musa/Itaú Cultural

SUMÁRIO

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AOS LEITORESApresentação dos temas da revista

OS FAZERES E OS SABERES DOS GESTORES DE CULTURA NO BRASILEspecialistas refletem sobre as profissões culturais no Brasil

OS PROFISSIONAIS DA CULTURA: FORMAÇÃO DE QUADROS PARA O SETOR CULTURALEntrevista com José Márcio Barros

ESPETÁCULO SEM SOCIEDADESergio Miceli comenta o livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: MAIS UM DESAFIO PARA O SETOR CULTURALMaria Helena Cunha, especialista em planejamento e gestão cultural, indica bibliografia para a formação de gestores culturais

COOPERAÇÃO INTERNACIONALUniversidade de Girona e Observatório Itaú Cultural preparam convênio para qualificação de gestores culturais

FORMAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO DA CULTURA NO BRASILAntonio Albino Canelas Rubim

A GESTÃO CULTURAL E A QUESTÃO DA FORMAÇÃORubens Bayardo

PROFISSIONALIZAÇÃO NO CAMPO DA GESTÃO PÚBLICA DA CULTURA NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS: UM QUADRO CONTEMPORÂNEOLia Calabre

UMA ABORDAGEM MULTIDIMENSIONAL PARA A ATIVIDADE CULTURALLeonardo Brant

AGENDA EUROPÉIA PARA A CULTURA

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Revista Observatório Itaú Cultural / OIC - n. 6, (jul./set. �008). – São Paulo, SP : Itaú Cultural, �008.

Trimestral ISSN �98�-��5X

�. Política cultural. �. Gestão cultural. �. Economia da cultura. �. Consumo cultural. 5. Instituições culturais. I. Observatório Itaú Cultural.

CDD: �5�.7

[email protected]: André Seiti/Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural

EditorMário Mazzilli

Editora-assistenteRosane Pavam

Projeto gráficoCarolina Tegagni

Revisão de TextosKiel Pimenta

Colaboradores desta ediçãoAlbino RubimDanilo MirandaJosé Márcio BarrosLeonardo BrantLia CalabreMaria Helena CunhaRubens BayardoSergio Miceli

[Esta revista foi organizada e diagramada pela equipe do Instituto Itaú Cultural]

A revista Observatório Itaú Cultural é distribuída gratuitamente a institutos culturais, bibliotecas, centros de pesquisa e universidades.

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Na última matéria da primeira parte da revista, Albino Rubim, professor titular da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, apresenta um ensaio em que discute a formação de gestores culturais, ou, como ele afirma, “de profissionais dedicados à organização da cultura”, no âmbito de uma reflexão das configurações da cultura na atualidade.

Artigos

A segunda parte da revista apresenta três artigos especialmente encomendados a especialistas que, com base em experiên-cias muito diferenciadas, demonstram sua familiaridade com a problemática de capa-citação profissional para o setor da cultura.

O artigo do professor Rubens Bayardo, diretor do programa de antropologia da cultura, da universidade de Buenos Aires, discute a gestão cultural como mediação. Para ele, é essa mediação entre atores e disciplinas que torna possível a produção, a distribuição, a comercialização e o consumo dos bens e serviços culturais e, ao mesmo tempo, articula criadores, produtores, promotores, instituições e públicos para formar o circuito no qual as obras se materializam e adquirem seu sentido social.

Esta edição da revista Observatório Itaú Cultural concentra-se nos desafios que o setor público e as instituições privadas enfrentam para a formação e qualificação de profissionais no campo da cultura. Para compor o conjunto de matérias e artigos sobre o tema central da revista, procuramos ouvir especialistas do Brasil e de outros países e assim oferecer aos nossos leitores um panorama das principais discussões e reflexões contemporâneas sobre esse tema.

A matéria de abertura apresenta os prin-cipais resultados de entrevistas realizadas com pesquisadores e responsáveis por organizações culturais brasileiras sobre o perfil de um dos profissionais-chave do setor: o gestor cultural. Cabe a ele, en-tre muitas outras atribuições, promover a produção de bens culturais e facilitar a sua circulação, cuidando para que o aces-

so público a esses bens seja garantido. Apesar das diferenças conceituais e meto-dológicas para a definição do perfil desse profissional e do escopo de sua atuação, a maioria dos entrevistados concorda que esse ainda é um profissional raro no Bra-sil, sendo sua formação uma necessidade urgente para o setor.

O texto a seguir é uma entrevista com o professor José Márcio Barros, da PUC Minas e do Observatório da Diversidade Cultural, ambos sediados em Belo Horizonte. José Márcio Barros transmite aspectos de sua diversificada experiência como responsável por programas voltados à informação, à capacitação e à experimentação das possibilidades de atuação de gestores culturais, arte-educadores, artistas e outros agentes do campo da cultura.

As duas matérias seguintes tratam de sugestões muito qualificadas de leitura. Na primeira, Sergio Miceli, professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, assina uma resenha crítica sobre o livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, um clássico contemporâneo que teve uma nova edição lançada no Brasil em �008. Sergio Miceli é um dos mais experientes sociólogos da cultura brasileiros, autor entre outros, dos livros Intelectuais à Brasileira (São Paulo, Cia. das Letras, �00�, �008) e Nacional Estrangeiro, História Social do Modernismo Artístico em São Paulo (São Paulo, Cia. das Letras, �005). Nesta resenha, antes de analisar o texto de Debord, apresenta um breve perfil biográfico do autor, que ilumina a compreensão de sua principal obra, tanto para os leitores mais jovens quanto para aqueles que já se acostumaram a encontrar em A Sociedade do Espetáculo, chaves para compreensão da realidade social contemporânea.

A professora Maria Helena Cunha, especialista em planejamento e gestão cultural, indica bibliografia para a formação de gestores culturais, comentando uma seleção de títulos que colocam indagações e reflexões no âmbito político, social, administrativo, econômico e histórico sobre a realidade atual do desenvolvimento das atividades culturais.

A matéria seguinte apresenta algumas das características do convênio de cooperação internacional que está sendo definido pelo Observatório Itaú Cultural e pela Universidade de Girona, na Espanha, no âmbito da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Cooperação. Trata-se de iniciativa que permitirá a pesquisadores brasileiros participar de cursos e outras atividades de formação oferecidos por um dos mais tradicionais centros europeus de pesquisa de políticas públicas para a cultura.

AOS LEITORES

imagem: Cia de Foto

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Lia Calabre, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora de Políticas Culturais do MBA de Gestão Cultural da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, dedica seu artigo à análise das configurações da gestão pública da cultura nos municípios brasileiros e dos profissionais que aí atuam. Para ela, a grande tarefa que se apresenta para o conjunto do setor público municipal é a de buscar as ferramentas e a qualificação dos agentes envolvidos nos processos de produção cultural.

No último artigo da revista, o consultor e pesquisador de políticas culturais Leonardo Brant destaca as transformações pelas quais passou o conceito de cultura desde o início do século XX até os dias atuais, para explorar as novas dimensões e as novas dinâmicas que a cultura contemporânea pode incorporar.

Finalmente, a segunda parte da revista publica a “Agenda Européia para a Cultura”, um documento oficial da União Européia aprovado em maio de �007.

A agenda expressa, no campo institucional, o crescente protagonismo que a cultura vem assumindo, em anos recentes, nas mais diferentes esferas da sociedade civil. Acompanha a forte tendência observada na Europa e em outras regiões do globo de conferir atenção redobrada ao setor cultural, seja por seu valor intrínseco, seja pela relevante função social, econômica e política de que se reveste.

Produção e acesso à cultura são discussões que se tornaram centrais no Brasil de tempos recentes. O que é popular continua a ser produzido e aceito em escala local. E o que não é, o produto nascido da elaboração industrial, e que resulta em cinema, artes plásticas, livro, teatro e música, entre outras manifestações culturais, enfrenta dificuldades para encontrar canais de distribuição e consumo em todo o território brasileiro.

Os gestores da cultura são as figuras centrais para que esse quadro se modifique. Baseados em diretrizes governamentais e particulares, nascidas de leis e editais, eles têm as armas para modificar esse quadro de empobrecimento. Não só agem em prol da produção de bens de cultura, a parte sensível dessa cadeia, mas cuidam para que o acesso a eles se transforme em realidade. Esses profissionais, contudo, ainda são raros no Brasil. Sua formação é uma necessidade urgente detectada por poucos e bons especialistas da área em todo o país.

O médico Albino Rubim� entende há algum tempo que, para ser efetiva, a cultura brasileira necessita de planejamento constante. Nas últimas duas décadas, Rubim trocou a medicina por esta nova espécie de missão, a de comunicar a seus alunos a importância de participar da cadeia cultural em outro nível que não apenas o criador.

OS FAZERES E OS SABERESDOS GESTORES DE CULTURA NO BRASIL

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� Ver artigo de Albino Rubim na página �7 desta edição.

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A experiência do mercado

É uma posição firme, não compartilhada por um gestor público de cultura como o gerente do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB Rio), Marcos Mantoan. “Penso que não se trata de associar leis de incentivo cultural à eventual escassez de diretrizes públicas”, ele afirma. Não são, a seu ver, fatores excludentes, já que, como ele o vê, o fenômeno é universal, antes de se apresentar exclusivamente brasileiro.

“As empresas se tornaram atores importantes na promoção da cultura e nossa realidade, hoje, é afetada pelas estratégias de marketing das corporações”, defende Mantoan. “A formação de gestores culturais, portanto, tem a ver com a complexidade desse cenário de muitos atores, muitas interlocuções: poder público, empresas privadas, movimentos sociais organizados, universidades. A formação de profissionais em nível público

Esferas complementares de atuação

Ele entende que, entre os organizadores, existem três perfis principais. O primeiro deles seria preenchido por quem formula e implementa as políticas culturais em uma categoria que se pode entender como executiva. Secretários e ministros seriam os titulares desse empenho. E, a fazer valer essas diretrizes, tirando delas o melhor proveito, haveria os gestores e os produtores culturais.

Rubim vê o gestor não como aquele que formula ou implementa diretrizes culturais, mas como o profissional que está à frente de projetos permanentes de cultura. O produtor cultural, por seu lado, organizaria projetos específicos e descontinuados no tempo, dentro ou fora da esfera governamental.

A confusão entre os papéis do gestor e do produtor nasceu de uma característica

Professor da Universidade Federal da Bahia responsável pelas cadeiras de políticas da cultura e da comunicação, em graduação, e por políticas culturais, no curso de pós-graduação, Albino Rubim promove cursos acadêmicos em que está implícita a necessidade de formar o profissional que tornará possível o exercício da arte no Brasil. Rubim é o responsável por organizar anualmente o encontro internacional de estudos multidisciplinares de cultura na Bahia. E, de forma permanente, ele informa os pesquisadores em políticas culturais por meio da revista on-line www.politicasculturaisemrevista.ufba.br.

Para que um sistema cultural funcione, entende Albino Rubim, há vários atores. Os primeiros seriam os inventores, ou criadores, responsáveis pelo nascimento do produto cultural. Em seguida viriam os que preservam aquilo que foi feito pelos inventores: são os museólogos e outros profissionais com o intuito de manutenção. Existem, a seu ver, também os que agem no plano de transmissão da cultura, como jornalistas e educadores. E há aqueles que organizam a cultura em vários níveis.

brasileira, ele crê. Depois de anos em que a produção cultural foi desmobilizada, a partir da administração presidencial de Fernando Collor de Melo, entre �990 e �99�, só se ouviu falar da figura do produtor, enquanto, em toda a América Latina, o entendimento era o de gestor da cultura. E isso teria ocorrido no Brasil porque aqui o Estado se ausentou de fomentar a produção cultural. No lugar dele, entrou em cena a lei de incentivo cultural, para a qual o produtor é o agente pedido.

“Tenho tudo contra o fato de as leis de incentivo se verem transformadas em única política cultural para o Brasil”, afirma o professor Rubim. Na administração de Francisco Weffort à frente do Ministério da Cultura, entre �995 e �999, a idéia, diz ele, era a de fixar a cultura como um negócio a ser gerido por agentes particulares. E os negócios, como os via o ministro, seriam eminentemente desobrigados de uma continuidade. “Leis como a Rouanet não podem ocupar um lugar que não é seu. Deve haver uma política cultural a organizar a produção brasileira”, ele acredita. O produtor, no contexto único das leis de incentivo, substituiu a idéia do gestor porque a cultura teria passado a ser vista como produto de mercado, obedecendo a suas flutuações.

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tem a ver com a capacidade do Estado e, em conseqüência, dos cidadãos de intervir criticamente nessa realidade”, ele afirma.

Mantoan acredita que o trabalho em um centro cultural, ou em qualquer instituição do gênero, traduz a convergência de muitas áreas de conhecimento, de muitas especializações. A formação de gestores culturais seria um grande passo, conforme ele a avalia. As especializações se dariam em relação à gestão administrativa e orçamentária, mas não só.

Na opinião do gerente do CCBB Rio, existiria ainda a necessidade de aprofundar a formação dos programadores culturais. Isso sem que Mantoan mencione o óbvio, situado, como ele cita, no conhecimento que cada gestor deve ter de história da arte e do percurso de suas manifestações até chegar às “polêmicas expressões contemporâneas”.

O gerente do CCBB Rio diz usar uma associação conhecida para definir o gestor. “Ele é o maestro da orquestra”, afirma. Não se pode pensar em uma gestão cultural pública de longo prazo sem contar, a seu ver, com um leque bem diverso de especialistas.

Para o professor baiano Albino Rubim, os gestores podem ser classificados em âmbito público, com atuação nas secretarias e ministério, e privado, nas empresas. A formação do gestor é distinta daquela do produtor porque este, segundo Rubim, lida com um projeto cultural específico. Uma coisa, diz o professor, é um profissional formado para gerir eventos, como shows,

concertos ou exposições, e que atua dentro do perfil de produção. Outra bem diferente é o gestor, que se vê diante da necessidade de lidar com uma idéia de permanência, em atividades constantes.

O Brasil dos últimos anos parece ter o desejo de implementar uma política de cultura, embora com desacertos ocasionais. Para contribuir com a fixação de uma política de Estado cultural, desenvolver o perfil de gestores parece urgente. Eles são poucos à frente de organizações não-governamentais e associações, por exemplo. Mas quem vai formá-los?

Definir capacidades novas e novos perfis profissionais

Profissionalizar professores de gestão é uma tarefa que Rubim entende por crucial. Seus cursos, realizados no âmbito da Universidade Federal da Bahia, consideram que o professor dessa área precisa conhecer, além das leis e da redação dos projetos culturais, os problemas teóricos da cultura, sua dinâmica, as indústrias e políticas culturais no mundo, a questão da diversidade e a economia brasileira.

Os gestores formados por esses profissionais necessariamente conhecem políticas culturais no Brasil e no mundo, e dominam conteúdos importantes, como a convenção da diversidade cultural da Unesco, por exemplo. Uma das exigências essenciais impostas ao gestor é que fale a língua universal, por meio da internet e outros

profissional, intitulado Gestão Cultural: Profissão em Formação (Duo Editorial). O livro sinaliza a importância da formação de um profissional de que pouco se sabe, mas sobre o qual recaem questões essenciais de natureza cultural. “O mercado ganha complexidade a cada dia e surgem novas dimensões da cultura, no meio educacional e ambiental”, diz Maria Helena, diretora da Duo Informação e Cultura, empresa criada há nove anos, em Minas Gerais, para gerir cultura. “Não adianta abrir um centro cultural e não saber que profissional colocar lá dentro. Esse profissional é o gestor.”

Sensibilidade e visão estratégica

Para Maria Helena, o primeiro requisito que se pede a quem enfrenta a gestão da cultura é sensibilidade para entender uma manifestação artística e cultural. Só depois viria a visão estratégica da cadeia produtiva

meios. “Antigamente, só o Ministério das Relações Exteriores podia estabelecer um elo com o mundo. Hoje, qualquer cidade tem permissão, condição e até dever de se comunicar internacionalmente”, considera o professor.

Somente depois disso, ele acredita, um gestor saberá o que gerir, no Brasil e no mundo. Ele deve conhecer não somente as leis de incentivo como também toda a política de editais estabelecida por secretarias, mas também por empresas e bancos, como o Banco do Nordeste do Brasil. A captação de recursos não é restrita à iniciativa privada, ele diz. Para garantir a circulação de produtos como peças teatrais, por exemplo, está definida a necessidade, em muitos casos, de estabelecer consórcios culturais.

A historiadora Maria Helena Cunha é autora de um livro fundamental e quase único, no Brasil, para o entendimento da ação desse

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definir metas e cobrar resultados.”No campo público, argumenta a professora, é fundamental compreender o timing político para a obtenção de resultados, mas, acima de tudo, torna-se necessário garantir que as políticas governamentais sejam realmente políticas públicas, ou seja, políticas formuladas pela sociedade, para a sociedade.

“O Estado deve liderar e controlar a execução dessas políticas, avaliando os resultados obtidos, sendo o grande avalista da realização das mesmas”, ela aponta. “As gestões pública e privada para a cultura, ainda que possuam objetivos distintos, tendem a se encontrar em torno da responsabilidade social e cultural. Mesmo no espaço do privado, a tendência das empresas, para o novo século, é a de considerar o marketing cultural um instrumento importante de responsabilidade social.”

Cláudia crê, como Albino Rubim e Maria Helena Cunha, que a formação para a gestão cultural é um dos grandes desafios para os gestores dessa área. Ela ainda se revela

cultural, sobre a qual ele vai atuar. É essencial a um gestor saber planejar, conhecer o processo, coordená-lo, enxergá-lo com amplitude.

Maria Helena vê o produtor cultural como alguém que caminha de mãos dadas com o gestor, sob sua coordenação. “Dentro dessa divisão profissional, ele tem a atribuição de executar tarefas”, ela crê. Ao contrário do que estabelece o professor Albino Rubim, a gestora Maria Helena não submete a função de produtor estritamente aos eventos pontuais. A seu ver, ele pode estar envolvido em projetos de longa duração; é antes um apoiador, já que fornece suporte à ação planejada da gestão. O gestor, por seu lado, teria a obrigação do raciocínio de longo prazo: “Até as empresas particulares deixaram de pensar somente em projetos pontuais. Se elas se envolvem em um festival, por exemplo, vão querer promover edições continuadas”.

Para Maria Helena, um profissional dessa área tem a “respon-sabilidade de qualificar a discussão cultural”. Ela concorda com o professor Albino Rubim quanto à necessidade de uma formação ampla e generalista para ele, e entende que também pode ser bem- vinda a especificidade técnica (um profissional dessa área pode ser um advogado, por exemplo). “O gestor tem de ler, ver filme, conhecer antropologia, sociologia, teoria cultural, diversidade”, ela ensina. “Em seguida, precisa dominar a área em que trabalhará, suas políticas.”

O gestor particular, diz ela, pode ou não atuar de mãos dadas com o produtor. “Se tiver condições, ele pedirá a um produtor que trabalhe com ele, que aja rapidamente, que vá à rua. O produtor é aquele com um decretinho no bolso, pronto para ser usado”, ela exemplifica. Situa um exemplo de atuação dentro de um seminário. Nesse caso, os gestores, como os de sua empresa Duo, formulariam o tema central, articulariam parceiros e fariam contatos com os palestrantes, além de oficialmente convidá-los para o evento que criaram. A cargo de uma empresa de produção contratada estaria o estabelecimento de uma logística de hotel, transporte, material gráfico e receptivos, para que o evento se desse com uma infra-estrutura adequada.

Na área pública, crê Maria Helena, o ponto de vista de atuação é mais abrangente. O gestor tem de interferir ali como quem estrutura uma área, um espaço a ser utilizado pela população. Ele deve se basear em pesquisas e ter a formação necessária para entender que aquilo com que trabalha permanecerá por longo prazo, mesmo após se cumprir seu período à frente da gestão.

Já o gestor privado, acredita ela, não tem como obrigação – embora fosse importante, até mesmo para sua sobrevivência – conhecer a lógica de mercado. Além de saber como se definem as políticas públicas no Brasil, precisa saber como atuam as empresas, sua visão de marketing e produção: “Ele faz a mediação entre o diálogo do mercado, o público e o artista”, ela crê.

Cultura e gestão: uma contradição aparente

Formada em direito e música e doutorada pela Sorbonne em sociologia, Cláudia Sousa Leitão tornou-se em �00� secretária de Cultura do Ceará. Hoje, é professora de políticas públicas na Universidade Estadual, em Fortaleza. Conhece, teoricamente e na prática, os problemas vivenciados pela gestão cultural. Para ela, um profissional da área deve ser alguém capaz de superar “a eterna contradição em termos, como diziam os gregos”, entre gestão e cultura.

“Ainda há mitos sobre a cultura que precisam ser desmontados. Um deles é que indivíduos que protagonizam o campo artístico e cultural não possuem competência para a gestão, e vice-versa”, ela diz. “Não vejo contradição entre essas áreas, pelo contrário, a tensão entre elas é interessante e desafiadora. Gerir significa negociar, compartilhar, sonhar, mas também liderar, tomar decisões, construir indicadores,

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vinha acontecendo por meio do Instituto Brasil Leitor, uma organização da sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos, passa agora às mãos de uma organização social empenhada em obter recursos privados, a Poiesis Associação dos Amigos da Casa das Rosas, da Língua e da Literatura.

“A organização social (OS) não deve ser julgada de forma maniqueísta, pois ela não é nem um problema nem uma solução no que se refere aos problemas relativos à vulnerabilidade da institucionalização da cultura no país”, avalia Cláudia. A OS, a seu ver, favorece o incremento de parcerias, uma maior flexibilidade de gestão, uma oferta mais dinâmica de produtos e serviços culturais, mas não viabilizará necessariamente a desoneração do Estado, no seu papel de formulador e executor de políticas públicas culturais.

“Livrarias e cafés, por sua vez, não dão nem darão sustentabilidade econômica a um museu ou a um centro cultural. Os papéis de manutenção e de produção de programas e ações para os equipamentos culturais são, prioritariamente, do Estado, embora possam também ser assumidos pela iniciativa privada”, ela crê.

No Brasil, Cláudia detecta um problema de difícil enfrentamento. O patrocínio direto das empresas em cultura, ela diz, ainda é tímido, quase sempre fruto das leis de incentivo e dos desígnios do mercado. Para esses casos, o professor baiano Albino Rubim sugere a adoção gradual de um modelo tão presente nos Estados Unidos: o do apoio ao investimento cultural por parte das pessoas físicas. Esses e outros instrumentos, a serem criados e sofisticados, ampliarão a ação de gestores e produtores no campo cultural.

insignificante no país, diante do crescimento da economia criativa, especialmente da economia da cultura. A institucionalização da cultura sugere também um grande desafio, em especial para o gestor público. “O número de secretarias municipais de cultura no Brasil é ínfimo e a compreensão dos governos sobre os significados da cultura, para o desenvolvimento local, também parece pequena. Esses desafios precisam ser enfrentados para que se reduza a vulnerabilidade do setor cultural”, ela crê.

Soluções institucionais inovadoras

Na visão de Cláudia, o Ceará é um estado marcado pelo empreendedorismo, talvez pelas dificuldades econômicas e climáticas tradicionais do seu território. No campo da cultura, em seu entender, há tecnologias sociais realmente inovadoras. Ela cita o caso do Edisca, uma escola de dança em Fortaleza, liderada por Dora Andrade, que realiza inclusão social por meio da cultura sem menosprezar a qualidade do produto oferecido. No interior do estado, cita a Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, liderada por Alemberg Quindins, que se dedica à cadeia produtiva da comunicação (rádio, audiovisual, música, história em quadrinhos etc.) e ao o protagonismo infanto-juvenil.

O Ceará, diz Cláudia, busca formas de gerir a cultura que estejam além das tradicionais. Foi o primeiro estado brasileiro a criar uma organização social para o setor cultural, o Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura. Em São Paulo, por exemplo, a administração do Museu da Língua Portuguesa, que

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Entrevista com Danilo Miranda

O sociólogo e filósofo Danilo Santos de Miranda é um dos mais experientes dirigentes culturais no Brasil e está bastante familiarizado com o desafio de formar e qualificar profissionais para o campo cultural. Completará, no início de �009, �5 anos à frente do Sesc São Paulo, instituição que ajudou a posicionar entre as principais referências na área de cultura, lazer e esporte no Brasil. Responsável pela programação de �� unidades do Sesc, �6 na cidade de São Paulo e �5 no interior do estado, Danilo Miranda sempre procurou criar agendas que combinassem artistas brasileiros iniciantes e consagrados com atrações internacionais, enriquecendo o intercâmbio entre artistas, técnicos, produtores e outros profissionais culturais.

Além de vivenciar a troca de experiências proporcionada pela programação do Sesc, Danilo Miranda participou da direção de projetos caracterizados por ampla cooperação internacional, como o Fórum Cultural Mundial, realizado em São Paulo em �00�, do qual foi presidente do Conselho Diretor, e o Ano da França no Brasil, que acontecerá em �009 em diversas cidades brasileiras e cuja programação ajudou a definir. Leia a seguir entrevista concedida especialmente à revista.

Revista Observatório Itaú Cultural: Em uma cidade como São Paulo, onde a demanda por arte e cultura parece ter crescido fortemente nos últimos anos, fica evidente o dinamismo do setor cultural. Este, por sua vez, nutre-se tanto das expressões culturais da população quanto da capacidade dos agentes e dos profissionais de cultura, entre eles o gestor cultural. Qual é o perfil ideal de gestor em sua área de atuação? Que formação, acadêmica ou profissional, ele deve ter para atuar à frente de bibliotecas, centros culturais ou festivais? Como se deve escolher um gestor para os projetos de longo prazo?

Danilo Miranda: No campo da mediação ou gestão cultural, há variações e, em minha opinião, até equívocos. Um administrador cultural não é necessariamente um militante cultural, o que também vale ao contrário. Um gestor cultural, para estar à frente de centros de lazer ou equipamentos culturais, deverá reunir diferentes habilidades, como: planejamento coerente com a política adotada; gerenciamento de recursos humanos; decisões conjuntas com a equipe sobre conteúdos; domínio sobre os conteúdos, ainda que mediano; implementação de dinâmicas diferenciadas de atendimento, interação com as comunidades.

R.O.I.C.: Apoiado em leis de incentivo cultural, mais do que em diretrizes públicas de cultura, o Brasil das últimas duas décadas assiste à necessidade de formação de profissionais intitulados gestores culturais, destinados à administração de centros e instituições com o fim de promover e difundir a arte. Professores e especialistas em práticas culturais constatam a urgência de formação de profissionais dessa natureza, especialmente no nível público. A seu ver, essa constatação procede? Devemos formar mais gestores governamentais, quiçá em nível acadêmico? E por quê?

D.M.: Concordo que há uma carência profissional que podemos, em parte, atribuir à falta de formação específica em políticas culturais. Mas também creio que há diferentes funções no universo dos serviços culturais, público e privado, que precisariam de atenção profissionalizante, como as funções intermediárias de trato direto com o público, por exemplo o monitor de atividades culturais, que desempenha um importante papel educativo, muitas vezes pautado mais por talento próprio e sensibilidade do que por habilitação. Para não haver desequilíbrio, é ideal concebermos tanto possibilidades acadêmicas para gestores públicos de cultura quanto possibilidades de formação média ou intermediária, inclusive para garantir o desempenho memorável de inúmeros militantes que existem no Brasil.

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R.O.I.C.: Para alguns analistas, o Brasil especializou-se na figura do produtor cultural, que maneja as leis e os editais em busca de promover eventos artísticos, e não na do gestor cultural público. O senhor concorda com essa avaliação? E, a seu ver, por que chegamos a esse estado?

D.M.: Os números da movimentação econômica da cultura nos últimos anos, também impulsionados pelas leis de renúncia fiscal, poderiam responder parcialmente a essas questões. No entanto, é possível transformarmos esse panorama desde que sejam feitos os ajustes para a contrapartida social dos incentivos fiscais, e seja dada continuidade aos mecanismos de oficialização pública e democrática da cultura. Isso pode significar a construção de novos equipamentos, a adaptação de outros espaços aos fins educativos da cultura, e a realização de uma política sistemática de inclusão social e educativa pelas vias da autocriatividade cultural experimentada e exercida em atividades formadoras por grandes contingentes da população urbana.

O antropólogo José Márcio Pinto de Moura Barros tem longa experiência na formação e capacitação de quadros profissionais para o setor cultural, adquirida principalmente na área acadêmica. É professor do programa de pós-graduação em comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e do curso de ciências sociais e comunicação daquela universidade, onde também dirige o Departamento de Arte e Cultura. Além de sua atuação na PUC Minas, é coordenador pedagógico dos cursos de especialização em gestão cultural na Universidade de Cuiabá (MT) e de ensino e pesquisa nos campos da arte, cultura e educação na Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais. Publicou, entre outros livros, Diversidade Cultural: Da Proteção à Promoção, recém-lançado pela Editora Autêntica, e Comunicação e Cultura nas Avenidas de Contorno, que saiu pela Editora PUC Minas em �005.

Em complemento à sua atuação na academia, coordena em Belo Horizonte o Observatório da Diversidade Cultural (ODC), programa voltado à informação, à capacitação e à experimentação das possibilidades de atuação de gestores culturais, arte-educadores, artistas e outros agentes do campo da cultura. Colabora, ainda, com organizações governamentais e privadas, como é o caso do Observatório Itaú Cultural, onde participou de seminários e outros encontros técnicos.

OS PROFISSIONAIS DA CULTURA: FORMAÇÃO DE QUADROS PARA O SETOR CULTURALEntrevista com José Márcio Barros

imagem: Cia de Foto

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Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à revista, em que são discutidos os desafios, necessidades e possibilidades para a criação de profissionais capazes de atuar com qualidade em um campo ainda distante de contar com contornos definidos, mas que se transforma e se reinventa em ritmo crescente.

Revista Observatório Itaú Cultural: O senhor é diretor de arte e cultura da PUC Minas e coordenador do Observatório da Diversidade Cultural. Pode descrever brevemente as atribuições dessas duas instituições e nos dizer quais são as principais atividades de formação e/ou capacitação de quadros para o setor cultural por elas desenvolvidas?

José Márcio Barros: A Diretoria de Arte e Cultura (DAC) da PUC Minas é um órgão auxiliar da Reitoria e foi criada em �005. Trabalhamos com as seguintes diretrizes gerais:

Formação: Realizar projetos e ações para o desenvolvimento de habilidades e práticas artísticas, competências para o trabalho com a cultura e formação de público interno e externo;Informação: Desenvolver estratégias e ferramentas de comunicação para a divulgação de idéias e atividades culturais no âmbito da universidade e dos demais setores da sociedade;Difusão: Promover a experiência de trocas culturais e ações consorciadas entre os diversos campi, unidades acadêmicas e demais instituições parceiras da universidade;Produção: Fomentar a criação artística e cultural no ambiente acadêmico e estimular o constante aprimoramento dos grupos artísticos já existentes;Gestão Estratégica: Participar da gestão do patrimônio histórico, acervo artístico e espaços culturais da universidade e das decisões relativas aos espaços de sociabilidade nos diversos campi e unidades acadêmicas.

Integram a estrutura da DAC o Museu de Ciências Naturais, a PUC TV, a Escola de Teatro da PUC Minas, o coral e um grupo de teatro experimental.

As atividades de formação são realizadas tanto como atividade regular das estruturas que integram o órgão quanto em atividades especiais na forma de oficinas e cursos. Para se ter uma idéia, a Escola de Teatro conta com aproximadamente ��0 alunos nos cursos de iniciação profissionalizante e infantil. A PUC TV, por seu lado, constitui-se como um espaço de aprendizagem de TV e vídeo que atende aproximadamente �0 alunos semestrais. A própria DAC realizou no primeiro semestre de �008 cursos e oficinas de dança contemporânea, pandeiro, canto a capela, cinema brasileiro, iniciação ao desenho etc. No segundo semestre, oficinas de clown, haicai e história do rock e da MPB. As atividades atendem aos alunos da universidade e aos demais interessados, e atingem Belo Horizonte e outras cidades onde a PUC Minas se encontra.

Imagem: Cia de Foto

Já o Observatório da Diversidade Cultural é um programa desenvolvido por meio do Instituto Artivisão, uma organização não-governamental de Minas Gerais que tem apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte e parceria com a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (www.observatoriodadiversidade.org.br).

Esse programa propõe realizar algo que é identificado como prioritário nos mais diversificados círculos de reflexão e ação transformadora da cultura no mundo: a efetiva capacitação de artistas, arte- educadores, agentes culturais e profissionais de áreas afins para o trabalho cotidiano com a diversidade cultural. Sua proposta é orga-nizar processos de capacitação e difusão que garantam a integração entre a produção e a disponibilização de informação, a re-flexão teórico-conceitual e experimentações estético-educativas para artistas, agentes culturais e educadores integrantes de insti-tuições, grupos e projetos culturais de Minas Gerais e de outros estados. Procuramos levar os participantes a uma reflexão consciente sobre o tema, que lhes permita integrar o conceito e o sentido da diversidade cultural em seu trabalho, de forma a tornarem-se verdadeiros multiplicadores de seus fun-damentos filosóficos e teóricos e de suas possibilidades de fundar práticas e metodo-logias mais abertas e inclusivas.

O programa Observatório da Diversidade Cultural é, pois, uma proposta de caráter coletivo e colaborativo que vem responder a uma necessidade surgida após a promulgação da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco�: garantir que os princípios ali contidos sejam mais do que um elenco de boas intenções e se

concretizem em políticas de governo e sociedade civil, em instrumentos eficazes de monitoramento e avaliação da efetividade dos princípios da Convenção. Com esse programa promovemos a organização de um ambiente virtual de informações sobre a diversidade cultural pelo mundo, aberto à consulta e alimentador de órgãos de comunicação e instituições. Mais que uma ferramenta virtual de caráter tecnológico, é um elemento de intervenção e acesso à informação articulada sobre o tema da diversidade cultural, aberto e voltado a instituições e projetos no Brasil e no mundo. A criação e a manutenção desse espaço visam contribuir com as experiências concretas de inclusão digital, fornecendo boletins eletrônicos de atualização, organizando banco de dados e textos sobre o tema e estimulando a interação entre os participantes e interessados.

Além da manutenção desse ambiente virtual, o Observatório da Diversidade Cultural desenvolve programas de formação teórico-conceitual que aliam a diversidade da cultura e o desenvolvimento. Realiza encontros de reflexão, estudos e seminários em torno dos temas diversidade cultural como patrimônio; documentos internacionais sobre direitos culturais e diversidade cultural; princípios de cooperação internacional e diálogo intercultural; leitura crítica da mídia e formação da sociedade e da cultura nas cidades e a questão da diversidade.

R.O.I.C.: Em junho de �008, o senhor promoveu em Belo Horizonte o �º Seminário Diversidade Cultural. Quais contribuições ou reflexões sobre a formação de agentes, gestores, arte-educadores e outros quadros profissionais da cultura podem ser destacadas nessa edição e, eventualmente, nas edições anteriores?

�Ver revista Observatório Itaú Cultural número �.

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J.M.B.: O que se pode destacar é que temos pautado a discussão da diversidade cultural em nossas atividades locais e nos encontros internacionais com duas ênfases:

• A convocação e o diálogo entre diversos setores da sociedade, instituições e sujeitos, de forma a garantir um debate plural sobre a temática, evitando assim falsos consensos e posições românticas sobre nossas diferenças;• A perspectiva efetiva da transversalidade na abordagem da diversidade cultural, tomada não apenas como entrelaçamento de temas, mas como modo mesmo de concebê-la.

A primeira edição do seminário aconteceu em �005, em parceria com o Ministério da Cultura do Brasil, a Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, a Escola do Legislativo, a ONG Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Mundializações (Germ) e a Maison des Sciences de L’Homme Paris Nord. Realizado em duas etapas, o evento teve a participação de educadores, estudantes, agentes culturais, jornalistas, artistas, gestores culturais, pesquisadores e interessados em geral. Graças ao sistema InterLeges, o evento foi disponibilizado a todas as Assembléias Legislativas do país.

Os anais desse seminário foram publicados em �006 pela PUC Minas e encontram-se disponíveis no site do ODC.

A realização do segundo seminário, em �007, pretendeu dar continuidade à reflexão sobre os desafios da promoção e da proteção da diversidade cultural, promovendo a atualização sobre o estágio em que se encontravam as medidas regulatórias, as pesquisas e a produção de conhecimento em Minas Gerais, no Brasil e em outros contextos socioculturais sobre a questão. Permitiu o compartilhamento sensível de experiências entre aqueles que trabalham sob o signo da diversidade cultural.

No último mês de junho foi realizado o terceiro seminário, com as mesmas perspectivas de debater a diversidade cultural sob diferentes óticas e perspectivas. Sua programação esteve organizada em painéis e mesas-redondas, e contou com o lançamento do livro Diversidade Cultural – Da Proteção à Promoção, organizado com base no seminário de �007. Uma das mesas-redondas centrou-se justamente na questão da gestão da diversidade, enfocando, entre outros temas, os processos de formação e capacitação como espaços privilegiados da

experiência humana e do fortalecimento das práticas que envolvem a noção da diversidade cultural. Sob a mediação de Jurema Machado, coordenadora de cultura da Unesco no Brasil, contou com as presenças de Enrique Saravia, da FGV Rio, e de Maria Helena Cunha e Marcela Bertelli, da Duo, de Belo Horizonte.

R.O.I.C.: Uma das questões mais freqüentes quando se discutem indicadores culturais e outras formas de aferição dos fenômenos culturais é como definir cultura. São muitas as soluções propostas e, a depender de cada uma delas, também podem ser muito diferenciadas as análises e alternativas de intervenção. Esse também é um problema para as atividades profissionais da cultura? Em outras palavras, como definir as profissões e atividades culturais e propor programas de formação e capacitação que respeitem as especificidades dessas atividades?

J.M.B.: Não é nada fácil equacionar a relação entre as dimensões socioantropológicas da cultura, ou seja, a cultura como tudo aquilo que é fruto de aprendizagem em sociedade, e suas dimensões específicas, como a arte, as experiências simbólicas e estéticas, a indústria cultural etc. Penso que uma forma de equacionar isso em processos de formação de gestores e agentes culturais seja estabelecer relações por meio daquilo que autores como Edgard Morin� chamam de pensamento complexo. Ou seja, trata-se de um modelo teórico e conceitual que pode enfrentar a complexidade dessa relação sem cair no “canto da sereia” de sua simplificação. Assim, penso que a adoção de um conjunto de perspectivas possa nos ajudar a pensar como realizar escolhas na construção de nossas matrizes de formação. Rapidamente eu destacaria a adoção da perspectiva circular, que indica que cada uma das dimensões da realidade e dos conceitos que construímos para pensá-la afeta o outro num processo contínuo de organização e desorganização; a

� Nascido em Paris, em �9��, Edgard Morin é autor conhecido no Brasil, onde esteve mais de uma vez. Entre seus livros aqui editados está o recente Diário da China, publicado em �007 pela editora Meridional/Sulina, de Porto Alegre.

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adoção da perspectiva da interconectividade, que indica que tudo está ligado a tudo e que agir nas áreas de conexão pode produzir efeitos no todo e nas partes simultaneamente; a adoção da perspectiva da autoprodução, que nos remete ao reconhecimento de que somos (nós, nossas organizações e nossas instituições, no sentido amplo) produtores e produtos; a adoção da perspectiva dialética, que nos convida a pensar na existência de contradições e paradoxos; a adoção da perspectiva holística, que reconhece o todo nas partes e as partes no todo; a adoção de uma perspectiva dinâmica, que nos obriga a reconhecer que o aleatório, o incerto e o imprevisível são variáveis objetivas; e, por fim, a adoção da perspectiva da intersubjetividade, que nos convida a reconhecer que fazemos parte de nossos objetos e estes nos constituem como sujeitos.

R.O.I.C.: Em artigo no número � desta revista o senhor ressaltou que vivemos “numa sociedade de descolamento entre informação e conhecimento”, uma sociedade onde “o excesso de informação não gera conhecimento em quantidade e qualidade proporcionais”. Como enfrentar o desafio de produzir conhecimento nesse tipo de sociedade e garantir que a cultura siga sendo, também em suas palavras, “a experiência fundante do encontro e da troca”?

J.M.B.: Mais uma vez, não é nada fácil responder à questão, até porque seu enfrentamento depende da adoção de uma perspectiva radicalmente transversal e ampla, ou seja, não se resolve o problema da cultura apenas no campo da cultura. De forma ampla, precisaríamos partir de uma mudança na perspectiva de pensar o desenvolvimento. Se quiserem, uma mudança de paradigma que reintegre as várias dimensões das políticas públicas e a perspectiva do desenvolvimento humano, tão bem definida pelo Banco Mundial como o equilíbrio entre as quatro formas de capital: o capital natural, constituído pela dotação de recursos naturais com que conta um país, um estado, uma comunidade; o capital construído, gerado pelo ser humano, que inclui infra-estrutura, bens de capital, capital financeiro, comercial etc.; o capital humano, determinado pelos graus de nutrição, saúde e educação de

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sua população; e o capital social, descoberta recente das ciências do desenvolvimento e entendido como valores e atitudes que garantem a construção de relações de confiança entre os atores sociais de uma sociedade, as atitudes e valores que auxiliam as pessoas a transcender relações conflituosas e competitivas para conformar relações de cooperação e ajuda mútua, ou seja, de reciprocidade, e as atitudes cívicas praticadas que fazem a sociedade mais coesiva e mais do que uma soma de indivíduos.

Acho que, se partirmos dessa perspectiva, poderemos realizar inversões e definir prioridades nos diversos campos da educação, da cultura e da comunicação que ajudariam a enfrentar o paradoxo a que Boaventura Sousa Santos� chama de “cheio que nos parece oco”.

R.O.I.C.: O senhor foi um dos pioneiros a capacitar gestores e outros profissionais de cultura em Minas Gerais e no Brasil, um campo caracterizado pela transversalidade e pela fluidez de limites. Como foi “desbravar” esse campo e quais as principais dificuldades e experiências que poderiam ser transmitidas para aqueles que pretendem se iniciar nessa atividade?

J.M.B.: Não são poucas as dificuldades. Eu destacaria, em primeiro lugar, o elogio desmesurado à prática e sua ingênua oposição à teoria. Na área da cultura, ainda é dominante uma espécie de “pragmatismo impregnante”, que faz do bom senso e do ensaio e erro metodologias de trabalho. Criticar e superar tais posturas, ampliando para uma perspectiva mais praxiológica, não é nada fácil, mas extremamente

� Autor, entre outros livros, de A Globalização e as Ciências Sociais e Fórum Social Mundial – Manual de Uso, ambos editados no Brasil pela Cortez Editora, de São Paulo.

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ESPETÁCULO SEM SOCIEDADE1

Sergio Miceli �

A leitura da obra-mestra de Guy Debord (Paris, �9��-�99�), A Sociedade do Espetáculo (�967), carece de um registro biográfico sumário, que me parece esclarecedor acerca das realizações desse intelectual polivalente. Assim como se conhece apenas uma única foto do autor, bastante cioso em gerir a aura em torno da imagem de líder radical, é ralo o que se sabe a respeito de sua vida. Órfão de pai desde cedo, criado pela avó em cidades mediterrâneas, possuía apenas o certificado de conclusão do secundário. Largou o curso de direito que fazia na Universidade de Paris, decisão ironizada nos textos por alusão ao valor venal do diploma universitário, misto de desprezo e ressentimento. Desde o começo buscou firmar-se como autodidata de gênio, espécie de Rimbaud redivivo a proclamar o caminho da redenção. Talvez se possa situar o itinerário de Debord na cena cultural francesa e européia em três períodos, indicadores de certa hesitação quanto aos rumos de seus investimentos, como bem demonstram os variados suportes para respiro de sua pulsão expressiva. As tomadas de posição políticas oscilaram entre o vanguardismo estético acomodado e o retumbante voluntarismo insurrecional.

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imagem: Calu Tegagni

importante. Outra dificuldade e/ou desafio é o enfrentamento da contradição entre o discurso e a prática com a transversalidade. Desenvolvemos mais a retórica do que fundamos uma nova prática. As corporações e as disciplinas ainda são muito operantes e fornecedoras de identidades e seguranças. Romper com isso não é nada fácil. Por fim, o desafio de romper com a idéia de que, para trabalhar com a cultura, basta gostar das artes. É preciso uma forte e dinâmica formação teórico-metodológica para que se transcendam práticas frágeis, auto-referentes e óbvias.

Meus atuais desafios são os de contribuir para uma efetiva ampliação e aprofundamento da visão e das atitudes para com a cultura. Mais do que nunca é preciso associar às iniciativas de inclusão, cidadania e participação nas esferas públicas da cultura a preocupação com o conceito, com a qualidade do que se faz, com a avaliação do que se fez e com os desdobramentos e continuidades. E isso só é possível com formação continuada.

� Resenha de DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo/Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. 9. reimpressão, �. ed. brasileira: �997. Rio de Janeiro: Contraponto, �007.� Professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Intelectuais à Brasileira (São Paulo, Cia. das Letras, �00�, �008) e Nacional Estrangeiro, História Social do Modernismo Artístico em São Paulo (São Paulo, Cia. das Letras, �005).

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Estreou com uma narrativa autobiográfica (Mémoires, �959), escrita em parceria com o pintor holandês Asger Jorn, egresso do grupo CoBra�. Ambos conviviam no círculo “letrista” de jovens poetas, com idade média de �� anos, empenhados em detonar os valores burgueses pela dissolução do universo letrado em onomatopéias, com trabalhos divulgados em revistas mimeografadas. Logo quis se demarcar do tônus formalista desse grupo e passou a freqüentar os seminários do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre em Nanterre, nos quais apurou uma crítica da vida cotidiana que mais tarde emergiria como alicerce de apreensão da cultura contemporânea. Desistiu das veleidades poéticas em troca da liderança de um movimento híbrido, artístico-político, no qual se pretendia impulsionar a luta de classes com estratégias insólitas – a “deriva”, o “desvio” –, recicladas do legado dadaísta e surrealista. O projeto artístico persistiu a vida toda por conta da atividade cinematográfica, tendo concluído a primeira fita de vanguarda (�95�) com planos vazios, pretos e brancos, uma voz em off fazendo citações e pleitos teóricos, entrecortada por mutismos e música atonal, que se encerra com �� minutos de silêncio e escuridão, desplante provocativo em plena efervescência da sétima arte como novidade do século.

Nessa primeira fase de mocidade – desde o início da década de �950, junto ao círculo “letrista”, até a criação da Internacional Situacionista, em �957, em companhia da primeira mulher (a escritora Michèle Bernstein) –, Debord se assume como integrante de uma vanguarda artística e ética, à frente de um círculo de seguidores fiéis que operam no molde de uma facção leninista, nutrida por arroubos esteticistas. Nenhum membro do grupo podia ter contato com quem fora expulso, tendo de romper com os laços prévios, pessoais e intelectuais. Os situacionistas queriam superar a arte em troca de experimentos no cotidiano, um modo novo de viver, ainda desinteressados da política.

O movimento situacionista inicia-se com maioria de pintores, procedentes de diversos países europeus, preocupados com temas e desafios de ordem cultural, como urbanismo e lazer. Nesse clima de pura agitação cultural, quando pretendem apenas revolucionar as profissões culturais, Debord produz dois livros de colagens em parceria com Jorn e realiza um média-metragem, cujo enredo é a rememoração dos anos “letristas”. A tensão entre cultura e revolução desemboca na ruptura do grupo em �96�, com Debord permanecendo na organização, retraído, voltado para a escrita de sua obra. Até ser dissolvida, a Internacional Situacionista concebeu sua atividade como vanguarda artística capaz de aliar a arte à vida, a despeito de reticências taxativas quanto aos mercadores da arte e à diluição alienante da arte como produto de amplo consumo�. Em meados dos anos �960, inúmeros tópicos e desafios do situacionismo moldaram uma nova teoria crítica cuja obra seminal é mesmo A Sociedade do Espetáculo. Embora distantes e mesmo alheios ao mundo universitário e literário francês, apartados das novas mídias e dos partidos tradicionais de esquerda, os situacionistas influenciaram a revolta estudantil de maio de �968 em Paris. A explosão contestatária mobilizou alguns expedientes do ideário e das práticas do grupo, a começar pelo pendor à autopromoção, o recurso a suportes instigantes (grafites, quadrinhos, canções), o apelo a conteúdos transgressivos.

A dissolução da Internacional Situacionista em �97� reforçou a amizade com o empresário Gérard Lebovici (�9��-�98�), ensejando a Debord oportunidades de trabalho e intervenção na vida cultural européia, recém-casado com a romancista Alice Becker-Ho. Tendo perdido a mãe num campo de concentração e, mais tarde, órfão de pai aos �0 anos, quando estava prestes a iniciar uma carreira como ator, Lebovici logrou se tornar um bem-sucedido produtor de filmes ao longo da década de �960. Além dessas atividades no cinema, com a gestão da carreira de algumas vedetes talentosas e controversas – Patrick Dewaere e Coluche, mas também Miou-Miou e Belmondo –, Lebovici enfronhou-se em

parcerias políticas com intelectuais de esquerda. Tais investidas desaguaram na decisão de criar em �969 a editora Champ Libre, a “Gallimard da revolução”, republicando com êxito A Sociedade do Espetáculo em �97�. Debord logo converteu-se no mentor do projeto editorial, em cujo catálogo quis mesclar clássicos ousados (Clausewitz, Baltasar Gracián, poetas da dinastia Tang, Omar Khayam) e textos provocativos de autores anti-stalinistas (Karl Korsch, George Orwell e Souvarine). Lebovici garantiu-lhe ainda o financiamento de três novas películas. Tal aliança gorou com o assassinato de Lebovici, encontrado morto em um carro estacionado na Avenida Foch, em Paris, perfurado no pescoço por três balas de revólver. O crime nunca foi esclarecido.

A fase derradeira de Debord é marcada pelo texto em homenagem ao amigo mecenas (Considérations sur l’Assassinat de Gérard Lebovici, �985), pela retomada do carro-chefe (Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, �988) e pelo lançamento do volume inicial da autobiografia, intitulado, sem pejo, Panegírico (�989). Os três livros saíram com selo da editora Lebovici, da qual se afasta em �99�. O consumo excessivo de álcool levou Debord a contrair um tipo de polineurite, o que provavelmente apressou a deliberação de se suicidar com um tiro no coração em sua casa de campo no vale do Loire. Não havia completado 6� anos.

Espetáculo e falseamento da vida

A Sociedade do Espetáculo recolhe ecos dessas experiências, agasalhadas pelo capricho de fatura literária e pela ambição teórica desmedida para o cabedal de um autodidata. Decerto o interesse suscitado pelo trabalho teve muito a ver com a surpresa em torno das motivações de um outsider no campo intelectual francês, justo no momento em que surgiam as obras intrigantes dos mestres franceses no pós-guerra (Foucault, Bourdieu, Derrida, Deleuze, Barthes). Sem desfrutar de credenciais acadêmicas e do prestígio intelectual desses inovadores, o livro de Debord teve um êxito considerável, de público e de crítica, e o impacto perdurou

� JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, �008. p. 89.

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� Sobre o Grupo CoBra acessar o verbete da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=�790 [N.E.].

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até agora. Tampouco se pode desconsiderar seu papel desestabilizador como repositório de palavras de ordem encampadas por militantes em maio de �968.

A notoriedade da obra deriva das teses em torno do papel decisivo da cultura midiática na gestão do trabalho de dominação exercido pelos donos do mundo na sociedade capitalista. Tal espetáculo logrou expropriar a experiência vivida e sujeitá-la aos ritmos e conteúdos bombardeados pelos meios de comunicação, pelas novas modalidades de lazer compulsório, pela organização rígida do tempo, pelo esvaziamento dos sentidos conquistados pelos homens no cotidiano. É inegável a pegada do livro ao escarafunchar os múltiplos meios e métodos forjados pela sociedade do espetáculo, narrativa contundente na tradição de uma teoria crítica da indústria cultural inaugurada pelos petardos desferidos por Adorno. O espetáculo é o falseamento da vida, sob qualquer roupagem: informação ou propaganda, divertimentos, lazeres. É força coadjuvante do poder, sucedâneo da ilusão religiosa, tarefa levada a cabo pela instrumentalização política e ideológica a cargo dos meios ditos de comunicação. Debord recupera o acicate político da visada adorniana, com freqüência atirada ao relento pelas teorias da informação, por certa antropologia apolítica, pela sociologia triunfalista quanto aos efeitos positivos da “aldeia global” ora via internet, em suma pelo espectro de especialistas conformistas dos diversos suportes e linguagens da cultura contemporânea.

A tese central do livro reitera a expropriação lograda pelo espetáculo ao inviabilizar qualquer chance de os homens poderem constituir alguma representação autêntica da própria experiência no mundo, tornando o tempo e o espaço estranhos aos seus habitantes. Ainda que essa denúncia da alienação seja um tanto repisada pelos arautos “apocalípticos” e “integrados”, isso não esvai o vigor e a validez interpretativa de certas análises. A despeito do tom sentencioso e dogmático, dos jogos de palavras, das frases de efeito, da vacuidade de alguns enunciados bombásticos, os casos e personagens aludidos são inesperados, mas convincentes, gozados, mas cáusticos, dando vivacidade aos recursos dialéticos da demonstração.

Eis algumas passagens cujo interesse analítico subsiste: as vedetes como “especialização do vivido aparente”, capazes de representar estilos de vida e de compreensão da sociedade; o gadget como aberração, artigo especial que manifesta a transcendência da mercadoria; as notações agudas sobre divisões e usos do tempo como equivalências quase cosmológicas dos contrastes entre o trabalho e o lazer, o dia e a noite, as férias como consumo especial do tempo, os seguros de vida, a impossibilidade de envelhecer e sequer de morrer. Apesar das pretensões de altitude teórica, o texto respira melhor nos enxertos de materiais empíricos do que nos vôos cegos de generalização. As escassas citações de sociólogos em evidência na época (Riesman, Lefebvre, Whyte) peneiram evidências dissociadas da investigação de onde procedem.

A força motriz do livro é discorrer sobre o espetáculo como algo inseparável do Estado moderno, “produto da divisão do trabalho social e órgão de dominação de classe”, tema retomado com agudeza e pertinência nos comentários de �988.

Não obstante, a obra não se reduz à fenomenologia dialética da sociedade do espetáculo, do império da mídia, do mundo seqüestrado. A teoria crítica armada por Debord apóia-se em leitura original de Hegel, do jovem Marx da alienação e do primeiro Lukács de História e Consciência de Classe, esse último sendo objeto de admiração e, em passagem chocante, de ataque feroz como exemplar perfeito do intelectual cooptado. O autor não podia se furtar a empreender uma história da cultura no capitalismo. E efetua tal passo insurgindo-se contra a autonomia das esferas da atividade social, sem se dar ao trabalho de refletir acerca das condições sócio-históricas conducentes a essa crescente diferenciação. A emergência de domínios especializados – o direito, a ciência, a arte, a literatura, a mídia –, cada um deles dotado de história própria e de profissionais posicionados numa hierarquia de competências, de autoridade e de prestígio, nada disso parece interessá-lo. Estribado numa tradição idealista no ocaso, aquela da República de Weimar, da totalidade, da síntese, do conflito entre vida e conhecimento, Debord reciclou a linguagem profética da filosofia da vida,

vidente de uma seita inspirada em defesa do homem integral numa comunidade autêntica, plasmada por laços afetivos e igualitários. Molho intragável de raiz germânica, condimentado por ideólogos conservadores e sociólogos formalistas. Juntou tal legado às obras marxistas mencionadas, derivando desse condensado antimaterialista um dique de resistência à compreensão da atividade cultural como esfera especializada.

Daí a tentativa de equacionar a sociedade moderna em termos de transição de uma ordem de sujeitos íntegros para outra de autômatos consumistas, do “ser para o ter”, do “ter para o parecer”, guiados pelo comportamento hipnótico. Depreende-se dessa ladainha a queixa velada pelo declínio do impacto intelectual da filosofia, tal como insinua ao definir o espetáculo como a reconstrução material da ilusão religiosa, ersatz do sonho, da ilusão, do sono. O enguiço dessa interpretação não reside apenas na dificuldade de atinar quanto à postura olímpica do observador onisciente, intérprete abalizado do passado e adivinho do porvir. O indigesto em Debord é a recusa em enxergar o mundo social como espaço de negociação e luta entre classes e grupos especializados, em lugar de sua teleologia delirante, encarando as demais formações históricas como prelúdios defeituosos ao surgimento da revolução burguesa.

Debord concebeu uma narrativa algo fantasmagórica do processo histórico, em que a diferenciação das esferas da prática redunda em ruptura dos laços entre os homens, dando espaço ao não-trabalho, à inatividade. Ele faz assim coincidir as pontas estruturais do andamento da alienação: a base econômica do processo produtivo

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sucessivas derrotas do proletariado – na Alemanha de Weimar, na Espanha franquista, na Rússia bolchevique – parecem justificar a crença incondicional na consciência voluntarista de classe por conta da ação vindoura dos conselhos operários. Não presta nenhuma atenção às transformações morfológicas da classe operária. Interpreta o nazismo e o stalinismo como reações radicais às ameaças de subversão proletária, em lugar de buscar as raízes desses movimentos na história das sociedades alemã e russa. Esses esboços macro-históricos um bocado esquemáticos evidenciam um conhecimento perfunctório de história antiga, uma percepção caricata das grandes religiões, e uma ignorância arrogante acerca das sociedades ditas primitivas. As últimas, nomeadas “sociedades frias”, seriam dotadas de uma estruturação tão definitiva e estática que sequer conheceriam a mudança.

Debord persegue o intento de empreender uma crítica cerrada da sociologia – de seus pressupostos, métodos e resultados –, apelando ao mote de acusá-la por estudar a autonomia da esfera cultural com materiais derivados de uma aceitação do caráter inelutável dessa mesma diferenciação. Ele critica o prisma sociológico por invejar aí os avanços que nomeou numa vulgata pretensiosa de fraseado dialético. A despeito das limitações do acento autodidata, o livro tocou em chagas sensíveis da atividade cultural na sociedade contemporânea.

A sociedade do espetáculo continua ainda mais viva hoje, a tese central do livro continua de pé, mas o livro envelheceu pelos desacertos proféticos de sua ortodoxia totalizante. Um retrato capenga da cultura contemporânea, um espetáculo destituído de lastro societário.

dando origem à fragmentação formidável da divisão do trabalho e à massa de homens desocupados, propensos à submissão. Por mais que tal argumento seja enunciado em tom peremptório, Debord costurou evidências e achados de pesquisa da ciência social da época num arranjo conceitual de feitio marxista. Esperto e ardiloso, ele absorveu na moita feições da “multidão solitária” de Riesman.

Essa concepção do desenvolvimento das forças produtivas como história real inconsciente acaba transformando a história em movimento autônomo de energias desprendidas da experiência concreta dos homens. Tudo se passa como se fosse inteligível a gênese das esferas do mundo social e de suas práticas como sucedâneo imperfeito do movimento da economia. A vitória do poder econômico, do mercado, do assalariamento avassalador submete e molda os outros domínios. Ato contínuo, a economia política como ciência da dominação tem de se especializar, estilhaçando-se em disciplinas coadjuvantes. O espetáculo é a outra face do dinheiro, o novo equivalente geral abstrato de quaisquer mercadorias. A utopia que almeja “a abolição das classes” como que elimina de uma penada o chão da história, o grande invento da dialética marxista, que havia captado no embate entre forças sociais a energia propulsora da mudança.

O livro abarca diversos apanhados históricos. Uma história concisa da arte européia, desde o barroco até os movimentos de vanguarda do século XX, que associa o estilo a um modo de dominação, da monarquia absolutista à burguesia revolucionária. Uma história política concernente à emergência da burguesia e do proletariado, que remonta ao mundo greco-romano, passando pelo período medieval, até a sociedade fabril. Desqualifica a experiência colonial com a altivez do europeu semiculto, refutando a possibilidade de alguma experiência inovadora na periferia na medida em que os revolucionários locais teriam forçosamente de adotar os falsos modelos de revolução importados da metrópole. Tais incursões lhe permitem explicitar a crítica ao que considera o lado determinista-científico do marxismo, cuja falha é a falta de reflexão acurada sobre a organização do movimento operário. As

Maria Helena Cunha�

Há pouco tempo, selecionar indicações bibliográficas para a formação específica de gestores culturais não seria uma tarefa fácil. No entanto, esse quadro tem mudado bastante nos últimos anos. Hoje temos uma bibliografia que traz indagações e reflexões nos âmbitos político, social, administrativo, econômico e histórico sobre a realidade atual do desenvolvimento das atividades culturais.

Para iniciar as indicações sobre o que um gestor cultural precisa ler para se informar e se formar, é preciso compreender anteriormente o universo onde se constrói o seu campo de atuação profissional. Isso significa identificar quais são as necessidades de aprimoramento do conhecimento específico para a sua profissionalização. Tal conhecimento torna-se o referencial teórico que dá sentido à coletividade e delimita um campo comum de atuação.

Podemos afirmar que a gestão cultural é uma profissão contemporânea complexa que, além de estabelecer um compromisso com a realidade de seu contexto sociocultural, político e

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: MAIS UM DESAFIO PARA O GESTOR CULTURAL

AVELAR, Romulo. O avesso da cena: notas sobre produção e gestão cultural. Belo Horizonte: Duo Editorial, �008.

�Diretora da DUO Informação e Cultura; mestre em educação; especialista em planejamento e gestão cultural; e coordenadora da pós-graduação em gestão cultural do Centro Universitário UNA/Fundação Clóvis Salgado.

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econômico, tem pela frente o desafio de definir suas próprias necessidades formativas. Hoje já se reconhece o importante papel da gestão cultural na mediação e na organização entre as instâncias políticas e a sociedade. Essas são ações cada vez mais especializadas.

Assim, a formação do gestor cultural deve ser entendida como uma composição de elementos, em que só o autodidatismo não consegue mais responder a todas as demandas do processo formativo e nem o ambiente estritamente acadêmico, que ainda não é suficientemente específico. Há, portanto, uma busca de metodologias de ensino que encontram um equilíbrio entre a formação teórico-conceitual e a prática. Em várias situações, o gestor cultural compõe seu currículo com base em necessidades específicas de sua atuação profissional.

Ao considerar esse tema da formação profissional, minha primeira indicação bibliográfica não poderia deixar de ser Gestão Cultural: Profissão em Formação, resultado de minha dissertação de mestrado na Faculdade de Educação (UFMG). Esse trabalho trata da discussão relativa à formação e à constituição do campo da gestão cultural em Belo Horizonte desde �980, embora possa ser identificada com a de outras cidades e regiões do país. O foco principal da pesquisa foi compreender os processos diferenciados de formação dos gestores culturais, suas trajetórias profissionais e os saberes como referenciais coletivos necessários para atuarem no mercado de trabalho.

Formação e capacitação permanentes

Dando seqüência ao tema da formação, gostaria de ressaltar que, para ampliar e democratizar o acesso aos conhecimentos específicos desse campo de trabalho, é preciso desenvolver em âmbito nacional um programa consistente de formação cultural, que inclua não só a formação do gestor cultural, mas a formação artística e técnica e, sem dúvida, em outro patamar, a formação de público.

BARROS, José Márcio (Org.). Diversidade cultural: da proteção

à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, �008.

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Não há uma formação consistente sem a produção e disponibilização de bibliografias específicas para tal finalidade.

O processo formativo do gestor cultural tem início na educação do seu olhar e da sua sensibilização para compreender a lógica do campo da cultura e da arte, e esse é o seu diferencial como gestor de cultura. O mercado de trabalho cultural demanda a presença de um profissional específico que tenha conhecimentos a respeito dos processos constitutivos da cadeia produtiva do setor e que, além da noção das etapas básicas de trabalho em gestão cultural, como criação, produção e distribuição, considere primordialmente para o desenvolvimento de ações e iniciativas culturais as etapas de pesquisa, planejamento e avaliação.

Avançando na reflexão sobre “o que um gestor cultural precisa ler para se informar e formar”, afirmo que tão importante quanto ler é ver e ouvir. O primeiro passo é conhecer e apreciar a produção artística local, nacional e internacional, de forma específica por área, ou não, dependendo do perfil de cada profissional. Assim, torna-se fundamental conhecer os diferentes setores culturais e artísticos nos quais se desenvolve a ação – que é o principal foco de sua atuação como profissional – e identificar os agentes que atuam e intervêm em suas áreas específicas.

Faz parte também da construção do perfil profissional conhecer o pensamento estético das artes e as novas tendências artísticas. Manter o diálogo reflexivo entre o mundo da criação e os gestores culturais significa, na perspectiva da produção cultural, estimular o processo criativo e plantar estímulos relativos às identidades territoriais e contemporâneas.

Nesse sentido, é fundamental ler os clássicos da literatura brasileira – seja Machado de Assis, Guimarães Rosa, o poeta Carlos Drummond de Andrade, seja contemporâneos como Arnaldo Antunes e Milton Hatoum –, buscar referências na literatura geral da história da arte e em biografias, enfim, é um grande universo e não farei aqui nenhuma indicação específica pela própria abrangência do tema. Continuando nessa linha, tão importante quanto apreciar a literatura é ir ao

REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. São Paulo: Manole, �007.

CUNHA, Maria Helena. Gestão cultural: profissão em formação. Belo Horizonte: DUO Editorial, �007.

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cinema, ao teatro, assistir a shows eruditos e populares de música e de dança, freqüentar exposições, vivenciar e apreciar o mundo da arte. Isso contribui e amplia a compreensão da criação artística e do próprio objeto de trabalho.

Outro aspecto também a ser considerado refere-se à compreensão – com uma visão ampla de mundo – do território onde o gestor cultural atua, no âmbito local, nacional ou internacional. É a partir de tal noção que se consegue definir estratégias para a sua atividade profissional. Isso significa ter um olhar abrangente que observa as particularidades do entorno para obter uma visão gerencial, seja ela pública, seja privada. Considerando imprescindível ter referenciais de uma nova dimensão do campo da cultura para estabelecer critérios e parâmetros de prioridades e identificar suas singularidades e seus potenciais, eu indicaria três publicações:

A Conveniência da Cultura – Usos da Cultura na Era Global, de George Yúdice. O autor aprofunda a discussão sobre as novas dimensões da cultura no mundo globalizado e traz ilustrações de situações específicas na América Latina, possiblitando uma maior compreensão do significado da cultura como recurso no mundo contemporâneo, associada à economia e ao desenvolvimento.

Investimento Privado e Desenvolvimento: Balanço e Desafios, organização de Marta Porto. Esta publicação traz uma profunda discussão sobre as questões sociais brasileiras e seus ensaios foram elaborados com base em um diagnóstico, realizado por especialistas convidados, sobre a importância do investimento social privado no desenvolvimento do Brasil.

YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora da UFMG, �00�.

NATALE, Edson; OLIVIERI, Cristiane (Org.). Guia brasileiro de produção cultural 2007: educar para a cultura. São Paulo: Editora Zé do Livro, �006.

Diversidade Cultural: da Proteção à Promoção, organização de José Márcio Barros. Esta publicação é resultado do II Seminário Diversidade Cultural: Desdobramentos, Desenvolvimento Humano e Educação (�007), e teve como propósito dar continuidade às reflexões conceituais sobre a promoção e a proteção da diversidade cultural e, ao mesmo tempo, levantar questões sobre o estágio atual em que se encontra a implantação das medidas regulatórias.

O conhecimento da organização territorial e os princípios que regulam as suas relações políticas e administrativas são um ponto-chave para planejar propostas de intervenções culturais. Aqui reforçamos a importância de um profundo conhecimento das políticas públicas culturais, nos âmbitos municipal, estadual ou federal, qualificando a discussão pública a respeito do campo da cultura e sua capacidade de interlocução, de cooperação e de inter-relação com outras áreas afins, sejam elas a educação, a antropologia, o turismo, o meio ambiente, a saúde, a economia ou o direito.

Para essa área específica do conhecimento, entre várias outras possibilidades, indico uma publicação recente da Coleção Cult: Políticas Culturais na Ibero-América, organizada por Antonio Albino Canelas Rubim e Rubens Bayardo, que traz a descrição e análise histórica das políticas culturais de dez países ibero-americanos – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Paraguai, Peru, Portugal e Uruguai. Ela possibilita uma análise comparativa do desenvolvimento das políticas culturais no âmbito comum da Ibero-América, e estimula investigações e intercâmbio de idéias. Este é um trabalho de cooperação entre a Universidade Federal da Bahia (Salvador) e a Universidade Nacional de San Martín (Buenos Aires).

Para uma atuação efetiva no seu campo de trabalho, o gestor cultural precisa dispor de instrumentos e ferramentas específicas que levem ao desenvolvimento de ações com base na lógica

PORTO, Marta (Org.). Investimento privado e desenvolvimento: balanço

e desafios. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio/(X) Brasil, �005.

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do planejamento e que possam definir linhas estratégicas de atuação por meio de programas e de um sistema permanente de avaliação. Esse ainda é um tema pouco explorado no âmbito da produção bibliográfica específica para a cultura em língua portuguesa, o que torna necessário refletir e atuar sob uma perspectiva ainda com poucos referenciais teóricos. Nesse caso, eu indicaria três livros:

Guia Brasileiro de Produção Cultural 2007: Educar para a Cultura, organizado por Edson Natale e Cristiane Olivieri. Esta é a quinta publicação de uma série que, desde �99�, disponibiliza para profissionais do setor cultural informações práticas de seu dia-a-dia de trabalho, abordando temas relativos a planejamento, produção, comunicação, direito de autor, questões jurídicas e financeiras e questões internacionais. Possui uma linguagem acessível para quem está iniciando seus trabalhos na área.

Organização e Produção da Cultura, organizado por Linda Rubim. Esta é uma publicação que faz parte da Coleção Sala de Aula, da Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), voltada para estudantes. Sua importância está em contemplar a produção acadêmica sobre temas específicos da formação do gestor cultural e, conseqüentemente, a sistematização de tais conhecimentos com base em experiências vivenciadas dentro da sala de aula.

O Avesso da Cena: Notas sobre Produção e Gestão Cultural, de Romulo Avelar. O que chama atenção neste livro é a possibilidade de conhecer os bastidores da produção cultural com base na trajetória experiente do autor, além de em 5� entrevistas com profissionais de várias cidades do Brasil, o que oferece uma visão nacional relativa ao mundo da cultura pelo viés das questões técnicas, administrativas, financeiras e

RUBIM, Linda (Org.) Organização e produção da cultura. Salvador: EDUFBA, �005.

políticas, sem perder, em momento algum, o significado da arte como finalidade de todo o seu trabalho.

O gestor cultural também não poderia deixar de conhecer as particularidades relativas à comunicação e à difusão cultural. Nesse caso, refiro-me em destaque ao trabalho específico com o público consumidor de cultura, ou seja, buscar compreender quem são essas pessoas às quais dirigimos nossas ações, quais são as suas necessidades, os seus hábitos e como se relacionam com o entorno de onde vivem, trabalham ou estudam.

Compreender a dimensão material da cultura

Por fim, faz-se necessário conhecer os princípios jurídicos e econômicos que organizam e regulam os diferentes setores do campo da cultura. Existem os profissionais de formação específica para tal discussão, mas os gestores culturais necessitam obter orientações básicas que os levem a entender questões relativas a formas de contratação, modelos organizacionais, aspectos fiscais, leis de incentivo à cultura, direito autoral. No campo da economia, é necessário compreender a lógica que estrutura a dimensão econômica do mercado cultural, as características da sua cadeia produtiva, bem como as estratégias empresariais e administrativas relativas às demandas específicas do setor. Aqui faço uma indicação, ressaltando que o tema da economia da cultura tem sido cada vez mais discutido em seminários, encontros e publicações: Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável: o Caleidoscópio da Cultura, de Ana Carla Fonseca Reis. Este livro é uma valiosa contribuição para o aprofundamento das discussões no cenário atual da cultura. Ele aborda de forma clara assuntos complexos relativos à economia da cultura e ao desenvolvimento sustentável. Chamo atenção para a discussão, tão em voga, sobre indicadores culturais e de desenvolvimento, que a autora apresenta em exemplos práticos que contribuem para uma melhor compreensão do tema.

Maria Helena Cunhaimagem: Kika Antunes

RUBIM, Antonio Albino Canelas; BAYARDO, Rubens. Políticas culturais na Ibero-américa. Salvador: EDUFBA, �008.

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A gestão cultural e suas interfaces conceituais e pragmáticas têm sido objeto de pesquisas, dissertações e teses, o que significa uma importante sistematização do conhecimento sobre esse campo específico de atuação profissional. No entanto, tal produção intelectual fica ainda muito restrita a ambientes acadêmicos e não é disponibilizada no mercado editorial de acesso a um público mais amplo.

As indicações bibliográficas aqui apresentadas, embora significativas, representam apenas uma pequena parte do que hoje temos como literatura básica para a formação profissional daqueles que atuam no campo cultural. Assim, procurei mapear três aspectos do conhecimento do universo cultural que considero fundamentais para a formação específica do gestor cultural: arte e cultura; as novas dimensões da cultura – antropológica, política e econômica; e, por fim, os aspectos técnicos e gerenciais da gestão cultural.

Referências bibliográficas

AVELAR, Romulo. O avesso da cena: notas sobre produção e gestão cultural. Belo Horizonte: DUO Editorial, �008.BARROS, José Márcio (Org.). Diversidade cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, �008.CUNHA, Maria Helena. Gestão cultural: profissão em formação. Belo Horizonte: DUO Editorial, �007.NATALE, Edson; OLIVIERI, Cristiane (Org.). Guia brasileiro de produção cultural 2007: educar para a cultura. São Paulo: Editora Zé do Livro, �006.PORTO, Marta (Org.). Investimento privado e desenvolvimento: balanço e desafios. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio/(X) Brasil, �005.REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. São Paulo: Manole, �007.RUBIM, Antonio Albino Canelas; BAYARDO, Rubens. Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: EDUFBA, �008.RUBIM, Linda (Org.) Organização e produção da cultura. Salvador: EDUFBA, �005.YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora da UFMG; �00�.

O Observatório Itaú Cultural e a Universidade de Girona, na Espanha, preparam convênio de cooperação internacional no âmbito da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Cooperação, programa de pós-graduação mantido por aquela universidade catalã em parceira com o órgão das Nações Unidas responsável por programas internacionais de educação, cultura e comunicação. A iniciativa permitirá que pesquisadores brasileiros participem de cursos, visitas técnicas e outras atividades oferecidas por um dos mais tradicionais centros europeus de pesquisa de políticas públicas para a cultura. Em contrapartida, o Observatório Itaú Cultural receberá pesquisadores selecionados pela universidade, que vão conhecer aspectos da realidade brasileira no campo da cultura.

A formação de recursos humanos para a área cultural é uma das linhas de trabalho definidoras do Observatório. Por outro lado, a cooperação internacional e o conhecimento de outras realidades são parte indissociável da atuação de um observatório de cultura, como afirma o professor Teixeira Coelho em seu artigo no número � desta revista, “A política cultural ou é comparada ou não existe”. Portanto, nada mais indicado para uma instituição como o Observatório Itaú Cultural do que promover de forma sistemática a troca de informações e o intercâmbio de conhecimento e de

CONVÊNIO ENTRE UNIVERSIDADE DE GIRONA E OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL PARA QUALIFICAÇÃO DE GESTORES CULTURAIS

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experiências entre pesquisadores do Brasil e de outros países, qualificando-se e se renovando nesse processo. De seu lado, a Universidade de Girona afirma-se como um dos principais centros de reflexão sobre o papel contemporâneo que a cultura assume nas sociedades globalizadas. Com três campi na cidade de Girona, é uma instituição que compõe o sistema de universidades públicas da Catalunha e se orgulha de estar “integrada ao progresso e ao desenvolvimento da sociedade”, sentindo-se “profundamente arraigada ao país e à cultura catalã, e ser um dos principais motores econômicos e culturais de seu entorno”.

O surgimento de sua Cátedra de Políticas Culturais, em �000, coincide com o momento em que a Europa, e particularmente a Espanha, empenhavam-se em repensar a cultura como um recurso social até então pouco compreendido e de pouca relevância na formulação de políticas públicas que pudessem influir positivamente na vida das pessoas.

Segundo Teixeira Coelho, que foi professor convidado da Cátedra da Universidade de Girona por seis anos, resultados concretos de seus estudos podem ser observados em vários países latino-americanos e no próprio território da cidade.

Girona, com cerca de 80 mil habitantes, fica a aproximadamente �00 quilômetros de Barcelona e a 60 quilômetros da divisa com a França. Dispõe de uma forte infra-estrutura cultural, com um importante museu de cinema, um sofisticado complexo de auditórios e salas de espetáculos, um dos mais significativos conjuntos histórico-arquitetônicos da Catalunha, além de muitas galerias de arte. Apoiada pelos estudos de sua universidade, implantou a chamada Política Cultural de Proximidade, procurando dotar a malha urbana de novos espaços culturais que funcionam como locais de contato e integração de seus moradores e como pontos de atração para as muitas comunidades de espanhóis e de estrangeiros da cidade. São centros que oferecem atividades tradicionais do setor cultural e das artes, como salas de teatro e de cinema, exposições e shows de música, mas que vão muito além e reconhecem a diversidade das expressões culturais presentes na vida de uma cidade contemporânea da globalização. Cientes da necessidade de integrar na sociedade os muitos imigrantes e trabalhadores estrangeiros, os centros oferecem desde cursos de língua espanhola e catalã até informações sobre como obter documentos pessoais e conhecer os procedimentos burocráticos necessários para a vida e o trabalho não-clandestinos na cidade. Esses centros acabam por se transformar em verdadeiros elementos de ligação entre os moradores e a cidade, em aliados no processo de extensão da cidadania a cada um de seus moradores. São exemplos claros de como a cultura pode estimular o desenvolvimento econômico, promover a auto-estima das pessoas e somar-se a outros recursos sociais, multiplicando os instrumentos à disposição dos gestores públicos.

Ainda segundo o professor Teixeira Coelho, a Cátedra Unesco de Políticas Culturais da Universidade de Girona tem uma compreensão ampliada das atribuições do gestor cultural. Entende esse profissional não como um administrador de projetos, mas antes como a pessoa capaz de inventar as condições para que o processo cultural possa se desenvolver plenamente. Alguém intimamente ligado à arte, ao campo da criação artística, mas sem necessariamente ser um criador ou um intérprete, por exemplo. No entanto, esse gestor deverá se transformar em um profissional com formação e capacidade de compreender o que está em jogo no campo da cultura. Nesse programa de capacitação, o gestor não é apenas um gerente administrativo; é alguém capaz de entender a ação cultural como a criação dos meios que as pessoas precisam para atingir os fins culturais que desejam. E a política para a cultura é aquela formulada a partir da criação cultural, e não o contrário. O foco nos desejos e nas expressões das pessoas não é casual. Reflete a intenção da universidade de promover uma política pública não-intervencionista e valorizar a participação dos usuários dos serviços e dos produtos culturais.

Cooperação internacional

Desde sua criação, a Cátedra Unesco na Universidade de Girona enfatizou a necessidade do intercâmbio de experiências entre profissionais de países com realidades sociais muito diferentes, em especial os da América Latina. Um dos objetivos da cátedra é justamente “participar de diferentes programas de formação de gestores culturais em âmbito nacional, europeu e internacional, apoiando a reflexão e a experiência do processo de democratização do Estado espanhol e a descentralização”. Dessa forma, já recebeu alunos de países como Hungria, Romênia, Venezuela, Brasil, Argentina, Cuba e da própria Espanha. São, em sua maioria, profissionais ligados à administração de museus e centros culturais, funcionários de secretarias, fundações e outras instituições públicas de cultura, além de professores e pesquisadores universitários. Todos buscam aperfeiçoar ou complementar suas formações acadêmicas de origem, em um programa de pós-graduação que associa atividades presenciais e acompanhamento a distância de professores e monitores, de modo a estimular a criação de redes informais e duradouras de gestores culturais.

A cátedra pretende ainda se transformar em um lugar de encontro e de troca de reflexões sobre o papel das políticas culturais em um mundo caracterizado pela interdependência. A universidade enfatiza “que a perspectiva da cooperação nos permitirá trabalhar mais intensamente

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sobre as relações norte-sul e encontrar as contribuições que o mundo cultural pode oferecer para os conteúdos da cooperação para o desenvolvimento ou para as possibilidades da cooperação cultural como ferramenta para conhecer, e aceitar melhor, nossa diversidade cultural”. A cátedra procura oferecer os programas de formação mais bem “alinhados aos objetivos de formar e atualizar profissionais e gestores da cultura em âmbito local e internacional”. O conteúdo dos cursos oferecidos muda todos os anos, mas segue sempre as linhas gerais de investigação da cátedra:

• Estudos sobre sistemas, desenhos e metodologias no campo da formação de gestores culturais, em âmbito espanhol, europeu e internacional;• Estudos sobre as características específicas da cooperação internacional no campo da cultura;• Análises e diagnósticos no campo da gestão de políticas culturais territoriais;• Reflexão sobre o papel das políticas locais e de proximidade no mundo da globalização;• Reflexão sobre a interculturalidade na sociedade espanhola e catalã e o fomento do diálogo entre culturas;• Estabelecimento de linhas de cooperação no campo da gestão cultural com países em desenvolvimento.

A metodologia dos cursos integra a convivência com a realidade cultural da cidade de Girona, a partir da apresentação de seus serviços culturais, sem deixar de se referir a outras realidades internacionais e fomentando a diversidade e o conhecimento mútuo. Nos últimos anos, as Políticas de Proximidade assumiram um papel relevante nos cursos, sendo estudadas como ferramentas de desenvolvimento alinhadas aos programas da União e da Comissão Européias, e às conclusões da Conferência Intergovernamental sobre Políticas de Desenvolvimento da Unesco.

Girona e os observatórios de cultura

O convênio da Universidade de Girona com o Observatório Itaú Cultural confirma uma prática de associação com observatórios de cultura que se manifestou ainda antes da criação da Cátedra Unesco de Políticas Públicas e Cooperação. A primeira associação da universidade com uma organização do tipo observatório cultural se deu na década de �990, com a Interarts, uma agência privada fundada em �995 em Barcelona, que rapidamente atingiu projeção internacional e que trabalha hoje com três objetivos principais:

• Apoiar o desenho de políticas culturais;• Contribuir com os processos de desenvolvimento baseados no setor cultural;• Facilitar a transmissão de conhecimento e informação no campo da cultura.

Já a partir de �996, a Interarts passa a coordenar cursos de pós-graduação em cooperação internacional com as universidades de Girona, Barcelona e Pompeu Fabra, todas na Catalunha. Esse tipo de atuação com o mundo acadêmico permanece de forma regular até os dias de hoje, havendo inclusive, na situação específica da Universidade de Girona, o intercâmbio de profissionais e dirigentes entre a universidade e a Interarts, como é o caso do professor Alfons Martinell Sempere. Diretor-geral da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid)� até o mês de junho último e responsável pelos programas científicos e culturais do órgão, Alfons Martinell foi um dos fundadores da Interarts e volta agora à Universidade de Girona como professor e diretor da Cátedra Unesco de Políticas Públicas e Cooperação.

A história de intercâmbio de conhecimento e de pessoas entre a Universidade de Girona e os observatórios de cultura passa, com a celebração desse convênio de cooperação internacional, a incluir o Observatório Itaú Cultural que, desde sua criação, em �006, defende o apoio à formação de quadros qualificados e a criação de redes permanentes de cooperação internacional entre agentes e instituições culturais.

“O bonito nas pessoas é que elas ainda não foram terminadas.”(Guimarães Rosa)

O tema da formação de gestores culturais ou mais amplamente de profissionais dedicados à organização da cultura, como se analisará adiante, apresenta-se hoje como revestido de fundamental importância para o desenvolvimento da cultura no Brasil e no mundo e de políticas culturais efetivamente contemporâneas e imaginativas. Uma discussão mais aprofundada da temática requer uma reflexão, ainda que panorâmica, das conformações da cultura na atualidade, do lugar da organização na realização de um sistema cultural e das singularidades da circunstância brasileira nessa esfera.

imagem: Cia de Foto

FORMAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO DA CULTURA NO BRASILAntonio Albino Canelas Rubim�

� Professor titular da Universidade Federal da Bahia; docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e do curso de graduação em comunicação/produção em comunicação e cultura; coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura; pesquisador do CNPq e presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia.

� Ver matéria na revista Observatório Itaú Cultural número 5.

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Conformação e atualidade do campo da cultura

Com a modernidade temos a autonomização (relativa, é claro) do campo cultural em relação a outras esferas societárias, notadamente a religião e a política. Tal processo – que não pode ser confundido com isolamento ou desconexão social – implica a constituição da cultura como campo social singular, que articula e inaugura instituições, profissões, linguagens, símbolos, valores e tensões. A partir daí a cultura passa a ser nomeada e percebida como dimensão social determinada que pode ser estudada em sua especificidade. Cabe lembrar que o campo cultural hoje exige crescentemente que sejam formados indivíduos para as novas profissões associadas às instituições que funda.

É possível imaginar alguns grandes eixos que perpassam o campo cultural desde a modernidade e, assim, configuram sua feição contemporânea. Simultânea à sua autonomia relativa acontece uma politização da cultura. Isto é, a cultura, em conjunto com outras esferas sociais, passa a ter significado para uma política que deixa de ser legitimada pela referência ao transcendente, subsumido ao mundo das religiões. O Estado moderno e seu governo têm uma legitimação secular e uma predisposição laica. A cultura torna-se uma das fontes significativas dessa legitimidade. Paulatinamente tal legitimação secular

passa a ser conformada por meio de expedientes democráticos, que implicam construção de hegemonias. Ou seja, consenso em lugar de mera coerção, típica de situações autoritárias. Ao recorrer à lógica da construção de hegemonias, a política necessariamente se articula com a cultura, posto que se trata da elaboração e da disputa de visões de mundo, nas quais política e cultura sempre estão imbricadas.

Na passagem da modernidade para o mundo contemporâneo, outro dispositivo perpassa e marca de modo relevante o campo cultural: a mercantilização da cultura, intimamente associada ao desenvolvimento das chamadas “indústrias culturais”. Tal processo indica, sem mais, o avanço do capitalismo sobre os bens simbólicos. Esses bens encontravam-se preservados de serem produzidos por uma lógica submetida ao capital. A emergência das indústrias culturais faz com que os bens simbólicos não sejam produzidos também como mercadorias, porque capturados apenas na esfera da circulação, mas que já sejam concebidos no momento mesmo da produção como mercadorias. Com a mercantilização potencializam-se a tecnologização da cultura, a proliferação das mídias e o aparecimento da cultura midiática, como componente vital da circunstância cultural, em especial dos séculos XX e XXI.

Outro dispositivo marcante para a compreensão da cultura na atualidade é a culturalização da política. Aos “clássicos” temas da política moderna – Estado, governos (Executivo, Legislativo e Judiciário), monopólio da violência legal, direitos civis, liberalismo econômico etc. – a partir do século XX são agregadas novas demandas político-sociais, muitas delas de intenso teor cultural. Temas como ecologia, questão feminina, orientação sexual, modos de vida, comportamentos, diferenças étnicas, religiosas e nacionais, diversidade cultural, valores sociais, dentre outros, são incorporados ao dia-a-dia da política e compõem programas dos partidos políticos, políticas governamentais e reivindicações da sociedade civil. Enfim, tornam-se parte viva do universo da política.

Mais um expediente pode ser destacado no processo de constituição da cultura contemporânea. Trata-se da culturalização da mercadoria, processo tão bem assinalado em estudos recentes acerca das chamadas “economia e indústrias criativas”. Nesse âmbito, cabe registrar o crescente papel de componentes simbólicos na determinação do valor das mercadorias, inclusive de bens materiais. Assim, tais componentes simbólicos – de denso conteúdo cultural – hoje também penetram e investem bens materiais. Com a culturalização da mercadoria, amplia-se mais uma vez e de modo intenso o lugar da cultura na atualidade.

A cultura contemporânea vê-se constituída e perpassada, igualmente, por fluxos e estoques culturais de tipos diferenciados. De um lado, o processo de globalização ou mundialização da cultura conforma produtos que, fabricados de acordo com padrões simbólicos desterritorializados, buscam se posicionar em um mercado

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Os criadores, inventores e inovadores, representados por artistas, cientistas e intelectuais, vinculados aos universos culturais acadêmicos ou populares, muitas vezes são tomados como estrelas centrais do sistema cultural, dada a sua relevância como inauguradores de ideários, práticas e produtos culturais. Ou seja, por sua admirável capacidade e mesmo genialidade em renovar a cultura. Mas, apesar desse papel primordial para o itinerário da cultura, não existe sistema sem que outros momentos, instituições e atores estejam contemplados e acionados.

Os professores e comunicadores, inscritos em diversas ambientações e instituições sociais, são os principais tradutores dos momentos de divulgação, transmissão e difusão da cultura, ainda que outros atores e instituições possam realizar tais movimentos de modo secundário. Tais dispositivos são, todos sabemos, vitais para a democratização da cultura.

Também os momentos de preservação e conservação, atribuídos em especial aos museus de todos os tipos, são essenciais para manter a herança cultural e democratizar o patrimônio cultural acumulado, seja ele material, seja imaterial. Cuidar do patrimônio – tangível e intangível – é fundamental para o desenvolvimento e a identidade dos agrupamentos humanos. Não por acaso o tema do patrimônio sempre teve um peso relevante nas políticas culturais no Brasil e no âmbito internacional.

Para além de ser preservada e conservada, uma cultura precisa, sob pena de estagnação, interagir com outras culturas, por meio de dispositivos de troca, intercâmbio e cooperação. Sem esse permanente processo de “negociação” cultural, deliberadamente instituído e estimulado, a cultura tende a perder seu dinamismo vital. Por óbvio, existem diferenciados tipos de trocas, as quais afetam de maneira diversa as culturas. Em pólos opostos, as trocas podem ser equânimes ou profundamente desiguais. A depender desse caráter, elas podem ser altamente benéficas ou provocar graves transtornos. Apesar disso, as trocas são essenciais para a vida das culturas.

Um sistema cultural não pode ter vigência também sem que a cultura (criada, difundida, preservada e intercambiada) seja submetida a um crivo de discussão e avaliação públicas. Essa função de reflexão sobre a cultura é destinada aos analistas, críticos, estudiosos, investigadores e pesquisadores. A discussão anima a vida cultural; legitima, questiona e desqualifica idéias, práticas e valores; possibilita trocas culturais. Enfim, é parte igualmente indispensável à dinâmica viva da cultura. A liberdade, a possibilidade de discussão e a efetiva avaliação estão intimamente associadas ao aprimoramento da cultura.

A esfera do consumo, ato também essencial para a completude do circuito cultural, tem como singularidade ser sempre uma esfera não-profissionalizada, muitas vezes a única em todo o ciclo sociodinâmico da cultura. A não-profissionalização, entretanto, não afeta de modo algum o status do consumo. Pelo contrário, indica a amplitude e mesmo a universalidade do ato de recepção da cultura. Todos os cidadãos são potencialmente consumidores da cultura, quando ela não está subordinada a uma lógica mercantil, que restringe o consumo somente em troca de dinheiro. Sem o consumo, em seu sentido mais amplo, a cultura não se realiza: queda incompleta. Nessa perspectiva, todos os indivíduos estão imersos em ambientes culturais ainda que em modalidades muito desiguais de acesso pleno aos seus estoques e fluxos. Mesmo o consumo, talvez a esfera mais larga de participação, pode ser obstruído por requisitos econômicos, sociais e educacionais que limitam tal acesso. Mas, de diferentes maneiras e graus, todos vivem um ambiente cultural, em menor ou maior intensidade.

Por fim, para abranger todo o sistema cultural resta outro momento, por vezes esquecido. Certamente um movimento de mais difícil percepção, talvez por isso uma das regiões mais recentemente traduzidas em instituições e profissões dentro do campo cultural. Essa área pode ser nomeada como organização da cultura. Claro que, de algum modo, todos os momentos anteriores implicam aspectos organizativos, mas nesse caso precípuo o que ocupa o centro do

mundial de imensas dimensões controlado pelos megaconglomerados, oriundos de gigantescas fusões de empresas, que associam cultura, comunicação, entretenimento e lazer. De outro lado, reagindo a esse processo de globalização, brotam em inúmeros lugares manifestações marcadas por fluxos e estoques culturais locais. Assim, o panorama contemporâneo aponta para um desigual e combinado processo de glocalização da cultura.

Certamente outros dispositivos poderiam ser acionados para uma compreensão fina das configurações da cultura no mundo contemporâneo. A escolha desses eixos decorre do registro destacado ocupado por eles na conformação da cultura e de seu campo. Para concluir, podemos afirmar que tais dispositivos fazem com que a cultura passe a ter um lugar societário singular e expansivo na atualidade. A cultura, além de ser um campo social específico, transborda tais limites e adquire uma transversalidade que perpassa toda a complexa sociabilidade contemporânea. Por conseguinte, as políticas culturais têm de dar conta do seu campo social específico e dessa transversalidade que faz a cultura permear os mais diferentes campos da sociabilidade atual e interagir cada vez mais com eles.

O sistema cultural e seus componentes

Traçado esse contexto, por certo panorâmico, a análise deve prosseguir buscando compreender a complexidade da cultura na atual circunstância societária.

De imediato, pode-se enumerar um conjunto de momentos como imprescindíveis para a existência e o desenvolvimento do campo cultural hoje. Essa lista pode ser composta de movimentos como: �. Criação, invenção e inovação; �. Divulgação, transmissão e difusão; �. Troca, intercâmbio e cooperação; �. Preservação e conservação; 5. Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; 6. Consumo; e 7. Organização. Sem considerar a presença de cada um desses momentos – e da articulação e qualidade deles – não se pode, a rigor, falar em um efetivo sistema cultural, pois a conformação do sistema implica a presença essencial de cada um desses momentos e movimentos. Sem tal concepção dificilmente pode-se pensar em políticas culturais, pois elas estão sempre sistematicamente associadas a todos esses componentes da cultura.

Por certo, em uma sociedade não complexa, esses momentos e movimentos encontram-se associados e mesmo conjugados em uma mesma instituição ou ator social. Entretanto, a complexidade própria do mundo contemporâneo implica a crescente diferenciação desses momentos e movimentos, configurando zonas de competência, instituições e atores com papéis especializados.

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jogo é a organização mesma do campo cultural, seja em um patamar macro, como nas políticas culturais, seja em um horizonte micro, como em determinados eventos culturais. Depois dessa trajetória percorrida, cabe agora se deter na organização da cultura, dada sua interseção com o tema investigado.

A organização da cultura e suas denominações

Desnecessário assinalar que a organização é um momento imanente ao sistema e mesmo a toda e qualquer manifestação e expressão culturais, em um patamar macro e/ou microssocial. Não existe cultura sem seu momento organizativo. Mesmo determinadas manifestações culturais ditas espontâneas não podem se realizar sem organização. Mas esse caráter inerente e “natural” talvez tenha obscurecido a imediata atenção com esse movimento, que só recentemente emergiu como espaço de práticas e formulações.

Uma das características dessa emergência recente e, por conseguinte, da ausência de tradição na conformação específica desse momento é a falta de sedimentação inclusive na sua nomeação. Denominações as mais distintas são acionadas para intitular o momento da organização da cultura e os profissionais responsáveis por seu tratamento. Assim, a denominação de gerentes e administradores culturais predomina nos Estados Unidos e na França; a noção de animadores e promotores culturais possui uma importante tradição na Espanha; em muitos países da América Latina fala-se em trabalhadores culturais e em outros países podem ser utilizados termos como mediadores culturais, engenheiros culturais ou científicos culturais�. Em Portugal, também se aciona a expressão programadores culturais para dar conta da esfera da organização da cultura�. Mas recentemente a noção de gestão cultural vem ganhando grande vigência em diversos países, inclusive ibero-americanos:

La noción de gestión cultural ingresa al discurso cultural en Iberoamérica con bastante influencia hacia la segunda mitad de la década de los ochenta, tanto en las instituciones gubernamentales como en los grupos culturales comunitarios�.

A pluralidade de denominações não só indica a idade recente das práticas e dos estudos acerca da organização da cultura, mas sugere pensar em itinerários e peculiaridades nacionais no desenvolvimento do tema, com forte incidência sobre a formação de seus profissionais. Acompanhar tais trajetórias distintas pode servir para iluminar e dar continuidade à análise em curso.

Singularidade brasileira da organização da cultura

O caso brasileiro apresenta nessa perspectiva uma notável singularidade, pois a noção predominante tem sido a de produção cultural. Tal dominância pode ser observada pela nomeação dos primeiros cursos brasileiros na área de organização da cultura5 e pelo modo mais usual de (auto)nomeação dos profissionais que trabalham nessa área. Por exemplo: na dissertação de Maria Helena Melo da Cunha sobre o tema, os nove profissionais que prestaram depoimentos sobre a construção de seu campo de trabalho na cidade de Belo Horizonte na imensa maioria das vezes utilizavam a denominação produtores culturais e só excepcionalmente se reconheceram na expressão gestão cultural, apesar da clara adesão da autora a esse último termo, inclusive no título do trabalho6.

A opção por essa nomeação decorre obviamente das peculiaridades históricas, em especial relativas às políticas culturais implementadas no país. Ainda que políticas culturais de caráter mais sistemático tenham sido inauguradas desde a década de �9�0, em especial com a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo e com a criação

do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e de outras instituições culturais no primeiro governo Vargas (�9�0-�9�5), o Brasil não desenvolveu, entre essas políticas, uma preocupação mais abrangente com a formação de pessoal na área de organização da cultura. Desse modo, não se constituiu, infelizmente, uma tradição que fizesse emergir no país a gestão cultural como campo específico de atenção do Estado nacional. A preocupação com a formação foi não sistemática e apenas momentânea, como aconteceu com o Plano de Ação Cultural da Ditadura Militar7. Além disso, ela nem sempre se tornou efetiva.

Na segunda metade dos anos �980, com o predomínio da visão neoliberal e a chamada “crise do Estado” e sua “retração”, o governo José Sarney, de maneira contraditória, ampliou a infra-estrutura cultural, inclusive com a criação do Ministério da Cultura em �985, e simultaneamente, por meio da Lei Sarney (�986), deslocou o financiamento da cultura para a iniciativa privada, de modo muito particular. Recorrendo a uma política de leis de incentivo, o Estado abre mão de impostos para estimular o setor privado a investir na cultura. Dessa maneira, o recurso é estatal, mas as decisões passam a ser do setor privado. Essa alteração do vínculo entre Estado e cultura ocasiona uma mutação acentuada no sistema cultural brasileiro, ainda não estudada em toda a sua plenitude.

Uma lógica de financiamento do setor empresarial se impõe, obrigando, para o mal e/ou para o bem, a emergência de “intermediários culturais”, como serão chamados na Lei Rouanet, em sua revisão acontecida no governo Fernando Henrique Cardoso/Francisco Weffort. Tais “intermediários” devem elaborar projetos, captar recursos, administrar eventos etc. Em suma, são “produtores” que devem organizar a cultura, não adstrita ao Estado. Este se encontra quase paralisado, sem recursos e sem políticas culturais. As leis de incentivo tornam-se mesmo as políticas culturais do governo FHC/Francisco Weffort8. Não por acaso pode-se facilmente constatar que a formação do mercado de trabalho da organização da cultura, pelo viés de produtores culturais, acontece a partir da segunda metade dos anos �980 e se amplia nos anos �990.

A ausência de tradição na formação de gestores, a submissão da cultura à lógica de mercado e a fragilidade das políticas culturais do Estado nacional – fortemente acentuada nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort – são, por excelência, o contexto elucidativo da emergência da nomeação de produtores culturais, com as características que eles adquirem no país. A explicação elaborada ilumina igualmente a importância que o marketing cultural obteve no Brasil contemporâneo, quando se compara com outros países latino-americanos9.

Desafios da formação em organização da cultura no Brasil

As mutações recentes da cena das políticas culturais no Brasil sugerem alguma possibilidade de reversão dessa singularidade porque o Estado nacional passou a ter um papel mais ativo no campo da cultura, implementando um conjunto efetivo de políticas culturais�0. A existência de políticas culturais nacionais é condição necessária, mas não suficiente, para a reversão dessa perversa singularidade, pois ela exige não só uma política nacional de fortalecimento das políticas e gestão públicas da cultura, mas também uma política sistemática de formação de organizadores da cultura, em especial de formuladores de políticas e gestores culturais.

No entanto, até o momento, o atual Ministério da Cultura não tem demonstrado sensibilidade com relação ao tema da formação de pessoal em cultura. Um exemplo significativo é a publicação do Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil, editado em �006, com o duplo caráter de relatório�� do primeiro mandato e de programa para o segundo, no qual o assunto quase não é tratado��. Outro exemplo relevante é o documento inicial do Plano Nacional de Cultura, atualmente em discussão. Nele, o tema da formação, apesar de ser citado �� vezes nas suas 85 páginas, encontra-se completamente diluído nas mais diferentes áreas da cultura, não contemplando um programa integrado na área de formação. Com relação à qualificação em

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organização da cultura, a situação é bem mais grave, pois ela, além da dispersão, só é citada nitidamente em duas ocasiões. Assim, mesmo nessa diluída atenção à formação, a organização da cultura é desconsiderada.

Urge que o Ministério passe a enfrentar o tema da formação com a atenção e a grandeza que ele exige. Encaminhamentos razoáveis para a questão podem ser a formulação e a implementação de um programa nacional de formação e qualificação em cultura, com base em um sistemático mapeamento da situação da capacitação no país, por meio do qual sejam diagnosticados os problemas e potenciais existentes e, simultaneamente, identificados os possíveis parceiros para a construção conjunta desse programa. Além disso, o programa deve estar previsto de modo cristalino e articulado no Plano Nacional de Cultura e funcionar como um dos pilares integrados ao Sistema Nacional de Cultura. Desse modo, o Brasil poderia em plenitude resolver o dramático quadro da formação e da qualificação do pessoal dedicado à cultura, em especial a sua organização.

Algumas proposições finais

Traçada em linhas gerais as peculiaridades da trajetória cultural brasileira, torna-se necessário aprofundar as relações entre gestão e produção culturais. Antes de tudo, é imprescindível afirmar a pertença das duas noções ao registro de organização da cultura e, por conseguinte, a inevitável proximidade delas. Uma quase identidade, por certo. Nuances podem ser anotadas em uma observação mais refinada. Assim, pode-se sugerir alguma distinção fina – nem sempre realizada – na esfera da organização da cultura. É possível imaginar três níveis diferentes dessa esfera: a dos formuladores e dirigentes, afeitos ao patamar mais sistemático e macrossocial das políticas culturais; os gestores, instalados em instituições e/ou projetos culturais mais permanentes, processuais e amplos; e, finalmente, os produtores, mais adstritos a projetos de caráter mais eventual e microssocial. Cabe registrar que todos esses tipos de profissionais, sem privilégios, são imprescindíveis para que a organização da cultura aconteça de modo eficiente e criativo.

A distinção fina acima formulada, entretanto, não deve obrigar a uma especialização prematura na formação dos organizadores da cultura. O seu caráter recente aponta, pelo menos na situação atual, no sentido de formar profissionais que possam ter um desempenho satisfatório nas três vertentes anotadas. Mas as peculiaridades das trajetórias nacionais certamente influenciam sobremodo nas configurações dos cursos em cada país e região do globo. A prevalência da nomeação de produtores culturais no Brasil é um sintoma relevante da modalidade de constituição da esfera da organização da cultura em modalidade singular em território nacional, indicando as potencialidades a serem reconhecidas e os entraves a serem criticados e superados. Uma discussão cuidadosa sobre a delimitação da figura do produtor cultural pode ser encontrada no trabalho de Linda Rubim��.

Antes de detalhar uma proposição de conteúdos programáticos, visando inclusive superar problemas detectados no panorama nacional, é necessário traçar um rápido quadro da formação na situação brasileira. De imediato, registre-se o pouco desenvolvimento dessa formação, em comparação com outros países, inclusive ibero-americanos, como Colômbia, México e Espanha. Existe hoje no país uma gama dispersa de pequenos e esporádicos cursos de extensão, em geral de tempo limitado e alguns sem uma formalização mais consistente; alguns poucos cursos de graduação em universidades, nas áreas de produção e gestão culturais, sem quase nenhuma interação que possa servir para uma troca e uma construção coletiva de uma área sólida de formação graduada; e, por fim, começam a aparecer algumas experiências em pós-graduação, quase sempre em nível de especialização. Mas a acelerada expansão da área leva a pensar na possibilidade de uma rápida superação desse quadro de dificuldades, em especial se existirem políticas públicas voltadas para essa esfera essencial da cultura.

Em seguida, deve-se destacar o lugar ocupado, para o mal e/ou para o bem, por características como viés somente empresarial; prevalência de uma concepção de eventos e de patamares de realização microssociais em detrimento de um olhar mais macrossocial, processual e público. Superar tais deficiências, sem desdenhar os aspectos positivos trazidos por esse itinerário, é certamente essencial para qualificar a formação na área da organização da cultura no Brasil.

Considerando as formulações elaboradas, a experiência internacional e as singularidades nacionais, é possível formatar um conjunto de conteúdos programáticos que alicercem a construção de uma formação qualificada e sintonizada com as dinâmicas culturais da sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, acreditamos que os temas essenciais a serem tratados na formação são os seguintes: �. Contemporaneidade e dinâmicas glocais da cultura; �. Manifestações das culturas locais, regionais, nacionais e globais; �. Culturas e identidades; �. Estudos da cultura; 5. Leitura e crítica da cultura; 6. Políticas culturais (inclusive legislação e direitos culturais); 7. Gestão/administração da cultura; 8. Cultura e desenvolvimento; 9. Economia da cultura; �0. Orçamento e finanças em cultura; ��. Elaboração de projetos em cultura; ��. Produção cultural; ��. Divulgação e marketing culturais; ��. Cooperação e intercâmbio culturais; �5. Consumo, públicos e mercados culturais; �6. Pesquisa em cultura; �7. Seminários de temas atuais em cultura; e �8. Oficinas temáticas em cultura.

Em suma: uma sólida formação político-cultural (glocal); uma boa capacidade organizativa; um ativo compromisso social e uma predisposição para a iniciativa e a inovação. Além desses aspectos de conteúdo, atenção especial deve ser dada no curso a aspectos acadêmico-pedagógicos, tais como: �. A interação entre teorias, análises, informações, práticas e experimentos; �. A adequação entre conteúdos e formatos/procedimentos pedagógicos; e �. As modalidades de avaliação pertinentes.

5 Os cursos de produção cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ambos instalados em meados da década de �990. Posteriormente é que surgiram no Brasil cursos intitulados de gestão cultural.6 CUNHA, Maria Helena Melo da. Gestão cultural: Profissão em formação. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, �005.7 Consultar: CALABRE, Lia. A ação federal na cultura: o caso dos conselhos. In: O público e o privado (9): 6�, jan./jun. �007. Fortaleza.8 Sobre o tema, consultar: CASTELLO, José. Cultura. In: LAMOUNIER, Bolívar; FIGUEIREDO, Rubens (Org.). A era FHC: um balanço. São Paulo: Cultura, �00�. p. 6�7-656; e RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim; BARBALHO, Alexandre (Org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, �007. p. ��-�6.9 Sobre marketing cultural, ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Marketing cultural. In: RUBIM, Linda (Org.). Organização e produção da cultura. Salvador: EDUFBA, �005. p. 5�-77.�0 Para uma análise dessas políticas, consultar: RUBIM; BARBALHO, op. cit.; e RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BAYARDO, Rubens (Org.). Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: EDUFBA, �008. p. 5�-7�.�� MINISTÉRIO da Cultura. Programa cultural para o desenvolvimento do Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, �006.�� MINISTÉRIO da Cultura. Plano nacional de cultura – Diretrizes Gerais. Brasília: Ministério da Cultura/Câmara dos Deputados, �007.�� RUBIM, Linda. Produção cultural. In: RUBIM, Linda, op. cit., p. ��-��.

� ORGANIZAÇÃO dos Estados Ibero-Americanos. Cuadernos Cultura I. Conceptos básicos de administración y gestión cultural. Madri: OEI, �998. p. �9-�0.� MADEIRA, Cláudia. Os novos notáveis. Os programadores culturais. Oeiras: Celta, �00�.� OEI, op. cit., p. �9.

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A GESTÃO CULTURAL E A QUESTÃO DA FORMAÇÃO1

A gestão cultural e o setor cultura

Entendemos a gestão cultural como uma mediação entre os atores, as disciplinas, as especificidades e os domínios envolvidos nas diversas fases dos processos produtivos culturais. Essa mediação torna possível a produção, a distribuição, a comercialização e o consumo dos bens e serviços culturais, articulando os criadores, os produtores, os promotores, as instituições e os públicos, conjugando suas diversas lógicas e compatibilizando-as para formar o circuito no qual as obras se materializam e adquirem sentido na sociedade�. Quando falamos da gestão cultural, estamos pensando na gestão de um vasto campo de instituições, de programas, de projetos, de indústrias, de empreendimentos, de bens, de serviços e de direitos culturais. Em cada um desses casos vemos especificidades nas quais estão implicadas a administração de recursos materiais e humanos e a gestão dos diversos sentidos que circulam na vida social em um contexto e momentos determinados, significados e práticas comunicativas que são as estruturas elementares sobre as quais o setor trabalha e produz reelaborações, catalisando potenciais autoritários ou emancipatórios (BOVONE, �997). Cabe insistir, então, que as dimensões econômicas e políticas são inseparáveis dos processos culturais e de sua gestão.

O setor cultural é altamente dinâmico e, como conseqüência, as demandas sobre a gestão cultural também o são, portanto, é necessário contar com novos perfis profissionais adequados a esses desenvolvimentos. Estamos pensando em demandas inovadoras e crescentes relacionadas com a cultura, que atualmente forma um espaço expandido, onde as artes e o patrimônio, que tempos atrás eram identificados como a totalidade, são hoje apenas uma parte, e muito menor, de seu universo. Nisso houve a influência do surgimento de novas

Rubens Bayardo�

� Este artigo apresenta de forma sintética e atualizada um trabalho mais extenso apresentado no Seminário de Formação de Formadores da Iberformat – Rede Ibser Americana de Formação em Gestão Cultural, organizado pelo Programa Acerca (Aeci/OEI), que ocorreu em Buenos Aires em março de �006.� Diretor do programa antropologia da cultura, FFyL, UBA; diretor do Programa de Estudos Avançados em Gestão Cultural, Idaes, Unsam; ex-secretário técnico da Iberformat Rede de Centros e Unidades de Formação em Gestão Cultural Ibero-América, �005-�007.� Abordamos essa questão de maneira mais detalhada em Bayardo (�005).

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formas da criatividade e dos desenvolvimentos disciplinares, como resultado da dinâmica interna do setor, porém principalmente das demandas mercantis exógenas – embora também endógenas – de produtividade, rendimento econômico e comercialização. Também devem ser assinaladas as exigências de índole política, tendentes a aumentar o papel da cultura no âmbito representacional e como ferramenta de inserção e inclusão social a partir de Estados, governos e organizações associativas que, por sua vez, estão ligadas a reivindicações étnicas e minoritárias para conseguir visibilidade pública e reconhecimento social por meio de expressões culturais�.

O atual contexto globalizado propõe à cultura novos problemas que admitem respostas alternativas e que envolvem os gestores, que devem intervir e tomar decisões (SEMPERE, �00�). A reprodutibilidade técnica e a digitalização dos formatos, além do patenteamento dos saberes tradicionais e a biopirataria, atualizam o problema dos direitos de propriedade intelectual. Esse é o setor mais dinâmico e rentável da economia cultural, onde há posturas contrárias: os direitos de autor continentais, o copyright anglo-saxão, as iniciativas do copyleft e do Creative Commons. O auge da preservação e a valorização patrimonial, com seus desenvolvimentos colaterais significativos em áreas antes impensadas, influenciam na questão das identidades e suas significações políticas, enfocando o papel desempenhado pelas especializações a esse respeito (TRESSERRAS, �00�). Assim, temos os casos relativamente recentes da arqueologia urbana em Buenos Aires, cujos avanços se plasmaram na criação de uma área dentro do governo local; ou da arqueologia subaquática no Uruguai, onde o resgate da carranca de proa do buque alemão Graf Spee suscitou debates sobre a propriedade pública ou privada do mesmo, assim como sobre a conveniência de exibir ou ocultar os símbolos nazistas.

A formação profissional em gestão cultural

É necessário deixar claro que, em nossa perspectiva, a referência à gestão cultural e à pergunta pela formação de novos perfis é abordada em um contexto que não é de neutralidade, mas sim de aposta na profissionalização do setor. Consideramos que se trata de estruturar a cultura com os requisitos formativos de qualquer outro setor produtivo, de garantir a qualidade e a avaliação dos processos e dos resultados alcançados, de superar as improvisações, a intuição e o olfato como eixos da tomada de decisões. Na atual dinâmica de administrações públicas, empresas e associações, isso envolve tanto formação superior quanto parâmetros de qualidade, de excelência, de idoneidade, que se plasmam em titulações. Em contraste com o voluntarismo e com a fé, com as invocações do “amor à arte” e de

que “a cultura é barata”, trata-se de transformar a profissão em um modo e um meio de vida, que implica um trabalho adequadamente remunerado. Como em todos os campos, a profissionalização não deverá colonizar áreas com centralidade do tradicional, do emergente, do espontâneo, do lúdico, embora, é claro, estará em tensão e realimentação com outras práticas e formações de tipo informal, não formal e não regrado.

Entendemos que não pode haver uma resposta única sobre os novos perfis profissionais dos gestores culturais, mas sim respostas diversas. Como já dissemos, o setor da cultura é muito amplo e dinâmico. Em pouco tempo passamos dos “museus templos” para os “museus como meios em massa”, conforme Andreas Huyssen5 (�00�), dos espetáculos como uma exclusividade para poucos para a proliferação espetacular prevista por Guy Debord6 (�976). Presenciamos desenvolvimentos inesperados, como a arte web, e a expansão do formato “parque temático” em cidades, povoados, restaurantes, viagens. Porém, ao mesmo tempo, essa ponta do desenvolvimento da cultura não está generalizada nem é universal; velhas concepções e práticas persistem, e em muitos lugares são a norma. Os profissionais da área deverão estar preparados para essas circunstâncias usuais, assim como para adequar suas intervenções aos novos desafios emergentes.

Por outro lado, os contextos de formação diferem, incluindo a oferta universitária pública ou privada e a capacitação nas administrações públicas, nas empresas e nas associações7. Em alguns lugares, a formação em gestão cultural em universidades é inexistente, e onde existe há diferentes desenvolvimentos. Assim, enquanto as pós-graduações na Espanha datam de duas décadas, recentemente, em �006, graduou-se a primeira turma de literatura em gestão cultural da Universidade Nacional da Colômbia, uma das poucas experiências formativas em nível de graduação. A esse respeito, é necessário assinalar que, ao manipular terminologias dissímeis, é difícil saber se estamos falando da mesma coisa, pois o que em alguns países é definido como graduação em outros é considerado pré-graduação. Algo similar acontece na pós-graduação, em que são registradas pós-graduações de 60 horas de duração, que são aprovadas com um texto de �0 páginas, e mestrados, que aparentemente são a mesma coisa, porém exigem �50 horas de aula e uma tese de pesquisa. Aprofundando mais, revela-se a falta de equivalência entre níveis supostamente idênticos. Em várias áreas do conhecimento, boa parte dos estudantes argentinos que cursaram mestrados no exterior retornou decepcionada ao perceber que não aumentou substancialmente o que já havia aprendido em seus estudos de literatura com altos requisitos e elaboração de teses originais. Os tipos e graus de institucionalização do setor formativo pautam a definição dos tipos e níveis do perfil profissional dos gestores culturais.

5 Nascido em �9��, Andreas Huyssen é professor

de alemão e literatura comparada da Universidade

de Colúmbia (EUA).

� Ver JACQUES, Paola Berenstein; VAZ, Lilian

Fessler. Reflexões sobre o uso da cultura nos

processos de revitalização urbana in Anais do IX Encontro Nacional da Anpur, Rio de Janeiro,

�00�, p. 66�/67�.

imagem: Arquivo pessoal

� Sobre isso, veja SPADAFORA (�999), YUDICE (�00�).

7 Essas questões foram objeto de amplas

discussões em reuniões e seminários de formação da

Rede Iberformat e estão expressas em minutas,

documentos de trabalho e relatorias. Disponível em:

www.iberformat.org.

6 Ver resenha de Sergio Miceli nesta edição.

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Da mesma forma, as necessidades de formação também são heterogêneas com relação aos perfis daqueles estudantes que buscam profissionalizar-se na área. Isso é compreendido à luz da formação prévia, no geral altamente heterogênea, que no caso das pós-graduações inclui titulações nas ciências sociais e humanas e nas artes, porém também em administração, economia, direito etc. A isso deverão ser acrescentadas as trajetórias profissionais daqueles que estão se formando, muitas vezes experientes e já inseridos no setor cultural, e outras provenientes de outros espaços do trabalho, porém com inquietações culturais. Não é menor a questão dos projetos futuros dos estudantes, já que são diferentes os requisitos de quem se propõe a desenvolver sua própria empresa com o interesse de inserir-se na administração pública ou em associações da cultura. Desse modo, as formações de base, as trajetórias trabalhistas e os projetos individuais formam parte de um contexto que, com maior ou menor força, orienta a formação e a definição dos novos perfis profissionais8.

Rumo à formação de novos gestores culturais

A formação e a profissionalização de novos gestores culturais requerem o desenvolvimento de um trabalho conceitual que pode se diferenciar em um modelo ideal de duas formas de abordagem: uma perspectiva empírica e uma perspectiva teórica. Dizemos trabalho “conceitual”, deixando de lado os pontos de vista fundados em intuições ou em experiências postuladas como práticas ou técnicas independentes de noções e de teorias, por entender que não existem dados sem observadores e sem suposições explícitas ou implícitas que os orientem conceitualmente. Ao mesmo tempo, quando opomos de modo bipolar abordagens “empíricas” e “teóricas”, fazemos isso como uma ferramenta heurística que nos permite caracterizar e segmentar de maneira simplificada a análise dos fenômenos de uma realidade muito mais diversificada e mais complexa.

A partir de uma perspectiva empírica, a formação dos novos profissionais da gestão cultural pode basear-se em diferentes tipos de estudos e diagnósticos, como a análise dos requisitos das pessoas que estão sendo formadas. Também se pode fazê-lo a partir da análise das práticas e dos discursos dos gestores culturais, ou do estudo das trajetórias profissionais dos gestores. Ou, então, do estudo das demandas das administrações e instituições, ou da análise das demandas das empresas e dos mercados de trabalho.

Os limites dessa abordagem residem em que esses estudos costumam estar delimitados a casos pontuais ou a experiências

específicas, com o risco de, ao carecer de uma casuística mais ampla na qual constatá-los, estancar-se nos diversos vieses que ocorrem. Isso nos coloca diante do problema de não contar – nos diversos contextos – com pesquisas, estudos e relatórios sistemáticos, e chama atenção para as necessidades de pesquisa e de produção de conhecimentos como um desafio inevitável para a delineação de formações apropriadas. Ao mesmo tempo, apresenta-se uma questão maior, que se observa de modo variável em diversas realidades, que é o escasso ou nulo reconhecimento dos profissionais do setor cultural. Com freqüência, este último não requer titulações nem responde a cânones medianamente determinados, requisitos que são indispensáveis, ou ao menos mais sustentados, em outros setores. Pelo contrário, assumem-se critérios como a excelência artística, as relações de família e de amizade, as distribuições de espaços políticos, a reputação ou a notoriedade midiática.

A partir de uma perspectiva teórica, a formação dos novos profissionais da gestão cultural pode ser abordada com base nos dados de pesquisas básicas, como a análise macro do setor, suas necessidades atuais e em prospectiva. É o caso dos diagnósticos sobre o crescimento dos mercados culturais, a “economização” da cultura e seu impacto nas contas nacionais, o papel da cultura nos processos de desenvolvimento e integração social e regional. Porém, a formação também pode ser orientada a partir da discussão sobre concepções globais de cultura e de política cultural que, além de tipos de gestão, envolvem diversos modelos de sociedade desejável e modos de intervenção valorizados para alcançá-los. As contrastantes formulações sobre a cultura e o desenvolvimento, provenientes de agências como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), oferecem um claro exemplo9. É importante apontar também as expectativas acadêmicas e os ideais sobre a formação, quando esta é pensada em um ou em vários âmbitos, administrativo, político, artístico etc., o que induz à adoção de currículos e programas com determinadas características. Também merecem destaque as replicações e reinterpretações locais de experiências formativas existentes e já testadas no âmbito ibero-americano ou anglo-saxão.

As limitações dessa abordagem residem em sua própria generalidade, que pode abordar o problema de referir-se a realidades e/ou a ideais descontextualizados, oferecendo formações inadequadas para atender às necessidades concretas de um lugar determinado. Isso se torna particularmente relevante quando a formação é pensada no âmbito do desenvolvimento�0, no qual, para consegui-lo, ainda é necessário ativar vias ascendentes, atentas às realidades regionais, comprometidas com a participação cidadã e com a sustentabilidade.

8 Retomamos aqui alguns dados levantados para uma pesquisa comissionada pela Unesco (�00�), cuja direção acadêmica nós exercemos, assim como nossa própria experiência docente, desde �998 na direção da pós-graduação em gestão cultural e ministrando cursos e seminários. Tanto nas primeiras entrevistas de admissão aos cursos como nos desenvolvimentos posteriores de aulas e avaliações destaca-se uma notável heterogeneidade entre os estudantes.

�0 A questão da cultura e o desenvolvimento,

as conceitualizações de uma e outro, as relações possíveis

entre ambos foram objeto de crescente

preocupação nos debates e nas agendas

internacionais de governos, organizações multilaterais, entidades

da sociedade civil, até tornarem-se atualmente

um tópico inevitável para a gestão cultural. Cf.

CULTURELINK (�000).

9 Pensemos no caso dos acordos de Marrakesh, por meio dos quais se

estabeleceu a OMC em �99�, assim como na Convenção sobre a

Proteção e a Promoção da Diversidade das

Expressões Culturais aprovada pela Unesco

em �005.

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Também há limites na questão de uma freqüente falta de ligações entre o setor educacional e o profissional, que redunda em isolamentos e autocentralizações que contribuem para retroalimentar esse círculo vicioso. Não é um problema menor a réplica de modelos e propostas formativas específicas que, embora bem-sucedidos em seus espaços de origem, não são conducentes em outros contextos se não forem objeto de esforços de reinterpretação e de reelaboração sérios.

Conseqüentemente ao anteriormente exposto, entendemos que é necessário encarar a questão da formação de gestores culturais tomando um caminho metodológico que coloque em diálogo as contribuições das duas perspectivas mencionadas: a empírica, para contar com um adequado diagnóstico de situações e de necessidades mais ou menos pontuais da formação, que permita adotar decisões informadas e reflexivas; a teórica, para basear-se em conceitos explícitos e passíveis de argumentação, dispor de perspectivas diversas e com maiores abrangências espaciais e históricas, e orientar-se conforme as perspectivas devidamente sustentadas com base no conhecimento. Esse caminho permitiria uma abordagem sistemática do problema baseada em indagações e análises, considerando os diversos aspectos e dificuldades do mesmo, sem cair em generalizações vagas nem em especificidades extremas.

Partindo dessa linha de análise, consideramos fundamental trabalhar sobre o papel e a relevância atuais da cultura nos processos de desenvolvimento. Este está sendo concebido em novos termos, direcionados em diversos sentidos, algo tratado nas negociações das agências internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Unesco, a OMC, o Banco Mundial (BM). É importante participar, a partir da perspectiva das diversas culturas, nesse debate sobre modelos de sociedade e de mundo. Esses modelos, além de representações da sociedade, moldam-se a situações e condições de possibilidade concretas, dando forma a intervenções na realidade. Estas últimas atualmente estão longe de garantir o bem-estar qualificado dos grupos humanos, a melhoria de suas faculdades sensíveis e intelectuais e de suas capacidades na tomada de decisões livres e informadas propostas como horizonte de expectativas.

Para isso, é necessária a adequação das próprias agendas culturais a um domínio ampliado que supere o corporativismo disciplinar da plástica, da dança ou do patrimônio em particular, tornando visíveis suas complexas inter-relações internas, com outros domínios culturais e com âmbitos de impactos indiretos e externalidades. Da mesma maneira, superar a autocentralização setorial, expandindo o

olhar, o intercâmbio e as ações transversalmente para outros setores, como a educação, a saúde, o meio ambiente, o planejamento territorial etc. Com certa freqüência os gestores culturais carecem das competências para compreender e incorporar esses aspectos às suas ações, confinando-os em um ativismo localizado. Este é incapaz de orientar-se para a efetivação dos direitos culturais como horizonte de dignificação e de cidadania que fundamenta as políticas culturais e as práticas de gestão, assim como de dar os saltos qualitativos requeridos pelos processos de desenvolvimento��.

Nesse sentido, deve-se continuar destacando a crescente importância da cultura na economia e na política como geradora de rentabilidades de ordem diversa e como via potencial de superação de crise. Mesmo que o cultural não esteja presente hoje nas expectativas de Estados, mercados, instituições, grupos e pessoas, é necessário um enfoque mais incisivo que desmitifique o papel decorativo que também se continua atribuindo-lhe e que reconheça sua relevância e incidência. Algumas políticas e práticas já se orientam nessa direção, como os sistemas de informação cultural, os atlas e as cartografias, a confecção de estatísticas e de indicadores culturais, a ativação de contas nacionais e satélite atentas ao setor��. No plano da formação são necessários conhecimentos do setor, suas estruturas e suas dinâmicas elaborados com base na economia cultural. Da mesma maneira, são importantes as políticas culturais como princípios orientadores da gestão, tanto no interior do próprio setor quanto transversalmente a outros.

Especificamente no âmbito cultural, é necessário enfatizar o surgimento de novos domínios, novos desafios para a gestão e novos requisitos profissionais. Apesar das décadas transcorridas desde as primeiras tematizações sobre esses tópicos, ainda não se insistiu suficientemente sobre a ampliação do setor. Por outro lado, essa ampliação tampouco está plenamente assimilada, dificultando o seu reconhecimento para além do domínio restrito das artes e do patrimônio e incluindo o popular e as culturas indígenas, o turismo, a moda e a gastronomia, as indústrias da cultura, a comunicação e o entretenimento, o desenvolvimento urbano, local e regional. Isso implica teorizações e debates sobre os conceitos de cultura e de gestão, assim como sobre suas abrangências e incumbências. Por outro lado, supõe uma tensão entre a generalidade e a particularidade dos diversos domínios e disciplinas envolvidos nelas, que pode ser sintetizada na necessidade de especializações (artes plásticas, artes performáticas, patrimônio, audiovisual etc.) junto com as formações de tipo generalista.

Diante do papel mediador dos gestores culturais em e entre diversos contextos, é indispensável ponderar o setor cultural em relação não

�� Pensamos no caso do âmbito latino-americano: os Sistemas Nacionais de Cultura promovidos pela

OEI, na Colômbia, em Cuba, Honduras, México, Peru e

República Dominicana; os sistemas de informação

cultural desenvolvidos na Argentina, no Brasil e no

México; a cartografia cultural do Chile, o atlas cultural do

México e o mapa cultural da Argentina; os avanços sobre a Conta Satélite de Cultura na Argentina, no

Brasil, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai e Venezuela. Em números anteriores da

revista Observatório Itaú Cultural foram abordadas

essas questões com relação a indicadores culturais,

mapeamentos, pesquisas e políticas culturais.

�� Cabe dizer que “A seqüência entre direitos humanos,

deveres institucionais e serviços públicos que

se evidencia em outras políticas setoriais dos

chamados serviços (educação, saúde...)

escassamente toma forma no domínio das políticas culturais com

a mesma agilidade” (FOGUÉ, �000, p. ��).

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.6� .65

somente aos Estados nacionais, mas também ao internacional, ao regional, ao local, à pluralidade de nações e culturas dentro de um mesmo Estado, e ao papel das diásporas na constituição do nacional��. A importância desses âmbitos de ação na atualidade requer conhecer suas configurações, suas inter-relações e seus atravessamentos, para passar da cultura como questão de cada Estado nacional – âmbito no qual é mais clara a identificação de direitos e de políticas culturais atualmente – para as culturas como questão territorial e local, porém também desterritorializada (SEMPERE, �00�). Isso não somente por questões de adequação à realidade existente em múltiplos processos culturais, como também pela necessidade de pensar em outras escalas e de atender a necessidades negligenciadas – em algumas ocasiões até negadas – em nível nacional. Os processos que mencionamos influenciaram na multiplicação e transformação dos agentes culturais, cânones e critérios, assim como nas práticas da gestão cultural, sobre os quais é necessário nos aprofundarmos.

Junto com o anteriormente dito, cabe destacar a relevância do setor cultural em relação não somente ao setor público, como também ao privado e ao associativo, expandindo a perspectiva da cultura como meio de representação e de legitimação da ordem, para a cultura como fonte de criatividade, de receita e de negócios, para a cultura como reivindicação identitária e como ferramenta de inclusão e integração social. Nessa proliferação de sentidos, apropriações e usos da cultura, que vão desde sua concepção como um fim em si mesmo até sua instrumentação como um meio para alcançar outros fins, há múltiplas nuances e misturas, que abordam requisitos de gestão diferenciais. A referência a esses contextos com diversas necessidades de competências e de perfis é inevitável para a formação de novos profissionais da gestão cultural.

Considerações finais

Como síntese do exposto, consideramos que os novos perfis profissionais da gestão cultural requerem uma formação altamente dinâmica, como qualquer outra em uma atualidade de rápidas transformações. Embora no contexto latino-americano seja necessário avançar e consolidar as propostas formativas de índole generalista, também se visualizam as necessidades de especialização. Tanto umas quanto as outras deveriam estar atentas à triangulação dos aspectos artístico-culturais, administrativo-gestionários, jurídico-políticos e socioeconômicos. Mesmo quando existem dificuldades para isso, é importante colocar em interação a formação com o exercício profissional, prestando atenção e buscando adequações ao mercado de trabalho. Isso sem negligenciar a face política de orientar conceitualmente as demandas, ponderando os meios, os fins e a relação meios-fins da gestão no tocante ao valor cultural. É necessário superar a dimensão nacional e/ou de capital – assim como suas projeções mecânicas para outros âmbitos – para uma nova perspectiva territorial que inclua ministérios, comunidades, municípios, âmbitos locais.

Estes últimos, mesmo quando são freqüentemente invocados em programas de descentralização, na prática costumam continuar sendo espaços vazios que requerem conceitos e pautas de gestão cultural apropriados para suas realidades, os quais devem ser formados. Isso está vinculado a novas concepções de estruturação do nacional e à recuperação do lugar dos Estados em tensão com o local e o global, de acordo com o contexto contemporâneo. Nesse sentido, a formação dos novos gestores culturais pode ganhar em qualidade, prestando apoio mútuo pela via da cooperação internacional e interinstitucional, e fomentando as inter-relações por meio das oportunidades que as redes abrem.

Referências bibliográficas

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�� Cabe destacar o caudal de migrantes latino-americanos que vivem fora do continente, que são, porém, fundamentais na vida econômica e cultural de países como Argentina, Colômbia, El Salvador, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru, entre outros. Inversamente deve ser destacada a importância da presença de migrantes e seus descendentes, como no caso de japoneses e alemães no Brasil.

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.66 .67

Pensar e planejar o campo da produção, circulação e consumo da cultura dentro de uma racionalidade administrativa é uma prática que pertence aos tempos contemporâneos. A gestão cultural é um campo novo, com fronteiras fluidas, no qual o perfil profissional se encontra em pleno processo de construção. O especialista espanhol Fernando Vicário alerta para a necessidade de separar, de outras, as funções daqueles que se dedicam à cultura de modo profissional. Para o autor, os gestores são aqueles que têm sobre os seus ombros a responsabilidade de dar um tratamento político ao tema e se diferem dos artistas, dos produtores e dos animadores culturais (VICÁRIO, �006, p. �6).

Dentro desse universo mais amplo da gestão cultural, temos a área da gestão pública, mais especificamente a dos governos municipais, para a qual colocamos algumas questões: que área é essa e quem é o profissional que aí atua? Que ações são realizadas? Quais as políticas implementadas? Um dos problemas enfrentados por aqueles que pretendem conhecer e estudar o campo da gestão pública da cultura é o da ausência de informações sistematizadas.

.66

Os debates internacionais contemporâneos consideram a cidade, ou o município, como um locus destacado dentro da gestão pública. Segundo Silvia Vetrale, a cidade sempre foi um lugar privilegiado para a construção de “democracias de proximidade, aproveitando a confluência da diversidade em um espaço geográfico relativamente limitado” (VETRALE, s.d., p. 9). Para a autora, democracia implica necessariamente cidadania, o que não existe sem o pleno alcance dos direitos, inclusive os culturais. Nas sociedades contemporâneas o direito cultural significa o acesso a informações, conhecimentos, produtos, assim como à possibilidade de exercer a própria capacidade de expressão artístico-cultural em sua plenitude. As cidades propiciam o convívio e o intercâmbio entre os grupos e suas práticas culturais. Ainda segundo a autora, as políticas culturais têm a capacidade de trabalhar com a diversidade local de forma a produzir alternativas de enriquecimento do conjunto da população nas mais diversas áreas, tais como étnica, intergeracional, econômica, entre outras (idem, p. �0).

Dentro da perspectiva do município como um local privilegiado, que propicia maior conhecimento do processo de gestão pública da cultura, serão analisados aqui alguns dos resultados apresentados pelo Suplemento de Cultura da Pesquisa Básica de Informações Municipais (Munic), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE). O objetivo é mapear como as gestões municipais classificam e percebem as políticas e algumas das ações que implementam. Tais informações oferecem pistas para os que desejam estudar e compreender os conceitos de política e gestão cultural com os quais as administrações municipais de cultura operam.

Em �006, o IBGE, baseado em um convênio com o Ministério da Cultura, levou a campo um Suplemento de Cultura na Pesquisa Básica de Informações Municipais (Munic). Os principais objetivos da Munic são o levantamento de informações que possam ser incorporadas a uma base de dados com indicadores no nível municipal, e a “construção de um perfil detalhado dos municípios do país, a partir da gestão de suas administrações” (IBGE, �007, p. ��). A publicação do Suplemento de Cultura contém informações que tornam possível a construção de um primeiro quadro da gestão pública municipal de cultura no Brasil. Não foi a primeira vez que a Munic levantou informações sobre o campo da cultura. Nos anos de �999, �00� e �005, o corpo básico da pesquisa continha um bloco que aferiu a existência de equipamentos culturais. Em �00� e novamente em �005, a pesquisa passou a investigar também a existência dos Conselhos Municipais de Cultura e de alguns de seus aspectos de funcionamento. Em �005, depois de um convênio com o Ministério da Cultura assinado no ano anterior, a Munic incorporou ao bloco de cultura um levantamento sobre as atividades artísticas e artesanais presentes nos municípios.

imagem: Cia de Fotos

PROFISSIONALIZAÇÃO NO CAMPO DA GESTÃO PÚBLICA DA CULTURA NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS: UM QUADRO CONTEMPORÂNEOLia Calabre�

� Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, professora de políticas culturais do MBA de gestão cultural da Universidade Candido Mendes. Autora, entre outros, dos livros O Rádio na Sintonia do Tempo: Radionovelas e Cotidiano (1940-1946) (Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa, �006) e A Era do Rádio (Rio de Janeiro, Zahar, �00�).

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.68 .69

O Suplemento de Cultura da Munic é respondido diretamente pelo órgão responsável pela área no município e contém informações sobre o órgão gestor da cultura e sua infra-estrutura; recursos humanos da cultura; instrumentos de gestão; legislação; conselhos municipais; fundo municipal de cultura; recursos financeiros, fundação municipal de cultura; ações, projetos e atividades; meios de comunicação e equipamentos. O IBGE disponibiliza tanto a base de dados completa quanto as informações organizadas em tabelas – com a distribuição segundo as grandes regiões, unidades da federação e classe de tamanho da população – e gráficos.

A gestão da cultura nas cidades

O campo administrativo da gestão municipal de cultura, em �006 (data da coleta da pesquisa), estava organizado da seguinte forma: 7�% dos municípios possuíam Secretaria Municipal de Cultura em conjunto com outras políticas; em ��,6% o setor era subordinado a outra secretaria; 6,�% estavam subordinados diretamente à chefia do executivo; �,�% eram formados por Secretaria Municipal exclusiva da cultura; �,6% por fundação pública e �,�% não possuíam nenhuma estrutura específica. Podemos verificar que a grande maioria dos órgãos gestores da cultura é formada por secretarias em conjunto com outras políticas. Tal fato não pode ser a priori classificado como algo negativo ou positivo para o processo de implementação de políticas culturais, pois tudo vai depender do equilíbrio de forças e da distribuição dos recursos orçamentários entre tais setores. Freqüentemente costuma ocorrer que, quando a cultura está diretamente ligada à pasta de educação, por exemplo, o desequilíbrio entre as duas é muito grande, a educação termina por absorver a maior parte dos recursos disponíveis, deixando a cultura, em geral, em uma posição bastante desprivilegiada.

Buscando obter um equilíbrio entre as repostas coletadas nos 5.56� municípios brasileiros, as perguntas presentes no formulário da Munic sempre são acompanhadas de definições. No campo dos instrumentos de gestão, havia no formulário uma questão sobre a existência, ou não, de política cultural no município, seguida pela seguinte definição: “uma ação do poder público ancorada em operações, princípios e procedimentos administrativos e orçamentários. Esta política é orientada para melhorar a qualidade de vida da população através de atividades culturais, artísticas, sociais e recreativas, proporcionando à mesma o acesso aos bens culturais. Trata-se de uma ação voltada para todo o município e não somente para alguns segmentos da sociedade” (IBGE, �007, p. �5�). Responderam positivamente à existência de política cultural 57,9%

dos municípios brasileiros. Na tabela abaixo estão apresentados os totais dos municípios em termos de estrutura do órgão gestor da cultura e os números relativos a cada um dos itens no tocante a possuir política de cultura. O porcentual apresentado foi calculado em relação ao total do item.

Fonte: IBGE, Suplemento de Cultura.

A primeira observação a ser feita é que, em todos os tipos de estrutura de órgão gestor, e até mesmo na ausência dele, encontramos a presença da resposta afirmativa em relação à existência de política cultural municipal. Tal fato indica a necessidade de pesquisar e analisar mais profundamente com que conceitos de política cultural operam as gestões municipais. A elaboração e a implementação de uma política setorial requerem esforço político e operacional, que se consubstanciam em equipamentos, recursos financeiros e humanos. Podemos afirmar que a ausência de estrutura específica para a gestão da cultura significa, efetivamente, um grande empecilho para a implementação de políticas para o setor. Parece existir ainda uma enorme confusão conceitual entre o fato de possuir ou manter ações na área da cultura com o de possuir políticas. Um somatório de ações implementadas de maneira dispersa, com alcance limitado, sem relação entre si, sem uma mínima participação da sociedade civil e não alicerçadas por planejamento não devem ser consideradas políticas setoriais.

Políticas públicas para a cultura

Os resultados demonstram que, se por um lado a existência de uma secretaria exclusiva ou de uma fundação cultural por si só não é garantia de implementação de políticas, por outro tal

Fundação

Secretaria exclusiva

Secretaria em conjunto

Setor subordinado

Subordinado ao Executivo

Sem estrutura específica

Tipo de estrutura Total Total com política % com política

��5

��6

�.007

699

��9

��6

��0

�89

�.�0�

�8�

�9�

��

89,7

80,�

57,�

5�,7

56,7

�7,6

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.70 .7�

presença propicia a existência de um maior grau de possibilidade de implementação de ações de longo prazo assentadas em planejamento. No caso específico das fundações a existência das mesmas pode significar uma preocupação com a modernização administrativa e com a perenidade dos projetos implementados, que de alguma forma transparece no alto índice de declaração de existência de política cultural (89,7%). Na elaboração de uma política devem estar considerados atores envolvidos, objetivos e metas a serem acompanhados e alcançados; instrumentos, meios e recursos necessários para a efetividade da ação a ser implementada.

Ao responder positivamente o item sobre a existência de política cultural, o informante deveria declarar os quatro principais objetivos da mesma. Para que efetivamente pudéssemos conhecer o conceito de política cultural com o qual operam os gestores e seus reais objetivos, a resposta a essa pergunta deveria ser aberta. Podemos afirmar que a própria formulação do conceito de política e as opções de objetivo presentes no formulário induzem a determinadas formas de respostas. Porém, por tratar-se de pesquisa de tipo censitário (que percorre todos os municípios brasileiros), a utilização de respostas abertas tornaria muito difícil ou praticamente inviabilizaria a padronização e o processamento das respostas. É importante ressaltar que entre os objetivos da política havia a opção “outros”, que foi preenchida por somente 0,7% dos municípios.

Os cinco principais objetivos das políticas implementadas declarados pelos municípios foram: a dinamização das atividades culturais do município (�7,�%); a garantia da sobrevivência das tradições culturais locais (�7,�%); a transformação da cultura em um componente básico para a qualidade de vida da população (�7%); a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural (�6,7%); e a integração da cultura no processo de desenvolvimento local (�8,8%). Os itens que expressam uma gestão pública em moldes mais modernos e participativos contaram com baixos índices de resposta. São eles: democratizar a gestão cultural (6,5%) e descentralizar a produção cultural (�,9%).

Após responder sobre os objetivos da política, os municípios deveriam ainda indicar as ações desenvolvidas nos últimos �� meses, selecionadas entre um total de �8 itens. É interessante observar que, apesar do baixo índice de respostas no item referente à democratização da gestão cultural (6,5%), �8,6% dos municípios declararam ter realizado ações de estímulo à apropriação e/ou utilização dos equipamentos culturais pelos grupos locais; ��,9% utilizaram o mecanismo de orçamento participativo na cultura; e �7,�% promoveram a manutenção de conselhos e fóruns para a discussão das ações na área da cultura. No caso das ações ligadas

à convocação da sociedade civil para tomada de decisões, como é o caso do orçamento e dos conselhos e fóruns, fica evidente o caráter democrático das iniciativas. Entretanto, tais ações não se refletem como de democratização nos objetivos das políticas implementadas.

O que os resultados parecem demonstrar é a existência de certa dificuldade da área pública no trato das questões da democratização da gestão, mesmo quando pratica ações claramente voltadas para a ampliação da participação da sociedade civil no campo decisório. As estruturas governamentais e uma parte significativa da própria sociedade mantêm como tradição ideológica a idéia de um Estado interventor e paternalista, que deve gerenciar e ser o responsável pelo conjunto dos processos, enquanto a sociedade se apropria passivamente do que lhe é oferecido pelo mesmo. Tal visão do papel do Estado é responsável, inclusive, pelo receio demonstrado por algumas das áreas artístico-culturais quanto ao processo de construção de políticas culturais. É a ameaça do Estado intervencionista, cerceador da liberdade artística, que deve ser evitado, mas que ao mesmo tempo se deseja que seja o principal financiador das atividades artístico-culturais.

Democratização e participação

É importante ressaltar que havia ainda entre os objetivos o de ampliar o grau de participação social nos projetos culturais (�8,8%), que também é uma forma de democratizar o acesso e caminhar para uma gestão mais participativa.

A preservação do patrimônio também foi um dos cinco principais objetivos das políticas. Quando passamos para o campo das ações, verificamos que a divulgação do patrimônio, a manutenção e a revitalização de áreas históricas, nos últimos �� meses, somente foi implementada por ��,6% dos municípios, num índice de �6,7% que declarou ter políticas com o objetivo de preservar o patrimônio. Ações fundamentais para a preservação e manutenção do patrimônio, tais como a formação de guias e roteiros para o turismo cultural (9,�%) e a educação patrimonial (��,�%), tiveram pouca efetividade nos últimos �� meses. Nesse caso, nos deparamos com índices mais altos na declaração de objetivos e que não se refletem nas ações implementadas nos últimos �� meses.

A garantia da sobrevivência das tradições culturais locais (�7,�%) está entre os cinco objetivos de políticas que obtiveram os maiores índices de escolha. Nas ações verifica-se que a manutenção do calendário de festas tradicionais populares foi implementada por

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.7� .7�

�9,�% dos municípios e o resgate das tradições locais por ��,5%. Logo, apesar de não considerar objetivo de sua política a garantia das tradições culturais locais, praticamente a metade dos municípios brasileiros que tem política cultural investe na manutenção das festas tradicionais.

Em verdade, para a realização de uma análise mais minuciosa da correlação entre o que foi declarado com o efetivamente realizado o recomendado seria o processamento de cruzamentos ainda mais detalhados das políticas e das ações do bloco de instrumentos de gestão com as informações constantes no bloco “ações, projetos e atividades”. O que foi apresentado nesse artigo tinha por objetivo ser um pequeno exemplo da possibilidade de um estudo detalhado da gestão pública municipal, que pode e deve ser realizado com base no aprofundamento do exame das informações contidas na base de dados da Munic.

Sem perder de vista a necessidade do aprofundamento dos estudos, podemos, baseados nas informações aqui trabalhadas, fazer algumas conjecturas sobre questões concernentes ao campo da gestão pública municipal da cultura no país. A primeira delas diz respeito ao conceito de política cultural e sua inserção nas agendas de governo. A visão da cultura como um campo autônomo da administração pública, de importância igual à de outros, é muito recente e ainda não está consolidada. No país, durante muito tempo, predominou a idéia de cultura associada à ilustração, ou seja, ter cultura ou promover a cultura seria sinônimo de levar a educação e a arte erudita para o conjunto da população. Era a idéia de que o Estado deveria levar cultura para o povo ou elevar a cultura do povo, buscando alcançar padrões culturais de matriz européia, preservando algumas manifestações folclóricas (folk = povo) em seu estado “original”. Ao longo da década de �970, essa visão começou lentamente a ser alterada, entretanto ainda resiste enraizada no imaginário de parte significativa da sociedade.

Outra concepção vigente é a de que promoção de cultura é sinônimo de realização de atividades de entretenimento e lazer, ou seja: para ter uma política de cultura basta que haja a realização de espetáculos e eventos. Uma hipótese bastante provável é a de que, ao responder no formulário que o principal objetivo da política cultural do município era a dinamização das atividades culturais, o gestor esteja se referindo à realização de eventos isolados.

O que os resultados da Munic deixam entrever é que se mantém no país uma noção muito simplificada de política pública de cultura. Pode-se perceber que muitas das ações são realizadas e mantidas quase que por uma espécie de tradição, ou seja, ocorrem porque “assim deve ser”, e não porque foram planejadas e articuladas com base em um conjunto de objetivos, buscando alcançar fins determinados.

Outra questão estreitamente ligada à anterior, e que de certa forma já foi trabalhada previamente, é a da ausência de planejamento na área da cultura. Esse é um campo da administração pública como os outros e requer planejamento, avaliação, integração das ações com as políticas propostas. A Constituição de �988 determinou que o planejamento público é função do Estado, de cunho permanente e obrigatório, logo todas as ações realizadas pelas secretarias, nos diversos níveis de governo, deveriam estar alicerçadas em planejamento.

O resultado de 57,9% de municípios brasileiros com política cultural deve ser avaliado como um desejo da maioria das gestões municipais de cultura de realizar administrações pautadas em métodos mais modernos e dinâmicos. A grande tarefa que se apresenta para o conjunto da área é a de buscar as ferramentas e a qualificação dos agentes envolvidos para a real efetivação do desejo expressado.

Referências bibliográficas

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.7� .75.68

O reconhecimento da cultura como atividade econômica é muito recente. Até o final do século XX, a tratávamos apenas como patrimônio simbólico. Tanto nos estudos antropológicos quanto nos sociológicos, aprendemos a enxergá-la como coisa dada, o que está impresso em nossos códigos de convivência e consolidamos como civilização.

Seu potencial transformador ainda não consta nos anais da Unesco, que define cultura como “conjunto de características distintas espirituais, materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Abarca, além das artes e das letras, os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (Mondiacult, México, �98�). Ali está ela apenas como patrimônio, conquista da humanidade.

Arrisco-me a explorar outra dimensão que a cultura pode assumir, baseado em uma visão mais ampla e contemporânea desse conceito. Refiro-me às dinâmicas de sociabilidade, às tecnologias de convivência, ao diálogo, às conversações e redes – sistemas de intercâmbio e inter-relação reforçados pelo surgimento das novas tecnologias, mas não exclusivos aos territórios virtuais.

UMA ABORDAGEM MULTIDIMENSIONAL PARA A ATIVIDADE CULTURAL

Imaginar e expressar o futuro. Pensar cultura como um farol voltado para a frente, para as novas formas de expressão e convivência que podemos construir com base no conhecimento disponível. A ética como princípio norteador.

A idéia de cultura, cunhada conforme as visões políticas de cada tempo, detém em si as chaves dos sistemas de poder. Chaves que podem abrir portas para a liberdade, para a eqüidade, para o diálogo. Mas que também podem fechá-las, cedendo ao controle, à discriminação, à intolerância. Pensar a função política da cultura no mundo contemporâneo significa revisar os parâmetros das relações sociais e econômicas que fomos capazes de construir.

Quero fazer uma provocação. A consolidação da economia como ciência dominante em nosso tempo fez com que lhe subordinássemos todas as outras formas de manifestação humana como fenômenos derivativos, seguindo uma lógica e uma codificação próprias. E com a cultura não foi diferente.

Daí vem a tentação de transformar ricas manifestações culturais em commodities baratas, manuseadas de forma rasteira e linear por profissionais reprodutores de um conjunto de regras e tecnologias que só interessam à manutenção de um perverso sistema de poder, que se sustenta sobretudo pelo domínio dos meios de produção e distribuição de conteúdos culturais.

Mas o que é a economia senão um fenômeno cultural? O que são o dinheiro, o market share, a pontuação da bolsa de valores senão valores simbólicos desprovidos de sentido fora de um conjunto de códigos rigorosos chamado “mercado”? Mergulhados nesse contexto, corremos o risco de perder a capacidade de desvendá-los e tornamo-nos apenas agentes de manutenção e disseminação de um sistema de valores linear, unilateral e, por que não, desumano.

Nessa condição, o consumo consolida-se como a forma de expressão mais forte e presente, sobretudo nos grandes centros urbanos. A própria arte passa a ser ressignificada e vista como meio de produção e objeto de consumo. Corre, assim, o risco de perder a condição e a capacidade de revelar e traduzir a alma humana, suas contradições e riscos. De sua condição única e insubstituível de dar forma à utopia, passa a mera reprodutora de um sistema que a incapacita para o exercício desse olhar mais agudo e sensível.

O Brasil vivenciou na última década um grande salto quantitativo e qualitativo nas relações de trabalho na área cultural. A cultura, como atividade econômica, saiu do confinamento, ultrapassou fronteiras, mas ainda mantém vícios e dependências de uma atividade ligada aos poderes político e econômico.

imagem: Cia de Foto

Leonardo Brant�

� Leonardo Brant é consultor e pesquisador de políticas culturais. Criou e edita o blog Cultura e Mercado, além de ser fundador e presidente da empresa Brant Associados, focada na prestação de serviços de consultoria, pesquisa e arquitetura cultural.

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Inserção internacional

O país entrou de forma definitiva no cardápio do entretenimento global. Um dos principais mercados das chamadas majors do cinema e da indústria fonográfica, o país vivencia a efervescência de uma nova Broadway tupiniquim, que já demonstra sinais de vitalidade. Do ponto de vista da exportação das artes e da cultura local, o momento atual nunca foi tão profícuo. Desde Paulo Coelho, um dos autores mais lidos da atualidade, até o futebol e a música, o Brasil nunca esteve tão em voga no cenário global. O gestor cultural precisa estar atento para valer-se dessas oportunidades.

Participar ativamente do mercado da cultura sem estar a ele subordinado é uma das questões éticas mais difíceis ligadas ao cotidiano do gestor cultural. Por isso a necessidade de investir em um conjunto de ferramentas adequadas para lidar com a administração e o marketing, por exemplo, mas não sem fazer uma incursão mais profunda na questão ética.

Não há nada que influencie mais a conformação de um produto cultural do que o seu sistema de financiamento. Presume-se, por exemplo, que um filme distribuído por uma major norte-americana teve menos liberdade artística do que um filme independente. Este, por sua vez, terá mais dificuldades de conquistar público, justamente porque as salas comerciais pertencem às grandes distribuidoras. Um bom gestor cultural precisa saber manejar essas variáveis, que são inúmeras e complexas, a ponto de arquitetar novas dinâmicas que invertam a lógica do domínio e o aprisionamento da criação pelo capital.

O livro Diversidade Cultural – Globalização e Culturas Locais: Dimensões, Efeitos e Perspectivas, lançado pela editora Escrituras em parceria com o Instituto Pensarte, em �005, trouxe um pouco dessa inquietação em relação à condução da minha própria condição profissional:

Senti na pele a inversão da lógica da troca dos conhecimentos. Trazia um conhecimento do sul, inadvertidamente empacotado para atender aos interesses da indústria cultural dominante. Vinha com técnicas de marketing e gestão aplicadas à cultura. Um arsenal tecnológico inútil para quem faz cultura por pertencimento e não por exercício mercadológico.Ao dissipar essa perversa miríade pelos quatro cantos, fui conhecendo essa gente, acumulando experiências e contatos que me fizeram inverter providencialmente a ordem das coisas. Em vez de armá-los com as mais avançadas técnicas de gestão cultural, passei a apresentá-los como armas do inimigo. Não para serem aplicadas tal qual se apresentam, mas para fazerem do veneno o antídoto.

Acima de tudo, o que aprendi com essa gente toda que faz cultura pelo Brasil é que existe algo a ser visto com o nosso próprio olhar, nossa lente de ver o mundo. O domínio global do Sudeste já massacrou demais as culturas do Norte e do Sul e por que não dizer do próprio Sudeste, a ponto de tirar sua auto-estima e sua capacidade de ser diverso e plural.Até então diversidade cultural, essa expressão mágica a que tudo se aplica e justifica, era tão somente a capacidade de expressão de um povo e sua vasta riqueza plural e difusa. Ainda não existia para mim o vasto mundo das relações internacionais, os mais rigorosos sistemas de controle sobre conteúdos e propriedade sobre empresas de comunicação e conteúdos culturais, até os mais abertos, liberais e kamikazes programas de diálogo e comércio de bens simbólicos.Nesse momento já havia descoberto que era esta a grande vocação do Brasil e que seria por meio não somente dela, cultura, mas também da percepção que poderíamos fazer dela, que o país se tornaria viável.O desafio é valorizar o que somos segundo nosso próprio referencial. Ter a convicção de onde podemos chegar conforme nossos próprios valores. Ter consciência de que o mapa é antes uma visão autoritária do cartógrafo. Digo isso sem resquício xenófobo, apenas como parte da contribuição que o Brasil, a China e a Índia, entre outros, podem dar ao mundo.Podemos inventariar e transformar em produto o que a dinâmica cultural produz, mas nunca uma cultura. É fundamental termos isso debatido, para não corrermos o risco de reduzir o entendimento do tema. Muitas vozes no mundo tratam diversidade cultural apenas como um elemento de troca comercial, ou seja, dos produtos e serviços de valor simbólico produzidos por determinada cultura, sem enxergar sua própria essência e os efeitos destes sobre as culturas envolvidas, sobretudo as mais fragilizadas economicamente.Negar o produto também não é o caminho. Só não podemos reduzir cultura a isto. Seria como negar a complexidade da nossa existência, afirmar que tudo o que somos pode ser trocado por moeda. Nossas idéias, ideais, utopias podem servir de troco. O que observamos é que, de uma forma ou de outra, é isso que os organismos internacionais fazem, impulsionados sempre por interesses econômicos dos países desenvolvidos que abrigam a questão.

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Por tudo isso, atuar na atividade cultural é algo que exige conhecimento genérico e específico, ao mesmo tempo. É necessário saber balancear uma formação humanística ampla e consistente, capaz de apreender e decodificar nuanças, especificidades e contextos necessários para compreender melhor a teia de relações e interesses onde se está inserido, em especial os políticos e econômicos, com o conhecimento técnico que o habilite a dialogar com todas as instâncias da sociedade.

Sobre o desafio da formação

No fim de �006, fiz uma sondagem informal com um grupo de �5 profissionais de gestão cultural que de alguma forma estavam ligados à atuação da Brant Associados, com vistas ao desenvolvimento de um curso de formação para gestores.

Selecionei abaixo trechos das respostas de alguns desses profissionais, que nos sugerem um olhar sobre o processo de formação:

>> A sua opção por atuar na área cultural foi despertada, de alguma forma, durante o seu processo de formação acadêmica?

“Foi durante a faculdade de comunicação que pensei pela primeira vez em trabalhar efetivamente nessa área.” (gestora cultural)

“Sim, optei por estudar relações internacionais e um dos conteúdos que mais me interessavam era políticas culturais internacionais.” (sócia de empresa de gestão cultural)

“O interesse pela atividade veio de uma identificação antiga e afetiva com as manifestações culturais e as artes. Ainda assim, de alguma forma, o fato de ter trabalhado em uma agência de publicidade com valores com os quais eu não me sentia confortável muitas vezes, sem dúvida, me motivou a procurar uma outra área onde eu pudesse encontrar um caminho mais próximo da minha verdade.” (empreendedor cultural)

>> Você considera necessária uma formação específica em gestão cultural?

“Sim, ou pelo menos uma formação complementar que consiga alinhavar o conhecimento das diversas áreas que integram o processo da gestão cultural.” (gestora)

“Se falar em formação específica pressupõe um modelo de aprendizado e de determinados conteúdos estabelecidos, creio que não. Entretanto, acho fundamental a absorção de três tipos de habilidades: o conhecimento provindo da prática, da experiência com diversos tipos de projetos; a capacidade reflexiva que proporciona o entendimento amplo do que é cultura...” (empreendedor)

“Sim, há anos procuro curso de especialização na área, mas nunca encontrei nada realmente interessante no Brasil, apenas na França, Espanha e Buenos Aires.” (empreendedora)

>> Em sua opinião, qual a principal deficiência de formação que os gestores culturais encontram atualmente?

“Acho que faltam nos cursos conteúdos com uma vertente mais sociológica, não somente mercadológica. Ou, melhor ainda, cursos de formação que saibam equilibrar e integrar de maneira coerente teoria e prática, que é um ponto-chave para se formar um gestor cultural.” (produtora)

“Acho que o gestor cultural deve ser hábil como executivo nos processos administrativos e, ao mesmo tempo, lúcido e sensível ao lidar com processos subjetivos.” (produtor)

“Falta de cursos extensivos de especialização. É fundamental que os cursos estejam bem linkados com a prática e atendam dificuldades especificas que lidamos no dia-a-dia.” (gestora)

>> Das dificuldades que você encontra em sua formação, qual(is) é(são) a(s) mais difícil(eis) de conseguir em programas de formação oferecidos no mercado?

“Sinto falta de programas que tratem do tema “avaliação” – seja avaliação de um processo contínuo, de público, de resultados – em um projeto cultural (seja um evento ou uma instituição) a curto, médio ou longo prazos, quantitativa e qualitativamente.” (gestora)

“Os cursos estão muito voltados para instrumentalização (cursos de ferramentas) que não me parecem agregar conhecimento.” (empreendedora)

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“Acho que a atividade de gestão deve ser aprendida, em sua grande parte, no exercício. Ou melhor, na reflexão sobre o exercício.” (gestor)

Percebe-se, baseando-se nessa série de entrevistas, que a busca de um equilíbrio entre a formação teórica humanística e a práxis, pela via da tradução para o cotidiano do pensamento filosófico, e de uma visão menos fechada e preconcebida do mundo pode se tornar uma boa solução para o desenvolvimento profissional dos gestores culturais.

É preciso buscar meios de destrinchar conceitos ligados ao manejo da questão simbólica e apresentar cenários capazes de representar realidades complexas e diversas, em detrimento das cartilhas de formação técnica e linear.

São premissas para a formação desse profissional: compreender as contradições do nosso processo civilizatório e seu atual estágio; assumir a cultura como o amálgama capaz de oferecer uma visão complexa dessas contradições; além de buscar formas de construir novos sistemas sociais capazes de lidar com elas, tendo o humano como ponto de partida.

A atividade cultural exige agentes preparados e dispostos a pensar e atuar com base em novas possibilidades, mais complexas, múltiplas e coerentes com as questões colocadas pela sociedade contemporânea; capazes de pensar uma nova agenda política para lidar com os desafios do mundo atual, articular setores governamentais, sociedade e mercado para atuarem alinhados em torno dessa agenda, além de desvendar a cultura como ponto de partida, como meio de construção dessa agenda e como eixo central dos novos paradigmas de desenvolvimento.

O segredo para sair da linearidade do mercado talvez esteja no exercício de uma abordagem multidimensional para a atividade cultural. Ao implementar um processo de natureza cultural, o gestor deve estar apto a lidar com inúmeras vertentes que, juntas, conferem ao processo a riqueza necessária para desviar-se dessas armadilhas.

Qualquer atividade cultural, do Cirque du Soleil ao maracatu rural de Pernambuco, é parte integrante deste “conjunto distintivo de atributos materiais, espirituais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou grupo” definido pela Unesco. Cuidar dessa dimensão é essencial para que não perca sentido dentro do próprio contexto social onde foi gerada.

Cuidar da dimensão econômica, por exemplo, já exige outro olhar, mais voltado para os processos de produção, distribuição, troca, uso ou consumo dos bens simbólicos – que pode ser complementado com um conjunto de instrumentos de apropriação desses bens.

Essa dimensão é complementar ao desenvolvimento artístico, à pesquisa de linguagem e à proposta estética que a atividade propõe, que por sua vez não está desvinculada de valores éticos e morais, tampouco de sua dimensão cidadã.

É preciso, sobretudo, entender esse ambiente da economia da cultura como algo em pleno processo de transformação e desenvolvimento. Um mercado promissor, mas ainda incipiente, o que exige uma intensa articulação entre os membros dessa cadeia produtiva para a conquista de um olhar mais apurado da sociedade em relação à sua importância estratégica.

Profissão cultura

A atividade cultural é composta de uma diversa e abrangente cadeia produtiva, com diversas funções e especificidades. Cada um desses agentes possui um papel distinto, complementar e fundamental na composição de um setor cultural rico e produtivo, que contribua para o desenvolvimento social e econômico do país.

Na área de produção, a cadeia inclui pesquisadores, artistas, criadores, produtores, administradores e técnicos. Em sua maioria, profissionais liberais que têm sua própria empresa e que circulam com certa liberdade pelo mercado, mas ao mesmo tempo convivem com a insegurança do trabalho eventual.

Já as organizações culturais passaram na última década por um processo de profissionalização surpreendente. Era raro encontrarmos centros culturais, fundações, organizações culturais públicas, privadas e do terceiro setor com agentes plenamente capacitados para desenvolver suas funções. Por outro lado, era raro encontrar condições favoráveis para esse funcionário. Com regimes de trabalho muito informais e remuneração incompatível com o exercício de suas funções, os bons profissionais preferiam arriscar-se no mercado.

Outro campo em pleno desenvolvimento é o departamento de cultura e patrocínio das empresas investidoras. Impulsionadas pelas oportunidades geradas pelas leis de incentivo à cultura, elas criaram departamentos e contrataram profissionais para gerir políticas de cultura e de comunicação empresarial focadas no investimento cultural.

O próprio poder público ampliou as oportunidades de trabalho para a área da cultura. É crescente a demanda por profissionais responsáveis pela formulação e gestão de políticas culturais.

Ainda no meio acadêmico e na imprensa encontramos oportunidade de trabalho para esses profissionais, que podem atuar como críticos, curadores e pesquisadores.

Promover a transformação da sociedade por meio da cultura significa encadear esforços de todos esses agentes de forma que permita a consolidação de um mercado qualificado, capaz de produzir e consumir cultura.

O desenvolvimento social proporcionado pela ação cultural dá-se de forma espiralar, ligando todos os elementos e aumentando a base estrutural que garante a consolidação do espírito crítico da sociedade. Esse processo ocorre ao mesmo tempo em que se estrutura como um mercado capaz de fornecer insumos necessários, oferecendo base sólida à sociedade e proporcionando um crescimento cíclico em progressão geométrica, com a ampliação de sua base.

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Introdução

O documento apresentado nas páginas seguintes resultou de procedimentos regimentais de várias instâncias administrativas e políticas da União Européia. Em maio de �007, a Comissão das Comunidades Européias, reunida em Bruxelas, propôs ao Parlamento Europeu, ao Conselho da União Européia, ao Comitê Econômico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões o que chamou de “uma agenda européia para a cultura num mundo globalizado”.

A comunicação estava baseada em três conjuntos de valores: diversidade cultural e diálogo intercultural; cultura como catalisador para a criatividade; e cultura como componente-chave nas relações internacionais. Essa agenda, preparada segundo as recomendações de ampla consulta pública on-line, foi aprovada pelo setor cultural europeu durante a realização do Fórum de Lisboa (Fórum Cultural para a Europa), em setembro de �007.

Endossada pelo Conselho em sua Resolução de novembro de �007, foi incluída nas Conclusões da Presidência do Conselho Europeu de dezembro de �007, como “importante passo para a ampliação da coerência e da visibilidade da ação da União Européia nesse campo, maximizando o potencial da cultura e das indústrias criativas, em especial das pequenas e médias empresas, contribuindo dessa maneira com os objetivos da Agenda de Lisboa�”.

AGENDA EUROPÉIA PARA A CULTURA

Resolução do Conselho da União Européia, de 16 de novembro de 2007, sobre uma Agenda Européia para a Cultura

O Conselho da União Européia,

�) Recordando os objetivos atribuídos à Comunidade Européia nos termos do artigo �5� do Tratado�;

�) Remetendo para as disposições da Convenção da Unesco sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais;

�) Tendo em conta a Comunicação da Comissão de �0 de maio de �007 sobre uma agenda européia para a cultura num mundo globalizado�;

�) Recordando as suas conclusões de �� de maio de �007 sobre a contribuição dos setores cultural e criativo para a realização dos objetivos de Lisboa�;

5) Tendo em conta a experiência adquirida com o planejamento e a implementação dos planos de trabalho do Conselho para �00�-�00� e �005-�007;

6) Tendo em conta os resultados do Primeiro Fórum Cultural para a Europa, realizado em Lisboa em �6 e �7 de setembro de �0076;

7) Convicto de que a cultura e a sua especificidade, incluindo o multilingüismo, são elementos-chave do processo de integração européia baseado em valores comuns e em um patrimônio comum – processo que reconhece, respeita e promove a diversidade cultural e a função transversal da cultura;

8) Salientando que a cultura e a criatividade são fatores determinantes do desenvolvimento pessoal, da coesão social, do crescimento econômico, da criação de emprego, da inovação e da competitividade;

9) Partilhando a opinião de que o papel da cultura deverá ser objeto de maior reconhecimento no novo ciclo em que a Agenda de Lisboa entrará em �008;

�0) Considerando que a cultura deverá desempenhar um papel importante nas relações externas da União Européia como meio de reforço da cooperação internacional;

� A Agenda de Lisboa, ou Estratégia de Lisboa, é um plano de ação para a União Européia, definido em reunião do Conselho Europeu em março de �000, em Lisboa. Seu objetivo é transformar a Europa na mais dinâmica e competitiva economia baseada no conhecimento, garantindo o crescimento econômico sustentável, com mais e melhores empregos, maior coesão social e respeito ao meio ambiente. .8�.8�

� Tratado da União Européia, de �99�.

O artigo �5� define a composição e as

atribuições do Conselho da União Européia.

� Doc. 9�96/07 e documento de trabalho

anexo que contém o inventário das ações

comunitárias no domínio da cultura (doc.

9�96/07 ADD �).

� Doc. 90��/07.

5 JO C �6� de 6.7.�00�, e doc. ��8�9/0�.

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��) Sublinhando os fortes laços que unem a cultura e o desenvolvimento, e registrando com agrado um papel mais pró-ativo dos Estados-Membros e da Comissão no contexto da respectiva assistência externa, a fim de propiciar a emergência de um setor cultural dinâmico nos países em desenvolvimento, e levando em consideração sugestão da Comissão de reforçar a mobilização e a diversificação do financiamento a favor de um melhor acesso das populações locais à cultura, e dos bens culturais de tais países aos mercados europeus;

��) Salientando a importância de aprofundar o diálogo intercultural em nível internacional, incluindo os países em situações de fragilidade, e de envolver intervenientes não-governamentais a fim de promover um maior conhecimento e entendimento.

Agenda Européia para a Cultura

�. SAÚDA a proposta da Comissão de definir uma Agenda Européia para a Cultura, entendida como um importante passo para continuar a desenvolver a cooperação no domínio cultural e para melhorar a coerência e a visibilidade da ação européia nesse domínio, reforçando ao mesmo tempo a função transversal da cultura;

Objetivos estratégicos

�. SUBSCREVE os três objetivos estratégicos apresentados na Comunicação da Comissão com vista a definir uma Agenda Européia para a Cultura partilhada, a saber:

a) Promoção da diversidade cultural e do diálogo intercultural;

b) Promoção da cultura como catalisador da criatividade no âmbito da Estratégia de Lisboa para o crescimento, o emprego, a inovação e a competitividade;

c) Promoção da cultura como elemento vital nas relações internacionais da União.

Objetivos específicos

�. ACORDA que estes três objetivos estratégicos devem ser discriminados como segue:

A. No que respeita à promoção da diversidade cultural e do diálogo intercultural:

– incentivar a mobilidade dos artistas e de outros profissionais do campo da cultura;

– promover o patrimônio cultural, facilitando nomeadamente a mobilidade das coleções e fomentando o processo de digitalização, com vista a melhorar o acesso do público a diferentes formas de expressão cultural e lingüística;

– promover o diálogo intercultural como um processo sustentável que contribui para a identidade européia, a cidadania e a coesão social, designadamente através do desenvolvimento das competências interculturais dos cidadãos.

B. No que respeita à promoção da cultura como catalisador da criatividade:

– promover um melhor uso das sinergias entre a cultura e a educação, em especial encorajando a educação artística e a participação ativa em atividades culturais com vista a desenvolver a criatividade e a inovação;

– promover a disponibilidade de capacidades de formação em matéria de gestão e em matéria comercial e empresarial destinadas especialmente aos profissionais dos domínios cultural e criativo;

– fomentar um ambiente favorável ao desenvolvimento de indústrias culturais e criativas, incluindo o setor audiovisual, otimizando assim as respectivas potencialidades, particularmente no caso das pequenas e médias empresas, nomeadamente através de uma melhor utilização dos programas e iniciativas existentes e estimulando parcerias criativas entre o setor cultural e outros setores, nomeadamente no contexto do desenvolvimento local e regional.

C. No que respeita à cultura como elemento vital nas relações internacionais:

– reforçar o papel da cultura nas relações externas e na política de desenvolvimento da União Européia;

– promover a Convenção da Unesco sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais e contribuir para a sua implementação em nível internacional;

– favorecer o diálogo e a interação cultural entre as sociedades civis dos Estados-Membros e de países terceiros;

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– incentivar o prosseguimento da cooperação entre instituições culturais dos Estados-Membros da União Européia, incluindo os institutos culturais, em países terceiros e com os seus parceiros nesses países.

Subsidiariedade6 e flexibilidade

�. SALIENTA que as ações em prol desses objetivos deverão ter um verdadeiro valor agregado europeu e deverão ser realizadas no pleno respeito do princípio da subsidiariedade, e que essas diretrizes comuns no nível da União Européia não impedirão a definição e a implementação pelos Estados-Membros dos seus próprios objetivos políticos nacionais.

5. SUBLINHA que esses objetivos deverão ser considerados como um enquadramento flexível para orientar a futura ação no domínio cultural.

Métodos de trabalho

Diálogo com o setor cultural

6. ACORDA que um diálogo contínuo, multidimensional e flexível com as partes interessadas do mundo da cultura e em concordância com o setor em todos os níveis (local, regional, nacional e europeu) é essencial tanto para o desenvolvimento como para a realização de uma Agenda Européia para a Cultura.

7. SAÚDA a intenção da Comissão de identificar interlocutores representativos do setor e de realizar um levantamento do setor, a fim de estabelecer canais de comunicação e estruturar o diálogo com as partes interessadas.

8. ACORDA, tendo em vista o impacto positivo do Primeiro Fórum Cultural realizado em Lisboa em �6 e �7 de setembro de �007, que a interação com e no interior das sociedades civis tanto em nível nacional como europeu é um importante elemento para conhecer as opiniões das partes interessadas no contexto de um exercício regular de informação.

Método aberto de coordenação

9. CONSIDERA que a nova abordagem proposta pela Comissão para a cooperação no domínio da cultura, nomeadamente utilizando o método aberto de coordenação (MAC) em uma forma

6 Subsidiariedade é o princípio que determina que os assuntos devem ser tratados, sempre que possível, pela autoridade mais baixa. Parte do pressuposto de que os instrumentos estatais para a satisfação dos interesses da sociedade devem estar o mais próximo possível do indivíduo, ou seja, de quem legitima o poder público estatal. Reporta-se aos princípios do federalismo, à limitação dos poderes do Estado e ao fortalecimento das liberdades individuais.

especificamente adaptada e tendo em vista as especificidades do setor, fornecerá um enquadramento flexível e não vinculativo para estruturar a cooperação em torno dos objetivos estratégicos da Agenda Européia para a Cultura e para fomentar o intercâmbio das melhores práticas.

�0. DECIDE que:

a) o MAC será aplicado utilizando uma abordagem flexível adequada ao domínio cultural, no pleno respeito das competências dos Estados-Membros, incluindo as competências das autoridades regionais e locais, e em conformidade com o princípio da subsidiariedade. A participação dos Estados-Membros nas ações e processos visados será voluntária;

b) ao implementar o MAC, será dada especial atenção à necessidade de reduzir ao máximo os encargos financeiros e administrativos para os diferentes intervenientes, de acordo com o princípio da proporcionalidade, como previsto no Tratado CE7;

c) os objetivos da Agenda Européia para a Cultura serão implementados mediante planos de trabalho trienais que abrangerão o limitado número de domínios prioritários que o Conselho considerar adequados para o enquadramento do MAC no correspondente período. Com base em tais domínios prioritários, a Comissão proporá ações específicas para os planos de trabalho, que serão debatidos, completados e atualizados e, sempre que necessário, avalizados pelo Conselho de Ministros;

d) o Conselho, em cooperação com a Comissão, desempenhará um papel central no sentido de assegurar a continuidade e o seguimento das áreas de ação prioritárias e de preservar a dinâmica do processo;

e) após consulta da instância competente do Conselho (Comitê dos Assuntos Culturais), a Comissão elaborará um relatório a ser apresentado ao Conselho com base, designadamente, na informação voluntariamente fornecida pelos Estados-Membros de acordo com os princípios estabelecidos nas alíneas a e b do nº �0 supra;

f ) a fim de reforçar a sensibilização para a visibilidade da cooperação cultural em nível europeu, os agentes culturais e o grande público serão informados sobre os objetivos e as ações prioritárias do plano de trabalho.

��. ACORDA, nos termos da alínea c do nº �0, que o plano de trabalho para o período de �008 a �0�0 deverá centrar-se nas áreas prioritárias de ação previstas no Anexo.

7 Artigo 5º do Tratado, como interpretado

pelo Protocolo nº �0 relativo à aplicação

dos princípios de subsidiariedade e de

proporcionalidade, anexo ao Tratado

que institui a Comunidade Européia,

nomeadamente o ponto 9.

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��. O Conselho poderá, em cooperação com a Comissão, rever a aplicação do MAC no domínio cultural à luz dos progressos realizados e tendo em conta o exercício de informação e avaliação referido na alínea e do ponto �0.

��. O Parlamento Europeu, o Comitê Econômico e Social Europeu e o Comitê das Regiões serão informados acerca da implementação dos planos de trabalho.

Aspectos horizontais

��. CONVIDA a Comissão a prosseguir os seus trabalhos no domínio das estatísticas culturais em termos de definições e de metodologias com vista a obter uma comparabilidade dos dados estatísticos que apóie a tomada de decisões políticas fundamentadas.

�5. SAÚDA a criação pela Comissão de um grupo interserviços que diligenciará no sentido de os aspectos culturais serem levados em conta na sua ação ao abrigo de outras disposições do Tratado, como estabelecido no nº � do artigo �5� do TCE.

�6. RECOMENDA que a interface entre os aspectos culturais e outras políticas comunitárias seja reforçada, através da coordenação entre as configurações pertinentes do Conselho relativas a questões que tenham um impacto na cultura e através da criação de um mecanismo eficaz e coerente de informação regular e de seguimento dos aspectos culturais ao abrigo de outras disposições do Tratado.

�7. CONVIDA o Conselho Europeu a subscrever as presentes conclusões, que definam um enquadramento para a Agenda Européia para a Cultura.

ANEXO

Áreas prioritárias de ação para o período 2008-2010

Em conformidade com o disposto na alínea c do ponto �0 e do ponto �� supra, serão realizadas as seguintes ações prioritárias no âmbito dos objetivos estratégicos da Agenda Européia para a Cultura:

– melhorar as condições para a mobilidade dos artistas e de outros profissionais do campo da cultura;

– promover o acesso à cultura, nomeadamente através da promoção do patrimônio cultural, do multilingüismo, da digitalização, do turismo cultural, das sinergias com a educação – especialmente a artística – e de uma maior mobilidade das coleções de arte;

– desenvolver dados, estatísticas e metodologias no setor cultural e incrementar a sua comparabilidade;

– otimizar as potencialidades das indústrias culturais e criativas, em particular a das pequenas e médias empresas;

– promover e implementar a Convenção da Unesco sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.

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