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Revista de Ciências Humanas, Viçosa, v. 14, n. 2, p. 423-445, jul./dez. 2014 423 O Cristianismo Popular da África Central e a formação da religião do Vodou no Haiti 1 Central African Popular Christianity and the Making of Hai- tian Vodou Religion Hein Vanhee 2 Tradução de Cristina Wissenbach 3 Não há mais nada a dizer aos missionários sobre os negros do Congo e de Angola que serão enviados a essas regiões para o ensinamento da religião cristã a não ser que esses negros fazem sem escrúpulos o que fizeram os filisteus — eles juntam a Arca com o Dagon e conservam em segredo todas as superstições dos seus antigos cultos com as cerimônias da religião cristã. Jean-Baptiste Labat, in Voyages aux Isles de l´Amerique (Antilles), 1693-1705 1 Este artigo foi publicado originalmente em inglês como “Central African Popular Christianity and the Making of Haitian Vodou Religion,” in: Linda Heywood (ed.), Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), pp. 243-264. 2 Hein Vanhee é Mestre em História da Arte (Ghent University, Bélgica) e em Anthropologia da Arte (University of East Anglia, Reino Unido). Trabalha como curador do Royal Museum for Central Africa em Tervuren, Bélgica. Atualmente, seus interesses de pesquisa incluem a história da África Centro-Ocidental e suas diásporas e a história colonial do Congo (Re- pública Democrática do Congo/RDC). Tem publicado sobre a arte do Kongo, história co- lonial, literatura colonial e direção da coleção. O autor está no processo de escrever a tese de doutorado sobre a história da interação entre chefes locais e a administração colonial belga em Mayombe, no Baixo Congo (RDC), entre os anos 1890 a 1930. E-mail do autor: [email protected] 3 Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Email: criswis@usp. br

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  • Revista de Cincias Humanas, Viosa, v. 14, n. 2, p. 423-445, jul./dez. 2014 423

    O Cristianismo Popular da frica Central e a formao da religio do

    Vodou no Haiti1 Central African Popular Christianity and the Making of Hai-

    tian Vodou Religion

    Hein Vanhee2 Traduo de Cristina Wissenbach3

    No h mais nada a dizer aos missionrios sobre os negros do Congo e de Angola que sero enviados a essas regies para o ensinamento da religio crist a no ser que esses negros fazem sem escrpulos o que fizeram os filisteus eles juntam a Arca com o Dagon e conservam em segredo todas as supersties dos seus antigos cultos com as cerimnias da religio crist.

    Jean-Baptiste Labat, in Voyages aux Isles de lAmerique (Antilles), 1693-1705

    1 Este artigo foi publicado originalmente em ingls como Central African Popular Christianity and the Making of Haitian Vodou Religion, in: Linda Heywood (ed.), Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), pp. 243-264.

    2 Hein Vanhee Mestre em Histria da Arte (Ghent University, Blgica) e em Anthropologia da Arte (University of East Anglia, Reino Unido). Trabalha como curador do Royal Museum for Central Africa em Tervuren, Blgica. Atualmente, seus interesses de pesquisa incluem a histria da frica Centro-Ocidental e suas disporas e a histria colonial do Congo (Re-pblica Democrtica do Congo/RDC). Tem publicado sobre a arte do Kongo, histria co-lonial, literatura colonial e direo da coleo. O autor est no processo de escrever a tese de doutorado sobre a histria da interao entre chefes locais e a administrao colonial belga em Mayombe, no Baixo Congo (RDC), entre os anos 1890 a 1930. E-mail do autor: [email protected]

    3 Professora do Departamento de Histria da Universidade de So Paulo. Email: [email protected]

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    RESUMO: Este trabalho levanta ques-tes sobre a emergncia histrica do Vodou como uma viso de mundo mais ou menos compartilhada e como uma prtica ritual entre os descendentes de uma populao extremamente heterog-nea de africanos escravizados, trazidos a So Domingos no curso do sculo XVIII. Com poucas notveis excees, a maior parte das anlises do Vodou haitiano, que tenta um aprofundamento histrico, sofre de afirmaes acrticas e anacrnicas. Entre elas, uma srie de mal-entendidos daquilo que constitui o Vaudoux colonial e o papel que teve na celebrada Revoluo Haitiana, algumas persistentes e falsas noes acerca da composio tnica da populao es-crava exportada para a So Domingos no sculo XVIII e, finalmente, algumas representaes anacrnicas sobre a na-tureza e a histria do sincretismo entre o Catolicismo Romano e as tradies africanas.

    ABSTRACT: This work raises issues concerning the historic emergence of Voodoo as a world view more or less shared and as a ritual practice between the descendants of a population extre-mely heterogeneous of slave Africans, brought to Saint Domingos during the eighteenth century. With few notable exceptions, most part of the analysis of the Haitian Voodoo, which tries a his-toric deepening, suffers of anachronistic and uncritical affirmatives. Among them, a series of misunderstandings from that which constitutes the Colonial Vaudoux and its role in the celebrated Haitian Revolution, some persistent and false notions about the ethnic composition of the slave population exported to Saint Domingos in the eighteenth century and, finally, some anachronistic representa-tions on the nature and history of the syncretism between Roman Catholicism and African traditions.

    PALAVRAS-CHAVE: Catolicismo. Sincretismo. VodouKEYWORDS: Catholicism. Syncretism. Voodoo.

    Entre os documentos governamentais da dcada de 1760 na florescente colnia de So Domingos, encontramos relatrios alarmantes sobre os escravos das plantations misturando livremente o catolicismo com suas prticas pags. Mais do que isso, parece no ser incomum encontrar entre eles aqueles que agem como missionrios e padres, descarregando uma doutrina que est substituindo os ensinamentos catlicos. Mesmo os sacramentos, diziam, esto sendo abusados.4 Tais observaes alarmantes j haviam sido feitas anteriormente por Labat, nos incios do sculo XVIII, e so encontradas nos relatos posteriores sobre a religio dos escravos e as prticas culturais das plantations de So Domingos. Depois da Revoluo Haitiana, a rala documentao histrica que temos afirma um processo contnuo de apropriao e reformulao de rituais, textos e objetos vindos do Catolicismo Romano principalmente diante da ausncia de sacerdotes

    4 Arrt de Rglement du Conseil du Cap, 18 de fevereiro de 1761; Jean Fouchard, Les marrons de la libert (Paris, dition de lcole, 1972), p. 499; George Breathett, Catholic missionary activity and the Negro slave in Haiti, Phylon, 23:3 (1962): 282.

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    regulares e missionrios. A religio Vodou do sculo XX, como a religio da populao negra do Haiti, como geralmente conhecida, exibe numerosas referncias ao Catolicismo Romano, que provocaram os mais divergentes comentrios na mdia popular, como tambm nos estudos acadmicos.

    Este trabalho levanta questes sobre a emergncia histrica do Vodou como uma viso de mundo mais ou menos compartilhada e como uma prtica ritual entre os descendentes de uma populao extremamente heterognea de africanos escravizados, trazidos a So Domingos no curso do sculo XVIII. Com poucas notveis excees s quais retornarei a seguir, a maior parte das anlises do Vodou haitiano, que tenta um aprofundamento histrico, sofre de afirmaes acrticas e anacrnicas. Entre elas, uma srie de mal-entendidos daquilo que constitui o Vaudoux colonial e o papel que teve na celebrada Revoluo Haitiana, algumas persistentes e falsas noes acerca da composio tnica da populao escrava exportada para a So Domingos no sculo XVIII e, finalmente, algumas representaes anacrnicas sobre a natureza e a histria do sincretismo entre o Catolicismo Romano e as tradies africanas.

    Critrios convencionais afirmam que as contribuies culturais do antigo Daom foram dominantes na constituio do Vodou colonial. Isso era assumido porque se acreditava que a maioria dos escravos trazidos a So Domingos se originasse da Costa dos Escravos, na frica Ocidental, e porque parecia que metade do vocabulrio ritualstico do Vodou de hoje em dia se remetesse s lnguas da frica Ocidental.5 Suzanne Preston Blier, estudando as artes do Vodou na frica Ocidental, apontou as razes do Vodou haitiano em direo s reas do Benin e do Togo.6 Robert Farris Thompson, no entanto, esteve igualmente convencido em associar mui-tas das artes do Vodou Haitiano s tradies da frica Centro-Ocidental, mostrando a continuidade das figuras nkisi, cosmogramas, bandeiras, tambores e danas no Vodou haitiano contemporneo.7 Enquanto grande parte dessas anlises de histria da arte, baseadas na comparao entre o material contemporneo do Haiti e o africano, possa ser plausvel, elas nos ensinam muito pouco sobre a emergncia e a natureza do Vodou no

    5 Melville J. Herskovits, Life in a Haitian Valley (Nova York: Anchor Books, 1971 [1937]), p. 23; Maya Deren, Divine Horseman. Voodoo Gods of Haiti (London, New York: Thames and Hudson, 1953); p. 60; Roger Bastide, Civilizaes africanas no Novo Mundo (ed. Inglesa, London: C. Hurst, 1971 [1967]), pp. 140-41; Leslie Desmangles, The Vodun way of death: cultural symbiosis of Roman Catholicism and Vodou in Haiti, Journal of Religious Thought, 36:1 (1979), p. 8.; L. De Heusch, Kongo in Haiti: a new approach to religious sincretism, Man, 24:2 (1989): 291; Suzanne P. Blier, West Africa roots of Vodou, in Sacred Arts of Haitian Vodou, ed. Donald Cosentino (Los Angeles: UCLA, 1995), pp. 83-87.

    6 Blier, West African roots, p. 83-87.7 Robert F. Thompson, From the Isle beneath the sea: Haitis Africanizing Vodou art, in

    Sacred Arts, p. 101-119.

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    sculo XVIII. Como ser visto, evidentemente que as razes do Vodou so muitas. Os historiadores e os antroplogos chamaram a ateno para o papel do Vodou, como religio da massa negra, na luta pela independn-cia do Haiti. Para muitos estudiosos, o Vodou foi de importncia decisiva na combusto de uma ideologia revolucionria e na criao e na organi-zao de ferramentas unificadas necessrias para a ampla insurreio de 1790.8 No entanto, a questo mais debatida no que diz respeito histria do Vodou a onipresente incluso de rituais catlicos, rezas, canes e imagens nas cerimnias e nos altares do Vodou. Muitos estudiosos consi-deram este fenmeno um produto especfico da crioulizao. Elementos que foram emprestados do Catolicismo aparecem como constitutivos de um vu superficial atrs do qual os haitianos continuam obstinadamente a praticar religies verdadeiramente africanas. Consequentemente, o concei-to de Bastide de sincretismo em mosaico longe de tudo a chave para compreender a complexidade de tais contaminaes.9 Ou como acreditam Desmangles e De Heusch, duas religies simbiticas que coexistem sem se mesclar.10 No sentido de criticar algumas dessas vises, tentarei definir mais acuradamente o que consistia o Vodou na segunda metade do sculo XVIII e refletir sobre o papel que possa ter tido nas lutas pela independncia. Irei depois focalizar as contribuies histricas significativas dos africanos centrais para a emergncia da religio popular do Vodou nos ltimos dois sculos. Irei argumentar particularmente que a incluso de ritos, frmulas, papis rituais, imagens e objetos vindos do Catolicismo Romano para o Vodou organiza a essncia da contribuio africana central para a formao da cultura popular haitiana.

    Antes de iniciar esta discusso, gostaria de me referir a alguns dos recentes estudos sobre as estatsticas do trfico atlntico de escravos para So Domingos, no sentido de refutar o predomnio dos daomeanos. Nmeros e porcentagens de escravos africanos de uma origem especfica no podem ser tomados como prova de razes especficas de fenmenos culturais, mas podem fornecer uma til informao de base. De algumas poucas centenas nos incios do sculo XVIII, a populao escrava de So Domingos cresceu exponencialmente para cerca de meio milho s vsperas da Revoluo Hai-

    8 C. L. R. James, The Black Jacobins. Toussaint Louverture and the Saint Domingue Revolu-tion (New York: Vintage Books, 1963, p. 18; Carolyn Fick, The Making of Haiti: The Saint--Domingue Revolution from Below (Knoxville: The University of Tennessee Press, 1990), p. 58; Terry Rey, Classes of Mary in the Haitian religious field: a theorical analysis of the effects of social-economics class on the perception and uses of a religious symbol (Ph.d diss., Temple University, 1996), pp. 278, 295.

    9 Roger Bastide, African Civilization in the New World (New York, Harper & Row, 1971), p. 155.

    10 Leslie Desmangles, The faces of Gods: Vodou and Roman Catholicism in Haiti (Chapell Hill: The North Carolina Press, 1992), p. 8-9; De Heusch, Kongo in Haiti, p. 291-292.

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    tiana. Gabriel Debien avaliou os ndices de mortalidade dos recm-importados africanos durante os 3 a 8 primeiros anos de sua induo em pelo menos 50%.11 O crescimento contnuo da economia de plantation e estes altos n-dices de mortalidade mantiveram a necessidade de altos fluxos de uma nova fora de trabalho. Como resultado, 2/3 dos escravos que trabalhavam na So Domingos na dcada de 1780 eram nascidos, criados e educados na frica.12 Anlises recentes dos registros de navios e dos inventrios das fazendas co-loniais revelam mais detalhes acerca da composio tnica das importaes de escravos no sculo XVIII. A contribuio de Joseph Miller neste volume indica que, em meados do sculo XVIII, os navios franceses, de forma cada vez maior, compravam escravos na parte norte do rio do Congo, nos portos de Malembo e Cabinda para suprir o crescente mercado de So Domingos. A anlise feita por David Geggus com base nos inventrios das plantaes mostrou que estes africanos centrais formavam os maiores grupos nas dca-das de 1770 e 1780. Se olharmos para as provncias do norte, veremos que os centro-africanos perfazem 64% do nmero total de escravos trabalhando nos cultivos de ndigo e de caf, e 44% dos trabalhadores nas plantations de acar. Isso corresponde a 17% de africanos da Costa dos Escravos nas plan-taes de ndigo e de caf e 30% nas de acar. Nas provncias do sul e do oeste, as diferenas eram menores, mas aparentemente o nmero de aradas ou daomeanos no chegava a exceder os da frica Centro-Ocidental.13 Uma vez que o incio da revoluo haitiana marcou o final do trfico de escravos a So Domingos, esperado que a composio tnica da populao neste tempo tenha algum impacto na histria cultural do Haiti.

    VAUDOUX E DOM PDREA primeira meno ao termo Vaudoux encontrada numa compilao composta pelo advogado crioulo Moreau de Saint-Mry.14 Escrevendo sobre

    11 Gabriel Debien, Les esclaves aux Antilles franaises (XVIIe-XVIIIe. Sicles) (Fort-de-France, Socite dhistoire de la Martinique, 1974), p. 83-84.

    12Sidney Mintz and Michel-Rolph Trouillot, The social history of Haitian Vodou, in Sacred Arts, p. 135

    13 David Geggus, Slave Society in the sugar plantation zones of Saint-Domingue and the Revolution of 1791, paper apresentado na Conferncia da Associao dos Historiadores Caribenhos, abril 1997; e Sugar and coffee cultivation in Saint-Domingue and the shaping of the slave labor force, in Cultivation and Culture: Labor and the Shaping of Slave Life in the Americas, eds. Ira Berlin and Philip Morgan (Charlottesville: The University of Virginia Press, 1993).

    14 Mdric Louis Elie Moreau de Saint-Mry, Description topographique, physique, civile, politique et historique de la partie franaise de l Isle de Saint-Domingue (Paris, Socit de lhistoire des colonies franaises, 1958 [1797]), p. 64. Embora publicada em 1797, Moreau de Saint-Mry notou que esta sua descrio data da dcada de 1780. Isso levou David Geggus a sugerir que talvez o autor tenha recebido muito de sua descrio de segunda mo; David Ge-ggus, Haitian Voodoo in the eighteenth century: language, culture and resistance, Jahrbuch fur Geschicte von Staat, Wirtschaft und GesellschaftLateinamerikas, 28 (1991): 23. Embora

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    a grande paixo que os escravos tinham por certas danas, ele menciona o Vaudoux como uma dana j conhecida h muito tempo, especialmente na provncia ocidental. Mais do que uma simples dana, o Vaudoux tido como uma daquelas instituies no geral constitudas por supersties e prticas bizarras. Moreau de Saint-Mry identifica Vaudoux entre africanos denominados na terminologia do sculo XVIII como aradas, que so vistos como os reais devotos, que fixavam os princpios e as regras. Em sua linguagem, o termo Vaudoux significava um todo poderoso e sobrenatural ser, representado por uma serpente mantida em uma caixa. Moreau de Saint-Mry listava os tipos de favores solicitados ao alto esprito Vaudoux. A maioria dos assistentes desejava poder para obter controle sobre a vontade de seus amos; alguns pediam por dinheiro, outros, pela recuperao da sade de algum parente; outros, ainda, pelo amor de homens e mulheres que desejavam. A cerimnia do Vaudoux era conduzida por um rei ou por uma rainha, os principais mediadores que revelariam, durante o transe, as respostas dos altos espritos. Depois destas revelaes, a dana do Vaudoux era iniciada e muitos dos devotos poderiam ser possudos pelo esprito.15

    O relato de Moreau de Saint-Mry foi tomado por muitos dos historiadores para sustentar a tese de que as origens do Vaudoux estavam no reino de Allada, na frica Ocidental. Isso est menos claro, no entanto, no relato escrito por Etienne Descourtilz que, logo aps Moreau de Saint--Mry, tentou descrever todas as naes de escravos que ele conseguia distinguir. Escrevendo sobre os Moambiques, ele se referiu a uma seita de seus Vaudoux ou convulsionrios. Em sua descrio, a cerimnia dos Vaudoux moambicanos aparecia como uma reunio noturna durante a qual alguns dos assistentes, enquanto danavam, entravam num transe de possesso, muito similar ao testemunhado por Moreau de Saint-Mry e associado aos Aradas. Nos comentrios de Dscourtilz sobre os aradas ou daomeanos, nota-se a ausncia de qualquer referncia a Vaudoux, reis ou rainhas, ou serpentes.16 Desejoso de encontrar mais sobre as seitas supersticiosas, Descourtilz assiste a uma outra cerimnia Vaudoux que teve lugar na sua prpria moradia. Esta cerimnia era conduzida por um sacerdote todo poderoso chamado Dompte, que se acreditava ter capa-cidade de descobrir qualquer coisa com seus olhos, independentemente do que poderia ser visto ou no. De acordo com um de seus informantes, a incerteza era punida com veneno, frequentemente usado por Dompte.17

    no indicado explicitamente no livro de Moreau de Saint-Mry, isso difcil de verificar.15 Moreau de Saint-Mry, Description, pp. 63-68.16 Essai sur les moeurs et les coutumes des habitants de Guine Saint-Domingue, Ms

    copia de notas por Michel Etienne Descourtilz; Archives Gnrales de la Congregation du Saint Esprit, Chevilly Larue, fol. 224, B, II, 8.

    17 Michel Etienne Descourtilz, Voyage dun Naturaliste en Haiti, 1799-1803 (Paris, Plon, 1935 [1809]0, p. 116.

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    A figura de Dompete tambm mencionada por Moreau de Saint-Mry. Em 1768, uma nova dana, anloga ao Vaudoux, foi introduzida por um escravo de Petit Goave, no sul. Esta dana, chamada Dom Pdre, era muito mais violenta que o Vaudoux, e os observadores viam que os danarinos misturavam plvora com a tafi para beber enquanto danavam. Depois que muitos dos devotos sucumbiram ao mais violento e exaustivo transe de possesso, o culto de Dom Pdre foi proibido pelas autoridades go-vernamentais no entanto, sem muito sucesso, como comentou Moreau de Saint-Mry.18 Outro relato narrou como, em dezembro de 1781, os ha-bitantes de Barradaires, na regio de Nippes, estavam buscando por um quilombola conhecido por Sim, chamado Dompte, que se acreditava estar praticando envenenamentos na regio.19 Por volta de 1814, o culto Petro foi identificado por Drouin de Bercy como sendo a mais perigosa de to-das as sociedades dos negros. Seus membros eram tidos como ladres, mentirosos e hipcritas, oferecendo conselhos malvolos que destroem o gado e os animais domsticos.20

    O que estes relatos separados e incompletos nos dizem sobre o Vodou no sculo XVIII? Primeiramente, parece que, nos finais do sculo XVIII, o termo Vaudoux deva ser interpretado como uma designao genrica para vrios cultos de possesso organizados por africanos nas plantaes coloniais. Isso foi literalmente afirmado pelos informantes de Descourttilz que notam que o Vaudoux era de diferentes naes. Mais do que afirmando uma origem exclusiva, os relatos de Moreau de Saint-Mry, Descourtilz e outros deixam claro que o Vodou no sculo XVIII se possvel usar este termo consiste meramente num amlgama de cultos de diferentes naes. Sem dvida que esses cultos convergem em torno de crenas e prticas comuns, mas esses processos permanecem amplamente invisveis para os observadores contemporneos. Pode-se, no obstante, captar um vislumbre de um processo de crioulizao quando se observa o lirismo de uma cano africana que Moreau de Saint-Mry adicionou descrio da cerimnia Arada de Vaudoux. O missionrio e o historiador do Congo, Jean Cuvellier, foi o primeiro a salientar que essa cano era aparentemente cantada em lngua Kicongo.21 A mesma cano foi notada

    18 Moreau de Saint-Mry, Description, p. 6919 John D. Garrigus, A struggle for respect: the free coloreds of pre-revolutionary Saint

    Domingue, 1760-69 (PhD diss. John Hopkins University, 1988).20 Drouin de Bercy, De Saint-Domingue, de ses guerres, de ses revolutions, de ses ressources,

    et des moyens prendre pour y rtablir la paix et lindustrie (Paris, Hocquet, 1814), citado em Garrigus, A struggle for respect.

    21 A msica diz: Eh! Eh! Bomba he! Hen!/Canga bafio t/Canga moune d l/Canga do ki la/Canga li; Moreau de Saint-Mry, Description, p., 67. A interpretao desta msica depende de uma acurada traduo do termo kanga, literalmente cegar, mas num contexto ritual com uma conotao de um golpe de desvio ou de proteo mgica do diabo. Jean Curve-

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    por um padre francs, reclamando da banda amaznica liderada pela prin-cesa Amesythe, uma de suas estudantes que havia sido iniciada na seita do Voudoux. Para seu desgosto, sua renegada estudante foi vista noite nos arredores de Cap Franais danando e cantando essa msica quicon-go.22 Outra cano similar foi includa no relato de Drouin de Bercy, de 1814.23 Tradues fantasiosas frequentemente transformaram essa cano num manifesto revolucionrio. David Geggus argumentou, no entanto, que estas canes Vaudoux so mais bem entendidas como invocaes a Mbumba, uma divindade congolesa qual era solicitada a destruio de todos os feiticeiros (bandoki), estivessem eles entre os negros ou entre a populao branca.24 Nos primrdios do sculo XX, o Mbumba no Congo era tanto um termo genrico para amuletos ou nkisi,25 quanto o nome de um nkisi particular associado com questes espirituais e de guerra.26 Os aparentes casos de mistura de imagens, rituais e msicas de vrias origens no seriam excepcionais. A realidade social de um pluralismo tnico nas plantaes de So Domingos e o carter inclusivo das religies africanas facilitaram emprstimos recprocos e o acmulo de vrios rituais e conceitos na organizao dos cultos.

    Enquanto outros termos foram usados no sculo XVIII para designar os cultos de possesso organizados pelos africanos tais como Calenda27, Chica28, Wangua29, e da em diante parece que Vaudoux e Petro se tornaram designaes dominantes para os cultos de possesso entre os trabalhadores africanos das plantaes, sendo o primeiro deriva-do do vocabulrio da frica Ocidental e o segundo, mais provavelmente,

    lier traduz: Oh! Mbumba serpente/ Segure os negros/Segure os homens brancos/Pare os ndoki (feiticeiros)/Pare-os; Jean Cuvelier, Lancien royaume du Congo (Brugge: Descle de Brouwer. 1946). Mais relaes sobre o sentido de kanga podem ser encontrados em John Thornton I am the subject of the King of Kongo: African political ideology and the Haitian revolution, Journal of World History, 4:2 (1993), 210-213.

    22 Jean-Marie Jam, Les congrgations religieuses Saint-Domingue, 1681/1793 (Port-au-Prince, 1951), citado em Rey, Classes of Mary, 277-278.

    23 A msica de Drouin de Bercy diz: A ia bombaia bomb/ Lamma samna quana/ E van vana dockei; Drouin de Bercy, De Saint-Domingue , traduzido por Geggus como: Oh! Honorvel Mbumba, oh! Mbumba/Leve embora/Tome pela fora/Sim mate e esmague esses feiticeiros!; Geggus, Haitian Voodoo in the Eighteen centurry, p. 26

    24 Geggus, Haitian Voodoo in the 18th century, p. 30-31.25 Minkisi coletados em Mayombe frequentemente tem as palavras mbumba em seus nomes

    prprios: Mbumba Mbingu, Mbumba Malele, Mbumba Makonda, etc. Sobre os vrios sentidos de mbumba ver: Wyatt MacGaffey, Kongo Political Culture (Bloomington and Indianopolis: The Indiana University Press, 2000), p. 243, nota 5.

    26 Veja o relatrio de 1888 sobre os Moussurongos da costa, African Archives Ministry of Foreign Affairs, Brussels, fol. 1370; ver tambm Lt. Gilmont, La Vegetation au Mayombe, Prcis Historiques, 4, 1895, 134.

    27 Labat, Voyages, p. 51.28 Moreau de Saint-Mry, Description, p. 64.29 Descourtilz, MS, Essai sur les moeurs.

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    do Congo, onde as pessoas que tomavam nomes catlicos geralmente precediam-nos pelo honorfico Dom ou Dona.30 Em primeiro lugar, os cultos Vaudoux e Petro encaminham-se para as necessidades do dia a dia de povos oprimidos, tentando ganhar algum controle sobre o contexto natural e social. Seu contexto social era caracterizado por um complexo conjunto de relaes com os senhores brancos, feitores, comandantes de atelis (commandateur datelier), negros libertos, escravos fugidos, crioulos e africanos corresidentes de um contexto de diferenas tnicas e lingus-ticas. Os cultos locais proviam os meios para lidar com os problemas e os conflitos cotidianos. Proviam tecnologia para adivinhao e cura, para reconciliao ou vingana, para boa sorte, para proteo contra o terror de feitores e contra toda a sorte de maus espritos que vagavam por toda a parte. Infortnios eram tipicamente experincias resultantes da feitiaria, e os conflitos sociais eram expressos, na maior parte das vezes, no idioma da suspeio e acusao de feitiaria. Os especialistas nos rituais usavam suas habilidades de adivinhao para eliminar esses feiticeiros e prover meios de combater e neutralizar suas ms influncias. essencialmente no contexto social e teraputico do dia a dia que as manifestaes de Vaudoux e de Petro devem ser entendidas.

    ENVENENADORES E INSURGENTESAo Vodou colonial foi frequentemente creditado, tanto por observadores contemporneos como por historiadores modernos, um grande potencial de inspirao libertria e unificao e meio de uma ideologia revolucio-nria antibranca. Um interessante caso sobre isso a historia de Franois Makandal, que provocou uma onda de medo sobre envenenamentos entre os brancos e a populao crioula de So Domingos na dcada de 1750. Makandal era um escravo africano fugitivo, que conseguiu seguidores nas plantaes do norte, distribuindo poderosas bolsinhas e venenos. Antes de ser enforcado, em 1758, ele parecia liderar uma conspirao geral que objetivava a morte de todos os brancos. Tal como observado por Pluchon, no entanto, parece que, ao fim, foram poucos os brancos envenenados.31 Se o medo de um extermnio planejado de brancos era sem base, os en-venenamentos ocorreram, fazendo suas vtimas com uma surpreendente frequncia entre a populao escrava do sculo XVIII. Um relatrio annimo de 1763 afirma que desde 50 anos j existia esta ameaa sobre a colnia. Em 1746, um dono de plantation escreveu que, em 8 anos, de um total de 150 escravos perdidos mais de 100 haviam sido envenenados. Outra narrativa

    30 Ver por exemplo, Willy Bal, Prnom portugais em Kikongo, Revue Internationale donomastique, 14, 3, 1962, 219-222.

    31 Pierre Pluchom, Vaudou, sorciers et empoisinneurs: de Saint Domingue Haiti (Paris: Karthala, 1987). P. 208-223.

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    por Nicolas Le Jeune, de 1788, relata que muitos dos 400 escravos perdidos por seu pai em 25 anos e 77 perdidos por ele foram envenenados em pelo menos dois anos.32 Makandal, no entanto, era claramente mais do que um envenenador criminal. Um observador contemporneo nota que ele tinha revelaes e poderia prever o futuro. Ele persuadia seus seguidores de que era um enviado de Deus e que era imortal.33 H algumas evidentes sugestivas de que Makandal era um especialista em rituais congoleses, montando e vendendo amuletos nkisi na tradio do Congo. Seu nome pode ser uma corruptela de Makenda, que era o ttulo para os executores do chefe em Mayombe, no incio do sculo XX,34 ou makanda, que significava uma planta medicinal.35 Tambm os nomes de dois de seus auxiliares, Mayombe e Teyselo, sugerem origens africanas centro-ocidentais.36 Makandal era, sem dvida, mais consultado para problemas cotidianos tais como doenas, infortnios, roubos, mau tratamento e, talvez, o que era mais importante, para a proteo contra os vcios de feiticeiros maus. Uma chave importante para compreender as atividades de Makandal e os makendals37 que vieram depois dele, o fato de que possivelmente ele administrava uma espcie de ordlio de veneno para detectar feitiaria. Os ordlios do veneno eram largamente utilizados por toda a frica Central onde eram, chamados, se-gundo os relatos do sculo XVIII e do sculo XIX, nkasa ou brulungo.38 Os especialistas de rituais em So Domingos usavam, sem dvida, deste procedimento. Isso aparece indicado nos informantes de Descourtliz ao notarem que, no culto liderado por Dompte, os incertos eram punidos

    32 Documentos do Arquivo do Ministrio das Colnias (Frana) citados em Pierre de Vais-sire, Saint-Domingue: la societ et la vie croles sous lancien rgime, 1629-1789 (Paris, Perrin, 1909), p. 186-238.

    33 De Vaissire, SaintDomingue, p., 236-237.34 MacGaffey, Kongo Political Culture, p. 139. Outro ttulo sobre os executores de Mayombe

    o de Mkaka; Bittremieux, Mayomsch Idioticon (Gent: Eramus, 1922), p. 348.35 Leo Bittremieux, Mayombsch Idioricon, p. 350.36 Teyselo pode ser a distoro do nome portugus Terceiro; David Geggus, Marronage,

    voodoo and the Saint-Domingue slave revolt of 1791, Proceedings of the Fifteenth Meeting of French Colonial Historical Society, ed. P. Boucher (Laham, New York, London: The Uni-versity Press of America, 1992), p. 28-29. Mayumba o nome de um dos portos do trfico na costa do esturio do Congo; Mayombe o nome do interior de florestas deste porto.

    37 Mackandal torna-se, nos relatos do sculo XVIII, um termo genrico para os sacerdotes africanos ou feiticeiros. Escrevendo sobre a chegada dos africanos do reino de Urba, Descourtilz notou que O rei de Urba realizou em sua corte uma reunio de mgicos que se chamam comumente na Guin de Makendals e comentando sobre um bando de insur-gentes Congos, ele escreveu: Eles tm por chefe um mulato makendal; Descourtliz, MS, Essai sur les moeurs.

    38 Em Congo, por exemplo, o missionrio italiano Raimundo Da Dicomano notou que o fetichismo era nada mais do que a administrao de veneno por feiticeiros; Louis Jadin, ed., Relation sur le Royame du Congo du P. Raimundo da Docimano, missionrio de 1791 a 1795, Bulletin de lAcademie Royale des Sciences Colonailes, III, fasc. 2 (Bruxelles, 1957), p. 320.

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    com veneno.39 Mais do que os incertos ou os que no acreditavam, como traduz Descourtilz, seus informantes podem estar falando dos que eram suspeitos de feitiaria. Qualquer pessoa acusada de feitiaria poderia ser levada a tomar uma poro de veneno preparada pelo sacerdote. Se ele ou ela vomitasse e sobrevivesse ao teste, isso seria tomado como prova de sua inocncia. Se o acusado adoecesse e depois morresse, significava que ela ou ele haviam sido, de fato, feiticeiros.40 importante notar a crena de que os ordlios do veneno agiam meramente por ao espiritual e no por um meio farmacolgico. Geralmente o veneno no precisava ser engolido pela vtima para fazer o seu trabalho. Como um observador contempor-neo notou, poderia ser suficiente para envenenar o ato de esconder certas plantas, arranjando-as de uma forma particular, prximas porta ou cama da vtima.41 No Haiti dos dias atuais, sacerdotes espalham seu veneno nas ruas para atingir uma vtima transeunte.42

    Outro culto similar aos Makendas floresceu na dcada de 1770, nas parquias ao norte de Marmelade, onde se estabeleceu um nmero significativo de plantaes de caf, trabalhadas predominantes por escravos Congos.43 Os nomes dos lderes dos encontros noturnos foram registrados como Jerme, apelido Poteau, Telemaque Canga e Negro Joo. Junto com outros participantes, eles foram trazidos ao tribunal de Cap Franois. De acordo com seus testemunhos, as cerimnias eram chamadas de mayombe ou bila e envolviam a composio e a distribuio de amuletos similares aos que Makandal construa em 1750. De acordo com o dicionrio Bittremieux, bila em quicongo significa causa ou razo; e tesisa bibila, obter as razes (de infortnios, de doenas).44 Bila parece denotar uma cerimnia envol-vendo rituais de adivinhao para descobrir a causa de doenas, roubos e outros infortnios tal como na tradio da frica Central. Outro testemunho revela que as cerimnias Marmelade tambm envolviam a administrao de um tipo de ordlio, sendo que outra informante fala sobre ordlios do fogo. Em adio, Jerme vendia a seus clientes maman-bila, pequenas pedras de giz, contidas em uma bolsinha chamada de fonda (di-funda),45 junto a sementes vermelhas e brancas que ele chamava de poto, acima de tudo bastes chamados mayombo. Estes bastes tinham uma cavidade pre-enchida com um p branco e pimenta que se se supunha iriam tornar os

    39 Descourtliz, Voyage dum naturaliste em Haiti, p. 116.40 Sobre os ordlios de veneno no Congo ver: Wyatt MacGaffey, Religion and Society in Central

    Africa: The Bakongo of Lower Zaire (Chicago, The University of Chicago Press, 1986), p. 166.41 De Vaissire, Saint-Domingue, p. 242.42 Informao de C. Nzungu, Kinshasa, julho de 1998.43 Gabriel Debien, Assembles nocturnes desclaves Saint-Domingue, 1789. Annales

    historiques de la Rvolution franaise, 279 (1972), 275.44 Bittremieux, Mayombe Idioticon, p. 56.45 (di) funda, pl. (ma-), uma bolsa feita de folhas; Bittremieux, Mayombe Idioticon, p. 108.

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    guerreiros invulnerveis nas lutas. Se, alm disso, guarnecidos com unhas, eles seriam vendidos por altas somas.46 O uso de giz, pimenta, plvora, unhas, bastes e vrias ervas e sementes situa o culto Marmelate na mesma linha que o presidido por Makandal na dcada de 1750 e por Dom Pedro, na dcada de 1760. Sim ou Dompte, o envenenador de Nippes dos anos de 1780, mencionado atrs, foi preso por um mulato livre que deixou uma descrio detalhada do contedo da bolsa que Dompte estava carregando consigo. Parece que inclua vrios embrulhos feitos de roupas vermelhas, brancas e azuis e firmemente amarrados com penas esticadas, ao lado de pedaos de madeira, ceras brancas, vidros e coisas assim. O apelido de Sim, Dompte e o tipo de amuletos que ele carregava consigo, chamados de paquets Congo no vodou contemporneo do Haiti,47 podem identific--lo, tal como Makandal e outros, como congols. A tradio dos ordlios do veneno introduzidos em Sain-Domingue no sculo XVIII pode ser uma importao congolesa. A possibilidade de conexo entre veneno e os ord-lios reveladores foi durante muito tempo desprezada pelos historiadores e, particularmente, por aqueles que consideraram o envenenamento um ato de resistncia contra a opresso colonial. O fato de um grande nmero de escravos ter sido mortos por veneno revela a extrema privao e o terror das fazendas coloniais, que eram tragicamente percebidos como resultado de demnios encontrados agindo por meio dos feiticeiros. Cuidadosamente mantidos ignorantes sobre os fundamentos da ordem colonial hegemnica em So Domingos, muitos dos escravos de plantations poderiam somente reagir em termos de seu contexto social e com as ferramentas, familiares a eles prprios.

    O potencial do Vodou em alimentar a ideologia revolucionria antibranca foi particularmente enfatizado com respeito primeira insurreio de agosto de 1791, que marcou o incio da revoluo haitiana. A cerim-nia vodou do Bosque Caiman, durante a qual um porco negro rodeado por fetiches foi sacrificado,48 foi recorrentemente mencionada por vrios estudiosos para argumentar sobre o papel decisivo do Vodou na ecloso da revoluo. David Geggus apontou, no entanto, que muita da histria de Bois Caiman foi desenvolvida no sculo XIX como essencialmente legendria. Daquilo que sabemos sobre a cerimnia de Bois Caiman que foi realizada 67 dias depois que um plano geral para a rebelio foi desenhado durante um encontro da elite na plantao de Lenirmand de Mzy. Em Bois Caiman, a deciso de ecloso da rebelio foi comunicada

    46 Debien, Assembles nocturnes, pp. 276-277; baseada nas notas de Gressier de la Jalous-sire, datadas de 16/maio/1786.

    47 Ver por exemplo, Robert F. Thompson, From the isle beneath the sea, p. 91-119.48 Antoine Dalmas, Histoire de la Rvolution de Saint-Domingue (Paris, Mame frres, 1814),

    vol. 1. 117-118.

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    massa de escravos do campo. Um porco negro foi sacrificado e os assis-tentes tomaram seu pelo como amuletos protetores. O resto da histria foi acrescentado depois.49 A despeito da interpretao prevalecente de Bois Caiman como um dos mais importantes momentos da histria religiosas do Haiti,50 a importncia da cerimnia Vodou foi mnima. A expanso da conspirao j havia sido estabelecida no tempo em que houve a cerimnia e somente uma minoria de escravos que tomou armas em 1791 participou. Presumidamente mais dessas cerimnias Vodou aconteceram sem deixar testemunhos. Elas simplesmente serviram para prover os insurgentes de amuletos, da mesma forma que faziam na poca anterior revoluo. Des-courtliz mencionou um bando de rebeldes do Congo que vestiam bolsas que continham cabeas de sapos, de cobras e outros amuletos amarrados em suas pernas e seus braos.51 Nos locais em que os lderes rebeldes pareciam sacerdotes Vodou, seus servios ritualsticos objetivavam tornar seus guerreiros invulnerveis s balas dos colonialistas. Isso se aplica aos numerosos lideres de grupos menores na dcada de 1790, que operavam independentemente dos grandes exrcitos, como, por exemplo, Biassou e Toussaint Louverture.

    CONGOS E OS NKANGI KIDITUO Vodou no sculo XVIII consistia num amlgama de cultos nacionais que buscavam responder os problemas do dia a dia, tais como doenas, roubos, adultrios, e tambm os constrangimentos impostos pelos colonia-listas de So Domingos, pelo menos nos termos em que eles poderiam se relacionar a isso. Embora um longo processo de mistura ou crioulizao de vrias tradies africanas tenha caracterizado o desenvolvimento do Vodou desde os finais do sculo XVIII, o Vodou contemporneo ainda se encontra altamente heterogneo em termos de cosmologia e de prti-cas rituais. As origens centro-ocidentais j foram sugeridas para inmeras prticas, cultos e conceitos tal como foram descritos na documentao do sculo XVIII. Reconhecidamente, luz da composio tnica da populao escrava do sculo XVIII, essas descobertas podem no surpreender e, ao final, o exerccio de olhar por origens especficas dos diferentes aspectos do Vodou pode ser feito com respeito a qualquer dos grupos envolvidos com o trfico atlntico de escravos. O que tem sido no geral subestimado, no entanto, como um profundo sincretismo entre elementos originrios do Catolicismo Romano e as tradies africanas se desenvolveu largamente na ausncia de qualquer atividade significativa no final do sculo XVIII e

    49 David Geggus, The Bois Caiman ceremony, Journal of Caribbean History, 25:1-2 (1991); 41-57.

    50 Rey, Classes of Mary, p. 78.51 Descourtiltz, MS Essai sur les moeurs.

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    incio do XIX em So Domingos/ Haiti.52 Com a finalidade de mudar a viso de que este sincretismo tenha sido somente um desenvolvimento crioulo posterior,53 examinarei alguns documentos histricos para a frica Central no sculo XVIII para ver o que pode ser dito sobre as origens religiosas da maior parte dos africanos trazidos para So Domingos.

    Ao final do sculo XVIII, missionrios portugueses e italianos haviam sido ativos no Congo em pelo menos trs sculos.54 Um ponto de maior significado luz deste estudo ver como eles chegaram a arregi-mentar um grande nmero de assistentes em sua pregao da f. A funo de intrprete e de fabriqueiro de igreja ou mestre de igreja foi institucio-nalizada e ligada s instituies polticas nas cidades, j antes da chegada dos primeiros capuchinhos ao Congo, em 1645. Ao final do sculo XVII, certa hierarquia desses papis foi estabelecida, na qual nobres faziam sua carreira em subsequentes promoes: de intrpretes a catequistas, a mes-tres de igreja.55 Na rea rural, estes assistentes leigos viajavam em direo s vilas remotas que nunca haviam sido visitadas por missionrios, onde mobilizavam e preparavam o povo para receber o batismo.56 Os relatos do sculo XVIII revelam que os missionrios continuam a contar com esses nativos assistentes. Se originalmente eles haviam sido selecionados pelos missionrios que faziam exigncias especficas aos candidatos, no sculo XVIII, muitos deles foram iniciados pelos chefes e pelos nobres em proveito dos interesses dos grupos locais. Pelos escritos de Rosario dal Parco (1760), podemos inferir que estes nativos leigos assistentes deviam ser bastante numerosos. Ele notou que o total de prncipes e vassalos do rei do Congo chegava a 6.000 e que muitos deles mantinham vrios maestri.57

    Entre os servios rituais oferecidos pelos missionrios, o sacra-mento do batismo era o mais desejado. As pessoas geralmente viajavam por vrios dias para chegar a um missionrio, e os relatos das misses

    52 Algumas poucas excees: David Geggus, Haitian Voodoo, p. 21-22; John Thornton, The roots of Voodoo. African religion and Haitian society in pre-revolucionary Saint Domingue, Anthropologie et Societs, 22-1, 1998, 85-193.

    53 Ver Michel S. Laguerre, Voodoo and Politics in Haiti (London: Macmillan Press, 1989); Desmangles, Faces of Gods, p. 8-9; De Heusch, Kongo in Haiti, pp. 291-292..

    54 Entre os melhores estudos modernos sobre as misses catlicas romanas no reino de Kongo esto: John Thornton, The Kingdom of Kongo: Civil War and Transition, 1641-1718 (Madison: The University of Wisconsin Press, 1983); Ibid. The Development of an African catholic church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750, Journal of African History, 25:2 (1984): 147-167 e outros artigos; ver tambm: Richard Gray, Como vero prencipe Catolico: the Capuchins and the rulers of Soyo in the 17th century. Africa, 53:3 (1983): 39-54.

    55 Jean Curvelier, Relation sur le Congo du Pre Laurent de Lucques, 1700-1717 (Bruxelles, Institut Roal Colonial Belgue, 1953, 87-92

    56 Thornton, Development of an African Catholic Church, p. 165.57 Louis Jadin ed. Information sur le Royaume du Congo et dAngola du P. Rosario dal

    Parco, prefet des Capuchins en Angola et Congo, Bulletin dInstitut historique belge de Rome, 35 (Bruxelles 1963), 371.

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    mencionam um nmero extremamente alto de batismos administrados. Um dos campees era Cherubino da Savona, que relata em 1775 que ele havia batizado mais de 700.000 crianas e adultos por um perodo de 14 anos.58 De forma similar, um grande nmero significativo foi atingido pelo franciscano Rafael Castello da Vide, 380.000 batismos em sete anos e meio,59 e por Raimundo da Dicomano, que batizou cerca de 25.000 crianas durante seus trs anos de estadia na capital de So Salvador.60 A estes possvel acrescentar os esforos feitos pelos missionrios france-ses nos anos de 1766-1776 nos reinos de Loango e no Cacongo ao norte do rio Congo. Em 1774, eles encontraram em Cacongo uma comunidade de catlicos congoleses que haviam migrado de Soyo, a mais poderosa provncia do Congo. Na ausncia de missionrios, eles haviam mantido o culto catlico e eram os mais entusiastas quando os missionrios franceses os visitaram. O padre Descourvires foi solicitado a voltar cedo para que eles pudessem se confessar e assistir aos servios da igreja.61 Os bacongos geralmente tinham menos interesse pelos outros sacramentos. Os nobres ocasionalmente assistiam aos servios da igreja e algumas vezes pessoas se confessavam a um intrprete que traduzia para o sacerdote. Da Dicomano notou que quando ele dava a absolvio, os presentes jubilavam-se e batiam as mos, e alguns que se confessavam carregavam-no em seus ombros.62 Os missionrios faziam uso comum dos materiais visuais para ilustrar as suas instrues religiosas. Castello da Vide reportou que, depois de ter batizado um nmero de pessoas em 1780, na cidade de Ibaide, mostrou-lhes uma bela representao da Divina Me. Ele tambm dava instrues sobre So

    58 Louis Jadin, ed. Bref aperu du Royaume du Congo et ses missions, par le P. Cherubino da Savona, missionaire apostolique capucin au Congo, 1775, Bulletin de linstitut historique belge de Rome, 35 (1963): 389. O capuchinho Cherubino de Savona serviu no Kongo entre 1760 e 1774, onde na maior parte do tempo ele foi somente um missionrio viajando por toda parte. De volta Itlia em 1775, ele escreveu um relato detalhado sobre sua misso ao Kongo.

    59 Marcellino da Civezza, ed. Congo in Storia Universale delle Missione Franciscane, vol. VII, Parte IV, Roma Tipografia Tiberina, 1894) 313-402; isso a traduo de um original portugus MS Viagem do Congo do Missionario Fr. Raphael de Castello de Vide, hoje bispo de San Tom (1788). O franciscano Rafael Castello da Vide chega ao Congo em 1779. Em 1788 ele volta a Portugal onde escreve um relato detalhado de suas viagens e experincias no Congo.

    60 Jadin, ed. Relation ... P. Raimundo da Dicomano, p. 316. Da Dicomano assistia cerimnia de coroao do rei Henrique em 1794. Depois que ele voltou ele compilou suas memrias em 1798 em um manuscrito.

    61 Jean-Joseph Descourvires descreveu essa localidade catlica em uma carta a seu colega Pierre Belgarde e seu relato foi usado por L. B. Proyart, Historie de Loango, Kakongo et autres Ruyaumes dAfrique (Franbororough: Gregg International Publishers ltd. 1968 [1776]). Uma compilao de outros documentos relativos misso francesa foram editados por Jean Curvellier, Documents sur une mission franaise au Kakongo 1766-1776, avec introduction et annotations (Bruxelles: Institut Royal Colonial Belge, 1953).

    62 Jadin, ed., Relation [] Raimundo da Dicomano, p. 321.

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    Francisco e Santo Antonio e notou que, apesar de tudo, todos os ouvintes demonstravam profundos sentimentos cristos, embora continuassem, ao mesmo tempo, a praticar suas supersties. Na festa da Assuno de Maria, uma esttua da Virgem foi carregada em uma procisso piedosa.63 Desde os primeiros anos da atividade missionria no Congo, numerosos objetos do culto catlico foram importados e distribudos pelo pas para substituir os objetos indgenas ou minkisi. Essa tradio claramente con-tinuava no sculo XVIII. A maioria das vilas tinha grandes cruzes erigidas no centro da praa e cruzes, crucifixos e medalhas religiosas se tornaram parte das insgnias dos chefes.64 Os artesos nativos copiavam as cruzes importadas e as imagens de santos e desenvolviam seus prprios estilos. O melhor exemplo conhecido da arte catlica do Congo no sculo XVIII com os crucifixos com fortes elementos africanizados. Eles eram chamados de Nkangi Kiditu, o que poderia ser traduzido por Cristo Salvador, em-bora a salvao possa a ver mais com os feiticeiros do que com a teologia crist.65 Outros objetos sacros eram cruzes montadas em hastes de ferro batido chamados Santus e pequenas figurinhas representando a Virgem, Santo Antonio, chamados Nsundi Malaui e Toni Malau. Esses objetos eram considerados poderosos para dar proteo se em contato com o corpo e serviam como talisms individuais presumidamente usados para caa.66 Em adio familiaridade com o simbolismo catlico e com a iconografia, as fontes oitocentistas testemunham o conhecimento geral de um repertrio considervel de canes e rezas, tanto em quicongo quanto em latim. Em quase todos os lugares a que chegava, Castello da Vide era recepcionado por pessoas que cantavam a Avemaria em quicongo. Durante a festa da Ascenso de Maria, o povo rezava o Rosrio e o Salve Regina em sua pr-pria lngua. Do relatrio de Castello da Vide, parece que tambm msicas em latim. Ao final da cerimnia, as ladainhas Tota Pulcra e Stella caeli exterepavit eram cantadas, a ltima para manter as pragas afastadas, pois

    63 Da Civezza, ed. Congo, p. 321,376.64 Mencionado por exemplo por Cherubino da Savoina em Kongo; Jadin, ed. Bref Aperu...

    Cherubino da Savona, p. 380-381; e por Descourvires em Kakongo: Proyart, Histoire de Loango, p. 327, 330, 343.

    65 Nkangi, de kanga, ligar, unir, Bittremieux, Mayombe Idioticon, p. 193. No contexto ritual, o verbo kanga descrevia a ao de feitiaria, imaginada no uso de cordas, cadeias e coisas assim por meio das quais a alma da vtima seria aprisionada. MacGaffey, Religion and So-ciety. O nkangi Kiditu era algumas vezes enrolado com uma corda que envolvia o corpo de Cristo da cabea aos pes. Kiditu provavelmente uma corruptela de Kristu, Chris, mas pode se associado com outro termo em kikongo. Uma coleo interessante de crucifixos discutida em Robert Wannyn, LArt Ancien du Mtal au Bas-Congo (Champles: ditions du Vieux Planquesaule, 1961).

    66 Wannyn, LArt Ancien du Mtal, p. 42-43. (Ma) Lau e conhecido no sculo XIX no Baixo Congo como um nkisi para a caa. A. Tembo, Bakisi ba Mayombe, MS, 1912-13, Centrel Archives C. I. C. M., Rome fol. Z. III. d. 5. 19, n. 32, 176.

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    sempre causavam desastres por aqui.67 Em So Salvador, da Dicomano cantou com seu povo as litanias da Virgem Santa.68 Os missionrios fran-ceses, em Cacongo, notavam que o povo os seguia livremente quando recitava Ora pro Nobis e o Te Deum. Descourvires relata que era comum na assembleia dos domingos cantar os hinos e os cnticos em honra ao Deus Cristo, isso na ausncia quase completa de missionrios europeus. 69Julgando pelos vrios relatos oitocentistas, torna-se claro que os habitan-tes do reino do Congo e alguns bacongos vivendo ao norte do rio Congo estavam familiarizados com os rituais catlicos, com suas imagens, rezas e cantos. O culto catlico foi organizado em grande parte por eles prprios e ser catlico ou no no era uma questo na segunda metade do sculo XVIII. Como todos os congoleses eram batizados, a questo no teria impacto na escravizao e, assim, milhares de catlicos africanos teriam atingido So Domingos no sculo XVIII.

    CAPELES E SACERDOTES DO MATOMuitos dos observadores do So Domingos do sculo XVIII notaram uma familiaridade similar com os elementos vindos do Catolicismo Romano entre os africanos recm-chegados na colnia francesa. Jean-Baptiste La-bat foi o primeiro a notar na dcada de 1720 que os escravos vindos do Congo tinham familiaridade com a religio catlica, embora continuassem apegados a suas prticas supersticiosas.70 Documentos do governo de 1760 informam que certos grupos de escravos costumavam se reunir dia e noite na igreja, estabelecendo entre eles, sacristos e catequistas, que viajavam de uma fazenda a outra para rezar o Gospel. Alguns agiam como mission-rios, abusando dos sacramentos.71 Outros insistiam em enterrar seus mortos dentro das igrejas paroquiais, como observado na cidade sulista de Aquin. Moreau de Saint-Mry igualmente associava este tipo de abuso com os es-cravos do Congo, cuja religio era caracterizada por ele como uma mistura monstruosa de Catolicismo e paganismo.72 Estes comentrios passageiros nos convidam a retornar a vrios caracteres notveis que discutimos antes e identificamos como centro-africanos. Makandal e seus seguidores foram interrogados por numerosos magistrados de Cap Franais, presididos pelo juiz Jacques Courtin. Depois da execuo da Makandal, Courtin compilou suas memrias numa espcie de vademecum do fetichismo para ser con-sultado por outros magistrados, parte do qual foi editado por Pierre Plu-

    67 Da Civeza, ed., Congo, p. 331-375.68 Jadin, ed. Information [...] Raimundo da Dicomano, p. 325.69 Proyart, Histoire de Loango, p. 317, 340-342.70 Labat, Voyages, p. 42.71 Fouchard, Les marrons, p. 499.72 Moreau de Saint-Mry, Description, p. 53-1237.

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    chon.73 A primeira coisa bvia a inferir da descrio de Courtin a aparente incorporao de elementos catlicos nas cerimnias vodou dos makendals. Os ingredientes necessrios para a composio dos objetos ou amuletos que eles compem incluem terra de tmulo, preferencialmente de crianas batizadas, unhas e ervas arranjadas juntas e envelopadas num pedao de tecido, razes de figo e de rvores de banana, gua benta, cera santa, po santo, incenso santo. Todos estes itens eram firmemente amarrados num pedao grande de tecido para formar uma espcie de trouxa que seria novamente mergulhada na gua benta. A ao de envelopar e de amarrar tudo junto (kanga) com panos e cordas era essencial para tornar eficaz o objeto.74 Gwendolyn Midlo Hall apontou que o documento de Courtin relatava que Makendal tambm pronunciava o termo Alla durante a com-posio de seus amuletos.75 A questo se isso pode ser interpretada como uma invocao ao Allah muulmano tentadora. Como assinalei anterior-mente, as atividades dos centro-africanos em relao religio geralmente permitiam a incluso ou o teste de novas tecnologias, conceitos e ideias. Documentos referentes ao culto Marmelade de Jerme Poteau na dcada de 1770 geralmente testemunham a manipulao de elementos vindos do Catolicismo Romano nos cultos organizados pelos Congos. Uma descrio detalhada de uma destas cerimnias revela que os oficiantes tinham que se ajoelhar diante de altares com dois candelabros e que Jerme carregava consigo outra sacra ou crucifixo.76 Podemos tambm recorrer aos lamen-tos do padre francs em Cap-Franois na dcada de 1790 sobre uma de suas estudantes renegadas, que foi renomeada como Princesa Amesythe depois que foi iniciada no culto do Vaudou. Ele notou que a devoo de Amesythe e de seus seguidores, no entanto, parecia no ter diminudo. Aos sectrios eram permitidos a adorao a Deus, as devoes a Maria e o uso de escapulrios.77 Um dos casos mais interessantes o do lder rebelado Romaine Rivire, que se denominava Romaine-la Prophtesse. No vero de 1791, ele havia organizado um considervel nmero de escravos numa rebelio armada e estabelecido um campo militar em uma montanha pr-xima de Lofane, no sul. Instalou seu quartel em uma igreja abandonada e clamava ter ligao direta com a Virgem Maria. Ele dizia missas para seus soldados e nelas garantia vitria sobre seus inimigos e que estariam prote-gidos de suas balas.78 O bando de Romaine era um dos bandos menores,

    73 Pluchon, Vaudou, sorciers et empoisonneurs, pp. 208-219.74 Ibidem, p. 209-211.75 Guendolyn Midlo Hall, Africans in Colonial Louisiana: The Development of Afro-Creole

    Culture in the 18th century (Baton Rouge: The Louisiana University Press, 1992). O autor considera a invocao de Allah muulmano como sendo possvel mas longe de ser provado.

    76 Debien, Assembles nocturnes, p. 279-280.77 Jan, Les congregations religieuses, p. 225, citado em Rey, Classes of Mary, 278.78 James Barskett, Histoire politique estatistique de lisle dHayti, Saint-Domingue (Paris, Brire,

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    geralmente compostos por insurgentes africanos que Toussaint Louverture e outros lderes maiores da revoluo tentavam controlar com grande dificuldade.79 Entre comandantes rebeldes similares, encontravam-se um chamado Sainte Jsus Manan Boudier, outros Sainte Catherine, Saint Jean Pre lEternit, Petit Noel Prieur.80 Seus sugestivos apelidos com referencias aos santos catlicos podem sugerir muito bem sua origem do Congo. Mais do que isso, os bandos incontrolveis que operavam a partir dos campos nas montanhas eram geralmente chamados de Congos no discurso colonial dos finais do sculo XVIII.81

    O que se torna claro destes diferentes relatos que no sculo XVIII, os centro-africanos em So Domingos utilizavam livremente dos ri-tuais catlicos e de suas imagens com os quais estavam familiarizados, na organizao dos cultos nas plantaes. Como vimos, muitos dos capeles, sacristos, intrpretes e catequistas operavam de forma independente dos missionrios catlicos e no seria surpreendente descobrir que os especia-listas religiosos de So Domingos, tais como Jerme, Makandal, Romaine e muitos outros, estavam continuando as adaptaes da liturgia catlica a um estilo Congo. Atribuir esta influncia aos missionrios catlicos trabalhando no Haiti seria bastante simplista. A nica atividade missionria substancial na histria da So Domingos colonial foi desenvolvida por jesutas, nas primeiras dcadas do sculo XVIII.82 Por volta da metade do sculo, diante do crescimento exponencial das importaes de escravos e da oposio que os colonialistas brancos fizeram a tais aes, qualquer instruo reli-giosa de recm-chegados escravos africanos era virtualmente impossvel.83 Onde os missionrios europeus tiveram alguma influncia, eles investiram, pesadamente, na catequese, e os intrpretes foram escolhidos entre os es-cravos africanos que tinham um melhor conhecimento da Cristandade, tal como faziam na frica.84 Com a ecloso da revoluo, muitos sacerdotes franceses fugiram, enquanto outros foram mortos ou terminaram como protetores espirituais de bandos rebeldes.85 Os primeiros lderes do Haiti

    1826), p. 220; Fick, The Making of Haiti, p. 128.79 Grard Barthlmy, The rle des Bossales dans lemergence dune culture de marronage

    en Haiti, Cahiers dtudes africaines, 148: 27-4 (1997): 846-848.80 Madiou, citado em Barthlmy, Le role des Bossales, p. 848,; Geggus, Haitian Voodoo,

    p. 47.81 Thornton, I Am the Subject, p. 43.82 George Breathett, The Jesuits in Colonial Haiti, Historian, Fev. (1961): 159-163.83 De Vassire, Saint-Domingue, pp. 209-214; Breathett, Catholic Missionary Activity, pp.

    284-285.84 Labat, por exemplo, nota que Ns destinamos pelo menos um, que seja bem instrudo

    para fazer a doutrina em particular aos negros novos ..., Labat, Voyages, II, p. 47. Sobre o papel e o impacto do catecistas africanos ver, Thornton, John, On the trail of Vodoo: African Christianity in Africa and Americas, Americas, 44:3 (1988), 268-275.

    85 Barskett, Historie politique, p. 213, 221.

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    independente foram relutantes em reconhecer formalmente a autoridade da Igreja Catlica Romana. Enquanto Toussaint Louverture parece ter sido simptico com a Igreja Catlica, Dessalines rejeitou a autoridade de Roma, fez a si prprio o chefe da igreja haitiana e livremente nomeou sacerdotes para todos os lugares. Um destes, chamado padre Flix, foi acusado de relaxar com os servios da igreja e somente concentrar-se em batismos, casamentos e enterros.86 Na ausncia de uma autoridade eclesistica for-mal, um nmero significativo de sacerdotes catlicos, entre eles vrios corsos, veio ao Haiti para fazer fortuna rpida, reviando-na a Europa para investimentos.87 Depois de uma tentativa fracassada na dcada de 1840, missionrios Spiritan restabeleceram a Igreja Catlica Romana, depois de uma nova Concordata assinada entre Roma e o governo haitiano em 1860.

    A documentao sobre o Haiti do sculo XIX testemunha de forma indubitvel a abundncia de referncias ao Catolicismo nos cultos locais dos haitianos rurais. Evidentemente, o processo de crioulizao e a mistura de diferentes tradies tnicas continuaram. Como a maioria do povo haitiano tinha razes congolesas, os elementos retirados do Catolicismo Romano que os congos trouxeram, eram partes integrantes do contexto religioso, incorporados nos cultos Vaudoux e Petro. O visitante ingls John Candler notou em 1842 que os nascimentos eram registrados e que toda criana era trazida para ser batizada. Na ausncia de um sacerdote na ci-dade de Gonaives, homens e mulheres continuavam a frequentar as igrejas paroquiais para se benzer com gua santa e para rezar suas oraes.88 Num canto remoto da zona rural, raramente visitado pelos procos, descobriu--se um altar domstico dedicado Virgem, com um crucifixo e algumas pginas de um missal catlico arrumadas de uma forma prescrita.89 O que interessante nos relatos dos Spiritans da dcada de 1860 era sua aparente dificuldade em distinguir os sacerdotes propriamente ordenados dos meros aventureiros que governavam as parquias rurais. Os sacristos, coristas, penitentes e os missionrios espiritualistas, todos deveriam obedecer ao sacristo.90 Em 1840, Madiou notou que existia certo antagonismo entre duas seitas: os guyons ou loup-garous, que eram selvagens e canibais, e os santos, que eram adeptos regulares do Vaudou, obedecendo a um estilo romano catlico. O culto dos santos era liderado por certo irmo Joseph, que fazia uso frequente de crios. Ele organizava novenas e missas e pedia

    86 Notes de Monsieur Pierre Andr sur Haiti, 1791-1843, MS, ca. 1843, Archives de lArcheveche de Port-au-Prince; de 1924 cpia em Archives Generales de la Congregation du Saint-Esprit, Chevelly-Larue, fol. 224, B, II.

    87 John Candler, Brief Notices of Haiti (London, Th. Ward and Co., 1842), p. 98-9988 Ibid., pp. 23, 5889 Ibid., pp. 15090 Notes sur le pre Pascal, 1860-1865, s.n., ca. 1865, Archives Gnrales de la Congregation

    du Saint-Esprit, Chevilly-Larue, fol. 221, B, II.

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    dinheiro aos assistentes por seus servios.91 Em 1840, as taxas que um sa-cerdote poderia cobrar por batismos, enterros eram reguladas por lei numa tentativa de controlar os negcios religiosos. Candler notou que nem todos os servios providos pelos assistentes da igreja eram reconhecidos, tais como o batismo de casa e de barcos, sendo que geravam substanciais rendas. Uma parcela das taxas era dada ao sacristo e ao conselho de homens notveis nos lugares onde essa corporao existia. O restante era dividido entre reitores, vigrios, penitentes e outros oficiais.92 Antes da Concordata de 1860, o culto catlico do Haiti era conduzido por uma hierarquia de papis que havia sido estabelecida sem qualquer interferncia regular do clero catlico romano. Como tal, o culto catlico estava integrado num pluralismo de cultos heterogneos controlados pelas elites rurais. Do que se sabe sobre o contexto religioso destes haitianos com razes no Congo, fica claro que os elementos retirados do Cristianismo passaram a integrar no sculo XIX os cultos Vodous, sendo uma continuidade da religio do Congo no sculo XVIII.

    Os relatos do sculo XX continuam a revelar esta especfica contribuio congolesa na emergncia histrica do Vodou Haitiano. No clssico estudo sobre a religio do vale de Mirebalais, na dcada de 1930, Herskovits descreveu o papel do sacerdote do mato ou prt savanne. No Haiti contemporneo, o prt savanne busca a bno de Deus ou de Bondy ao iniciar a cerimnia Vodou. Durante a iniciao ou os ritos de batismo, ele recita oraes catlicas e canta os cnticos da igreja, tanto em crioulo como num fraturado latim, e abenoa a pessoa ou o objeto com gua benta. Nos funerais, o prt savanne, que lidera o cortejo primeiro em direo igreja e depois ao cemitrio, so rezadores catlicos, como se diz. No sbado noite, na semana seguinte ao funeral, ele geralmente convidado casa do falecido para oficializar uma novena, na qual ele coleta as esmolas.93 Estudantes do Vodou geralmente consideram o papel do prt savanne como uma inveno crioula do sculo XIX, como uma espcie de compromisso para cooptar as presses catlicas e conciliar a proibio das prticas Vodou.94 Claramente eles falharam em ver como um conjunto de papis de leigos no catolicismo foi importado da frica Central no sculo XVIII diante da ausncia de uma organizao formal da igreja e

    91 Soulouque, s.n., ca. 1850, Archives Gnrales de la Congregation du Saint-Esprit, Chevilly--Larue, fol. 812, A, I, 4.

    92 Candler, Brief Notices, p. 96-99.93 Herskovitz, Life in Haitian Valley, p. 140-168; Leslie Grad Desmangles, Baptismal ritese:

    religious symbiosos of Vodun and Catholicism in Haiti, in Liturgy and Cultural Religious Traditions, ed. Herman Schmith and David Power (New York, Seabury Press, 1977), pp. 56-57; Ibid.. The Vodoun way of death, pp. 16-17

    94 Laguerre, Voodoo and Politics, p. 30; Desmangles, Baptisme Rites, p. 54; Ambos situam as origens do prt savanne nos primrdios do sculo XIX.

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    incorporado num complexo de prticas rituais que hoje denota o Vodou. Outro relato detalhado do Vodou contemporneo feito por um sacerdote nativo descreveu, alm do papel do prt savanne, ainda outra funo co-nhecida como chapiteur. Seus principais instrumentos eram um livro e uma agulha que ele consulta para adivinhao e cura. O cliente alfineta uma pgina depois que o captulo correspondente lido. O chapiteur capaz de descobrir as causas de uma doena ou infortnio, para o qual ele prope remdio adequado: por exemplo, uma peregrinao a Saint--Jacques ou Sainte-Anne, usando determinadas roupas. Frequentemente o infortnio causado por maladie Bon Dieu, que pode ser tratada por um casamento religioso ou comunho. De forma interessante, o autor acres-centa que 95% das crianas que estudam o catecismo so depois enviadas ao chapiteur.95 Assim, elas estaro j bem familiarizadas com os negcios das imagens catlicas e seus rituais, em que abundam as referncias nos altares domsticos e nos servios Vodou.

    CONCLUSOAs performances dos prt savannes e dos chapiteurs do sculo XX, dos mar-guillers ou dos capeles do sculo XIX, e possivelmente um nmero grande de makendals do sculo XVIII, aparecem com uma consistncia lgica que tem razes histricas na frica Central do sculo XVIII, em que um nmero grande de sacerdotes leigos controla uma variedade de cultos sincrticos catlicos. De acordo com essa lgica, poderosas imagens, objetos, rezas e canes retiradas do Catolicismo Romano foram manipuladas no contexto dos cultos de possesso organizados ao longo das linhas africanas. Os cultos Vodou endereavam e continuam a enderear os problemas cotidianos e dizem respeito a um povo oprimido de agricultores e trabalhadores. Inte-grados no Vodou Haitiano, os cultos catlicos congoleses continuam sob o controle de elites rurais haitianas, notadamente naquelas que investem na produo de objetos sagrados e investem em papis rituais.

    Na reviso da histria do Vodou Haitiano, deve-se cuidar contra tendncias de cunho etnocntrico e anacrnico que se mostram visveis nos estudos recentes do colonialismo moderno. Na mdia popular, como nos estudos acadmicos, a Revoluo Haitiana foi celebrada recorrentemente como a primeira revoluo bem-sucedida de um povo oprimido lutando por sua liberdade. Mas como entender que esta revoluo no tenha vindo meio sculo antes? Quando se l os testemunhos do sculo XVIII sobre o regime duro de trabalho e a srie de torturas e crueldades infringidas queles que ousaram quebrar as regras, isso parece uma questo bvia. Muitos dos escravos carregavam armas regularmente e, frequentemente, habitaes

    95 De la superstition, R. P. Truffey, ca. 1940. Archives Gnrales de la Congregation du Siant Esprit, Chevilly-Larue, fol. 812, A, I.

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    com 200 ou 300 escravos tinha nada mais que um feitor.96 Parece que, por um surpreendente longo tempo, os colonialistas franceses manejaram para impor uma ordem hegemnica de atividades, sentidos e valores que no foram fundamentalmente contestados. Somente de forma lenta foi dada expresso, at agora, s experincias sem voz das contradies que no poderiam mais ser mantidas em conciliao pela hegemonia colonial. Em tempo hbil, esse clamor acumulado, sobretudo entre a elite escrava ali-mentaria uma ideologia revolucionria que preparou a Revoluo Haitiana. A ecloso desta revoluo, no entanto, tornou difcil o acesso acurado aos fenmenos pr-revolucionrios, inclinados que estamos a atribuir coerncia e ordem, totalidade e teleologia sociedade, cultura e histria.97 Isso se aplica de forma particular histria da Revoluo Haitiana, que foi creditada frequentemente a uma ideologia revolucionria inerente. Isso se aplica, da mesma forma, superficial submisso s presses catlicas brancas, como um vu atrs do qual os haitianos obstinadamente continuam a praticar as religies africanas. Nos sculos XVIII e XIX, a maioria dos habitantes rurais de So Domingos/ Haiti nunca recebeu instruo religiosa por missionrios europeus ou por sacerdotes. No entanto, conhecia Jesus, a Virgem Maria, So Joo, So Francisco, que eles trouxeram da frica, e com os quais os especialistas nos rituais tentaram manter um bom relacionamento.98

    96 Ver documentos citados por De Vaissire, Isaint-Domingue, p. 180-196, 230-235..97 Jean Comaroff e John Comaroff, Of Revelation and Revolution (London, The University of

    Chicago Press, 1991, Introduo.98 Pesquisa em preparao deste ensaio foi parcialmente feita durante meu MA na Sainsbury

    Research Unit, University of East Anglia, Norwich. Quero agradecer a Cesare Poppi, Wyatt MacGaffey, David Geggus e John Thornton por seus comentrios em verses anteriores.