Formação histórica do ideal republicano na Antiguidade greco-romana: resgatando a igualdade social e a cidadania ativa

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    Formao histrica do ideal republicano na antiguidade

    greco-romana: resgatando a igualdade social e a

    cidadania ativa

    1Joo elsoro Medeiros Filho

    Resumo

    O presente trabalho parte de uma pesquisa terica cujo objetivo problematizar ereconstruir criticamente o princpio republicano, revisitando seus usos em tradies depensamento e de prtica social e institucional das quais o constitucionalismo democr-tico tributrio. Procuram-se na histria elementos teis elaborao de uma narrativaque nos permita interpretar o princpio republicano sua melhor luz, para enrentar oproblema da brasilidade excludente, da produo de subcidadania no processo brasi-leiro de modernizao, e para a reexo sobre paradigmas atuais de liberdade, igualdade,espao pblico, comunidade e pluralismo. Neste artigo, resgatam-se as ideias undamen-tais do republicanismo da Antiguidade Grega e Romana, em especial a equalizao das

    condies sociais e a construo do espao pblico pela cidadania ativa.

    Palavras-chave:Repblica; Constitucionalismo Republicano; Histria dos Con-ceitos; Aristteles; Cidadania Ativa; Homogeneidade social.

    Abstract

    Te present article is part o a theoretical research whose objective is to problematizeand reconstruct critically the republican principle, revisiting its uses in traditions othought and social and institutional practice that inuenced the ormation o demo-cratic constitutionalism. We search in history elements to elaborate a narrative that al-lows us to interpret the republican principle in its best light, to deal with the problemo the production o sub-citizenship in the Brazilian process o modernization, andto the reection about contemporary paradigms o reedom, equality, public space,community and pluralism. In this article, we recover the undamental ideas o repub-licanism in Ancient Greece and Rome, specially the equalization o social conditions

    and the construction o public space by active citizenship.

    1 Mestrando em Direito, Estado e Constituio pela Universidade de Braslia (UnB), bolsista REUNIde ps-graduao. poca da submisso do artigo, era graduando em Direito pela UnB e bolsista deIniciao Cientca do CNPq.

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    Keywords:Republics; Republican Constitutionalism; Conceptual History; Aris-totle; Active Citizenship; Social homogeneity.

    1. Introduo

    a determinao das diversas camadas de signicados que soagregados aos conceitos-chave pelos seus usos histricos par-ticulares permite trazer para o debate terico e poltico al-guns aspectos hoje ocultos ou reprimidos dos termos. Umexemplo simples: quando mobilizamos a histria dos concei-

    tos democracia ou repblica em contextos institucionais intei-ramente dominados pelos sistemas polticos liberais e repre-sentativos de hoje, percebemos como esto, com reqncia,reprimidas as componentes igualitria e participativa queos conceitos traziam consigo, respectivamente, na reerncia equalizao das condies sociais na linguagem poltica dapoca da Restaurao ou nas reerncias cvicas inscritas nasdenies romanas (ou neo-romanas). (...) a instabilidade ge-

    rada pela desnaturalizao dos termos viabiliza o pensamentode que a ordem social e poltica tal como dada, embora apa-rea a muitos como a nica possvel, pode ser de outro modoconstruda. (grios acrescentados) 2.

    Ao denir a Repblica como princpio undamental, a Constituio de1988 no instituiu apenas uma orma de governo, no sentido mais corriqueiroda expresso, que a ope monarquia; adotou como baliza para o Estado e asociedade um ideal complexo de organizao poltica, com razes proundas

    na histria do Ocidente, e que tem sido ormulado de maneiras distintas pordiversas tradies de pensamento.

    A polissemia caracterstica do termo Repblica deve-se justamente riqueza e variedade das concepes desenvolvidas ao longo da sua milenarhistria, podendo indicar tanto as condies de vivncia poltica no interiorde uma comunidade, quanto um regime poltico, ou um tipo de Estado, ouainda um paradigma de liberdade3.

    Como selecionar, desse universo de compreenses variadas do voc-bulo, quais so as mais adequadas sua interpretao, segundo se encontra

    2 JASMIN (2007; p. 6-7).3 SARLING (2008; p. 63).

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    disposto na Constituio de 1988? Em outras palavras: o sentido de um prin-cpio jurdico pode ser determinado a partir de um universo semntico e his-trico plural e contraditrio?4

    Desde uma perspectiva hermenutica da histria e do direito, a res-posta armativa. A interpretao constitucional uma atividade cons-trutiva, que d sentido s normas jurdicas com base na elaborao danarrativa que aa das prticas de nossa comunidade - de nossa tradio5- as melhores possveis6. Interpretar a tradio no signica apenas indagarcomo ela enxerga a si prpria ou procurar por seus sentidos imanentes(que no existem), mas construir uma narrativa histrica coerente que justique e organize a prtica atual segundo princpios sucientementeatraentes para oerecer um uturo honrado7.

    So essas narrativas que conerem substncia e atribuem sentidoao universo normativo de nossa sociedade - seu nomos, na ormulaode Robert Cover8. No se deve nutrir a pretenso ou a iluso de neu-tralidade, nessa atividade de construo da narrativa: toda leitura dahistria seletiva, mediada pelas nossas pr-compreenses. A seletivi-dade ainda mais explcita no caso dos constitucionalistas, que devem

    buscar o melhor sentido construtivo dos eventos histricos associadoscom a Constituio9. Ao constitucionalista cabe selecionar na histriaelementos que o permitam extrair um sentido poltico e moral aplicvel sociedade atual10, um sentido que no descoberto, mas elaborado deorma retrospectiva, com o objetivo explcito de estabelecer uma viso

    4 A problematizao eita por USHNE apud VARGAS (2005; p. 58), numa critica idia deinterpretar e legitimar o direito a partir da construo de uma narrativa histrica.

    5 GADAMER (2005; p. 404): Na verdade, o horizonte do presente est num processo de constanteormao, na medida em que estamos obrigados a pr constantemente prova todos os nossospreconceitos. Parte dessa prova o encontro com o passado e a compreenso da tradio da qual nsmesmos procedemos. O horizonte do presente no se orma pois margem do passado. No existe umhorizonte do presente por si mesmo, assim como no existem horizontes histricos a serem conquistados.Antes, compreender sempre o processo de uso desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos. (griodo original)

    6 DWORKIN (1999; p. XI e p. 273-75 - Integridade e histria).7 DWORKIN (1999; p. 274).8 COVER apud VARGAS (2005; p. 59): Ns habitamos um nomos - um universo normativo. [...]

    Nenhum conjunto de instituies legais ou prescries existe parte das narrativas que a localizam e

    conerem-lhe signicado. Para toda constituio h uma pica, para cada declogo, uma escritura. Umavez compreendido no contexto das narrativas que lhe conerem signicado, o direito se torna no apenasum sistema de regras a ser observado, mas um mundo em que vivemos. Nesse mundo normativo, direitoe narrativa esto inseparavelmente relacionados.

    9 SUNSEIN apud VARGAS (2005; p. 63).10 SUNSEIN apud VARGAS (2005; p. 63).

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    de mundo que nos permita compreender nossa prpria histria de umamaneira simultaneamente signiicativa e relexiva11.

    Essa a metodologia que procuramos empregar na pesquisa terica daqual este artigo az parte, cujo objetivo problematizar e reconstruir critica-mente o princpio republicano, revisitando seus usos nas tradies de pensa-mento e de prtica social e institucional das quais nosso constitucionalismo tributrio. Nossa motivao a hiptese de que so importantes para oavano do processo de realizao da cidadania, no Brasil, o aproundamentoda compreenso terica de duas dimenses undamentais da ideia de Repbli-ca, destacadas na epgrae deste texto: a equalizao das condies sociais e aintensicao da participao poltica dos cidados.

    Ser correto armar que a histria da Repblica brasileira tem sido ahistria da dissoluo do espao pblico12, tal qual o az GRECO, aplicandoao Brasil a viso de Hannah Arendt sobre a histria do mundo moderno? preciso enrentar o problema da brasilidade excludente13, do Estado unda-do numa nacionalidade sem cidadania, do discurso e da prtica que tomampovo apenas como cone e objeto, jamais sujeito ativo. Quais caminhos temsido e podem ser adotados em ace disso? Que riscos envolvem e podem envol-

    ver? As respostas a essas perguntas demandam anlises empricas, mas tambmo esoro de teorizao, no qual se insere a presente pesquisa, sobre as ideiasde liberdade, igualdade, espao pblico, comunidade, dierena, consenso econito, entre outras.

    Dada a limitao espacial imposta a este artigo, limitaremo-nos a ex-plorar aqui sem nenhuma pretenso exaustiva a emergncia da ideia derepblica, na Grcia e Roma Antigas, selecionando alguns elementos teis reexo sobre questes com as quais nos deparamos contemporaneamente.

    2. A concepo do ideal republicano: Grcia

    Embora a palavra Repblica seja de procedncia latina, entende-se queo ideal republicano antecede a civitasromana, tendo surgido nas cidades-Esta-do gregas antigas. Alguns de seus principais elementos podem ser encontradosna obra de Aristteles (384-322 a.C.), que, alm de pensador original, teve omrito de analisar sistematicamente as principais idias e instituies polticas

    11 COSA (2008; p. 414).12 GRECO (2003; p. 27).13 SAME apud GRECO (2003; p. 28).

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    gregas14, o que acilita nosso trabalho15.

    A cidade (no sentido depolis), a comunidade poltica, o Estado, surgenaturalmente, segundo Aristteles, da necessidade que os seres humanos tmuns dos outros para viver, o que gera as amlias e as aldeias (agregados deamlias); mas a necessidade s cessa na comunidade poltica, que a comuni-dade pereita, por ser auto-suciente: somente nela os homens obtm tudo deque precisam para uma vida eliz. Essas necessidades no so apenas materiais:a nalidade da associao poltica no somente a sobrevivncia, mas tambmsua elicidade evirtude.

    Para Aristteles, o homem no somente um ser social - que precisa

    dos outros, da vida comunitria; um animal poltico, cuja elicidade plenas pode ser alcanada pela participao na comunidade poltica16, que propi-cia a elicidade pblicae se distingue das demais porque seus membros - oscidados - so livres e iguais entre si.

    Como qualquer outra associao, a nalidade do Estado gerar o bemdos seus associados17. Por conseguinte, governos bons, ou puros, so aquelesque se pautam pelo interesse pblico, pelo bem comum dos administrados18,pois atendem nalidade a que devem servir. o caso da monarquia, da aris-

    tocracia e dapolitia (reqentemente traduzida para repblicaou democra-cia), segundo governe um s, pouco ou muitos (a massa) - mas sempre tendoem vista o interesse geral, e no apenas o daquele(s) que governa(m). A cadaorma de governo pura corresponde uma corrupta, na qual os governantesagem em prol de seus interesses particulares, e no do bem pblico: a ormadegenerada da monarquia a tirania; a da aristocracia, a oligarquia; e a dapolitia, a demagogia19.

    14 Segundo LINDSAY (1912; p. 3), Aristotle in his Constitutions had made a study o one hundred andty-eight constitutions o the states o his day, and the ruits o that study are seen in the continualreerence to concrete political experience, which makes the Politics in some respects a critical history othe workings o the institutions o the Greek city state..

    15 LEVORIN (2001) e CONSANI (2005), dentre outros, tambm partem de Aristteles para iniciar anarrativa da construo histrica do ideal republicano. Lembre-se da advertncia de Werner JAEGER(1995; p. 140) sobre a inaastvel conexo entre a obra aristotlica e a cultura helnica: A raiz datica losca de Plato e Aristteles na tica da velha polis oi desconhecida dos tempos posteriores,habituados a encar-las como a tica absoluta e intemporal. (...) Nenhuma losoa vive da pura razo. apenas a orma conceitual e sublimada da cultura e da civilizao, tais como se desenrolam na histria.Em qualquer dos casos, isto verdadeiro para a losoa de Plato e a de Aristteles. No podem ser

    compreendidas sem a cultura grega, nem a cultura grega sem elas.16 V. CONSANI (2005, p. 70).17 Aristteles, Poltica, Libro I, Captulo I. Dada a multiplicidade de verses do livro de Aristteles (apenas

    neste artigo, consultamos 4 verses distintas), optamos por um sistema de citaes dierente para ele.18 Aristteles, Poltica, Libro ercero, Captulo III, p. 44.19 Algumas tradues utilizam o termo democracia, que seria a traduo literal da palavra utilizada por

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    Qual das trs ormas puras a melhor? Para responder a essa indagao, preciso compreender as noes aristotlicas de cidadaniae de igualdade.

    Segundo Aristteles, Estados so ormados por cidados, denidoscomo aqueles que tm o direito de participar do poder pblico20, em qual-quer de seus rgos deliberativos21. O tempo livre de que se necessitava para oexerccio da cidadania - denida como participao - sustentava-se em grandeparte na escravido - a qual Aristteles arma ser justa, por decorrer da desi-gualdade natural entre os homens22.

    A relao entre o senhor e o escravo, segundo ele, tem a nalidade deproduzir o bem de ambos. O bem comum deve ser tambm a base da amlia,

    do comrcio, do Estado e de toda orma de associao humana. Para o l-soo de Estagira (amparado na experincia predominante nas cidades gregas),artesos, mulheres e crianas tambm no deveriam ser cidados - o que eleprocurava justicar com o mesmo argumento da desigualdade naturalentreos seres humanos.

    A igualdade poltica, a igualdade entre os cidados na comunidade po-ltica, era a igualdade somente entre os iguais: pressupunha a homogeneidadedos cidados. A desigualdade intrnseca associao entre senhor e escravo

    (bem como quela entre homem e mulher) porque eles so seres desiguais pornatureza; da mesma orma, a igualdade inerente associao entre os cidadosadvm do ato de serem naturalmente iguais23.

    A comunidade poltica no poderia ser ormada por seres desiguais por-que a sua base a amizade, a qual s poderia existir entre seres semelhantes,conorme expe Paulo Levorin:

    A condio sine qua non de uma comunidade poltica a ami-

    zade (philia). Ela uma virtude (arete) ou, como diz Aristteles,mais precisamente, aquela que nasce do convvio entre os vir-tuosos (...). Entendida como a disposio (hexis) de subordi-nar o prprio bem ao bem dos outros, a amizade possui umaqualidade especca que a distingue das outras virtudes. (...) a

    Aristteles. No entanto, como reere SILVA (2007; p. 103), democracia atualmente consideradaregime, e no orma de governo. Ademais, no aria sentido enquadrar um governo democrtico,segundo entendido hoje, como governo corrupto ou degenerado.

    20 Aristteles: Poltica, Libro ercero ,Captulo I, p. 38; Captulo III, p. 42. V. tambm LEVORIN(2001, p. 17).21 Aristteles, Poltica, Libro ercero, Captulo I, p. 39-40. A participao pode dar-se nas magistraturas

    ou na assemblia.22 Aristteles, Poltica, Libro I, p. 10.23 LEVORIN (2001, p. 14-15).

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    amizade pressupe a igualdade (entendida como a homoge-neidade de comportamento, de conduta) (...) Esta qualidadeespecca, que distingue a amizade das outras virtudes, az nas-

    cer um relacionamento duradouro em vista do bem comum,az nascer aquilo que Aristteles chama concrdia, harmonia(homonoia) entre os homens (grios acrescentados)24.

    Portanto, so requisitos para a cidadania a liberdade (das necessidadesda esera privada, dos trabalhos braais e manuais25) e a igualdade: os cidadosso seres livres e iguais por nascimento26.

    Voltamos pergunta eita anteriormente: qual das trs ormas boas de

    governo a melhor? Aristteles no arma a superioridade de nenhuma de-las, em abstrato; isso depender das condies de cada comunidade polticaparticular. O Estado justo deve undar-se na igualdade, consistindo esta emtratar igualmente os que so naturalmente iguais, e desigualmente, os desi-guais.Assim, a monarquia ser a melhor orma de governo numa comunidadeem que haja um homem de virtudes superiores a todos os demais, que devemsubmeter-se sua autoridade para o seu prprio bem - dada sua superiorida-de, ele ser o mais capaz de realizar o bem comum27. Se h alguns homens devirtudes superiores (e no somente um), e iguais entre si, ento a orma idealser a aristocracia. Nesses casos, o ato de a massa no possuir direitos polticosno prejudicial a ela: estamos alando das ormas boas de governo, em queeste movido pelo bem comum28.

    Na hiptese mais democrtica de Estado concebida ou relatada na Pol-tica, consideravam-se cidados os homens adultos capazes de empunhar armaspela cidade. Esse critrio no era ortuito: embora Aristteles arme categori-camente que a nalidade do Estado no meramente a de garantir a segurana

    e o bem-estar material de seus membros, deve-se ter em conta que a capaci-dade militar era muito valorizada pelos gregos. Uma virtude undamental nomundo antigo, em que a guerra ou a sua ameaa eram constantes, exigindo-sedos cidados a permanente disposio para deender a cidade - e a vida livre

    24 LEVORIN (2001, p. 14-15).25 Aristteles, Poltica, Libro segundo, captulo VI (p. 31).26 Aristteles, Poltica, Livro III, Captulo I.27 A idia dar erramentas queles que sabem utiliz-las, segundo LINDSAY (1912; p.5): I the state is

    the organisation o men seeking a common good, power and political position must be given to those who can

    orward this end. Tis is the principle expressed in Aristotles account o political justice, the principle otools to those who can use them.28 Perceba-se que o bem comum abrange tambm aqueles que no participam do Estado - escravos e

    mulheres, por exemplo. que o Estado o todo, e o bem do todo o bem das partes. Se os cidadosso virtuosos, o bem deles ser tambm o bem de suas amlias e o de seus escravos. Seus interesses seconudem.

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    e virtuosa que ela oerecia - contra os inimigos externos. O militarismo eravalorizado tambm porque estimulava as demais virtudes cvicas, conormeexplica Paulo Levorin:

    A ameaa dos inimigos, internos e externos, da repblica azbrotar em seus cidados uma virtude cvica da maior importn-cia para a sua estabilidade, a coragem - considerada por muitosrepublicanos a virtude cvica por excelncia, a condio primei-ra para azer parte da comunidade poltica (Arendt, 1981, 37)-, isto , a disposio de sacricar a prpria vida em prol dacomunidade. (...) morrer rente ameaa de tiranos e dspotas- qual as repblicas esto constantemente sujeitas - a maior

    prova de responsabilidade cvica. (...) esta virtude - a dispo-sio ao auto-sacricio pelos outros -, o ltimo grau a quechegaria a amizade, a disposio de preerir o bem dos outrosao bem prprio. A nase no cidado armado (...) leva em con-siderao no s a auto-sucincia e a deesa mais eetiva contrao inimigo, (...) mas tambm a sua qualidade tica. (...) encon-tramos aqui a idia de que a ameaa externa mais avorvelpara o modo de vida republicano e, conseqentemente, para

    a estabilidade interna que a paz defnitiva, medida que[sic] aquela e no esta que omenta a virtude cvica. (griosacrescentados)29.

    O bem comum s podia existir porque o Estado era ruto da comunhode propsitos30 entre os cidados, a qual gravitava, em grande parte, em tornoda segurana da comunidade. No entanto, no se limitava a esses aspectos:a coragem na guerra era somente uma (embora importante) dentre outrasvirtudes; a virtude poltica por excelncia, que sintetizava todas as demais -inclusive a da coragem, da valentia e do preparo para combater os inimigos doEstado -, era a de dedicar-se antes ao interesse pblico do que ao particular,encontrar a elicidade na realizao do bem comum, mais do que na satisaode desejos egosticos.

    Aristteles dene a virtude poltica como a capacidade de mandar eobedecer conorme as leis31. Esta denio possvel porque a lei passa a ser,

    29 LEVORIN (2001, p. 14-15 e 26-27).

    30 LINDSAY (1912; p. 5): Te Greek doctrine that the essence o the state consists in community o purpose isthe counterpart o the notion oten held in modern times that the essence o the state is orce. Te existence oorce is or Plato and Aristotle a sign not o the state but o the states ailure. It comes rom the struggle betweenconficting misconceptions o the good. In so ar as men conceive the good rightly they are united. Te staterepresents their common agreement, orce their ailure to make that agreement complete.

    31 CONSANI (2005; p. 71).

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    ao longo da histria grega, o critrio do justo e do injusto. O ideal grego detornar a poltica justa32, tica, realizadora do bem comum, deu-se por meio dasleis escritas, que resultaram da luta pela igualdade, segundo Werner Jaeger:

    o aumento da oposio entre os nobres e os cidados livres, aqual deve ter surgido em conseqncia do enriquecimento doscidados alheios nobreza, gerou acilmente o abuso polticoda magistratura e levou o povo a exigir leis escritas. (...) Direitoescrito era igual para todos, grandes e pequenos. Hoje, comooutrora, podem continuar a ser os nobres, e no os homensdo povo, os juzes. Mas esto submetidos no uturo, nas suasdecises, s normas estabelecidas da dike. (...)

    Enquanto themis reere-se principalmente autoridade do direito, sua legalidade e sua validade, dikesignica o cumprimento da justia. Assimse compreende que a palavra dike se tenha convertido necessariamente emgrito de combate de uma poca em que se batia pela consecuo do direitouma classe que at ento o recebera apenas como themis, quer dizer, comolei autoritria. O apelo diketornou-se de dia para dia mais reqente, maisapaixonado e mais premente.33

    Surge na Grcia, assim, o ideal de governo das leis34, e no dos ho-mens: a idia de nomos basileus. A lei , para os gregos, a alma dapolis35.Arma Werner Jaeger:

    O Estado expressa-se objetivamente na lei, e a lei converte--se em rei [nomos basileus], como os Gregos disseram posterior-mente, e este senhor invisvel no s subjuga os transgressoresdo direito e impede as usurpaes dos mais ortes, como in-

    32 JAEGER (1995; p. 138): a vontade de justia que se desenvolveu na vida comunitria da polis converteu-se numa nova ora ormadora do Homem, anloga ao ideal cavaleiresco do valor guerreiro nos primeirosestgios da cultura aristocrtica. Nas elegias de irteu, este velho ideal oi aceito pelo Estado espartano,e elevado condio de virtude cvica geral. No novo Estado, jurdico e legal, nascido de graves lutasintestinas pela constituio, este tipo espartano, puramente guerreiro, no podia valer como nica euniversal realizao do homem poltico. (...) A valentia perante o inimigo at o ponto de dar a vida pelaptria uma exigncia imposta aos cidados pela lei, e a sua violao acarreta penas graves. Mas nopassa de uma exigncia entre outras. O homem justo, no sentido concreto que desde ento esta palavraadquiriu no pensamento grego, aquele que obedece s leis e se regula pelas disposies dela, tambmcumpre na guerra o seu dever. O ideal antigo e livre da areteherica dos heris homricos converte-seem rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os cidados sem exceo esto submetidos, tal como

    so obrigados a respeitar a ronteira entre o prprio e o alheio. entre as amosas mximas poticas dosc. VI que se encontra o verso - to citado pelos lsoos posteriores - que resume todas as virtudes najustia. Fica assim denida de modo rigoroso e completo a essncia do novo Estado constitucional..

    33 JAEGER (1995, p. 134-135).34 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo XI, p. 54.35 JAEGER (1995, p. 143).

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    troduz as suas normas em todos os captulos da vida anterior-mente reservados ao arbtrio de cada um. At nos assuntos maisntimos da vida privada e da conduta moral dos cidados traa

    limites e caminhos. Deste modo, o desenvolvimento do Estadoleva, atravs da luta pela lei, criao de normas de vida novase mais dierenciadas. (...)

    Plato arma, com razo, que cada orma do Estado implica a orma-o de um tipo de Homem denido, e tanto ele como Aristteles exigem que aeducao do Estado pereito imprima em todos a marca do seu esprito. Edu-cados no ethosda lei, reza a rmula constantemente repetida pelos grandestericos ticos do Estado, do sc. IV. Ressalta dela com clareza a imediata sig-

    nicao educativa da criao de uma norma jurdica, tornada universalmentevlida atravs da lei escrita.36

    As leis expressavam e at certo ponto constituam a identidade dapolis:no apenas a estrutura do governo, mas o ideal de vida ticacompartilhadopelos cidados37, em torno do qual se dava a comunho de propsitos carac-terizadora da comunidade poltica, a unidade substancial38 entre seus mem-bros. Por isso que a virtude cvica (ou virtude poltica) consistia na obedin-cia s leis, a qual garantia no apenas a sobrevivncia material do Estado (emespecial sua segurana, a no-dominao por povos inimigos), mas em especiala permanncia de sua identidade, a garantia da existncia de uma comunidadeverdadeiramente poltica (no sentido j exposto).

    O dever undamental de todo cidado, portanto, inclusive e principal-mente quando estivesse ocupando cargos pblicos, era obedecer s leis.

    Isso no signica que os gregos considerassem justo tudo o que osseimposto pelo poder, tudo o que osse prescrito por lei39. Para que o governo

    osse bom, deveria ter boas leis o que signica a existncia de um critrio dejustia anterior a elas, que servisse de parmetro para avali-las. Governos comms constituies so maus40 (sendo a m constituio causa do mau governo,e vice-versa).

    A obedincia imprescindvel para viabilizar o eetivo xito das cons-tituies: boas leis so necessrias, mas insucientes para constituir um bom

    36 JAEGER (1995, p. 141-142).37 FIORAVANI apud VARGAS (2005, p. 72).38 VARGAS (2005, p. 72).39 Plato procurou reutar essa viso por meio do clebre dilogo entre Scrates e o sosta rasmaco, no

    livro I da Repblica.40 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo XI, p. 54

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    governo, pois no tornam, por si ss, os homens virtuosos41. preciso queelas sejam de ato soberanas: sejam aplicadas, obedecidas, eetivadas.

    Mesmo isso, no entanto, ainda no era o suciente, porque leis, por se-rem gerais e abstratas, jamais poderiam ser capazes de prever todas as situaesda vida que poderiam advir42. Nesses casos, os agentes pblicos (e no as leis)seriam soberanos para decidir, pautando-se pelos princpios polticos do Esta-do. Para evitar a corrupo, Aristteles recomenda que as deliberaes, nessescasos, sejam preerencialmente colegiadas e no individuais43, como ormade neutralizar os interesses privados e as paixes dos indivduos, de evitar asdecises arbitrrias (ou seja, uma maneira de tentar reproduzir nesses casos asvantagens da aplicao das leis).

    Para Aristteles, todo governo tende a se corromper com o tempo, poiso poder corruptor44 ou seja, passa a predominar a utilizao dos cargospblicos para a busca dos interesses privados, em detrimento da realizao dobem comum. No entanto, comunidades polticas dotadas de certas caracters-ticas e arranjos institucionais so mais resistentes a essa tendncia natural45, eportanto mais estveis. Por isso, a estabilidade o critrio decisivo para julgarqual das ormas boas de governo mais adequada para cada Estado, pois as

    condies concretas de cada cidade determinam o grau de aceitao

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    de cadaorma de governo, bem como sua capacidade de resistir corrupo.

    Aprincipal causa da instabilidade institucional, segundo Aristte-les, a desigualdade, sobretudo a de distribuio de riquezas47. O objetivodas revolues, em geral, a conquista de mais igualdade (a qual consiste, re-pita-se, em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais). Ou seja:a revoluo acontece quando seres iguais (semelhantes) no possuem igualda-de napolis, ou quando seres desiguais possuem os mesmos direitos polticos.

    Com base nisso, Aristteles conclui que a melhor maneira de garan-tir a estabilidade homogeneizar ao mximo os cidados para evitar

    41 LEVORIN (2001, p. 25).42 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo XI, p. 5443 CONSANI (2005, p. 72).44 ARISELES, Poltica, Libro VIII, Cap. VII, p. 116.45 LEVORIN (2001, p. 14).46 Lembre-se que o consenso requisito para a existncia de qualquer das ormas boas de governo. A

    tirania, a oligarquia e a oclocracia podem ser impostas pela violncia, mas a monarquia, a aristocracia e a

    politia devem ser ruto de acordo. V. Aristteles, Poltica, Libro VIII, Captulo VII, p. 121: El verdaderoreinado es un poder libremente consentido con prerrogativas superiores. Pero como hoy los ciudadanos valen lomismo en general, y ninguno tiene una superioridad tan grande que pueda aspirar exclusivamente a tan altaposicin en el Estado, se sigue que no se presta asentimiento a la creacin de un reinado; y si alguno intentareinar, valindose de la astucia o de la violencia, se le mira al momento como un tirano.

    47 LEVORIN (2001, p. 23).

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    que as desigualdades entre eles contaminem apolis, gerando instabilidades.Como j vimos, a homogeneidade na conduta tica, por denio, re-quisito de existncia da comunidade poltica. No entanto, para alcan-la,

    e estabilizar o governo, duas outras so necessrias: a homogeneizao daposse e a da atividade produtiva48. O governo mais estvel aquele emque a classe mdia mais numerosa49. Aristteles idealiza a comunida-de em que a todos concedida uma posse mdia, que lhes permita vivercomo agricultores50. Ele repudia a proposta de Plato de a propriedade sercoletiva; deende a propriedade privada, pois esta garante a independnciado cidado. Porm, os rutos da propriedade, a riqueza, dever ser de usocomum, j que entre amigos tudo comum51.

    Ressalte-se que a construo da igualdade econmica deve ser espon-tnea, no deve ser imposta pela redistribuio orada dos bens. que aimposio no aria cessar a instabilidade, pois permaneceria o vcio da aqui-sio, a ganncia. ambm por essa razo, a expanso pelas conquistas, comoorma de distribuio de riquezas (no caso, a dos povos conquistados), nopode ser aceita: o vcio da aquisio insacivel52. A nica via de equalizaovislumbrada, assim, que os ricos promovam unilateralmente a redistribuiodas posses: para Aristteles, esse ato virtuoso de desprendimento poderia ser

    capaz de inaugurar um relacionamento raternal, ou seja, o modo de vidapoltico53. Para possibilitar esse modo de vida, os cidados deveriam conterseus desejos, abandonar o vcio da ganncia, e passar a se satisazer com osuciente para a manuteno da vida e do cio necessrios ao gozo da vida vir-tuosa, poltica54. A constituio da classe mdia no se d de orma supercial(e por isso no pode ser imposta pela violncia): mdia no s nas posses,mas sobretudo nos desejos. Cessaria, assim, o egosmo, principal causa dasrevolues, da discrdia e da corrupo dos governos.

    Alm da homogeneidade econmica, que garante a liberdade dos cida-dos e sustenta sua igualdade poltica, tambm necessrio, para dar estabili-dade ao governo, que todo cidado possua virtude militar. J explicamos asrazes: primeiro, preciso proteger a comunidade contra seus inimigos. Noadianta armar apenas alguns cidados para proteger apolis, pois os inimigos

    48 LEVORIN (2001, p. 23).49 Aristteles, Poltica, Libro VIII, Cap. VII, p. 116: Debe procurarse: o conundir en una unin perecta

    a pobres y a ricos, o aumentar la clase media, que slo as se impiden las revoluciones que nacen de la

    desigualdad.50 LEVORIN (2001, p. 23).51 LEVORIN (2001, p. 23).52 LEVORIN (2001, p. 24).53 LEVORIN (2001, p. 25).54 V. Aristteles, Poltica, Livro IV, Cap. III: De la vida poltica (p. 58-59), e LEVORIN (2001, p. 14 e ss.).

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    no so apenas externos, podem ser tambm internos: se um grupo tentar darum golpe, preciso que os demais cidados tenham capacidade de resistir,deender a ordem. Se apenas alguns cidados detiverem armas, tero um poder

    desigual com relao aos outros; e o poder corruptor, portanto a tendnciaseria que esse grupo dominasse os demais cidados.

    Por isso, todo cidado deve ser um militante55, deve estar pronto adeender apolis. Alm disso, recorde-se dos eeitos educativos exercidos pelocultivo da virtude militar: reora-se o sentimento de dedicao coletividade,do sacricio do interesse privado (at mesmo da vida) pela utilidade pblica,bem como o de unidade, de laos comuns. Aristteles recomenda expressa-mente que se mantenha sempre a sensao de ameaa externa iminente:

    Los Estados se conservan no slo porque las causas de des-truccin estn distantes, sino tambin a veces porque son in-minentes; pues entonces el miedo obliga a ocuparse con do-ble solicitud del despacho de los negocios pblicos. As, losmagistrados que se interesan por el sostenimiento de la cons-titucin deben a veces, suponiendo prximos peligros que sonlejanos, producir pnicos de este gnero, para que los ciu-dadanos velen y estn alerta por la noche, y no descuiden la

    vigilancia de la ciudad.(grios acrescentados)56.

    Essa era uma das maneiras de ormar os cidados para que eles estives-sem aptos ao modo de vida poltico, especialmente ao cumprimento de seusdeveres. Isto indica, alis, o papel essencial da educao para a cidadania:

    El punto ms importante entre todos aquellos de que hemoshablado respecto de la estabilidad de los Estados, si bien hoy nose hace aprecio de l, es el de acomodar la educacin al prin-

    cipio mismo de la constitucin. Las leyes ms tiles, las leyessancionadas con aprobacin unnime de todos los ciuda-

    danos, se hacen ilusorias si la educacin y las costumbres

    no corresponden a los principios polticos, siendo democr-ticas en la democracia y oligrquicas en la oligarqua; porquees preciso tener entendido que si un solo ciudadano vive enla indisciplina, el Estado mismo participa de este desorden.(grio acrescentado)57.

    55 ARAJO (2000; p. 15).56 Aristteles, Poltica, p. 115.57 Aristteles, Poltica, Libro VIII, Captulo VII, p. 118.

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    Outros elementos undamentais para garantir a realizao do bem co-mum, a igualdade e a liberdade dos cidados e a estabilidade dos governos,segundo Aristteles, so:

    (i) Ainstituio do rodzio na ocupao dos cargos pblicos. Os man-datos peridicos assegurariam a alternncia no poder. Como no poss-vel que todos os cidados governem diretamente ao mesmo tempo (mesmoque em algumas instituies isso seja possvel, o governo sempre precisa deoutras mais restritas), este o mecanismo para que os cidados consintamcom que outros os governem porque cada cidado ocupa alternadamen-te o posto de governante e de governado58. Assegura-se, desta maneira, aigualdade. Ademais, a permanncia no cargo estimularia a corrupo, pois

    o poder intrinsecamente corruptor.

    O rodzio tambm melhora a qualidade da administrao pblica. odocidado deve possuir duas virtudes: la de saber ejercer la autoridad y lade resignarse a la obediencia59, e a segunda depende da primeira, porquela nica y verdadera escuela del mando es la obedincia60. Portanto, orodzio dos cargos avorece a qualidade da administrao.

    (ii) No admitir a ilegalidade, que mina surdamente o Estado, ma-

    neira que os pequenos gastos muitas vezes repetidos acabam por minaras ortunas61. Aristteles prope a criao de um cargo pblico res-ponsvel por exercer a uno de fscal da Constituio: debe crear-se una magistratura encargada de vigilar a todos aquellos cuya vidano guarde conormidad con la constitucin: en la democracia, con elprincipio,democrtico; en la oligarqua, con el oligrquico62.

    (iii) Instituir o dever de a administrao pblica prestar contas publica-mente: para evitar la dilapidacin de las rentas pblicas, que se obligue a

    cada cual a rendir cuentas en presencia de todos los ciudadanos reunidos, yque se jen copias de aqullas en las ratrias, en los cantones y en las tribus63.

    (iv) Evitar a mudana reqente das leis, pois isto enraquece a sua ef-ccia. Aristteles arma que mesmo alteraes que melhorem uma leipodem surtir eeito negativo, em ace dos danos sua vigncia eetiva.

    58 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo IV, p. 43-44. Politics, Book III, Chapter VI, p. 55: in all politicalgovernments which are established to preserve and deend the equality o the citizens it is held right to rule by

    turns. V. tambm LEVORIN (2001; p. 17).59 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo IV, p. 41.60 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo IV, p. 41.61 Aristteles, Poltica, Libro VIII, p. 115.62 Aristteles, Poltica, Libro VIII, p. 116.63 Aristteles, Poltica, Libro VIII, p. 116.

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    A permanncia das leis existentes deve ser tolerada em alguns casos, por-tanto, mesmo quando no sejam as ideais: preciso sempre ponderar se amudana que se quer promover melhorar a legislao a tal ponto que se

    justique a inovao:Si la mejora deseada es poco importante, es claro que, para evi-tarel funesto hbito de cambiar con demasiada facilidad lasleyes, conviene tolerar algunos extravos de la legislacin y del go-bierno.Ms peligroso sera el hbito de la desobediencia quetil la innovacin. (...) La innovacin en las leyes es una cosadistinta de la innovacin en las artes; la ley, para hacerse obedecer,no tiene otro poder que el del hbito, y el hbito slo se orma con

    el tiempo y los aos, de tal manera quesustituir ligeramente lasleyes existentes con otras nuevas, es debilitar la fuerza mis-

    ma de la ley. (grios acrescentados)64.

    Aristteles alude tambm idia de governo misto, arranjo institucio-nal que combina elementos da monarquia, da oligarquia e da democracia. Umexemplo seria a constituio da Lacedemnia (Esparta), no qual a monarquiaestaria representada pelos reis, a oligarquia, pelo senado, e a democracia, pelos

    oros, provenientes das leiras do povo.Aristteles relata essa orma de governo, mas no a julga a ideal: para

    ele, o melhor que os cidados sejam iguais, semelhantes entre si. O gover-no misto busca equilibrar corpos de cidados desiguais, distribuindo o poderentre grupos de interesses opostos, para que se contivessem e no oprimissemum ao outro e assim se assegurasse a igualdade. O ideal de Aristteles no eraesse, mas sim o governo intermedirio da classe mdia , em que a igualdadeseria assegurada no apenas por um articio institucional, mas por ser decor-

    rer da homogeneidade substantiva dos cidados.A idia de constituio mista viria a ser desenvolvida pelos romanos,

    como passaremos a ver na prxima seo. Vrios sculos depois, viria a in-uenciar a doutrina da separao dos Poderes.

    E a Repblica, nisso tudo, onde est? Que tm todas essas idias gregasa ver com ela?

    Segundo alguns autores65, o governo reputado por Aristteles como

    ideal o que ele chama de Repblica, e aquele que tem todas essas caracters-ticas que sintetizamos, como o rodzio dos cargos pblicos, o governo das leis

    64 Aristteles, Poltica, Libro III, Captulo V, p. 31.65 ARAJO (2000); LEVORIN (2001); CONSANI (2005).

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    (e no dos homens) e a homogeneidade econmica (governo da classe mdia),as quais visam, em geral, a garantir condies para a existncia de uma comu-nidade poltica auto-suciente de cidados iguais e livres associados pela busca

    do bem comum que se realiza no modo poltico de vida.O termo Repblica, usado tambm, em algumas tradues66 e

    intrpretes67, para designar o que Aristteles chamava de governo misto.Outros, ainda, o utilizam como sinnimo da orma boa do governo demuitos, a politia68.

    Ao que parece, Aristteles e os gregos usaram a mesma palavra parase reerir a mais de uma orma de governo. Certamente Plato, na obra A

    Repblica (cujo assunto undamental, alis, era a educao, e no as ormas degoverno), utilizou o termo em sentido diverso dos j mltiplos identicadosem Aristteles. No importa a esta pesquisa, no entanto, buscar a melhor tra-duo de qualquer termo grego. O propsito desta seo no eradizer o queos gregos entendiam pelo termo Repblica (que vem do latim e no do grego,talvez por isso as diculdades de traduo). Nosso objetivo era identicar, nacultura poltica grega, elementos que viriam a ser essenciais elaborao daidia de Repblica ao longo da histria. Fizemos isso no apenas pela curio-

    sidade histrica, e muito menos pela v pretenso de buscar embasamentopara o princpio republicano na autoridade intelectual de grandes autores(Aristteles, por exemplo). Nossa expectativa compreender o princpio re-publicano a partir de suas razes, para ampliar as possibilidades de conerir--lhe signicado. Idias e instituies desenvolvem-se juntas, e a compreensodo conceito de Repblica depende do entendimento do contexto em que eleormou-se e desenvolveu-se.

    3. A Repblica Romana

    Os romanos herdaram dos gregos a maioria das idias com que mol-daram suas instituies. O mrito de Roma, e a razo de sua duradoura in-uncia, decorreram do indito xito com que constituram uma Repblica

    66 A traduo espanhola disponvel na internet o az. As duas tradues em ingls consultadas no outilizam.

    67 LEVORIN (2001), no entanto, reuta veementemente dessa idia. Para ele, Repblica era a comunidade

    poltica que Aristteles tinha como ideal; e esta no era a do governo misto, mas sim a do governointermedirio, segundo j expusemos.68 A mesma traduo para o espanhol que utiliza repblica para denominar o governo misto tambm utiliza

    o termo para designar a orma pura do governo de muitos (da democracia), que preerimos manter comopolitia, dada a multiplicidade de tradues. Ressalte-se que resta muito evidente na traduo que amesma palavra designa duas ormas de governo dierentes.

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    considerada extraordinariamente estvel e prspera na tradio ocidental.

    O termo Repblica vem do latim res publica, que signica literalmentebem pblico ou coisa pblica69. Segundo Jos Aonso da Silva,

    pblico, do latim publicum, quer dizer do povo (populumdeupopulicum, e da pblico). Lembra Jhering que res publica,como personalidade, na concepo do Estado da poca pos-terior sociedade gentlica, implica, originariamente, o que comum a todos: res publicaeso as diversas coisas da sociedadepblica, s quais todos tm igual direito.70

    Para Ccero, autor da mais clssica ormulao do conceito de Rep-

    blica, o povo no uma multido qualquer de homens mas sim um gruponumeroso de pessoas associadas pela adeso a um mesmo direito e voltadaspara o bem comum (grio acrescentado)71. Os dois vnculos que constituemo povo como tal, como o destinatrio da res-publica e no como mera mul-tido, massa amora so, portanto, o consensus juris(o consenso do direito)e a communis utilitatis(a comum utilidade)72.

    O consensus juris, segundo Celso Laer, indica o papel do direito paraque a res publica no se veja comprometida pela violncia e pelo arbtrio73.rata-se daquele ideal j valorizado pelos gregos, segundo j expusemos, degoverno das leis, e no dos homens.

    Acommunis utilitatisno discrepa da idia grega de bemcomum, daqual tambm j tratamos. Antes de Ccero, ora inscrita na Lei das Doze -buas, que proclamara: salus populi suprema lex esto74 (o bem-estar do povo o bem supremo).

    Para alguns autores, a causa undamental do xito da Repblica romana

    oi o civismo de seu povo, seu carter incorruptvel, sua disposio para serviro Estado. A consecuo deste ideal, como j vimos em Aristteles, exigia umpovo dotado devirtude cvica, de uma cidadaniaorientada pela ambio deservir ptria75.

    Polbio identicou tambm outro ator para o xito da Repblica ro-mana: o governo misto, ormado por poderes em equilbrio. Segundo ele,

    69 LAFER (1989, p. 215).

    70 SILVA (2007; p. 102).71 LAFER (1989, p. 215).72 LAFER (1989, p. 215).73 LAFER (1989, p. 215).74 BARROSO (2009, p. 7).75 LAFER (1989, p. 217).

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    ningum, ainda que seja Romano, poder dizer com certeza seo governo aristocrtico, democrtico ou monrquico, e comrazo; pois se atendemos ao poder dos Cnsules, se dir que

    absolutamente monrquico e real; se autoridade do Senado,parecer aristocrtico, e se ao poder do Povo, se julgar que Estado popular. (...)

    al o poder que tem cada um desses poderes para prejudicarou se ajudar mutuamente, e todos eles esto to bem unidoscontra qualquer evento, que com diculdade se encontrar re-pblica melhor estabelecida que a Romana. (...)

    o Estado romano tira de sua prpria constituio o remdio deseus males. Porque no instante que uma das partes pretendeorgulhar-se e arrogar-se mais poder que o que compete a ela,como nenhuma bastante por si mesma, e todas, segundo dis-semos, podem contrastar e se opor mutuamente a seus prpriosdesgnios, tem que humilhar sua altivez e soberba.76

    Polbio verica que o arranjo institucional desenvolvido pelos roma-nos impede que o Estado seja dominado por interesses privados, das ac-

    es, ao dar a cada uma poder para se opor s demais. Desta maneira, atendncia era que prevalecesse a utilidade pblica, o bem comum uma vezque os poderes de veto dicultavam a aprovao de medidas contrrias aosinteresses de qualquer dos grupos. Assim, o poder continha o poder, e Romaevitava o domnio absoluto e arbitrrio de um s (tirania), dos ricos (oligar-quia) e da multido (oclocracia), instituindo um governo em que nenhumgrupo era oprimido a Repblica.

    Nicolau Maquiavel, muitos sculos depois, tambm analisaria as insti-

    tuies romanas. Para ele, a participao da plebe na comunidade poltica erauma ameaa homogeneidade que deveria sustent-la. Ccero Arajo explicaque, para o pensador orentino,

    a heterogeneidade do corpo de cidados corrompe o espritopblico, o sentido de destino e lealdade comuns, e o senso deigualdade que sustenta a prpria noo de comunidade: ago-ra, interesses contrrios se multiplicam, calcados numa visveldesigualdade de status social, riqueza, educao etc, entre osmembros, gerando conitos que reqentemente colocam ac-es rivais beira da guerra civil77.

    76 POLBIO (1975; p. 7 e 9).77 ARAJO (2000; p. 16 e 17).

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    Maquiavel considera, no entanto, que os romanos no poderiam terevitado incluir os plebeus na comunidade cidad, pois os nobres dependiamda plebe para deender a cidade necessidade imposta a Roma desde o in-

    cio. A participao nas vitrias militares trazia a demanda por participar nasinstncias de deciso da repblica. A inevitvel concesso dos direitos de cida-dania aos plebeus levou para a comunidade poltica as citadas dierenas entreeles e os patrcios, tornando-a palco de interesses conitantes. Isto poderia serproblemtico pela potencial ameaa aos laos que deniam a identidade dopovo: se o senso de aco78, de dierena, de conito, superasse o de homo-geneidade, de comunnis utilitatis, ento deixaria de existir um dos vnculosessenciais congurao dopopolo79. Isso no aconteceu com Roma, no en-

    tanto, aps a entrada da plebe na civitas; por qu?Para Maquiavel, o governo misto, ao mesmo tempo que providenciava

    mecanismos de moderao dos conitos entre patrcios e plebeus, tambmos aguava, ao lev-los para o corao das instituies polticas. Portanto, oarranjo institucional, por si s, era insuciente para conter o esprito de ac-o. O prprio Polbio tambm observara que a constituio mista s tinhaxito devido s virtudes cvicas dos cidados80, orjadas em grande medidapor instituies pblicas como os preceitos cvicos, os espetculos cvicos e a

    religio cvica - que para Polbio, segundo Paulo Levorin, desempenhavam oessencial papel de incutir nos cidados a disposio ao sacricio pela ptria eo desprendimento da res privata81.

    Maquiavel atribuiu o civismo dos romanos, em grande parte, ao per-manente estado de guerra em que viviam. O ator que tornara inevitvel oingresso dos plebeus na comunidade poltica uncionava ao mesmo tempocomo vlvula de escape do conito interno82: contrastada com a ameaa doinimigo exterior, a heterogeneidade do povo torna-se desprezvel83. Na ame-aa externa, a salvao da repblica mais um elemento, alis, que j Aris-tteles preconizara, conorme demonstrado na seo anterior. Alguns autoreschegariam a atribuir o m da Repblica romana aniquilao de seu ltimogrande rival - Cartago. Cessanda a ameaa externa iminente, as instituiespblicas reeridas por Polbio, que incutiam a virtude cvica nos cidados,

    78 Faces podem ser denidas como grupos privados que agem no Estado em busca de seus interesses- segundo MAQUIAVEL apud MIGUEL (2008, p. 22), elas dividem as cidades e originam a runa

    dos Estados.79 enha-se em mente a conceituao de ARAJO, anteriormente exposta.80 ARAJO (2000; p. 14); LEVORIN (2001; p. 50 e seguintes).81 LEVORIN (2001; p. 57).82 ARAJO (2000; p. 16).83 ARAJO (2000; p. 17).

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    perderam ora, pois assentavam-se em grande parte na exortao morte pelaptria84. Com a corrupo de seu esprito cvico, o povo romano perdeu ora,o que teria sido decisivo para sua runa.

    4. Consideraes fnais

    a enomenologia conceitual que Hannah Arendt chamaanlise conceitual um mtodo de investigao no apenasetimolgico, mas tambm histrico (...). Procurando traar aorigem dos conceitos, com ajuda da lologia e da etimologia,

    Arendt tenta rastre-los at os exemplos histricos concretos, as

    experincias que os geraram, para ento comparar o conceitooriginal ao atual e procurar ver as modicaes por que passouno tempo85

    O princpio republicano costuma ser associado contemporaneamente auma srie de caractersticas institucionais, tais quais o governo das leis, a ormade governo representativa, a garantia da temporariedade, eletividade e respon-sabilidade dos cargos pblicos86. A Modernidade produziu o esquecimento

    dos elementos que eram essenciais ideia de repblica na Antiguidade: asideias de cidadania ativa, bem comum e igualdade substantiva como requisitos existncia de uma comunidade poltica justa e estvel. Marcelo Jasmin apon-ta que, nos dias atuais, a hegemonia liberal quer nos impor a crena de queessas so noes anacrnicas, inadequadas ao mundo de hoje87, de indivduosragmentados, atomizados, para quem a poltica reduz-se a uma extenso domercado, de busca pela satisao de interesses pr-determinados.

    A recuperao da histria do conceito na Antiguidade deixa claro que

    repblica, antes de dizer respeito a certos mecanismos institucionais, sig-nicava sobretudo um certo tipo de sociedade, de associao poltica. Asgarantias ormais apenas expressariam e reorariam o exerccio da virtudecvica por pessoas livres e iguais entre si. Os aspectos ormais so incapazesde produzir uma repblica por si mesmos; pelo contrrio, apenas a uniode cidados virtuosos, capazes de se autogovernarem por meio de sua aopoltica, poderia exercer concretamente tais garantias institucionais de no--dominao. razer esse passado ao presente nos lembra que o undamento

    do direito como oposto da tirania e da dominao, como se o entende a84 LEVORIN (2001; p. 59, 60).85 ADEODAO apud LOPES (2006; p. 10).86 DALLARI (1995; 193).87 JASMIN (2007; p. 19).

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    partir da ideia de repblica , a sua onte instituinte permanente, s podeser a ao poltica dos cidados, capaz de constituiro espao pblico e, emconsequncia, o Estado republicano e no o contrrio. Contribui-se, as-

    sim, construo de uma memria que desloca para o povo instituinte, eno para o articialmente institudo, a tica sobre o undamento de legi-timidade e autoridade do direito. A preocupao com a responsabilidadecvica, real garantia contra abusos de poder, volta ao centro do pensamentopoltico, contra o desprezo que lhe ora relegado pelo liberalismo autoce-lebratrio, incapaz de enxergar como problema o processo de dissoluo eragmentao do espao pblico engendrado pela modernidade88.

    Outro aspecto essencial da ideia antiga de repblica que deve ser tra-

    zido reexo contempornea o da necessidade de igualdade substantivaentre os cidados homogeneidade tica (de ns no e do Estado), de situaoeconmica e de posio social. O mtodo republicano homogeneizador de di-undir o medo, o dio e a averso ao estrangeiro, ao dierente, o discordante, oestranho (palavra com a mesma raiz etimolgica de estrangeiro), percebido,hoje, como totalitrio. A igualdade tica, a noo de bem comum substancial, rejeitada na Modernidade, ante o projeto de uma sociedade plural, em quecada indivduo livre para ser eliz sua maneira. Porm, contemporanea-

    mente, a exigncia do compromisso de cada cidado com o pluralismo, isto, com o respeito dierena, a postura de tolerncia ou mesmo hospitalidadediante do Outro, no expressa o consenso tico exigido realizao da rep-blica que se deseja? A ideia de democracia procedimental tem um substratosubstancial, patente, por exemplo, nas tenses sobre a denio dos contor-nos do pluralismo e da liberdade constitucionalmente assegurados: pluralismoimplica garantir o direito a discursos e prticas desrespeitosas e oensivas? Odireito liberdade abrange a liberdade de oprimir o outro?

    Por ltimo, e nada menos importante, constatamos que o republi-canismo clssico aponta a desigualdade econmica como a maior causa deinstabilidade e corrupo da comunidade poltica. O processo de desnatura-lizao da igualdade poltica na Modernidade oi e emancipador, ao alargaro direito cidadania, participao na comunidade poltica: os pobres, asmulheres e diversos outros grupos o conquistaram por meio das lutas sociais,transormando o espao pblico em lugar da diversidade, de exposio dadierena e reivindicao do respeito a ela89. rata-se de processo substan-

    88 No advogamos que essa ragmentao seja algo puramente negativo, mas que preciso compreenderos problemas e riscos que ela envolve. H, tambm, os riscos do jacobinismo republicano, que enatizaexageradamente a obrigao do cidado de exercer sua virtude cvica. V., a esse respeito, BIGNOO(2006).

    89 Um outro artigo da presente pesquisa reete sobre esse processo histrico de redenio da esera pblica,

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    cialmente limitado, no entanto, enquanto segue naturalizada a desigualdadesocial: os antigos ensinaram que uma repblica no pode existir entre cida-dos e subcidados. A soluo que davam para isso era assumir a clivagem

    entre cidados e subcidados, e excluir os ltimos do direito cidadania.Dada a tendncia moderna e contempornea de universalizao da cidada-nia ormal, impe-se o desao da busca da homogeneidade social, que nose conunde com a unidade substancial, tica90; no se trata de suprimirou ignorar a diversidade, os conitos e antagonismos da sociedade, mas decombater as assimetrias de poder nela existentes, decorrentes das desigualda-des sociais de mltiplas ordens (no apenas econmicas), que continuarame continuam sendo reproduzidas pelo processo de modernizao do Bra-

    sil91

    . O grande desao terico do constitucionalismo democrtico brasileiro pensar a realizao de uma verdadeira repblica ao mesmo tempo em quese assegura o compromisso com o pluralismo tico: a inveno cidad de umEstado de direito social e pluralista, capaz de combater todas as ormas deopresso e realizar o grande ideal republicano da no-dominao.

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    da igualdade e da liberdade, na Modernidade. Seus limites so apontados, em parte, com base nas ideias

    dos antigos, introduzidas neste trabalho, em torno da necessidade republicana de homogeneidade social.90 BERCOVICI (2006) resgata o conceito de homogeneidade social de Herman Heller, que se contrapssimultaneamente ao liberalismo e noo totalitria de homogeneidade substancial, de Carl Schmitt.

    91 Sobre o carter excludente do processo de modernizao brasileiro, constitutivo de uma classe desubcidados, (denida por atores no apenas econmicos), v. a obra de Jess Souza. Indicamos um deseus livros na bibliograa.

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