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Os vários lados da crise alimentar As veias que sangram do Cerro de Potosí n o 99 R$ 7,90 ISSN 1519-8952 “Os jovens foram às ruas e, subitamente, todos os partidos envelheceram.” A frase que virou símbolo do movimento dos indignados na Espanha guarda um sentido universal. Há um novo fazer político nas ruas. E a multidão não se move mais por líderes 99 ano9 junho 2011 #Viva la revolución!

Fórum 99

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# Viva la revolución! “Os jovens foram às ruas e, subitamente, todos os partidos envelheceram.” A frase que virou símbolo do movimento dos indignados na Espanha guarda um sentido universal. Há um novo fazer político nas ruas. E a multidão não se move mais por líderes

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Os vários lados da crise alimentar

As veias que sangram do Cerro de Potosí

no 99 R

$ 7,90

ISSN 1519-8952

“Os jovens foram às ruas e, subitamente, todos os partidos envelheceram.” A frase que virou símbolo do movimento dos indignados na Espanha guarda um sentido universal. Há um novo fazer político nas ruas. E a multidão não se move mais por líderes

99 ano9junho 2011

# Viva la revolución!

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www.revistaforum.com.br

Fórum nasceu no 1o Fórum Social Mundial, quando a sociedade civil planetária disse

“não” ao pensamento único. Desde lá, conta a história desta década sem se render à lógica do mercado, pautando-se pelos interesses da sociedade e dos seus movimentos. Por isso, Fórum se tornou uma revista diferente. Uma revista que só publica aquilo que acredita.

Fórum, orgulho de ser diferente.

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3junho de 2011

A crise alimentar e suas origens

Obesidade, uma nova ameaça

Geopolítica da fome

Novos personagens em cena na Espanha

Democracia acampada

Política reinventada

A necessidade de uma estratégia altermundista

Dilemas do Porto Maravilha

As veias que sangram do Cerro boliviano

Visões sobre o crime de apologia

Cultura, ditadura e o silêncio dos inocentes

Rumo à Rio+20

Cartas 4

Espaço Solidário 5

Diversidade 15

Outro olhar 26

Mundo do Trabalho 31

Nossa Estante 48

Toques Musicais 49

Penúltimas Palavras 50

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Douglas Estevam, Fabíola Munhoz, Idelber Avelar, Julinho Bittencourt, Lídia Amorim, Marcio Pochmann, Miguel do Rosário, Moriti Neto, Mouzar Be-nedito, Pedro Alexandre Sanches, Pep Valenzuela, Rodrigo Savazoni, Sucena Shkrada Resk, Thalita Pires, Túlio Vianna e Vange Leonel. Capa: Thiago Balbi, com ilustração do cartaz “Join Spanish Revolution”, símbolo do movimento “Democracia Real Já”. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Administrativo: Ligia Lima. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a re-dação: (11) 3813.1836, e-mail: [email protected]. Para assinar Fórum: [email protected], http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agrade cemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: de 9/6/2011 a 9/7/2011.

Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Bar-bagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Coope ração Internacional).

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O mundo mudou de uma forma tão impactante nas últimas décadas que não era mais com-preensível que a política continuasse pautada pela lógica das relações verticais e organiza-ções intermediárias.O que aconteceu em de maio na Espanha é mais um capítulo desta nova ordem – ou desordem. A era dos líderes e dos partidos que organizam as massas está em crise.Isso tem a ver com uma série de fenômenos. Os dois maiores, e que se complementam, são o encolhimento do planeta a partir do processo da globalização e a reconfiguração das relações com os meios de comunicação por conta das novas tecnologias.Por isso, a frase “os jovens saíram às ruas e, subitamente, todos os partidos envelheceram”, que um jovem exibia em um cartaz no primeiro dia das manifestações em Madri, não podia ter sido mais feliz.Hoje, os partidos são analógicos, e a realidade é digital.Os partidos ainda pensam em líderes que podem atrair milhares para as suas teses. Enquanto isso, as ações se constroem em rede. A partir do que, de forma muito feliz, o jornalista Luiz Car-los Azenha denominou no seu blogue (www.viomundo.com.br) de “coalizão de vontades”.Esse processo não precisa de líderes. Mais do que isso, rejeita líderes.Por que isso acontece dessa forma? O momento é muito novo para análises mais complexas, mas é possível iniciar a reflexão.Os que hoje têm 40, 50 anos ou mais, cresceram lendo jornais, assistindo TV e ouvindo rádio. Os meios de comunicação tinham emissor e receptor. Se organizavam na lógica do “um” para “muitos”. A nova geração se comunica em redes. Todos são emissores, todos são receptores. Muitos falam com muitos.É muito mais difícil para quem se comunica o tempo todo nessa lógica entender que nos momentos de executar sua atividade cidadã, a frequência será outra. E que ele vai ter de ficar esperando alguém para liderá-lo.Por isso, nos protestos da Praça Tarhir, como você leu nesta Fórum, não havia um palanque onde os líderes se revezavam. Mas seis carros de som, onde quem quisesse falar poderia fazê-lo, desde que aceitasse entrar na fila sem qualquer privilégio. Todos iguais. Todos na fila. Todos em rede. Todos iguais.E o que vai surgir com esses movimentos, se o que de alguma forma está em questionamento é a própria democracia representativa?Difícil saber.A luta contra o desemprego e a falta de perspectivas é o que move os jovens europeus. E, nesse campo, eles não enxergam diferenças visíveis entre direita e esquerda. Como também percebem que a luta por uma internet livre não faz parte do programa de nenhum dos partidos tradicionais. Aliás, algo que também se repete no Brasil. E se os jovens não percebem a diferença entre direita e esquerda, a culpa é dos jovens? Evidente que não. É dos partidos, principalmente os de esquerda, que têm olhado para esses movimentos com os olhos de ontem.E que tornaram a militância política coisa de velhos.

Selo FSC

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A multidão está nas ruas, sem líderes e liderados

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4 junho de 2011

SERViçO AO ASSiNANTE(11) 3813.1836 | [email protected] | http://assine.revistaforum.com.br

Entre em contato. A Fórum é feita com sua colaboração. Dê sua sugestão, critique, opine, faça a revista conosco. Nosso e-mail é [email protected] e o en-dereço é rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. A Fórum reserva-se o direito de editar as cartas e e-mail por falta de espaço ou para facilitar a compreensão.

Você pode:

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Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original, da forma especifi-cada pelo autor ou licenciante

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Atribuição e Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil

Legalizar a maconha I (edição 98)

É esse tipo de informação que é preciso chegar a população. Não do tipo midiático global, capitalista.

@jacsoncsoares

Legalizar a maconha II (edição 98)

Bom texto. Ficou faltando só falar mais a respeito dos valores medi-cinais: glaucoma, antidepressivo, tratamento de câncer de pulmão e cérebro (diminui o crescimento de tumores), bronquite/asma (pa-rece contra-intuitivo mas sinto na pele, THC é broncodilatador), do-res crônicas de cabeça e no corpo, esclerose múltipla, insônia e mais algumas. Enfim, é, sem sombra de dúvidas, a plantinha mais extraordi-nária que temos em nosso planeta. Mas é preciso continuar lutando pra que essa mentira não se carregue por mais muito tempo. O governo precisa entender que quem quer fumar maconha, já tá fumando maconha. Taxação e regulação só ajudaria o Brasil economicamente, abriria um universo novo por aqui, abririam lojas de parafernália, ongs, sementes etc. O governo teria con-trole sobre quem compra, quem vende. Haveria uma idade mínima pra consumo, obviamente. O tu-rismo no Brasil aumentaria ainda mais. Isso é inevitável de acontecer em qualquer país que seguir com a legalização. Falta sanidade.

@v0rtic

O trabalhador ligado 24 horas (Edição 98)

O aumento da exploração dos tra-balhadores traz prolemas de saúde graves. Não é à toa que casos de depressão, síndrome do pânico e outros distúrbios psíquicos têm se tornado tão comuns em nossa so-ciedade. Dados do INSS sobre a categoria bancária mostram que esse tipo de doença já alcançou as

LER/Dort em porcentagem das cau-sas de afastamentos e as duas so-madas são metade dos motivos que tiram os trabalhadores dos bancos. O que os dois grupos de doenças têm em comum é sua origem na pressão de um modelo de trabalho desumano. Não tenho os números, mas, baseado na quantidade de amigos, colegas e conhecidos com depressão, duvido que seja diferen-te nas outras categorias.

Nicolau Soares

Sem tempo (Edição 97)

Essa revolução tem que partir de nós. Temos que parar de querer assumir todas responsabilidades domésticas, de achar que o homem não vai aceitar, não vai conseguir ,que os filhos vão ficar desassisti-dos etc.

Mariane

Mario Sergio Cortella: “O único critério de verdade é a prática” (Edição 75)

Os pontos de vista e enfoques do professor Mario Sergio Cortella, sempre com profundidade e luci-dez são contribuições essenciais ao debate de quantos pensam com seriedade e compromisso a Educa-ção em nosso país.

Bau

Editorial – As tragédias não deveriam deixar apenas marcas (Edição 97)

Prezados leitores, essencial refle-xão, pena que só em momentos de grandes tragédias o interesse por essas questões aumenta. E como efeito colateral, passados alguns anos dos desastres essas discussões já estarão paralisadas novamente e com avanços apenas discretos (quando existentes). Pre-cisamos agir e pensar o modelo de desenvolvimento sempre. Abraços!

Giacinto Scelsi

Estas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com

assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos

independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate

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5junho de 2011

divulgação solidáriaA Fórum dedica este espaço à divulgação de iniciativas ligadas à economia solidária. Se você participa ou promove algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio justo e solidário, entre em contato conosco para divulgá-lo.

No último dia 17 de maio, na Câmara dos Deputados, em Brasília, manifestantes e parlamentares lotaram a audiência pública para debater o Projeto de lei 865/11, que trata da transferência da Secretaria Nacional de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego, para a nova Secretaria Nacional de Micro e Pequena Empresa – que receberá status de ministério e será ligada diretamente à Presidência da República.

Dentre os diversos temas abordados, os participantes debateram mudanças na lei do microempreendedor individual, que atualmente não permite sócios e que afasta a possibilidade das cooperativas terem acesso aos benefícios do Simples Nacional. Porém, a grande discussão que ocorre a respeito do projeto de lei é sobre as diferenças de características entre empreendimentos solidários e individuais.

Na audiência, o secretário nacional de economia solidária, Paul Singer, reafirmou a importância dos setores – tanto de economia solidária quanto dos micro e pequenos empreendimentos – para o País, dizendo que a grande questão deve se concentrar nos avanços que ainda podem ocorrer. “A economia solidária cresceu muito fortemente no Brasil nos últimos anos. A mudança do órgão que irá comandar o setor poderá até mesmo ser benéfica, caso o novo ministério consiga montar uma forte sinergia entre as micro e pequenas empresas e a economia solidária”, comentou.

Entre os parlamentares, o deputado Pepe Vargas (PT-RS) e o relator da proposta na Comissão do Trabalho, de Administração e de Serviço Público, deputado Eudes Xavier (PT-CE), ressaltaram a economia solidária como forma inovadora de geração de emprego e renda, garantindo que o governo federal quer fortalecer os canais de diálogo entre os setores.

“A partir desta audiência, o governo vai abrir o diálogo entre a economia solidária e as micro e pequenas empresas. Os pontos de vista divergentes são mais de cunho filosófico do que prático. Como relator, vou apresentar, no dia 6 de julho, um relatório que contemple esses setores tão importantes para a geração de emprego e renda no País”, afirmou Eudes Xavier.

Sobre a mudança da área de influência da economia solidária, Pepe Vargas disse não ver incompatibilidades que possam atravancar o entendimento entre os setores. “Não vejo contradições entre esses dois modelos. Aliás, o debate não deve ser pautado por um antagonismo entre os segmentos. O que eles precisam é de mais políticas públicas de assistência e acesso ao crédito”, ressaltou.

Divergências

Contudo, o debate em torno do PL 865 não se dá sem polêmicas. Muitos avaliam que, se aprovado, o desaparecimento da Secretaria Nacional de Economia Solidária e o repasse das atribuições à Secretaria Especial de Micro e Pequena Empresa representaria um retrocesso para o movimento no campo das políticas públicas.

Outro ponto destacado é que o projeto, na fase de elaboração, não contou com a participação de movimentos e redes que atuam na área de economia solidária, desconsiderando as decisões tomadas nas duas conferências da área, realizadas em 2006 e 2010, a exemplo da deliberação pela criação de um Ministério da Economia Solidária e a implantação de uma lei geral.

“O PL foi elaborado desrespeitando o processo democrático, que viemos conquistando e fortalecendo dentro do governo popular, no diálogo sobre as questões atuais e das futuras perspectivas do Movimento de Economia Solidária, sendo, portanto, totalmente contrário aos anseios deste”, manifestaram representantes de movimentos de economia solidária em uma “Carta de Repúdio ao PL 865/2011”.

Em nota, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária argumenta que a identidade política a que se propõe a economia solidária é diferente das micro e pequenas empresas: “a primeira, a economia solidária, é baseada no associativismo, na cooperação e na solidariedade do trabalho coletivo e autogestionário, a fim de promover um desenvolvimento sustentável e socialmente justo; a iniciativa econômica das micro e pequenas empresas é para a promoção e qualificação do empreendedorismo individual, para viabilizar a inserção dos micro e pequenos empresários na economia de mercado”, aponta o documento.

As críticas também partiram da Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (Rede de ITCPs), a qual destacou, na “Carta de Porto Alegre”, que a proposta que está na Câmara dos Deputados não atende às demandas do movimento. “Tal projeto, longe de atender às especificidades da economia solidária e das reivindicações do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, afasta ainda mais a possibilidade de centralização da política, e reiteramos a necessidade da criação de um Ministério da Economia Solidária como indicado pela II Conferência Nacional de Economia Solidária”, enfatiza o texto.

Alterações no projetoSegundo Eudes Xavier, o governo aceitou alterar o PL 865 para dar maior ênfase à economia solidária na secretaria que será criada. Ele crê na possibilidade de se chegar a um acordo desde que o texto apresente o novo órgão como Secretaria Nacional da Micro e Pequena Empresa e da Economia Solidária. “No projeto, onde se localiza a economia solidária, temos que garantir a terminologia ‘empreendimentos econômicos solidários’, porque isso o diferencia das micro e pequenas empresas”, diz, observando, ainda, que a Frente Parlamentar Mista da Economia Solidária, relançada no último dia 18 de maio, será o canal de diálogo entre os movimentos e o governo para aperfeiçoar o projeto.

Com audiência na Câmara, PL 865 pauta debate sobre economia solidária

SauloCruz

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6 junho de 2011

por Glauco Faria

Em fevereiro deste ano, os preços mundiais dos alimentos atingiram o maior nível de uma série histórica, iniciada em 1990 e apurada pela Or-ganização das Nações Unidas para

Agricultura e Alimentação (FAO). Aquele foi o oitavo mês consecutivo de alta e o índice superou o de junho de 2008, quando o plane-ta vivia uma crise alimentar com impressio-nantes elevações de preços: em três meses, o arroz, por exemplo, chegou a subir 50% e em um período menor que dois anos, o aumento chegou a 180%. Os grãos de primeira neces-sidade, entre março de 2007 e abril de 2008, tiveram seus preços elevados em 88%.

As raízes da crise

Longe de representar apenas os efeitos da oferta e da demanda, a alta dos preços das commodities agrícolas mostra que a especulação e a estrutura do comércio mundial precisam ser repensadas

Nem mesmo a interrupção de uma sequ-ência de oito elevações mensais, com o recuo de preços em março e o índice praticamente estável de abril, fez o cenário se tornar mais favorável. Hoje, estima-se que 925 milhões de pessoas em todo o mundo estão em situação de fome crônica. Como a organização calcula que 40 milhões de pessoas teriam passado a essa condição no período crítico de 2007-2008, os resultados dessa nova elevação de preços podem fazer com que um outro grande contingente de pessoas passe à subnutrição. Mas, afinal, o que está por trás da recente alta?

São diversos os fatores que podem ex-plicá-la. Dois que são bastante difundidos atribuem a elevação a quebras de safras e ao aumento do consumo de alimentos no plane-

ta. O escritor Vincent Boix, autor do livro O parque das redes e responsável pela área de Ecologia Social do site www.belianis.es, em um artigo da série “Crise agroalimentícia”, usa alguns dados que desmitificam essa explica-ção. A FAO prevê, para o ciclo 2010-2011, que o balanço mundial entre a produção e o con-sumo de cereais apresente um déficit de 43,1 milhões de toneladas. No entanto, as reservas, que estariam próximas de 483 milhões, cor-respondem a quase 11 vezes essa diferença. No biênio 2003-2004, essa relação era de seis vezes, mesmo assim, os preços não chegavam à metade do que se apresentam agora.

“Essa crise é sistêmica, não conjuntural, e não é mera expressão de um desajuste de oferta e demanda. Há pressões de demanda,

A cultura de soja, um dos principais produtos do agronegócio mundial, ainda

tem campo para se expandir no Brasil

luIz CarloS MurauSkaS / FolhapreSS

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7junho de 2011

sem dúvida, tem havido também problemas de disponibilidade de alimentos em razão de insucesso de safras, mas a questão não se esgota nisso”, analisa Renato Maluf, pre-sidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Há um componente especulativo muito forte, so-bretudo pela extrema mercantilização do comércio de commodities no mundo a par-tir de instrumentos como o mercado futuro, que extrapolaram a sua função e se tornaram um elo entre as commodities e a especulação financeira em geral”, explica. “Há novos ato-res incidindo nesse mercado, que não são os tradicionais.”

Segundo Maluf, os objetivos da criação do mercado futuro eram justamente garan-tir liquidez e promover uma proteção contra a flutuação de preços, já que os preços dos produtos agrícolas estão sujeitos a sazona-lidades e condições muito específicas. No entanto, hoje esse sistema funciona de forma bem distinta. Não é à toa que o estouro da crise dos subprimes e a alta de preços acon-teceram na mesma época. “À medida que outras bolhas foram ‘secando’ ou rebentan-do (novas tecnologias, mercado imobiliário, subprime), os especuladores (fundos de in-vestimento, hedge funds, fundos de pensões, grandes bancos) se concentraram nas com-modities, incluindo os produtos alimentares. Aos olhos dos especuladores, trata-se de uma bolha difícil de “secar”, já que, ao con-trário do que sucede com outras mercado-rias mais ou menos dispensáveis, as pessoas terão sempre que comer”, pondera o biólogo português e eurodeputado João Ferreira, em artigo publicado em Odiario.info. “Muitos dos que ganham milhões especulando com os produtos alimentares não tocam sequer num único grão de milho ou bago de arroz. A FAO estima que apenas 2% de todos os contratos de futuros resultem na entrega da mercadoria física subjacente”, aponta.

Conforme Vincent Boix, há fundamen-talmente dois tipos de agentes nessa cadeia especulativa. “Os fundos de investimento, de pensões, de cobertura etc., que, segundo o Observatório da Dívida na Globalização, ‘...compram e vendem contratos de futuros es-perando tirar benefícios em qualquer uma das transações, independentemente de estes contratos se materializarem.’ Depois estão os intermediários (destacando as transnacio-nais agroexportadoras como Cargill e Mon-santo), que manejam grandes quantidades de produtos como o cacau, cereais etc., o que lhes confere influência na oferta de alimen-tos, não hesitando em armazenar grandes

quantidades para desabastecer o mercado e forçar uma subida de preços. Esses interme-diários também especulam com contratos de futuros.” Na mesma linha, Renato Maluf tam-bém observa que o enorme poder das corpo-rações, em todas as etapas da cadeia que leva os alimentos à mesa das pessoas, lhes dá um grande poder na definição de preços, já que permite que se apropriem do controle de parte do processo especulativo.

Desigualdade no campoUma outra questão que merece reflexão

diante do cenário de crise alimentar é a do modelo agrícola adotado por cada país. Boix lembra uma declaração de Olivier De Schut-ter, relator da ONU para o Direito à Alimenta-ção. “Os países africanos se beneficiaram de colheitas relativamente boas em 2010 e não enfrentam risco imediato [...] Os países que importam a maior parte da comida que neces-sitam são mais vulneráveis. Os menos desen-volvidos compram 20% de seus alimentos, e sua conta se multiplicou por cinco ou seis desde os anos 1990. Esta dependência dos mercados internacionais é muito perigosa.”

O depoimento de De Schutter mostra algo que parece bastante óbvio: para asse-gurar a soberania alimentar de suas popu-lações, os países deveriam produzir a maior parte daquilo que consomem. Mas não é isso que acontece em muitos lugares. “Vale des-tacar que muitos organismos como o Banco Mundial pressionaram e estimularam na-ções pobres para que apostassem na agroex-portação, afogando sua própria agricultura campesina. Também o desaparecimento das tarifas sob a ‘lógica do mercado’ facilitou que excedentes subsidiados pelos Estados Unidos penetrassem em países pobres, ani-quilando a produção local, o que gerou uma dependência das importações.”

Em meio à crise de 2007-2008, o Brasil sofreu menos o impacto da alta do que ou-tros países, justamente por ter instrumentos domésticos para se proteger, embora tenha

havido alteração de preços, como agora. Mas o papel desempenhado pela agricultura fami-liar, responsável por aproximadamente 70% da alimentação do brasileiro, foi fundamental para que a situação não fosse pior. “Muitos países asiáticos e latino-americanos em que a agricultura familiar tem baixa capacidade de produção foram mais afetados”, pontua Maluf. Mas o cenário pode se alterar em um futuro próximo, já que o modelo do agronegócio, vol-tado para exportação, cresce em ritmo mais rápido que a agricultura familiar.

De acordo com relatório do Consea, di-vulgado em novembro de 2010, “a expan-são do agronegócio e das formas privadas de apropriação dos recursos naturais a ele associadas contribuíram para acentuar a já elevada concentração da propriedade da terra no Brasil e para limitar o avanço das políticas de reforma agrária. A concentração fundiária e a morosidade na implantação da reforma agrária constituem, hoje, um dos principais obstáculos ao desenvolvimento e à consolidação dos sistemas familiares de produção rural no Brasil. O desenvolvimento da agricultura familiar e do agroextrativismo é estratégico para a soberania e a segurança alimentar e nutricional das populações do campo e da cidade”.

“A expansão do agronegócio vem sendo viabilizada com a atuação do que chamo de tríplice aliança: latifúndio-Estado-agronegó-cio. Nesse sentido, o agronegócio reúne o que há de mais moderno em termos tecnológicos com o que há de mais arcaico em termos de estrutura fundiária e de relações de traba-lho”, avalia Christiane S.S. Campos, doutora em Geografia e professora da Universidade Federal de Santa Maria. Além de não assegu-rar o abastecimento interno, parte das van-tagens propaladas pelo agronegócio, como a geração de empregos, deve ser relativizada.

Além de gerar menos empregos – pesqui-sa realizada por Rosemeire Aparecida de Al-meida, da Universidade Federal do Mato Gros-so do Sul, constata que, no estado, as áreas de menos de 50 hectares geram uma ocupação a cada 6,7 ha, enquanto aquelas acima de mil hectares geram uma ocupação a cada 411,56 ha –, a qualidade dos postos também não é elevada. “Em relação especificamente às con-dições de trabalho, observa-se que onde se expande o agronegócio se intensifica a preca-rização, uma vez que se reduzem os empregos fixos, se ampliam empregos temporários e se intensifica muito o ritmo de trabalho, o que amplia a quantidade e a gravidade das doen-ças que atingem a população trabalhadora”, explica Christiane. “Isso sem falar do contato

De acordo com relatório do Con-sea, divulgado em novembro de 2010, a expansão do agronegócio contribuiu para acentuar a já ele-vada concentração da propriedade da terra no Brasil

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8 junho de 2011

direto dos trabalhadores com os agrotóxicos, pois à medida que cresce a produção e a pro-dutividade agrícola, cresce o consumo dos agrotóxicos no País.”

A geógrafa realizou uma pesquisa sobre a pobreza feminina em meio à riqueza do agro-negócio, baseada em um estudo de caso da cidade de Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul. Ela entrevistou empregadores de diferen-tes segmentos da cadeia produtiva da soja no município, e os resultados mostraram que as desigualdades geradas por esse tipo de mo-nocultura em larga escala se dão em diferen-tes níveis. “O perfil do emprego gerado pelo agronegócio pode ser sintetizado em quatro palavras: masculino, formal, temporário e precário. É masculino porque 78% dos pos-tos de trabalho gerados pelos empregadores entrevistados eram ocupados por homens. É formal porque 97% dos empregos tinham contrato de trabalho. É temporário porque 66% dos empregos são oferecidos por um período predeterminado, geralmente de três meses. É precário devido ao curto período de tempo da maioria das vagas e à baixa remu-neração para a maior parte das funções, espe-cialmente no caso das mulheres.”

Os dados colhidos por Christiane levaram à constatação de que, em Cruz Alta, o agrone-gócio contribui decisivamente para retroali-mentar a pobreza, mas não de forma homogê-nea. As mulheres têm muito mais dificuldade de se inserir no mundo do trabalho em um território do agronegócio como a cidade gaú-cha. A justificativa dos empregadores é que os postos gerados são de “serviço pesado”. Entretanto, mesmo os cargos de vendedores, gerentes, entre outros que não exigem força muscular, são, na sua quase totalidade, ocupa-dos por homens. “Ironicamente, entre os pos-tos que as mulheres conseguem vaga estão o trabalho agrícola temporário e os serviços de limpeza nas empresas, que não podem de ma-neira alguma ser caracterizados como ‘servi-ço leve’”, explica.

A pesquisa mostra também que há uma segregação ocupacional por gênero, já que as mulheres se concentram em funções sem po-der de tomada de decisão, além da desigual-dade salarial, apesar de elas terem melhor es-colaridade. “Nos locais pesquisados, a maior parte dos homens recebe entre dois e cinco salários mínimos. No caso das mulheres, a maioria dos estabelecimentos paga entre um e dois salários mínimos. Há inclusive empre-sas em que o salário das trabalhadoras não chega ao mínimo nacional”, conta Campos. “Com base nesses dados e em estudos reali-zados por pesquisadoras em outras cadeias

do agronegócio, como a cana em São Paulo e a fruticultura irrigada em estados do Nordeste do País, concluímos que onde se territorializa o agronegócio se intensifica a desigualdade social, em geral, e, em particular, a desigual-dade de gênero no mundo do trabalho.” E esse cenário se torna mais preocupante quando se considera que, em um número crescente de famílias, o trabalho feminino é a principal ou até a única fonte de rendimento. Em Cruz Alta, a mulher é a principal responsável pela renda em 40% dos domicílios.

Rosa Maria Vieira Medeiros, do Núcleo de Estudos Agrários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembra que o agronegócio, por ser altamente mecanizado, não faz uso de tanta mão de obra e, conforme a região em que ele se instala, há problemas de elevação do desemprego. “No Rio Grande do Sul, tanto a soja como o arroz, ao terem sua produção mecanizada, liberaram um enorme contingente de mão de obra, que foi engrossar a população de outros locais, como a região calçadista do estado. Nos anos 1980, havia linhas diretas de ônibus que saíam do norte do Rio Grande do Sul”, relembra a professora.

Agronegócio x Agricultura familiarAlém de alterar as relações sociais, o

agronegócio interfere espacialmente nos locais onde se insere. “Se você olhar o mapa do Brasil, vai visualizar um processo que não está baseado na diversidade de produção ou na preocupação de se ter uma estrutura des-centralizada, com aproximação dos centros de produção e de consumo. Não tem o me-nor sentido, por exemplo, que o arroz, sendo consumido no Brasil todo, tenha sua produ-ção tão concentrada no Sul”, observa Renato Maluf. Efeito óbvio desse modelo é a con-centração de terras. “O último censo agro-pecuário, realizado em 2006, cujos resulta-dos foram publicados em 2009, mostra que houve um aumento do índice de Gini quando comparado com a década de 1980. Em 1985, o índice de Gini da área total dos estabeleci-mentos agropecuários do Brasil era de 0,857

e, em 2006, passou para 0,872 (quanto mais próximo de 1 fica o índice, maior a concen-tração)”, explica Christiane Campos. “Isso significa que nossa estrutura fundiária, que já era extremamente concentrada, ficou ain-da pior com a expansão do agronegócio.”

A professora Rosa Medeiros remete no-vamente ao exemplo do Rio Grande do Sul para mostrar os efeitos da expansão da mo-nocultura de soja. “O início da cultura de soja no estado data dos anos 1960 e se fortalece nos anos 1970, e essas áreas já foram redese-nhadas. Antes, elas tinham policultura, cria-ção de aves, porcos e o processo de moder-nização da agricultura, que fez parte de um grande projeto que trouxe uma quantidade enorme de subsídios, com créditos a juros baixíssimos, modificou esse cenário”, analisa. “Os muito pequenos acabaram absorvidos pelos grandes.”

Outra consequência do domínio do agro-negócio é que a agricultura familiar passa a tentar se integrar na cadeia produtiva de acordo com os interesses dos grandes. “Em Cruz Alta, por exemplo, não se percebe mu-dança na paisagem rural quando se está numa área da agricultura familiar e em uma lavoura de um grupo do agronegócio, porque em ambas predomina a soja, e nas lavouras se usa sementes transgênicas e o plantio di-reto”, destaca Christiane. “Até porque os gru-pos do agronegócio controlam as estruturas de armazenagem e de insumos, encarecendo o custo de produção de produtos diferentes daqueles que consideram prioritários.”

Rosa Medeiros realizou uma pesquisa no município de Tupanciretã, interior gaúcho, e constatou que muitos assentamentos no local já produzem soja transgênica, o que vai contra os princípios da sustentabilidade e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tem forte presença na região. Segundo ela, há três hipóteses possí-veis para que assentados repitam tais prá-ticas: a boa qualidade da terra, que atrai os interesses do capital para o cultivo da soja; a disponibilidade de linhas de crédito incenti-vando a produção do grão e a necessidade de menos mão de obra com a utilização de agro-tóxicos e máquinas. “Muitos estão inseridos nessa lógica, eles se organizam em coopera-tivas e associações e entram no sistema de competição para aluguel de máquinas. Não existe uma prática ecológica.”

No entanto, alguns assentados estão op-tando por uma prática sustentável: a produ-ção do arroz ecológico, que dispensa a utili-zação de agrotóxicos ou adubos químicos. “É muito difícil para quem planta. O arroz eco-

As mulheres têm muito mais dificuldade de se inserir no mun-do do trabalho em um território dominado pelo agronegócio. Mesmo os cargos que não exigem força muscular, são, na sua quase totalidade, ocupados por homens

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lógico requer um outro tipo de envolvimen-to, todo um desejo e uma filosofia de vida. Se essas pessoas pensarem só no rendimento, na primeira quebra de safra acabam largan-do”, pondera. Mesmo assim, a cada ano mais agricultores assentados estão optando por produzir esse tipo de arroz, que, segundo da-dos do MST, envolve aproximadamente 400 famílias no estado e deve produzir 344 mil sacas na safra 2010/2011, ante 170 mil, da safra 2009/2010.

Nesse contexto, a contraposição entre a agricultura familiar e o agronegócio, no que diz respeito à soberania alimentar, invoca o debate sobre o papel exercido pelo poder público. A primeira, como já dito anterior-mente, é fundamental para a alimentação da população, mas o peso econômico do agronegócio é significativo. Desde a década de 1990, a participação das commodities na pauta de exportações brasileira ficava em torno dos 40%, mas, entre 2007 e 2010, ela passou para 51%. E é bom lembrar que o fe-nômeno não se deve exclusivamente à valo-rização das commodities.

“Trata-se de uma questão de políticas públicas, temos dois Ministérios, um da Agri-

cultura e outro do Desenvolvimento Agrário. A ideia é a coexistência do agronegócio e do desenvolvimento da agricultura familiar, mas a menina dos olhos é o agronegócio, porque representa muito na balança comercial do País”, acredita Rosa Medeiros. “A dinâmica do agronegócio é muito poderosa e conta com o beneplácito da história brasileira, na qual uma das características mais marcantes em todos os regimes que tivemos é essa presença importante e poderosa da grande produção e da estrutura agrárias concentradas, e que são uma reprodução da raiz da nossa desigualda-de social”, avalia Renato Maluf, que reconhe-ce o importante papel do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), mas alerta sobre a necessidade de aprimorar o sistema de financiamento. “O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é inovador e percorre o mundo, mas tem que ganhar mais amplitude do que tem hoje, é preciso decisão política e um tempo para que essa produção seja organizada.”

E a proteção contra os movimentos es-peculativos também já pauta as ações go-vernamentais. A secretária de Segurança Alimentar, Maya Takagi, conta que já há uma

discussão sobre a elaboração de um sistema de monitoramento dos preços, tanto dos in-sumos quanto dos preços dos produtores e os que chegam aos consumidores. “Ainda em fase inicial, a ideia é juntar os diversos índices de preço que existem e elaborar um sistema para acompanhar as oscilações e comparar com anos anteriores. Assim, é pos-sível planejar várias formas de intervenção, verificando onde a elevação se concentra, no atacado ou no varejo, ou se é no nível dos in-sumos, por exemplo”, explica Maya. “Um se-gundo ponto é fortalecer a armazenagem, já que, com ela, é possível atuar para enfrentar uma eventual elevação de preços.”

Maluf atenta para a necessidade de um diálogo global e ressalta que é preciso agir no cerne do problema: a especulação. “A ro-dada de Doha caiu, e hoje a regulação finan-ceira é fundamental, mas nem todos querem implementá-la. O Brasil tem regulação, mas os EUA, o principal mercado do mundo, re-sistem a ela, e o que acontece ali em Chicago repercute no mundo todo”, aponta. “Mas a re-gulação da especulação financeira depende de um acordo entre as nações e, sobretudo, dos principais países.” Não será fácil. F

Transporte de alimentos negociados pelo Programa de Aquisição de Alimentos, que precisaria ter mais amplitude do que tem hoje

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10 junho de 2011

de escolaridade fazem atividade física em seu tempo de lazer. Com menos de oito anos de escolaridade, só 14% praticam alguma atividade”, diz Padilha. “Isso porque às ve-

zes a pessoa não vive num lugar seguro

para fazer ativi-dade física e não tem

dinheiro para pagar aca-demia.”

Por outro lado, para atender a chamada “nova classe média”, que em 2014 deve ser 57% da popula-ção entre 18 e 69 anos, com acesso a alimentos industrializados, o Siste-

ma Único de Saúde terá que se reorganizar.

“Mas não é só o sis-tema de saúde, a

por adriana delorenzo

Uma epidemia surge no Brasil e o Sistema Único de Saúde (SUS) não está preparado para atender todas as suas vítimas. O sobrepeso e a obesidade, somados, já atingem

cerca de 60% da população adulta brasilei-ra. Levantamento do Ministério da Saúde mostra que 48,1% dos adultos estão acima do peso e 15% são obesos. Os dados são da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inqué-rito Telefônico (Vigitel) de 2010, para a qual foram entrevistadas 54.339 pessoas em to-das as capitais do país. Desde 2006, quando a Vigitel começou a ser realizada anualmente, os números vêm crescendo. Há cinco anos, 42,7% da população estava com excesso de peso e 11,4%, com obesidade. Em 1975, ape-nas 2,8% dos homens e 7,8% das mulheres eram obesos, segundo o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) realizado na-quele ano.

Enquanto parte do Brasil ainda tem fome, outra reproduz hábitos ali-mentares não saudáveis, provocando uma epidemia comum em países ricos. O Brasil ocupa a 19ª posição no ranking mundial entre os homens, e está em 15º quando se trata de mulheres, segundo pesquisa da revista médica americana The Lancet. Nos EUA, país líder mun-dial no ranking de obesidade, 25% da população é obesa. “Infelizmente con-seguimos copiar o que eles têm de pior: o padrão alimentar”, diz a conselheira do Conselho Nacional de Segurança Ali-mentar e Nutricional (Consea) e professora da Universidade de Brasília (UnB) Elisabet-ta Recine.

Mas tanto no caso do excesso como da escassez, quem tem menos renda é o mais afetado. Se o Brasil já apresenta esse gran-de contingente de pessoas acima do peso, o

Da fome à obesidadeO Brasil começa a viver o drama de países ricos. Com maior consumo de alimentos industrializados ricos em sódio, açúcares e gorduras, mais da metade da população apresenta sobrepeso ou é obesa. As classes C e D são as maiores vítimas.

índice é maior entre as classes C e D. “Quan-do consideramos a faixa de renda e de esco-laridade, temos mais obesos entre os mais pobres e menos escolarizados”, afirmou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista concedida a blogueiros progres-sistas, em 21 de maio. Uma série de fatores faz com que as pessoas cujo gasto com ali-mentação, até pouco tempo, pesava no or-çamento hoje estejam no grupo de risco de desenvolverem as chamadas doenças crô-nicas não transmissíveis, tais como hiper-tensão, diabetes e cardiovasculares.

O aumento do consumo de alimen-tos industrializados ricos em sódio, açúcares e gorduras é apontado como o principal elemento causador dessa situação. Além disso, o sedentarismo é cada vez maior entre a população, principalmente de baixa renda. “A pesquisa Vigitel mostrou que 30% das pessoas com mais de 12 anos

A fome é realidade em 5% dos domicílios bra-sileiros, atingindo 11,2 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do ano passado, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa pesquisa mostrou também que 40,1 milhões, ou 21,09% da população, admitem que pode faltar dinheiro para comida. aSha teN Broek

e

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sociedade também tem que se organizar, tem que ter ação da escola relacionada a isso, é preciso associar esporte com ação de lazer”, alertou o ministro da Saúde. Segundo Padi-lha, o Ministério convocou toda a indústria de alimentos para assinar um acordo para que a concentração de sódio seja reduzida. “O acordo visa à redução imediata em média de 15%, chegando até 30% naqueles produtos com maior concentração de sódio. No segun-do semestre, será cobrada a redução de gor-duras, ou seja, tem que ter o compromisso da indústria com isso”, diz ele.

Para Elisabetta, é importante que a indús-tria altere a composição dos alimentos para toda a população, não apenas para nichos de mercado. Hoje, as classes A e B, que dispõem de mais recursos e acesso à informação, com-pram alimentos diet, light, ricos em fibras, sem gorduras trans, orgânicos etc. Segundo ela, com o aumento de renda, as classes C e D estão consumindo alimentos supercalóricos, com baixa qualidade nutricional. “Temos que pensar alternativas para deixar os alimentos saudáveis mais acessíveis”, diz. “Essa é uma vantagem do alimento industrializado, ele é relativamente muito barato, sacia com muito pouco recurso.”

A indústria já tem estratégias de marke-ting para atingir esse novo mercado con-sumidor. A Nestlé, por exemplo, tem um programa de revenda porta a porta. Ele é destinado a mulheres que passam pelas casas com um carrinho vendendo kits com produtos da empresa. Elas ganham até um salário mínimo e meio.

Além do ato individual“Os fatores ligados ao acesso à propagan-

da e a informações, além da necessidade de alimentação rápida, são determinantes no estado que estamos: um quadro de obesida-de crescente e preocupante”, afirma a presi-dente do Conselho Federal de Nutricionistas, Rosane Nascimento. Para ela, os acordos com a indústria são muito tímidos: “Falta muito para a indústria ser entendida como uma real parceira. Ainda predomina a questão econô-mica acima de todos os outros interesses, não há uma preocupação com a saúde pública. A indústria vende alimentos da mesma forma que vende um sapato, ou qualquer coisa, sem medir as consequências do que o alimento pode causar à população consumidora.”

Grandes cadeias de fast food, de acordo com Rosane, passaram a incluir em seus car-dápios opções de salada e outros alimentos mais saudáveis, dando a impressão de que a responsabilidade é só do consumidor. “O in-

divíduo tem um papel, mas o ambiente tem que colaborar, precisa haver um ambiente saudável”, explica Elisabetta. Para ela, quan-do uma pessoa vai ao supermercado e esco-lhe algum produto alimentício não se trata de um ato tão individual assim, já que o as pessoas são sensíveis diante da pressão da publicidade. “Como a culpa pode ser indivi-dual se o indivíduo é bombardeado por pro-paganda?”, questiona.

Tanto o Consea quanto a CFN, e diver-sas outras entidades, defendem a regulação da publicidade de alimentos, especialmen-te para o público infantil. Seria uma forma de intervir na construção de um ambiente mais saudável para que o indivíduo decida o que deve comer. “As classes C e D se viram diante de uma nova realidade e não foram preparadas para fazer boas escolhas. Preci-samos de medidas regulatórias, e o governo não pode se omitir”, afirma Rosane, que su-gere ainda campanhas educativas.

“A obesidade é causada por uma questão multifatorial. É uma questão dos hábitos, de sedentarismo, genética, mas também do impacto da publicidade de alimentos”, avalia Isabela Henriques, coordenadora do Proje-to Criança e Consumo, do Instituto Alana. Segundo ela, é preciso intervir nessas três frentes. “O aumento da obesidade está numa curva ascendente; se nada for feito, a ten-dência é aumentar.”

Mas, como mostrou a experiência da Resolução 24/10, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a regulamen-tação enfrenta pressões contrárias. “É um cabo de força complicado, não só no Bra-sil, mas globalmente”, avalia Elisabetta. A Resolução 24 previa que a indústria teria que colocar alertas nas embalagens com informações sobre os eventuais riscos que o consumo em excesso dos alimentos po-deria causar. Mas a indústria alimentícia se juntou e conseguiu, por meio de liminar, anular a resolução, cujo conteúdo ainda é bem mais tímido do que países como a In-glaterra estão fazendo. Lá, uma lei de 2006 proibiu propagandas de alimentos com alto teor de sódio, açúcares e gorduras em pro-gramas televisivos destinados à faixa etária abaixo de 16 anos. O parlamento do Chile aprovou, em 21 de abril, um projeto de lei que cria regras para a publicidade de ali-mentos, proíbe para crianças menores de 14 anos e só permitindo a veiculação após as 22 horas. Nos EUA, foram lançadas dire-trizes no início de maio também com o ob-jetivo de restringir a publicidade destinada ao público infantil.

Direito à alimentação adequadaPara 79% dos pais, a publicidade de ali-

mentos não saudáveis prejudica os hábitos alimentares das crianças. Esse foi o resul-tado de pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Instituto Alana. Foram entrevistadas 596 pessoas, pais e mães de crianças de até 11 anos. Conforme o levan-tamento, 78% dos entrevistados acreditam que a publicidade desses produtos levam as crianças a “amolarem” seus pais para que comprem produtos anunciados e 76% disse-ram que os comerciais dificultam o esforço de educar os filhos a se alimentarem de for-ma mais saudável.

Segundo Isabela, a população é lesada por uma publicidade enganosa, que atinge princi-palmente o público infantil. Além de a criança não ter discernimento para escolher, seu pa-ladar está sendo formado por produtos que contêm realçadores de sabor e muitas vezes muito açúcar. “A indústria precisa assumir o impacto que gera na saúde pública”, afirma.

O Instituto desenvolve uma série de ações no Espaço Alana, no Jardim Pantanal, na periferia de São Paulo (SP). Segundo a nu-tricionista do Instituto, Micheli Rangel Albu-querque, em 2010, 33,7% das 240 crianças atendidas pela creche apresentavam obesi-dade. “Apesar de oferecermos uma alimenta-ção balanceada, na casa dessas crianças elas não têm acesso a frutas e outros alimentos saudáveis”, explica.

“Projetamos uma situação absolutamente descontrolada. Não haverá recursos para tra-tar pessoas que ficarão ou já estão doentes. São doenças que começam de forma silen-ciosa e trazem consequências sérias: perda da qualidade de vida, da capacidade de tra-balho do indivíduo. Há um custo alto”, relata Elisabetta. Ela alerta que quando se discute a regulamentação, “há um mito de que se quer acabar com a indústria ou cercear a liberdade de expressão”. “Certamente a indústria de ali-mentos trouxe ganhos. Mas hoje temos uma situação onde ela oferece produtos num ce-nário sem regulamentação, sendo que antes não tínhamos consciência e nem vivíamos os impactos que essas doenças trazem.”

Elisabetta explica que o direito à alimen-tação, incluído no ano passado entre os direi-tos sociais na Constituição, prevê não só a ga-rantia de um país livre da fome e desnutrição, mas também de alimentação adequada. “Não podemos acabar com a fome e gerar doenças”, diz. “Hoje qualquer criança está tendo violado seu direito à alimentação adequada, pois há um conjunto de informações distorcidas for-mando seus hábitos alimentares.” F

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12 junho de 2011

A geopolítica da fome O aumento do poder aquisitivo das populações pobres

corresponde a valores tão pequenos que qualquer pico no preço dos alimentos pode gerar crises humanitárias, como a que houve em 2009, quando o número de pessoas subalimentadas registrou forte alta

por MiGuel do rosário

No dia 7 de setembro do ano 2000, durante um dos debates realiza-dos na Conferência do Milênio, na sede das Nações Unidas, Nova Iorque, o então presidente do

Conselho de Estado da República de Cuba Fi-del Alejandro Castro Ruz fez o discurso mais contundente daquele dia. O que impressio-nou o mundo, no entanto, não foi a voz pos-sante nem a conhecida oratória desenvolta do velho comunista, e sim a informação que ele martelou no ouvido dos milhões que o acompanhavam, via rádio ou TV, em todo o planeta: “820 milhões de pessoas passam fome no mundo, 790 milhões delas vivem no Terceiro Mundo”, disse Fidel.

Passaram-se dez anos, e as coisas não mudaram muito. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Ali-mentação (FAO), a quantidade de pessoas consideradas subalimentadas no planeta, em 2010, era de 925 milhões, o que até po-deríamos considerar como notícia positiva, visto que em 2009 (em função da crise fi-nanceira que assolou as economias cen-trais) o número havia atingido a marca de 1.023 bilhão de seres humanos.

O relatório da FAO para 2010 traz, con-tudo, uma informação genuinamente boa: o percentual de subalimentados na popula-

O aumento do poder aquisitivo das populações pobres corresponde a valores tão pequenos que qualquer pico no preço dos alimentos gera crises humanitárias, como a que houve em 2009, quando o número de pessoas subalimentadas registrou forte alta

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ção total das regiões em desenvolvimento, que chegava a quase 35% em 1970, atingiu 16% em 2010, depois de uma queda brusca em 2008 e 2009. O número ainda está lon-ge, todavia, da meta de 10% que as Nações Unidas haviam estimado para o período en-tre 1990 e 2015.

Na edição de maio/junho deste ano, a revista Foreign Policy publicou longo artigo de um de seus mais prestigiados colunis-tas, Lester Russel Brown. Nascido em 1934, autor e coautor de mais de 50 livros sobre meio ambiente, fundador de várias organi-zações e institutos ligados ao tema, Brown foi considerado pelo Washington Post um dos maiores pensadores do mundo. Intitu-lado “A nova geopolítica dos alimentos”, o artigo de Brown tornou-se viral e foi repro-duzido em toda parte (o Google registra 374 mil links), incluindo aí as páginas na inter-net das principais revistas do mundo, como a alemã Der Spiegel.

É um texto assustador. Lança-nos ao ros-to verdades duras e dolorosas, mas que tere-mos de enfrentar de alguma forma. Segundo Brown, o mundo entrou na “era de escassez”. Até poucos anos, falava-se que o mundo pro-duzia muito mais do que consumia, e mesmo assim havia fome. Agora, não se pode mais falar isso. O aumento da população, somado ao crescimento do poder aquisitivo de um número imenso de pessoas, fez a demanda registrar um forte aumento nos últimos anos.

Na verdade, agora está claro – hoje temos acesso a muito mais estatísticas – que nunca houve realmente excesso de comida. O que havia era uma parcela da população alijada do mercado de consumo. Como é natural, os pobres usam o aumento de seu poder aqui-sitivo para se alimentar melhor, de maneira que mesmo um crescimento ínfimo em sua renda per capita gera um forte aumento na demanda global. A população mundial quase dobrou dos anos 1970 para cá, e até a meta-de do século deve chegar a 9 bilhões, todos ambicionando comer várias vezes ao dia. Brown alerta para o problema mais grave entre os países pobres: a elevação do preço dos alimentos. O aumento do poder aquisi-tivo das populações pobres corresponde a valores tão pequenos que qualquer pico no preço dos alimentos gera crises humanitá-rias, como a que houve em 2009, quando o número de pessoas subalimentadas regis-trou forte alta.

O pessimismo e a indignação de Brown, no entanto, não chegam ao ponto de fazê-lo denunciar com muita energia o que ele mes-

mo aponta em seu artigo como um problema grave: o uso de milho e soja, nos EUA, para produção de biodiesel. Segundo ele, os EUA colheram, em 2010, quase 400 milhões de toneladas de grãos, das quais 126 milhões fo-ram destinadas a destilarias de biocombustí-vel, em relação a apenas 16 milhões em 2000. Com isso, amarra-se o preço dos grãos às variações da cotação do petróleo nas bolsas, pois, a cada vez que o barril sobe, fica mais lucrativo substituir o fóssil pela chamada “ga-solina verde”. O Brasil, outro grande produtor de biocombustíveis, usa a cana-de-açúcar, que tem uma produtividade muito superior à do milho ou à da soja, além de impactar bem me-nos no preço mundial dos alimentos.

Fome e instabilidade políticaBrown alerta que os reservatórios sub-

terrâneos de água estão se exaurindo em vários países, sobretudo em virtude de pro-cessos de irrigação que os sobrecarregam. Esse tipo de irrigação produz uma espécie de “bolha dos alimentos”, que estaria pres-tes a explodir, assim que os lençóis hídricos utilizados esgotarem-se. Na Arábia Saudita, a irrigação permitiu que este país desértico se tornasse autossuficiente em trigo por mais de 20 anos; agora, porém, a produção local de trigo vem declinando rapidamente, pois foram usados lençóis d’água não renováveis. Em breve, os sauditas estarão importando a totalidade de seu consumo de grãos. As maiores “bolhas”, segundo ele, estão na Índia e na China. Cerca de 130 milhões de chineses alimentam-se hoje de produtos cultivados com um processo de irrigação, que sobrecar-rega as reservas subterrâneas de água. Na Ín-dia, há 175 milhões nessa condição, segundo relatórios do Banco Mundial. O que aconte-cerá quando essas reservas se exaurirem?

O ambientalista estadunidense faz ainda

uma descrição sombria dos esforços de al-guns países para garantirem o suprimento de comida para seu povo. China e Coreia do Sul, por exemplo, vêm realizando enormes aquisições na África, para cultivar sobretu-do soja e milho, os principais itens que com-põem a alimentação de seus bois, porcos e frangos. Governos do Sudão e Etiópia têm cedido grandes extensões de terra a estran-geiros, sem atentar para a presença de ci-dadãos nativos naquelas paragens, os quais são expulsos sumariamente. Brown adverte que processos assim produzem forte insta-bilidade política, como já aconteceu nas Fi-lipinas, onde o governo foi obrigado a can-celar o acordo feito com a China para ceder 2,5 milhões de acres; no Madagascar, onde o governo alugou 3 milhões de acres para uma firma sul-coreana, a revolta foi tão grande que derrubou os dirigentes do país. De acor-do com um estudo do Banco Mundial, essas aquisições de terra em países estrangeiros já alcançaram 140 milhões de hectares, uma área que supera o total plantado com trigo e milho nos Estados Unidos.

Citando o aquecimento global, que pode vir a afetar gravemente a produção agríco-la no planeta, Brown conclui seu artigo em tom apocalíptico. Haverá caos, fome, revol-ta, destruição, queda de governos, revolu-ções. O americano, aliás, diz que as revo-luções árabes aconteceram, dentre outras razões, também por causa do aumento no preço dos alimentos.

Para fugir um pouco da visão apocalíp-tica de Brown, podemos analisar um outro documento da FAO, o Relatório Mundial de Recursos do Solo, que faz um levantamento sobre a área disponível para agricultura e a área já usada, em todo mundo. É preciso observar que boa parte das áreas “dispo-níveis” para agricultura, no entanto, estão

Citando o aquecimento global, que pode vir a afetar gravemente a produção agrícola no planeta, Brown con-clui seu artigo em tom apocalíptico. Haverá caos, fome, revolta, destruição, queda de governos, revoluções. Ele

afirma, aliás, que as revoluções árabes aconteceram, dentre outras razões, também por causa do aumento no

preço dos alimentos

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14 junho de 2011

ocupadas por florestas, que não devem ser tocadas, por questões ambientais. Segundo o relatório, as únicas regiões que possuem área agricultável significativa ainda não uti-lizada são a África subsaariana e a América do Sul (leia-se Brasil). A primeira, tem 1,1 bilhão de hectares agricultáveis, e apenas 14% deles usados. Grande parte dessas áre-as é ocupada por biomas importantes e que não podem ser tocados.

Já na América do Sul também temos 1 bilhão de hectares agriculturáveis (só 14% em uso), sendo 549 milhões apenas no Bra-sil, onde apenas 9% são usados. Um estudo relativamente recente, divulgado pelo Ins-tituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), diz que, excluindo-se os biomas Amazônia e Pantanal, o potencial de área para agropecuária no Brasil varia entre 303 milhões e 366 milhões de hectares. Lembre-mos que o país se consolidou como potência econômica, pelo menos até a 2ª Guerra, por meio da exportação de produtos agrícolas. Na década de 1960, respondia por quase 90% das exportações mundiais de milho e soja, um fator que o governo nunca hesitou em usar para forçar acordos comerciais fa-voráveis com outras nações.

Hoje, os Estados Unidos têm 354 mi-lhões de hectares agricultáveis, mas 53% já usados. A produção agrícola estaduniden-se ainda apresenta números colossais. Se-gundo o Departamento de Agricultura dos EUA, o país deve produzir neste ano (safra 2011/12) 89,40 milhões de toneladas de soja em grão. Já o Brasil, no mesmo perío-do, produzirá 72,50 milhões de toneladas de soja. Informação importante: no ano passado, a produtividade da soja brasileira superou a norte-americana: 3,01 toneladas por hectare no Brasil enquanto a produção nos EUA foi de 2,92. Mencionamos a soja em particular porque dentre as principais commodities é a mais importante para ali-mentar os rebanhos de bois, porcos, frangos e perus de todo planeta.

O Brasil também é grande produtor de carnes. No segmento dos bovinos, produzi-remos em 2011 9,4 milhões de toneladas, mais que toda a União Europeia (7,85 mi-lhões), e atrás somente dos EUA (11,5 mi-lhões). Na exportação, o Brasil figura em primeiro lugar no mundo, com previsão de embarcar 1,8 milhão de toneladas de carne bovina em 2011 (a maior parte da produ-ção brasileira é consumida internamente). Em relação à carne de porco, porém, o Bra-sil está num distante quarto lugar, com 3,26

milhões de toneladas produzidas, na esti-mativa para 2011, enquanto são produzidos 51,5 milhões de toneladas na China, 22,12 milhões, na Europa, e 10,20 milhões, nos EUA. Mas o país é bastante forte em aves, com uma produção de 11,75 milhões de to-neladas, superada somente pela China, que deve produzir 13 milhões de toneladas nes-te ano. Na exportação de aves, a liderança brasileira é absoluta: 3,45 milhões de tone-ladas, em relação a 3,0 milhões, dos EUA, e 840 mil toneladas da União Europeia.

O balanço geral, portanto, da oferta e de-manda de alimentos no mundo, aponta para um quadro muito delicado, com preços em alta e permanente risco de desabastecimen-to em países importadores. Com estoques extremamente baixos, qualquer acidente cli-mático poderá provocar picos inflacionários insuportáveis para as populações mais po-bres. Nesse contexto, o Brasil tem uma situ-ação realmente privilegiada, embora seja um tanto estranho que possamos lucrar com as dificuldades do resto do mundo em encon-trar alimentos. Para o país, não há, porém, alternativas. Mesmo que não precisássemos disso economicamente (mas precisamos, e muito), seria obrigação humanitária nos-sa ampliar a produção agrícola para trazer maior segurança alimentar ao mundo. Não será pecado nenhum, todavia, se usarmos nossa riqueza para aprimorarmos nossas relações políticas com outros países. Afinal, como dizia Aristófanes, o comediante grego: “A fome não conhece melhor amigo do que aquele que a sacia.” F

Miguel do Rosário escreve para o blog Óleo do Diabo.

O balanço geral, portanto, da oferta e demanda de alimentos no

mundo, aponta para um quadro muito delicado, com preços em

alta e permanente risco de desa-bastecimento em países impor-

tadores. Com estoques extrema-mente baixos, qualquer acidente climático poderá provocar picos

inflacionários insuportáveis para as populações mais pobresSeja um

Professor -Multiplicadorde Tecnologia Social

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TrAnSFOrMAçãO E DESEnvOLvIMEnTO EM DEBATE nA ESCOLA

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15junho de 2011

Twitter: @vleonel E-mail: [email protected]

Quem pode conter o fluxo? A s redes sociais ganharam relevância

e visibilidade com o surgimento da web 2.0, termo que se refere à segun-

da geração de serviços mais interativos na internet. Nela, o usuário tem voz e interage cotidianamente com os fornecedores de con-teúdos e notícias, pode publicar seu próprio blogue e torna-se, ele próprio, filtro, produ-tor e divulgador de informações. Sites como Orkut, Facebook e Twitter são frutos desta web 2.0 mais interativa. Como resultado des-ta nuvem de vozes múltiplas e aparentemen-te disparatadas, nascem convergências, mas também muitas discordâncias, nem sempre travadas em alto nível.

Frases curtas no Twitter escritas às pres-sas ou observações postadas no Facebook sem muita reflexão já renderam muita dor de cabeça para algumas celebridades (que se dizem “patrulhadas” como se não estivessem “falando” em praça pública). Ações judiciais podem atingir também usuários anônimos que estrebucham racismo e outros precon-ceitos, achando que a rede aceita tudo.

Não. A rede não aceita tudo. E não pre-cisa de censura prévia. Quando há abuso na web (pedofilia, homofobia, xenofobia e qual-quer discurso de ódio), existem meios para denunciá-lo. Pode-se acionar o Ministério Público do seu estado, registrar a ocorrência e esperar que os procuradores decidam se é ou não caso de polícia.

Há outros assédios menos graves na web, e estes fazem parte da cultura das redes sociais: são os praticados pelos “trolls”. O termo “troll”, diz a Wikipedia, nasceu numa das primeiras redes da internet (Usenet) e se refere àquela “pessoa cujo comportamento tende sistemati-camente a desestabilizar uma discussão, pro-vocar e enfurecer as pessoas envolvidas nela”.

Existe uma máxima nas redes: “não ali-mente os trolls”. Ou seja: ignore-os e não dê ibope a eles. Minha regra, porém, é outra: se

o “troll” é anônimo e inofensivo, eu ignoro; se é nefasto e faz apologia a qualquer atitude criminosa, eu denuncio; e se o “provocador” é famoso (na web ou “fora” dela). aí eu respon-do, debato, enfrento e discuto – em alto nível.

Os “provocadores com ibope” como o co-mediante Danilo Gentilli, do programa CQC da TV Bandeirantes, chocou a comunidade judaica ao fazer “piada” racista no Twitter. Seu colega, Rafinha Bastos, acha que pode existir humor em piadas que envolvem estu-pro. Dá para ignorar estes “provocadores”? Muitos me aconselharam a “não alimentar” o ibope deles. A jornalista Cilmara Bedaque rebateu no mesmo Twitter: “O ibope é do cara. Meu negócio é promotoria e patrocina-dores tirando apoio.” Assim, é preciso, acre-dito, confrontar este tipo de “provocador com ibope”, enviando enxurradas de e-mails para portais, escrevendo posts em blogues e repercutindo nas redes sociais.

Finalmente, essas redes são um espaço público para organizar manifestações espon-tâneas como foi o “Churrascão de Gente Dife-renciada”, que, em quatro dias, reuniu cente-nas de pessoas para protestar festivamente pela construção de uma estação do metrô no bairro paulistano de Higienópolis, contra a vontade de parte da elite local.

A rede, assim, vai aprendendo a viver em comunidade, a se autorregular, como uma sociedade de fato. A internet, ao contrário do que pensam alguns luminares que perderam o bonde, não é uma “coisa diferenciada”, “um espaço em separado”, “uma bolha” ou “uma bobagem”. Web é fluxo, e não existe “dentro da rede” ou “fora da rede”. Tudo flui. E quem pode conter o fluxo? F

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16 junho de 2011

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Quando novos personagens entraram em cena

por pep Valenzuela, de Terrassa (Barcelona)

As praças centrais das mais importantes cidades da Espanha, Madri e Barcelona, viraram cenário para a aparição de novos personagens na vida política, social e econômica do país. São muitos e diversos, mas se olham e se identificam entre si.

São a consequência do aprofundamento de uma crise eco-nômica, que vai além da atual conjuntura e se coloca como estrutural no sistema econômico e político da Espanha e, aparentemente, do conjunto da Europa Ocidental.

São quase todos pessoas bem informadas e com boa escolaridade, que manejam habilmente as novas tecnolo-

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17junho de 2011

Espanhol (PSOE), desempenharam um papel mobilizador importante ou decisivo.

A luta contra a ditadura deu fôlego e vida a um grande número de organizações, as quais poderíamos chamar de revolucionárias clássicas; e, isso, apesar da crise das mesmas no nível internacional e especialmente euro-peu. Porém, resultado da chamada “transi-ção democrática” espanhola, aquelas ficaram na prática quase impedidas de atuar. O duro castigo se consolidou nas confrontações eleitorais posteriores, que as deixaram qua-se sem representação institucional, exceção feita ao Partido Comunista da Espanha (PCE) e a algumas organizações na Catalunha e no País Basco, que, mesmo muito fragilizadas, mantiveram alguma presença.

Depois da campanha contra a Otan, nas-ceu a Esquerda Unida (IU), aliança política au-toproclamada como um “movimento político e social” que tentava reagrupar e unir forças numa nova orientação, incorporando novos paradigmas, especialmente feministas, ecoló-gicos e antimilitaristas. A experiência conse-guiu animar muitos durante alguns anos, mas as velhas estruturas, práticas e cultura políti-ca e organizativa conseguiram se sobrepor e neutralizar as forças novas e, na prática, fize-ram a IU voltar para a marginalidade.

A queda do Muro de Berlim e a disso-lução do chamado “campo socialista” e da própria União Soviética também contribu-íram para a demolição da esquerda. A si-tuação atual dos restos daquela esquerda consegue manter algumas estruturas polí-tico-partidárias instaladas de forma relati-va na estrutura institucional, mas bastante afastadas dos conflitos e das lutas sociais, ou, na melhor das hipóteses, buscando uma representação que não consegue superar os estreitos limites do espaço institucional-burocrático. Os sindicatos seguiram pra-ticamente pelos mesmos trilhos, mas se institucionalizaram, tornando-se de fato agentes ou agências trabalhistas – claro que considerando todas as honrosas exceções –, em meio a conflitos e lutas internas e casu-ísticas, não mais agindo como organizações de classe para a defesa dos trabalhadores.

As lutas dos anos 1990 e a primeira década do século XXi

Neste contexto de perda de legitimidade da política institucionalizada, dos partidos e das organizações do establishment, em meio a uma grande desorientação das organiza-ções da esquerda ainda vivas, aconteceu o fim da Guerra Fria. E, com ele, as tendências e projetos mais ousados do capital – a constru-

ção da “fábrica global” com a desagregação dos processos produtivos, a financeirização da economia e/ou a globalização – surfan-do nas ondas da revolução tecnológica – se aceleram e intensificam. Junto a isso, ocorre uma inédita mudança social e recomposição na estrutura de classes interna dos países e das relações entre eles, destacando-se a per-da de soberania dos Estados em favor das instituições supranacionais e gestoras do ca-pital internacional.

Um pipocar de conflitos e lutas com ob-jetivos imediatos, um pouco isolados e sem rumos ou referenciais ideológicos e/ou po-líticos mais gerais perpassam a década de 1990. A insurgência dos zapatistas no Méxi-co e a posterior revolta de movimentos so-ciais que boicotaram a celebração da reunião do Banco Mundial na cidade estadunidense de Seattle revelam novas propostas, instru-mentos e caminhos. Viriam depois os encon-tros do Fórum Social Mundial, já na primeira década do século XXI, para aprofundar esse proceso, tanto nos conteúdos como nas for-mas, traduzindo-se na concepção do Fórum como espaço sem hierarquias nem comando, de acesso livre e propositivo.

Há que se destacar que todos esses mo-vimentos e lutas utilizam como um dos ins-trumentos principais de trabalho, de forma ampla e maciça, as novas tecnologias de in-formação e comunicação. Elas facilitam e esti-mulam uma comunicação e organização mais horizontais e em rede, ampliando a participa-ção de indivíduos e coletivos que se falam de forma permanente, representando em sínte-se uma das palavras de ordem do movimento: “Ninguém nos representa, só nós mesmos”. E esses vão ser elementos centrais, cada vez mais importantes, nas lutas do porvir.

Quem já participou dos encontros do FSM pode se reconhecer muito facilmente nos acampamentos estabelecidos nas praças das cidades da Espanha. “Gente. Muita gente. Gente colorida. De todas as cores”, escreve um jornal de Madri, e assim os retratou El Roto, (prestigiado e ácido chargista espanhol), com um rapaz levando uma grande bandeira branca: “Os jovens saíram à rua e, subitamen-te, todos os partidos envelheceram...”.

Novas gerações e atores sociais ocupam o espaço público, ou seja, o seu próprio es-paço. Neste caso, o termo “novas” não se refere apenas aos jovens, que, obviamente, são maioria, como sempre acontece em pro-cessos e mobilizações sociais. Mas esse povo “colorido” são os sem-futuro, por vezes até sem-presente. São as vítimas de um sistema essencialmente injusto atrás das estatísticas

gias e tecem largas redes de relações sociais. Mas, apesar disso, são também vítimas do trabalho crescentemente degradado, carac-terístico da fase atual do sistema, como já apontado há tempos por Harry Braverman em seu famoso estudo “Trabalho e capital monopolista”. As circunstâncias objetivas da situação e as características subjetivas dos personagens fazem deles protagonistas cen-trais do que se desenha para o futuro do país.

Possivelmente, não seria arriscado afir-mar que ocorre algo similar ao que se pas-sou com os “novos personagens” do trabalho seminal de Eder Sader, que o título da ma-téria parafraseia. Na obra, como lembra o prefácio de Marilena Chauí, atesta-se que as pequenas vitórias das pequenas lutas “são as experiências que os excluídos adquirem de sua presença no campo social e político, de interesses e vontades, de direitos e práti-cas que vão formando uma história, pois seu conjunto lhes ‘dá a dignidade de um aconte-cimento histórico’”.

Olhando para trásQuem na Espanha tem agora entre 40 e

45 anos desconhece qualquer atividade da luta contra a ditadura, assim como o cenário de gravíssima crise econômica que o país vi-venciou nos anos 1970 e em boa parte dos 1980. Períodos de altíssimo desemprego e penúrias por causa da crise econômica mundial, mas também pelas exigências im-postas pela Comunidade Econômica Euro-peia ao governo espanhol para permitir o ingresso do país.

Talvez esse mesmo cidadão nem lembre da maior mobilização de massas nos anos 1980 contra a entrada do Estado espanhol na aliança militar atlântica, que não evitou a derrota do “Otan não!” no referendo de 12 de março de 1986. Uma campanha que levou milhões de pessoas às ruas, chamadas e or-ganizadas por milhares de comitês anti-Otan nas cidades, bairros, universidades, liceus e muitos centros de trabalho espalhados por todo o território nacional. Para citar apenas um caso que evidencia essa ruptura dos refe-renciais e memórias, nesses dias de acampa-mento, um companheiro sociólogo e profes-sor universitário, muito ativo no movimento, só conseguia lembrar das suas primeiras passeatas e protestos contra a guerra no Ira-que, realizadas no início dos 1990. Arriscaria dizer que a campanha contra a Otan foi, pos-sivelmente, a última em que as organizações da esquerda revolucionária (reais ou auto-intituladas), ou pelo menos as organizações à esquerda do Partido Socialista Operário

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18 junho de 2011

e instituições políticas formalmente demo-cráticas. São os jovens (o desemprego en-tre estes atinge os 43%), as mulheres (com remunerações piores que as dos homens e ainda fazendo dupla jornada), os idosos (que veem suas aposentadorias serem reduzidas), os migrantes (convertidos em mercadorias), os trabalhadores e trabalhadoras (perdem direitos e têm seus salários reduzidos). E dentre todos esses estão também milhares de famílias, que ainda ficaram sem poder pagar as hipotecas e já foram despejadas ou esperam o despejo da antiga moradia que se tornou propriedade do banco.

Nesse cenário, percebem-se também com nitidez os efeitos da grande transformação social “silenciosa” que a Espanha vivenciou nas últimas três décadas. Um dos exemplos disso é que, sem grandes estardalhaços nem crises, uma das sociedades mais católicas da Europa foi se desligando de seu compro-misso com o Vaticano. Um dos países mais machistas do continente legalizou o matri-mônio homossexual e a adoção de filhos por esses casais. Tal transformação evidencia as diferenças entre o dia a dia da sociedade e o das instituições. Por conta disso, hoje, nas praças, algumas vozes reclamam: “Não vota-mos a Constituição de 1978, queremos ver isso de novo! Não aceitamos imposições!”. A crise, por sua vez, acabou tirando a más-cara dos responsáveis e dos gestores. Coisas que, até ontem, poderiam parecer isoladas ou sem relação entre elas, hoje se encaixam perfeitamente no quebra-cabeças, que escla-rece motivos e razões da situação.

Descrentes em relação a um sistema po-lítico esclerosado, muitos jovens dos anos 1990 e da primeira década de 2000 tiveram suas primeiras experiências de luta política e social na batalha pelo direito à insubmissão ao serviço militar, na ocupação de moradias e locais para instalar centros sociais e con-vivência, na edição de “fanzines” (jornais underground ou alternativos) ou em expe-riências lúdico-culturais, desde grupos de cultura popular até as tribos urbanas como punks, skas e outros.

Muitos jovens também trabalharam em ONGs, voluntariado, cooperação internacio-nal e outras atividades; e outros, em menor número, nas ainda resistentes organizações políticas juvenis da esquerda. Todos cres-centemente interconectados, local, regional, nacional e internacionalmente pelas redes sociais. O “apoliticismo” ou “antipoliticismo” do movimento, embora alguns grupos o de-fendam com convicção, não é uma rejeição à política, mas ao establishment dessa política,

que não é mais do que democracia censitária. A proposta que o movimento coloca é demo-cracia 100%, política total, íntegra e integral.

Das redes às ruasHá tempos, diversas organizações com

atuação principalmente nas redes sociais da internet e assembleias on-line quase que per-manentemente vêm promovendo mobiliza-ções por temas diversos, mais recentemente destacando-se as lutas pelo direito à mora-dia. Em dezembro do ano passado, começou a articulação de alguns grupos interessados em conhecer melhor a experiência da Islân-dia e, depois, as revoltas no mundo árabe. As concentrações no Egito, Tunísia e outros paí-ses da região mostraram o caminho.

O paralelismo entre as diversas situações convergiu para uma série de ideias comuns sob a égide da indignação com a política e a economia. Do debate na rede, dois meses de-pois, passou-se para encontros presenciais e assembleias locais, a primeira delas em Madri. Juventude sem futuro, Associação dos desempregados, “Não vote neles” e a Attac se converteram nos motores do movimento, segundo o jornalista Joseba Elola. Intermon-Oxfam e um número sem-fim de blogues ade-riram à convocatória de passeatas para o 15 de Maio em dezenas de cidades da Espanha.

As passeatas tiveram grande sucesso. Na noite do domingo, 15 de maio, um grupo pe-queno, de 35 pessoas, conforme o relato de Elola, decidiu ficar na Puerta del Sol e dor-mir lá. Redigiram um primeiro manifesto. No dia seguinte, à noite, em assembleia, conta-ram com a participação de uma centena de pessoas. A notícia se espalhou pelo país, e começaram a ser articulados acampamentos em outras cidades. Na madrugada da terça-feira, a polícia age para despejar o pessoal acampado, mas, na terça à noite, a surpresa

é geral: cerca de 6 mil pessoas chegam até a Puerta del Sol para participar da assembleia. Os manifestantes proclamaram: “Ficamos na praça, não temos casa” e “Não estamos no Facebook, estamos na rua”. A continuação do episódio pôde ser vista nos jornais e na TV.

Mais de uma semana depois, os acampa-mentos continuavam firmes e fortes em boa parte das cidades onde se estabeleceram. A resistência, a disciplina e a energia do movi-mento surpreenderam, em primeiro lugar, os próprios protagonistas. Nos acampamentos, se estabeleceram comissões de trabalho, vi-gilância, logística, cozinha e limpeza... e, cla-ro, grupos de trabalho e de debates sobre to-dos os temas de interesse do movimento (ver matéria na página 19). Os acampamentos recebiam diariamente apoio solidário, para garantir a infraestrutura e a alimentação do pessoal que participa das atividades. Na ci-dade de Terrassa, de aproximadamente 200 mil habitantes e distante 20 quilômetros de Barcelona, onde na quarta-feira, 25 de maio, havia mais de 150 tendas de acampamento, os almoços e as jantas eram comunitárias e gratuitas para acampados e visitantes.

O resultado das eleições municipais e autonômicas (equivalente às estaduais no Brasil) de 22 de maio, que representaram uma mudança em favor da direita pura e dura, não afetaram a determinação do Mo-vimento 15-M. Ao contrário, pois o próprio movimento é um “já chega” contra os limi-tes de um sistema político-partidário buro-cratizado, afastado e acima da cidadania e que não consegue mais representar os an-seios da população.

Os acampamentos seguiam com força e, até o fechamento desta edição, não havia data para que terminem. Dentro e fora dos acampamentos, um ponto ficou claro: a re-volta nas praças marcará um antes e um de-pois na história. As pessoas não sabem ainda para onde vão nem qual vai ser a forma de organização e articulação, mas sabem, sim, o que não querem: o sistema econômico, os banqueiros e o sistema político-partidário enrijecido e antidemocrático. Sabem também como foram constituídos os acampamentos: por meio de assembleia permanente, hori-zontalidade, participação e voz para todos, com uma efetiva prática de democracia dire-ta e participativa e não violenta. Os “párias modernos”, resultado do conjunto da explo-ração, dos conflitos e contradições do siste-ma, são o novo proletariado, a esmagadora maioria da sociedade do século XXI, portado-res de interesses universais, e que se sentem chamados a libertar a humanidade. F

O resultado das eleições munici-pais e autonômicas, que represen-taram uma mudança em favor da direita pura e dura, não afetaram a determinação do 15-M. O pró-prio movimento é um “já chega” contra os limites de um sistema político-partidário burocratizado que não consegue mais represen-tar os anseios da população

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19junho de 2011

por FaBíola Munhoz, de Barcelona

Um garoto de dreadlocks no cabe-lo lê ao lado de uma mensagem escrita com spray num retângulo grande de papelão: “Informamos sobre la desinformación de los

medios”. Essa frase, apenas uma entre tan-tas com as quais eu ainda me depararia na Plaza Catalunya, ocupada pelo povo em pro-testos, fez com que tardasse em me atrever à escrita de qualquer coisa sobre a grande efervescência cidadã, que acontece atual-mente na Espanha.

Meu primeiro contato com o acampamen-to de manifestantes, montado na praça mais visitada de Barcelona, se deu na sexta-feira, 20 de maio, ainda que a mobilização na cidade já ocorresse desde segunda. Imersa em minha rotina de estudante, vinha acompanhando pe-los jornais informações superficiais sobre um conglomerado de insatisfeitos que havia se formado em Madri e, aos poucos, se expandia a outras cidades espanholas.

Até então, pensava que essas articula-ções tinham como único objetivo influenciar as eleições autônomas e municipais, que se-riam realizadas no país em 22 de maio. E, por isso, num primeiro momento, todo aquele barulho me pareceu distante.

A democracia acampada

Nas ruas de Barcelona, manifestantes experimentaram novas formas de organização e vivência, mais solidárias e independentes de partidos políticos e empresas de comunicação, que já não representam sua voz

Porém, o movimento se apresentaria mais próximo de mim do que eu pensava, acercando-se literalmente do meu olhar e dos demais sentidos, na forma de um grande cartaz pregado na Plaza Cívica da Universi-dade Autônoma de Barcelona. O aviso, feito por estudantes, chamava à concentração na Plaza Catalunya. E, percebendo este ânimo jovem por reclamar mudanças políticas, sen-ti-me convidada a conferir o que se passava.

Aproveitei, então, um dia de folga dos estudos para observar de perto as agitações populares, que se viam no centro da cidade. E, chegando ali, deparei-me mais que com um ato popular, um centro de produção de comunicação e livre expressão anarquista, feito de mensagens e desabafos, escritos por pessoas indignadas, em cartazes espalhados pelo chão, colados em monumentos ou pre-gados em barbantes amarrados sobre toda a extensão da praça.

Os recados de autoria desconhecida eram marcados pelo sarcasmo na referência aos atuais partidos majoritários na Espanha (o de centro direita, PP, e o socialista, PSOE), mas também traziam conteúdos mais am-plos, como críticas aos governantes de ou-tros países europeus, ao FMI e, especialmen-

te, à supressão de direitos sociais imposta hoje a todo o continente, como forma de manter uma política econômica que só tem beneficiado banqueiros e empresários.

Na entrada da praça, um cartaz avisa em catalão que o local é reclamado pelo povo. E, caminhando até chegar ao centro da Catalu-nha, percebe-se que ela está realmente toma-da por cada vez mais pessoas que se somam às manifestações ou simplesmente param para observar os escritos em cartolina ou re-ceber folhetos explicativos sobre o acampa-mento, distribuídos por alguns jovens.

Mas as informações referentes ao movi-mento não se limitam a essa estratégia. Pes-soas trabalhavam na divulgação de imagens e novidades dos protestos, por meio de mídias sociais e outros espaços virtuais de publica-ção independente. Àquela altura, quando a mobilização já completava uma semana, a praça se convertia numa pequena comuni-dade organizada em várias tendas distintas, separadas por função: há Comissões de In-fraestrutura, Atividades, Extensão, Relações Internacionais, Cozinha (responsável pela alimentação dos manifestantes), Informação e Coleta de Assinaturas, Ideias e Conteúdos, Meio Ambiente e Ambulatório. No domingo, 22, os manifestantes já começavam a planifi-car novas comissões: uma, de Trabalhadores; outra, de Educação e uma terceira, de Teatro.

Transpassando todas essas atividades autônomas que crescem aos olhos da cidade, assim como as hortaliças plantadas no can-teiro central da Catalunha por um grupo de defensores da agricultura urbana, está uma das primeiras comissões criadas: a de Comu-nicação. Depois da recente revolução impul-sionada pela internet em países africanos, como Egito e Tunísia, os rebeldes espanhóis claramente buscam se espelhar nas estraté-gias que lograram êxito em tais contextos.

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20 junho de 2011

Se a realidade da Europa e suas causas são bem distintas das observadas no mundo ára-be, por outro lado, a criação de três espaços de convivência no centro da Catalunha, cha-mados Plaza Tahir, Plaza Islândia e Plaza Pa-lestina demonstram com maior apelo visual a solidariedade do povo espanhol às rebeliões por democracia e paz levadas a cabo dentro de outras culturas. Nessas praças dentro da praça, os indignados pretendem recriar um espaço de convivência e debate político até então caído no esquecimento diante do isola-mento decorrente do neoliberalismo.

Há um calendário de debates e rodas de conversa previstos nesses pontos de encon-tro. Os temas discutidos vão desde as atuais mudanças vivenciadas pelos países árabes até a manipulação de informação pela mí-dia, os rumos da educação, o financiamento da indústria bélica e a falência do modelo de capitalismo hoje vigente.

Trabalhadores e estudantes libertos do seu

cotidiano mecânico, seja por opção ou falta de emprego, passam a tarde analisando o cenário global da atualidade e pensando em alternati-vas para o futuro. As três praças e as diversas tendas se fundem em uma só multidão ao fim do dia, quando uma grande assembleia é con-vocada para definir linhas de ação e formular princípios ideológicos consensuais, ainda que até agora tenha se mostrado quase impossível concentrar num simples manifesto as reivin-dicações e propostas de grupos tão díspares como os que formam a massa de indignados.

São cidadãos de todas as idades e ver-tentes: anarquistas, punks, defensores da agroecologia, veganos, reformistas, socia-listas, comunistas, feministas, imigrantes...uma infinidade de aderentes a uma ou outra tendência que buscam nessa agitação uma oportunidade para difundir suas ideias e ex-pressar seu ponto de vista.

Com toda essa diversidade convivendo pacificamente, a grande loucura em que agora

se converte a Espanha ultrapassa o motivo ini-cialmente atribuído ao protesto as eleições de domingo e, inclusive, as altas taxas de desem-prego e a crise econômica. No dia da votação, a praça se converteu num grande centro de lazer e convívio. Em vez de tomar decisões em assembleia, as pessoas se reuniram para con-tar causos engraçados de sua infância e tentar pronunciar o próprio nome sem vogais.

Depois, simultaneamente a um show de punk rock, artistas vestidos de diabo e sobre perna de pau atravessavam todo o espaço da praça, soltando fogos de artifício ao som de tambores e sob o ruído de tampas de pane-las e palmas, que era feito pela população no mesmo ritmo da batucada.

Ninguém dali deve ter ido votar. E isso pode se verificar pelos 33,77% de abstenções e no resultado das eleições, favorável ao par-tido de direita espanhol. Mas, enquanto tudo isso sucedia, os indignados concentrados na praça só se interessavam pela livre expressão e por experimentar novas formas de organi-zação e vivência, mais solidárias e indepen-dentes de partidos políticos e empresas de co-municação, que já não representam sua voz.

As eleições se foram, e o movimento ini-ciado no 15-M (15 de maio) já tem cronogra-ma com datas e ações previstas até junho. A praça conta com um espaço de recreação infantil, biblioteca, coleta seletiva de lixo, um ponto de reciclagem de computadores e di-versas barracas e camas improvisadas espa-lhadas sob uma grande lona de circo.

Isso acontece ao mesmo tempo em que mobilizações semelhantes começam a pi-pocar em outros cantos do mundo, como Argentina, Inglaterra, México e Itália. Obser-vando essa explosão de sentimentos revo-lucionários, sinto-me só mais uma comuni-cadora dentro do processo, talvez a menos importante. E sou tomada pela esperança cidadã, num país onde, como estrangeira, ja-mais teria acesso à democracia formal. Que esta anarquia global continue! F

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21junho de 2011

por FaBíola Munhoz, de Barcelona

Já se aproximava o fim de semana e pros-seguia a concentração popular na Plaza Catalunya. Não se observou a aproxima-

ção de nenhum ocupante de cargo político em Barcelona. Tanto o CiU, partido de direita (vencedor da última eleição municipal, que aconteceu domingo, 22/5) quanto o de es-querda (PSC), que será substituído em junho, e que mantém o poder da cidade, mostram-se distantes de qualquer intenção de diálogo com os manifestantes.

Diante disso, a mobilização perdurava, baseada na mesma dinâmica que, até então, tinha conservado a praça como um espa-ço organizado, pacífico e limpo. Ou seja, na divisão dos militantes por comissões e sub-comissões, que objetivam abordar linhas de ação específicas da maneira mais democráti-ca possível. Porém, essa tentativa de gestão horizontal, na prática, est á longe de refletir a participação de todos.

Na terça-feira (24/5), cheguei ao local dos protestos às 19 horas, horário em que cada grupo começa a se reunir para com-partilhar problemas e debater propostas. E, antes de alcançar o centro da Catalunha, encontrei um grupo de cerca de 30 jovens, que formavam um círculo numa das calçadas opostas às que margeiam a praça.

Percebi que se tratava do encontro de pessoas interessadas em definir os chama-dos “Mínimos”, quatro ou cinco pontos bá-sicos que possam ser considerados reivindi-cações, a serem defendidas e difundidas por toda a massa heterogênea de manifestantes que apoiava os acampamentos em toda a Espanha. Quando perguntei qual era a área temática de que faziam parte, disseram que colaboram com a Subcomissão de Mínimos – que, por sua vez, integra a Comissão de Co-municação do movimento.

E, de fato, eles pareciam muito convenci-dos de sua função e da sua posição dentro da estrutura organizativa recém-criada. “Temos que terminar de votar entre nós esses pon-tos até o horário da assembleia geral. É um pedido da Comissão de Comunicação”, pedia

Praça de educação democrática

apressado um garoto que, assim como outros cinco jovens ali presentes, deixava aflorar nos gestos impacientes, fortes e, ao mesmo tempo, persuasivos, seu perfil de liderança.

Um desses princípios genéricos que, de-pois, os chamados indignados esperavam apresentar à imprensa em geral e ao restan-te da sociedade, como forma de atrair mais aliados, dizia respeito à democracia que es-peram. No entanto, o termo já não pode ser definido com exatidão pelo imaginário co-letivo, diante do seu atual esvaziamento de significado, que tem sido justamente um dos motivos da revolta.

Por isso, o grupo permaneceu horas discutindo e discordando sobre o modelo de democracia direta que esperam alcan-çar, e muitos saíram dali desapontados por entender que os princípios básicos do mo-vimento, a serem levados para apreciação pela assembleia geral, não poderiam ser decididos apenas por aqueles que são mais desenvoltos e bem articulados no uso do alto-falante (instrumento pelo qual é dada a palavra a quem queira se expressar dentro de cada uma das subcomissões).

“Na comissão de auto-organização, te-mos uma metodologia diferente, que me pa-rece muito mais democrática. Nos dividimos em grupos menores para pensar na formula-ção de cada princípio, e só quando consegui-mos um consenso, depois de muito diálogo, é que um porta-voz faz uso do alto-falante para levar a proposta à votação pela comis-são como um todo”, comentou Heitor, um dos jovens acampados.

Míria, outra descontente com o proces-so decisório em algumas comissões, tem a sensação de que muitos dos moderadores de grupos de debate têm discutido a democra-cia e a falta de representatividade, utilizando os mesmos métodos simplistas do modelo político atual. “Prefiro a reflexão durante todo o processo, ao invés de agir pensando só no resultado.”

A menina de cabelo ondulado, que, embo-ra seja catalã, falava castelhano pausadamen-te para que eu a compreendesse, fez-me pen-sar que todos aqueles jovens reunidos, assim como eu, estão apenas descobrindo qual é a participação cidadã que realmente almejam. Num sistema em que as escolas e os meios de comunicação não nos incentivam nem orien-tam a ser proativos, reflexivos e autocríticos, é compreensível que a busca por liberdade seja acompanhada do sentimento de não se saber muito bem como vivenciá-la.

Mas se a ação do movimento no plano político ainda se mostra limitada, por outro lado, o acampamento floresce como um es-paço libertário no que diz respeito à dispo-sição das pessoas para pôr a mão na massa. Àquela altura, dez dias depois do início dos protestos, a praça passava do debate teórico à realização de oficinas e conversas, durante as quais são compartilhados conhecimentos sobre reciclagem, dança, teatro, energias re-nováveis, agricultura urbana, alimentação alternativa e outras práticas a favor de uma vida equilibrada e autossustentável.

Durante a assembleia geral da quarta-feira (25), um garoto arrancou aplausos da multidão de centenas de pessoas, ao dizer que aprendeu mais nessas últimas semanas de mobilizações do que durante todo o tem-po em que passou no sistema de ensino con-vencional. “Não estou preocupado se daqui vai sair um manifesto, o que mais importa é que esta praça se transformou numa escola de aprendizagem livre, ao céu aberto. É isso que precisa ser mantido.”

Em seguida, uma jovem grega conectou-se pela internet com a população reunida, para anunciar a instalação de um acampamento na Praça Sintagma, de Atenas, inspirado na re-beldia espanhola. E a Comissão de Extensão da Acampada Barcelona já realiza, em par-ceria com assembleias de bairro, a expansão das experiências vivenciadas na Catalunha a outras praças da cidade. Pessoalmente, tenho aprendido tanto com a observação de tais acontecimentos, que só posso torcer para que uma revolução como esta, feita de escolas de democracia sem paredes, se alastre. F

É compreensível que a busca por liberdade seja acompanhada do sentimento de não se saber muito bem como vivenciá-la

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22 junho de 2011

por rodriGo saVazoni

Das manifestações no Irã pela liber-dade de expressão, via Twitter, aos recentes episódios de mobilização cidadã na Espanha, país onde, des-de o dia 15 de maio, milhares de

pessoas tomaram as ruas para exigir democra-cia, são cada vez mais explícitos e frequentes os exemplos de que as tecnologias libertárias, apropriadas pelas pessoas e pelas redes, trans-formam a forma de se fazer política. No Brasil, uma nova geração de ativistas conectados à internet está criando os movimentos sociais do século XXI. Por meio de ações de constru-ção democrática e métodos em geral provo-cativos, esses agrupamentos contemporâneos começam a confrontar as forças estabelecidas. Aqui, no entanto, a conjuntura difere da do Oriente Médio ou da Europa, onde a falta de democracia e a crise econômica estimulam a insatisfação popular. O Brasil atravessa o me-

A reinvenção da políticaPessoas conectadas em rede transformam a forma como a política é feita. Dessa articulação, surgem os movimentos sociais da cultura digital

lhor momento de sua história, com estabilida-de democrática, crença nas instituições e uma inédita inclusão econômica. O que há, então, em comum entre os movimentos brasileiros e o de seus pares internacionais? O que querem, afinal, esses novos agrupamentos sociais?

Não são perguntas fáceis. A primeira característica comum desse movimento de caráter internacional é o fato de serem ar-ticulações cuja origem não está nas estru-turas partidárias, sindicais ou mesmo nos movimentos sociais surgidos nas três dé-cadas anteriores. São, acima de tudo, forças articuladas em rede, com forte influência do uso das novas tecnologias de informação e comunicação. Há de se considerar também que são grupos que não se prendem a filia-ções ideológicas rígidas. Sua marca é a ação. Pode-se tentar compreendê-los buscando referências na esquerda libertária, mas boa parte de seus participantes também não se furta a buscar métodos e símbolos na cultu-

ra corporativa. Há uma forte conexão com o altermundismo, o movimento por uma outra globalização, que se espraiou no final dos anos 1990 e no início da primeira década do século XXI, mas somente essa filiação não ex-plica o que está ocorrendo.

Se aproximarmos nossa lupa, veremos que é útil buscar respostas na cultura digital, que, conforme nos explica o professor André Lemos, da Universidade Federal da Bahia, é a cultura que se forja a partir do surgimento da internet e da popularização da microinfor-mática, processos iniciados no final dos anos de 1970. Essa cultura, baseada na recombi-nação e na colaboração, foi se alastrando pelo planeta e produziu um curto-circuito em todas as esferas: comportamento, econo-mia, artes, mídia e, evidentemente, política. A percepção dessas transformações, com a massificação das tecnologias, só faz crescer. E de acordo com o professor Javier Bustamante Donas, em artigo para o livro Cidadania e Re-des Digitais, organizado pelo sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, essas tecnologias não são apenas “uma ferramenta de descrição da realidade, mas de construção da mesma”. Técnica e política, portanto, não podem ser observadas separadamente..

Interessante notar que o objetivo desse movimento “tecnológico” é a radicalização da política e da democracia, que vêm sendo paulatinamente aprisionadas pelos interes-ses econômicos e pelas posturas corporativas da classe política tradicional. Não à toa, surge, nesse contexto, a questão da transparência, em suas múltiplas acepções. No Brasil, um dos mais interessantes e combativos movi-mentos contemporâneos é a comunidade Transparência Hacker. Iniciado há quase dois anos, o grupo ganhou notoriedade quando, utilizando-se de uma prerrogativa aberta pela Presidência da República do Brasil, clonou o blogue do Planalto, que fora lançado sem per-mitir aos usuários interagirem com o conte-údo. Para evidenciar que o diálogo é a essên-cia da rede, os ativistas hackers criaram uma página semelhante à oficial, a qual reproduzia integralmente os conteúdos originais, com o diferencial de permitir comentários sem qual-quer moderação. Ganharam o mundo.

“Eu gosto de pensar que somos ativistas do direito de fazer. É bizarro perceber a quan-

À esquerda, cenas da capital do Egito, Cairo; à direita, a praça do sol, em Madri: exemplos de que as tecnologias libertárias, apropriadas pelas pessoas e pelas redes, transformam a forma de se fazer política

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tidade de impossibilidades a que grupos e indivíduos são submetidos quando querem provocar mudanças”, afirma Daniela Silva, da Esfera e da Casa da Cultura Digital, uma das criadoras da comunidade Transparência Ha-cker (#THacker). A comunidade na qual atua conta com apoio do escritório brasileiro do W3C, a instituição criada por Tim Berners Lee para manter a web aberta e livre, e já tem em sua lista de discussão mais de 500 membros, entre ativistas, jornalistas, programadores e gestores públicos. Daniela destaca que não existem regras prévias de participação, mas sugere que a “colaboração, liberdade, autono-mia, ética hacker, abertura para formas novas de agir e de pensar sobre o mundo, valores políticos emergentes e mutáveis (ou mutan-tes) e um certo gostinho pela provocação” são as principais características do movimento.

A jornalista e ativista recorda que foi justamente quando clonaram o blogue do Planalto que ela e seu grupo puderam sen-tir a força das redes. Aquilo que começou como uma pequena provocação ganhou notoriedade por evidenciar um jeito de agir que rompia com o tradicional. “Tinha gente da esquerda nos odiando, de um lado, e gente da direita odiando mais, do outro. Conservadores tarimbados acharam uma graça absurda daquele ato desmedido de liberdade. Libertários ferrenhos pediam nossa cabeça no Trezentos (blogue que reú-ne uma ampla comunidade de defensores do compartilhamento do conhecimento). Uma grande quantidade de pessoas admiráveis achou o máximo”, relembra.

Ela pontua que essa ação só foi possível porque o governo Lula adotara o Creative

Commons como licença de conteúdo, numa iniciativa pioneira mundialmente. Foi, por-tanto, o próprio Planalto, a sede do governo brasileiro, que providenciou os meios téc-nicos para a provocação. E eles não tiveram dúvidas em fazê-la.

software Livre, Cultura Livre Voltando à investigação sobre a essência

dos movimentos da cultura digital, é preciso recuperar o conceito de software livre, pois é por meio dessa articulação pioneira que o espírito de nossa época começa a se deli-near. No início dos anos 1980, um grupo de engenheiros liderados por Richard Stallman criou a Free Software Foundation (FSF), or-ganização com o objetivo de defender a co-laboração e o compartilhamento quando os softwares começavam a se tornar instru-mentos de enorme ganho financeiro. Para maximizar seus vencimentos, as empresas de tecnologia começaram a adotar patentes e mecanismos de proteção de propriedade intelectual, contrariando, assim, a essência do desenvolvimento científico, que é basea-do na evolução do conhecimento acumulado. Para “amarrar” a liberdade de compartilhar ao modelo de licenciamento, a FSF criou um modelo alternativo (a licença GPL), que pas-sou a ser utilizada pelos desenvolvedores no mundo todo. Essa ação, aparentemente técnica, embutia um confronto político, que cresceria desde então: o da luta contra a pro-priedade na era do conhecimento.

Essa visão de superação da propriedade privada é comum a todo movimento de cul-tura digital, e, como não podia ser diferente, foi estabelecida como diretriz pelos ativistas

que, em 2003, participaram da elaboração dos Pontos de Cultura. Convidados a trocarem in-formações com o poder público, esses agentes propuseram construir, em conjunto com os criadores populares, noções de compartilha-mento do conhecimento e uso do software li-vre. Essa história vem sendo recorrentemente contada, justamente por ser um caso de suces-so. Pouca gente sabe, no entanto, que na base desse movimento havia uma rede organizada, em processo de construção, que até hoje se constitui como um repositório de ideias ino-vadoras. Trata-se da rede Metareciclagem.

“A Metareciclagem é mais um foco de po-tência de ação política – porque as pessoas trocam entre si – do que uma instância po-lítica autônoma, que tenha uma coerência”, explica o ativista Felipe Fonseca, um dos remanescentes daquele grupo que formu-lou o kit multimídia dos Pontos de Cultura e que lançou neste mês o livro Laboratórios do Pós-Digital, disponível para download no endereço http://efeefe.no-ip.org/livro/labo-ratorios-pos-digital. “É um espaço de diálogo entre diferentes formas de ambientação po-lítica. Isso configura uma forma de ação po-lítica em si, mas é muito difícil de tratar den-tro da experiência da política tradicional.” Ativa há oito anos, a rede segue produzindo inspiração e articulação. O ponto de contato é estabelecido por meio de uma lista de dis-cussão e da plataforma da comunidade, cujo endereço é www.metareciclagem.org.

“A gente começou em 2002, nas primeiras edições do Fórum Social Mundial, que exerce sobre nós uma grande influência. Foi uma época em que as pessoas voltaram a sonhar com a possibilidade de mudar o mundo”, re-corda Fonseca. No caldeirão variado de leitu-ras, que vêm alimentando os ativistas desde essa época estão, Hakim Bey (autor de Zonas autônomas temporárias), Michel de Certeau (A invenção do cotidiano), a dupla Toni Ne-gri e Michael Albert (Império e multidão) e Paulo Freire, cuja pedagogia seria profunda-mente estudada para o desenvolvimento da ação nos Pontos de Cultura. Fonseca lembra, porém, que essas referências se articulavam, de forma livre, com outras que provinham de ambientes corporativos estranhos à esquer-da tradicional. Em especial, cita o Manifesto Cluetrain, publicado há dez anos e hoje um texto clássico, que principia com a frase: “Co-meçou uma poderosa conversação global”.

Apesar de extremamente influente entre a geração atual de ativistas, a Metareciclagem segue como uma espécie de força motriz sub-terrânea, uma seiva, que os ativistas buscam para se alimentar do novo. Essa condição,

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conforme esclarece Fonseca, é algo que o gru-po sempre perseguiu. “A gente nunca ansiou por tomar o poder, sempre trabalhou com autossabotagem. Nos momentos em que se pôde tomar o poder, a gente fugiu disso, não entrou nessa. Isso permite negociar com um grande espectro de poderes”, explica. Uma forma de demonstrar a força da Metarecicla-gem é analisar as políticas públicas de inclu-são digital do País. Programas como os Pontos de Cultura, o Gesac e as Casas Brasil, do go-verno federal, e também o programa Acessa São Paulo, do governo paulista, contaram com a participação de atores desse agrupamento. Isso sem que o grupo jamais tenha realizado qualquer disputa de forma organizada. Não seria isso agir como um rizoma, afinal?

“Explosões no dia a dia”

“O que queremos é contaminar e migrar. Nós estamos sempre atrasados e sempre correndo atrás do prejuízo. A gente está sempre na perspectiva de movimento. São tantas explosões no dia a dia”, diz Pablo Capilé, articulador do Fora do Eixo (www.foradoeixo.org.br), uma rede de coletivos de produção cultural, que está presente em todos os estados do Brasil.

Iniciada em 2005, por meio de uma parceria entre produtores das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), a rede foi crescendo e hoje é tida como a principal força político-cultural surgida no País nos últimos anos. Somente no ano passado, mais de 5 mil ban-das circularam por meio das ações dos cole-tivos que integram o Fora do Eixo. A partir das articulações por eles lideradas, foram promovidas ações como a criação da Asso-ciação Brasileira de Festivais Independen-tes (Abrafin), e a criação do Partido da Cul-tura, que vem buscando interlocução com a classe política tradicional sobre questões de interesse das novas gerações.

Recentemente, o Fora do Eixo trouxe sua caravana de artivistas (artistas + ativistas) para uma ocupação permanente em São Pau-lo. Alugaram uma enorme casa no bairro do Cambuci, que serve como base para as ban-das do circuito e como sede operacional do comando nacional do movimento. Entre as inovações introduzidas por esse grupo, está a de utilizar a economia solidária para cons-truir relações sociais entre a rede de produ-tores e ativistas que compõem o circuito.

Parte da força desse movimento vem de sua perspectiva de entrega radical, posto que seus membros, além de morarem jun-tos, partilham todos os seus gastos por meio

de um caixa coletivo. Isso não os impede, no entanto, de se apropriarem de ferramentas de marketing para promover seus trabalhos e a si mesmos. Na visão orgânica que estão construindo, é preciso falar a linguagem da juventude, sem temores nem rancores. “Tem uma juventude de classe média que chega pelo marketing liberal, e depois vai enten-der que nós podemos ser os detentores dos meios de produção”, explica Capilé, para recordar um documentário que os morado-res da Casa Fora do Eixo assistiram sobre o comunista Luiz Carlos Prestes, o qual gerou enorme identificação entre seus pares.

Nada do que o Fora do Eixo conseguiu, segundo Capilé, seria possível não fossem as novas tecnologias, em especial a internet, uma estrutura, para ele, “tão veloz quanto o que a gente está construindo”. “Essa é a platafor-ma política que consegue olhar para a gente de igual para igual. É a ferramenta ideal para que essa história pudesse acontecer. Não fosse isso, dificilmente conseguiríamos com tanta agilidade chegar onde chegamos, no desterri-tório, na zona de contaminação, nas trocas de tecnologia e na inteligência colaborativa.”

O diferencial brasileiro“Existe uma questão que o Brasil avan-

çou muito mais que em outros lugares, que é o lugar da rede para driblar o universo institucional”, avalia Fonseca. “A gente che-gou muito cedo a essa compreensão, de construir em rede, de forma dinâmica, apro-ximando pessoas.”

Durante os oito anos de governo Lula, no-vas formas de fazer política foram fortemen-te estimuladas por meio, principalmente, de três frentes: 1. das ações em defesa do sof-tware livre (que é a matriz ideológica de boa

As lutas contemporâneasEm artigo para o livro Cidadania e Redes Digitais, publicado pelo Comitê Gestor da Internet do

Brasil, o professor espanhol Javier Bustamante descreve o que compõe a nova cidadania digital, ou hipercidadania. Nesta lista, adaptada, é possível compreender alguns dos elementos que unificam a ação política contemporânea.

defesa da apropriação social das tecnologias; tecnologias para promover a democracia, seja ela representativa ou participativa; compreender a rede e seu acesso como um novo direito humano; promover políticas de inclusão digital; promover a aproximação da gestão pública dos cidadãos, por meio das tecnologias; defender os commons articular as lutas contra a exclusão digital com a de outros excluídos; combate ao vigilantismo e às tentativas de cerceamento das liberdades; promover o software livre e o conhecimento livre; cultura popular e diversidade cultural na esfera pública interconectada.

parte dos movimentos políticos e sociais em rede); 2. das políticas públicas lideradas pelo Ministério da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira em favor do compartilhamento do conhecimento, como os Pontos de Cultura, os Pontos de Mídia Livre e o Fórum da Cul-tura Digital; 3. da proposição de um Marco Civil de direitos dos cidadãos digitais pelo Ministério da Justiça, legislação elaborada de forma aberta e compartilhada. Esse texto aguarda apreciação do Congresso Nacional.

Apesar de estabelecerem relação cons-trutiva com o governo Lula, esses movimen-tos não têm se furtado a fazer a crítica pela esquerda das decisões tomadas no início do novo governo. Medidas tomadas pelo Minis-tério da Cultura, como a retirada da Licença Creative Commons do site e a mudança de orientação para a revisão da Lei de Direitos Autorais, demonstraram o quão tênue pode ser a relação entre os novos movimentos so-ciais e a política institucional. “Em resposta a essa efervescência social, por oito anos, nós tivemos as melhores políticas governamen-tais de acesso à rede, à tecnologia e à cultura digital do mundo”, diz Daniela. “Não é à toa que todo mundo está de olho no Brasil. Agora, precisamos cuidar pra não perder o bonde – e todos nós estamos falhando em não dar aos retrocessos políticos recentes uma resposta fluida e criativa.”

Boa parte dos ativistas que compõe os movimentos da cultura digital passaram a se reunir por meio da lista do Movimento Mobi-liza Cultura, que também pode ser mais bem conhecido pelo site www.mobilizacultura.org. A ideia desse espaço é permitir que as diferentes redes possam estabelecer cone-xão, e assim, potencializar as lutas comuns em defesa da liberdade. F

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“C ultura” é daquelas palavras escor-regadias, aparentemente simples, que com frequência são usadas

com sentidos não só diferentes, mas antagô-nicos. Mais produtivo que estabelecer qual é a definição “correta” de cultura seria observar quais os sentidos adquiridos pela palavra ao longo do tempo e o que eles nos dizem sobre os seus referentes no mundo real. É o que ten-to fazer na coluna deste mês.

Palavras-chave, do marxista britânico Raymond Williams, obra publicada no Brasil pela Boitempo, é um ótimo guia do assunto. “Cultura” vem do verbo latino colere, que combinava vários sentidos: cultivar, habi-tar, cultuar, cuidar, tratar bem, prosperar. Do sentido de habitar derivou colonus. Têm, portanto, origens comuns as ideias de colo-nização, culto e cultura. Já em Cícero (106 a.C. – 43 a.C.) aparece o sentido de cultura como “cultivo da alma”, mas é mesmo a partir do Renascimento que se consolida a analo-gia entre o cultivo natural e um desenvolvi-mento humano. É nesse sentido que Thomas More, Francis Bacon ou Thomas Hobbes, nos séculos XVI ou XVII, falam de “cultura da mente” ou “cultura do entendimento”. É uma metáfora derivada da analogia com o sentido material, agrícola do termo.

A naturalização dessa metáfora fez com que se cristalizasse o sentido de cultivo hu-mano, e, nos séculos XVIII e XIX, o termo “cul-tura” começa a aparecer como autossuficien-te, dissociado do objeto desse cultivo. Até o século XVIII, tratava-se sempre da cultura de alguma coisa, fossem plantações, animais ou mentes. A partir daí, segundo Williams, “o processo geral de desenvolvimento intelec-tual, espiritual e estético foi aplicado e, na prática, transferido para as obras e práticas que o representam e sustentam”. Em outras palavras, firma-se ali o sentido de “cultura” como um bem que alguns possuem e outros, não. Esse sentido permanece conosco, quan-do dizemos que alguém é “culto” ou “tem cul-tura”. É uma acepção excludente da palavra, que com frequência ganha contornos, inclu-sive aristocráticos.

Com a antropologia, no final do século XIX e, especialmente, no século XX, volta-se

Sobre o conceito de cultura

às raízes materiais do conceito de cultura, mas agora com ênfase na sua universalida-de humana. “Cultura” passa a ser entendida como o conjunto de valores, crenças, cos-tumes, artefatos e comportamentos com os quais os seres humanos interpretam, partici-pam e transformam o mundo em que vivem. Nenhuma comunidade humana está excluída dela, embora também com a antropologia solidifique-se o processo que faz de “cultura” um substantivo passível de ser usado no plu-ral. As culturas humanas são múltiplas, dife-

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partes — que me parece mais daninha nas discussões sobre política cultural. A cul-tura é a totalidade das formas em que um povo produz e reproduz suas relações com os sentidos do mundo. Reduzi-la às indús-trias cinematográfica, teatral e fonográfica é reeditar a exclusão segundo a qual alguns produzem cultura e outros a consomem. Implicitamente, é ignorar e desprezar o fazer cotidiano de milhões de brasileiros. Não há por que um pequeno conjunto de profissionais das citadas indústrias, con-centrados principalmente em duas cida-des brasileiras, se apresentarem como os representantes da área de responsabilida-de do Ministério da Cultura. Essa redução atende a interesses nada republicanos e é incompatível com uma concepção demo-crática de cultura.

Um Estado que tivesse democratizado completamente sua concepção de cultura

seria, então, no limite, um Estado em que cineastas, atores e compositores não seriam percebidos como sujeitos da cultura mais que pedreiros, domésticas ou camponeses. Seria um Estado em que a conversa jamais incluiria expressões como “pessoas que não são da área da cultura”. Seria um Estado onde a ideia de “levar cultura ao povo” não faria sentido. Seria um Estado que saberia encon-trar, valorizar e construir pontes entre os muitos fazeres culturais que já estão acon-tecendo em seu território. Um Estado onde seria impensável que um agente do poder público se apresentasse como representan-te dos “criadores de cultura”, a não ser que com essa expressão o agente se referisse à totalidade dos que vivem sob a égide desse Estado. Seria um Estado que genuinamente captaria a cultura como a totalidade dos sen-tidos do fazer humano.

Mais que nomes, cargos, tendências, cor-rentes e conchavos, os acalorados debates em torno do Ministério da Cultura, que têm tido lugar no Brasil nos últimos meses, são uma oportunidade para que se repense essa questão de fundo: qual é a compreensão de cultura que queremos, quais são as visões e conceitos de cultura que fazem justiça à nos-sa experiência como povo. F

Idelber AvelAr é professor de literatura em Tulane University, Nova Orleans, e edita o blogue

O Biscoito Fino e a Massa (http://idelberavelar.com).

rentes, irredutíveis entre si e, acima de tudo, não são hierarquizáveis. Na acepção antro-pológica do termo, não há sentido em se fa-lar de mais ou menos cultura, ou de culturas superiores ou inferiores a outras. Há uma veia radicalmente relativista na concepção antropológica de cultura, que se realiza em sua plenitude na obra de Franz Boas, mestre de Gilberto Freyre.

Nos debates sobre política cultural, é sempre instrutivo observar com qual sen-tido cada interlocutor usa o vocábulo “cul-tura”. Do ponto de vista antropológico, não teria sentido dizer, por exemplo, “levar cul-tura para o povo”, posto que qualquer povo está inserido em sua cultura — ele não se-ria povo sem ela. Mas é frequente que assim se designe a função dos Ministérios ou das Secretarias da Cultura. Tampouco teria sen-tido, exceto na acepção excludente e aristo-cratizante apontada anteriormente, falar de “produtores de cultura” como uma classe à parte, diferente daqueles que seriam seus meros consumidores. Mas não é incomum, em discussões sobre política cultural, a des-qualificação de interlocutores como sujeitos que supostamente estariam “fora” da cultura ou que não seriam “da área” da cultura. Ora, não há seres humanos vivendo em sociedade que estejam fora da cultura.

O uso excludente do termo se reproduz quando se igualam os “produtores de cultu-ra” à chamada “classe artística”. Essa é a si-nédoque — redução do todo a uma de suas

Não é incomum, em discus-sões sobre política cultural, a desqualificação de interlo-cutores como sujeitos que su-postamente estariam “fora” da cultura ou que não seriam “da área” da cultura. Ora, não há seres humanos viven-do em sociedade que estejam fora da cultura

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por douGlas esTeVaM, de paris

Como para todo movimento histórico de emancipação, a questão estratégica é deter-minante para o movimento altermundista.” É a comple-

xidade dessa questão que o último livro de Gustave Massiah, Une Stratégie Alter-mondialiste, mostra detalhadamente. Com uma longa trajetória de participação em varias organizações sociais, entre as quais poderíamos citar a vice-presidência da At-tac da França, Massiah também é membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. A obra apresenta o contraditório debate estratégico no qual se engaja o mo-vimento altermundista e que se constitui numa das prioridades do movimento, “para além das discussões sobre a crise”.

Longe de querer demonstrar uma tese, o objetivo do trabalho é apresentar o debate por meio da “confrontação das estratégias dos diferentes membros do movimento”. Para tanto, o autor inicia com uma análise da situação atual, “caracterizada por uma crise do neoliberalismo e do capitalismo”, para logo avançar sobre os projetos de superação que estão em discussão. Massiah afirma que, se a “ideologia neoliberal desmoronou, a ló-gica neoliberal não desapareceu, e ela induz à racionalidade dominante.” Ele identifica três projetos de “saídas possíveis da crise global”: o “neoconservadorismo ou neoli-beralismo de guerra”, uma tentativa de “re-fundação do capitalismo” representada pelo

global

Uma estratégia altermundistaMembro do Conselho internacional do Fórum social Mundial, Gustave Massiah lança novo livro, em que aborda como é possível ir além das discussões sobre a crise do neoliberalismo e elaborar respostas concretas que representam sua superação

“modelo do Green New Deal” e, por fim, as proposições de “superação do capitalismo.”

Conforme Massiah, para compreender a crise do neoliberalismo é necessário anali-sar sua lógica sistêmica e a maneira como ela se impôs, fazendo uma “releitura das fases das globalização capitalista” e tendo como referências os conceitos de “econo-mia-mundo”, do historiador Fernand Brau-del, e de “sistema-mundo”, de Immanuel Wallerstein. Esse referencial serve de base para as análises que se referem a períodos de “longa duração”, de “urgência” e de “es-paço”, que servem tanto para a análise do “sistema dominante” quanto para as estra-tégias do movimento. Assim, a crise atual, que se apresenta como financeira, mone-tária e econômica, tem fundamentos muito mais profundos, o que caracterizaria que estamos atravessando “uma crise social, de-mocrática, geopolítica e ecológica”, que, no seu conjunto, configuram “uma crise de ci-vilização”. Esse cenário abriria novas pers-pectivas e dá responsabilidades particula-res ao movimento altermundista.

As saídas possíveis para a crise global

Entre os projetos de saída da crise que estão em disputa, um deles é o “neoconser-vadorismo ou neoliberalismo de guerra”, ca-racterizado por um “endurecimento social”, que prolonga em todo o mundo “as correntes regressivas,” reforçando o moralismo evan-gelista, a ideologia securitária, a instrumen-talização do terrorismo, a religião do mer-cado e a guerra de civilizações. Para conter

a crise, os planos de austeridade fiscal im-postos para compensar as dívidas públicas representaram graves perdas para os traba-lhadores e os programas para salvar os ban-cos “não permitiram impor um controle do setor bancário e financeiro”. Diante do maior risco de crise social, “regimes autoritários e ditatoriais” podem se impor. Para essa cor-rente neoconservadora, uma possibilidade de assegurar seus objetivos seria firmar um

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compromisso com os defensores de uma refundação do capitalismo, para assegurar que “o mercado mundial de capitais possa conservar um lugar importante nas novas ló-gicas de regulação”. Uma outra opção desse grupo seria manter suas posições reforçando as “funções repressivas do Estado para man-ter a lógica sistêmica neoliberal”.

Uma segunda posição no cenário atual é a proposição de uma refundação do capitalismo,

levando-se em conta os fracassos do neolibera-lismo e algumas proposições do movimento de resistência antissistêmico.” Classificado como Green New Deal, esse modelo corresponde a uma revalorização de formas de regulação pú-blica, retomando as “políticas keynesianas de Estado social”. As bases dessas proposições são o relatório da Comissão Stiglitz, apresen-tado à Assembleia Geral das Nações Unidas, e os documentos produzidos pela ONU e pela

Organização Internacional do Trabalho (OIT). No seu conjunto, o Green New Deal considera as dimensões sociais e democráticas da crise, propondo uma redistribuição e uma política de reforço do estatuto social do assalariado. Essa reorientação necessita de um “fortalecimen-to do Estado Social, da regulação pública e do controle dos setores financeiros e bancários”. Essa proposta também leva em consideração a dimensão geopolítica, propondo uma reforma

do sistema internacional, uma ampliação do multilateralismo e a reforma das instituições internacionais, dando maior importância aos países emergentes e à temática ecológica. O movimento altermundista acompanha com atenção a evolução dessas proposições, para definir seu posicionamento.

Por fim, a terceira saída possível da crise se organiza em torno das proposições de “supera-ção do capitalismo.” As “alternativas radicais”

feitas por esse bloco, que não é homogêneo, se baseiam no “acesso de todos aos direitos fun-damentais e à igualdade de direitos”. Trata-se de ir à raiz do problema e de construir uma so-ciedade baseada na satisfação das necessida-des sociais, no respeito à natureza e na plena participação popular. Esse projeto de “emanci-pação coletiva” supera os projetos keynesiano e soviético, renunciando ao produtivismo que era comum a ambos e concluindo que é impos-sível “uma refundação com a continuidade das políticas atuais”, além das críticas sobre “o mo-delo energético, alimentar, climático” e, princi-palmente, “ao modelo de crescimento”.

As controvérsias da estratégia altermundista

Segundo Massiah, é a este momento his-tórico que a estratégia altermundista deve apresentar respostas. A situação atual cria oportunidades para o movimento que se ins-crevem “na urgência, na curta duração,” com a necessidade de “um programa de melhoras imediatas” que responda à “deterioração das condições de vida, à restrição das liberdades e às guerras”. Mas a estratégia deve, ao mes-mo tempo, responder à necessidade de uma transformação das sociedades e do mundo inscritas numa perspectiva de longa dura-ção, à instauração de uma nova lógica sistê-mica de superação do capitalismo.

Mas essas oportunidades só serão agarra-das “se as resistências se amplificarem e se as lutas sociais, ecológicas, por liberdades e con-tra a guerra se intensificarem. Massiah afirma que “resistir é criar”. As lutas de resistência, das mulheres, contra o racismo, a luta ambiental, o comércio local, o software livre, os bens co-muns, a soberania alimentar são práticas que constroem uma nova cultura política pela qual se pode propor um novo modelo.

É reforçando o potencial representado pelas resistências que o altermundismo “abre perspectivas de saída da crise”. Ele permite a luta contra a “construção de um novo blo-co hegemônico, formado pela aliança entre os neoliberais e os neokenesyanos, e pres-siona o Green New Deal mundial a superar seus limites.” No entanto, as proposições do movimento altermudista não estão livres de “serem recuperadas” para “reforçar a lógica do sistema”. O momento é de possibilidades e incertezas, mas para Massiah, que entende o movimento altermundista como “um movi-mento histórico” que se apoia nas “lutas e prá-ticas alternativas daqueles que vivem desde o presente em conformidade com suas ideias”, trata-se de refutar desde agora “a fatalidade e de se engajar nos caminhos da liberdade”.

Conforme Massiah, para compreender a crise do neoliberalismo é necessário analisar sua lógica sistêmica e a maneira como ela se impôs, fazendo uma “releitura das fases das globalização capitalista”

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Fórum – O seu livro retoma algumas

discussões que já estavam presentes

em textos que você havia escrito ante-

riormente. Como você organizou o livro e

como nasceu a ideia de escrevê-lo?

Gustave Massiah – Efetivamente, faz anos que intervenho nos debates da Attac, do Centre de Recherche et Infor-mation pour le Développement (Crid), do Initiatives Pour un Autre Monde (Ipam) e do FSM. Fiz vários artigos so-bre as diferentes discussões e, pouco a pouco, me dei conta, durante es-sas discussões, que uma questão que me parecia muito importante e era muito mal compreendida, era a questão da estratégia. As pessoas dis-cutiam muito sobre o que deve ser feito imediatamente, qual a política imediata, como podemos melhorar as condições de vida, o que devemos denunciar, e discutiam também sobre como ultrapassar o capitalismo, como construir um novo mundo etc. Mas havia muita dificuldade para ligar os dois. Então, durante os últimos anos, fiz muitas intervenções so-bre a estratégia, quer dizer, como ligar os objetivos, as ações imediatas e a construção de um novo mundo. Essa foi uma das primeiras razões pelas quais acreditei que seria interessante escrever um livro.Uma segunda razão é que havia necessidade de dar à nova geração referências sobre a nossa geração militante. Como cada uma desen-volve suas próprias proposições, sua cultura, sua maneira de ver o mundo, suas formas de engajamento, o livro seria também uma pos-sibilidade de responder a muitas questões que me foram feitas e de explicar como a geração anterior tinha pensado esta questão da es-tratégia. Para isso, fui muito ajudado por minha filha, com quem tra-balhei e que não faz parte da mesma geração. Ela me interpelou, me obrigando a rever uma série de coisas, a aprofundar, a falar de outra forma e a estabelecer uma relação entre essa nova geração política e a antiga geração militante. Foi isso que deu origem ao livro.

Fórum – E quais são os fundamentos da estratégia altermundista?

Massiah – No meu livro, proponho uma reflexão sobre como cons-truímos uma estratégia geral, não particular. Desse ponto de vista, o que tentei explicar foi justamente como nós, nos diversos movimentos,

A resposta imediata e a construção de um novo mundo

pensamos a estratégia, analisamos o que funciona e o que não funciona mais na maneira como a pensamos. Para construí-la, existem várias ini-ciativas necessárias. Primeiro, é preciso ter uma orientação alternativa; segundo, é necessário definir quais são as bases sociais que defendem essa orientação. Uma terceira questão está ligada à cultura política e às formas de organização que se dão nessas bases sociais; a quarta, diz res-peito ao poder e qual é a relação entre ele e a política. E a quinta questão é a das alianças. Toda uma parte de meu livro é dedicada à reflexão sobre essas cinco grandes questões. Hoje, para a construção de uma estratégia, é necessário pensar nisso.

Fórum – Você diz em seu livro que o FSM de Belém (2009) trouxe para o

debate sobre a estratégia a questão indígena e a ecológica. Qual foi a contri-

buição do FSM de Dacar para a evolução da estratégia?

Massiah – A questão da migração efetivamente se opõe à globaliza-ção capitalista e apareceu com muita força em Dacar, onde houve o reconhecimento de que as migrações e a diáspora são elementos es-truturais do mundo. Essa questão foi reforçada principalmente pelo movimento camponês africano. Uma outra nova contribuição foi a presença dos habitantes locais: uma parte do FSM foi feita nos bair-ros populares, e isso representou uma convergência do movimento altermundista com o movimento de bairros. Por fim, uma outra contribuição, que já existia antes, mas que se con-firmou e foi muito interessante no último FSM, foi o movimento de mulheres, destacando-se o movimento de mulheres africanas. Gosta-ria de citar ainda, como uma contribuição nova de Dacar, as carava-nas, que já haviam sido realizadas em Belém. Houve também o “Da-car extendido”, com o desenvolvimento de fóruns sociais em vários locais. Há um outro elemento importante: o ano de ação global de 2010. Houve 70 fóruns, que reforçaram o processo global. Houve uma série de novos movimentos e de reflexões que se desenvolveram, e isso significou um fortalecimento do processo. Ainda do ponto de vista do processo, algo que tinha começado em Nairóbi, que avançou em Belém, e que foi um êxito em Dacar foi a questão das Assembleias de Convergência para ação global, que elaboraram uma agenda de mobilização, na qual se pôde ver o que significa falar a partir do FSM. Até aquele momento, havia um grande debate de que não fazíamos declaração em nome do Fórum e, em Dacar houve 30 declarações que eram complementares.

Fórum – No seu livro você não analisa a questão da mídia no movimento

altermundista. Qual seria o papel da comunicação na estratégia e no cen-

tro do movimento?

Massiah – Sou menos sensível que muitos outros à importância da mí-dia. O tempo do movimento, o tempo da transformação, é totalmente diferente do tempo da mídia. A mídia constrói opiniões no curto prazo, na atualidade e, de uma certa maneira, há uma ditadura da atualidade. Isso pode criar uma confusão sobre algumas coisas, mas não penso que possa influenciar a longo prazo. Na realidade, os movimentos não são tão sensíveis à midia. O MST, por exemplo, não se pauta por ela.

Fórum – Sim, mas o processo de criminalização dos movimentos sociais

passa pela construção de um discurso reforçado pela mídia.

Massiah – É verdade, essa é uma batalha ideológica de fundo. A mídia é utilizada para isso, mas não é ela que o cria, a mídia é um meio. Não digo para se subestimar a mídia ou não levá-la em con-sideração, mas uma verdadeira política não se constroi em relação à midia, mas sim tendo como base grandes orientações e, depois, organizando-se a comunicação. F

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31junho de 2011

A té a metade do século XVIII, o espaço geográfico que compreende os países asiáticos respondia pela maior parte

da produção mundial, tendo em vista a com-binação de sua grande dimensão populacio-nal e territorial. Com o surgimento da pri-meira Revolução Industrial (motor a vapor, ferrovias e tear mecânico), a partir de 1750, o centro dinâmico do mundo deslocou-se para o Ocidente, especialmente para a Ingla-terra, que rapidamente se transformou na grande oficina de manufatura do mundo por conta de sua original industrialização.

A divisão internacional do trabalho, que resultou do movimento de deslocamento da estrutura da produção e exportação na ma-nufatura inglesa em relação aos produtos pri-mários exportados pelo resto do mundo, so-freu modificações importantes somente com o avanço da segunda Revolução Industrial (eletricidade, motor a combustão e automó-vel) no último quartel do século XIX. Naquela época, a onda de industrialização retardatária em curso nos Estados Unidos e Alemanha, por exemplo, protagonizou as principais disputas em torno da sucessão da velha liderança in-glesa. A sequência de duas grandes guerras mundiais (1914 e 1939) apontou não apenas para o fortalecimento estadunidense como permitiu consolidar o novo deslocamento do centro dinâmico mundial da Europa (Ingla-terra) para a América (EUA).

Com a Guerra Fria (1947 – 1991), pre-valeceu a polarização mundial entre o bloco de países liderados pelos Estados Unidos e pela antiga União Soviética. Na década de 1970, com a crise capitalista impulsionada pela elevação dos preços de matéria-prima e petróleo, a economia dos EUA apresentou si-nais de enfraquecimento, simultaneamente ao fortalecimento da produção e exportação japonesa e da alemã. Especialmente com a adoção das políticas neoliberais pelos EUA, o mundo novamente voltou a se curvar ao poder norte-americano, sobretudo nos anos 1990, com o desmoronamento soviético, que favoreceu o exercício unipolar da dinâmica econômica mundial.

A manifestação da grave crise global, des-de 2008, tornou mais claro o conjunto de si-nais da decadência relativa dos Estados Uni-dos. A ineficácia das políticas neoliberais e o poder concentrado e centralizado das gran-

MArcIo PochMAnn é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos

Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A nova divisão internacional do mundo

des corporações transnacionais adonaram-se do Estado em grande parte dos países de-senvolvidos, sendo responsável pela adoção de políticas caracterizadas como “socialismo dos ricos”. Enquanto os trabalhadores pa-gam com a perda de seus empregos e a pre-carização das ocupações, os grandes grupos econômicos se ajustam com grandes somas do orçamento público, este, incapaz de re-cuperar a dinâmica produtiva, priorizando a financeirização da riqueza.

Simultaneamente, percebe-se o reapareci-mento da multicentralidade geográfica mun-dial com um novo deslocamento do centro di-nâmico da América (EUA) para a Ásia (China). Ao mesmo tempo, países de grande dimensão geográfica e populacional voltaram a assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso da China, Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, que já respondem atu-almente pela metade da expansão econômica do planeta. São cada vez mais chamados de “países-baleia”, que procuram exercer efeitos sistêmicos no entorno de suas regiões, fazen-do avançar a integração supraregional, como no caso do Mercosul e Asean, que se expan-dem com maior autonomia no âmbito das re-lações Sul-Sul. Não sem motivos, demandam reformulações na ordem econômica global (reestruturação do padrão monetário, exer-cício do comércio justo, novas alternativas tecnológicas, democratização do poder e sus-tentabilidade ambiental).

Uma nova divisão internacional do tra-balho se vislumbra, associada ao desenvolvi-mento das forças produtivas assentadas na agropecuária, mineração, indústria e cons-trução civil nas economias “baleia”. Também

ganham importância as políticas de avanço do trabalho imaterial, conectado com a forte expansão do setor de serviços. Esta inédita fase do desenvolvimento mundial tende a de-pender diretamente do vigor dos novos países, que emergiram cada vez mais distantes dos pilares anteriormente hegemônicos do pen-samento único (equilíbrio de poder nos Esta-dos Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dólar e assentado nos deri-vativos, Estado mínimo e mercados desregu-lados), atualmente desacreditados.

Nesses termos, percebe-se que a reor-ganização mundial, desde a crise global em 2008, vem se apoiando numa nova estrutura de funcionamento que exige coordenação e liderança mais ampliada. Os “países-baleia” podem contribuir muito para isso, tendo em vista que o tripé da nova expansão econômi-ca global consiste na alteração da partilha do mundo derivada do policentrismo, associado à plena revolução da base técnico-científica da produção e do padrão de consumo sus-tentável ambientalmente.

A conexão dessa totalidade nas transfor-mações mundiais requer o resgate da coope-ração e integração supranacional em novas bases. A começar pela superação da antiga divisão do trabalho entre países, assentada na reprodução do passado (menor custo de bens e serviços associado ao reduzido conte-údo tecnológico e valor agregado dependen-te do uso trabalho precário e da execução em longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia ser efetiva-mente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a pobreza de outros.

As decisões políticas de hoje, tomadas pe-los países de grandes dimensões territoriais e populacionais, podem asfaltar, inexoravel-mente, o caminho do amanhã, voltado à cons-tituição de um novo padrão civilizatório glo-bal. Quem sabe faz acontecer, como se pode observar pelas iniciativas brasileiras recentes. Todavia, elas ainda precisam ser crescente-mente aprimoradas, avançando no enfrenta-mento dos problemas de ordem emergencial, como valorização cambial e elevada taxa de juros, que comprometem a competitividade, para as ações estratégicas que atuam sobre a nova divisão internacional do trabalho. F

A manifestação da grave crise global tornou mais claro o conjunto de si-nais da decadência relativa dos EUA. A ineficácia das políticas neoliberais e o poder concentrado das grandes corporações transnacionais adona-ram-se do Estado em grande parte dos países desenvolvidos

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32 junho de 2011

por ThaliTa pires

A cidade do Rio de Janeiro está pas-sando por profundas mudanças políticas, sociais e físicas. Depois de décadas se ressentindo de dis-putas entre prefeitura, estado e

União, violência urbana crônica e decadência econômica, a cidade vive um clima de otimis-mo. Os catalisadores do resgate da autoesti-ma carioca foram a conquista do Brasil para ser sede da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. Além disso, a descoberta de petróleo na camada do pré-sal deve im-pulsionar os negócios e investimentos e sus-tentar o crescimento econômico por anos.

O conjunto de afirmações do parágrafo anterior faz parte do pano de fundo para aquele que é provavelmente o maior e mais ambicioso projeto de revitalização em anda-mento no país: o Porto Maravilha. O plano tem como objetivo revitalizar a extensa área portuária da capital fluminense, próxima da região central. As ações englobam, em prin-cípio, três bairros: Saúde, Gamboa e Santo Cristo. O Porto Maravilha não é compará-vel em complexidade sequer às obras para os Jogos Olímpicos, na área de Jacarepaguá. Enquanto as obras para a Olimpíada são rea-lizadas majoritariamente em espaços livres de construções e longe do centro, o projeto do Porto lida com uma área completamente construída e, em boa parte, ocupada.

A importância da área não se dá apenas por conta da proximidade com o centro con-solidado, mas também porque lá existe um

Porto das dúvidasProjeto de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro se apresenta como a chance da cidade para recuperar a importância do centro, mas a falta de informação por parte de moradores locais e de toda a sociedade mostra que é necessário o diálogo para que esse objetivo seja alcançado

importante patrimônio histórico e cultural. A primeira favela do Brasil, o Morro da Pro-vidência, está dentro do perímetro do proje-to. O conjunto de comunidades é considera-do, ainda, o berço do samba. É lá, na Pedra do Sal, que acontecem as melhores rodas de samba do Rio. O bloco de Carnaval Escravos da Mauá, também abrigado no local, foi con-siderado o melhor do carnaval de 2011.

Outro fato que torna a área estratégica é a proximidade com os mais importantes corre-dores de tráfego de veículos na zona metro-politana do Rio. A Linha Vermelha, a avenida Brasil, a ponte Rio Niterói e, mais remotamen-te, a via Dutra, todas desembocam na região. O tráfego de caminhões que atendem às ativi-dades portuárias também é importante.

Os objetivos da prefeitura são aumentar a densidade populacional da região e fo-mentar atividades econômicas. Hoje, a área abriga cerca de 25 mil pessoas. O plano é que esse número quadruplique até o fim da operação. Especialistas em urbanismo estão de acordo em relação à importância da área portuária para o município. “Voltar a pensar

a centralidade do Rio de Janeiro nessa re-gião, e não na Barra da Tijuca, é fundamen-tal. A reurbanização do porto pode ser um poderoso instrumento para a reversão da decadência do Centro e para a democrati-zação da cidade”, acredita Sergio Magalhães, professor da FAU/UFRJ. O economista Carlos Lessa é outro entusiasta dessa ideia. “Trazer moradores para a região é a melhor maneira de diminuir o problema de mobilidade urba-na do Rio. Morando na área do Porto, as pes-soas podem até ir trabalhar a pé, diminuindo o uso do carro”, pondera. Rachel Coutinho, coordenadora do Prourb da UFRJ, tem opi-nião semelhante. “Não há como ser contra a atenção ao centro, que deve sempre ser con-templado com políticas públicas”, crê.

Esse consenso, no entanto, acaba quando o projeto é analisado em detalhes. As modifi-cações previstas pela prefeitura estão dividi-das em duas fases. A primeira, engloba obras de urbanização, tais como ligações e estações de tratamento de esgoto, iluminação pública, calçamento, recuperação de vias e construção de ciclovias. Na segunda fase, obras de maior

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33junho de 2011

porte serão executadas. No plano da mobilida-de, estão previstas ações como a demolição de uma parte da Perimetral (via elevada que liga o Aeroporto Santos Dumont à Linha Vermelha, avenida Brasil e ponte Rio Niterói), a constru-ção de um túnel para substituir a perimetral, a abertura de um sistema binário para ajudar no escoamento do trânsito e a instalação de um sistema de transporte sobre trilhos na superfí-cie (Veículo Leve sobre Pneus). Na área cultu-ral, serão construídos dois museus – o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio. O porto será ainda o local de construção da Vila de Ár-bitros e do Centro de Mídia para a Olimpíada.

A área englobada no projeto tem grande diversidade de tecidos urbanos. Há dezenas de armazéns abandonados, ferrovias inuti-lizadas, prédios e igrejas históricas, favelas, casas de classe média e órgãos públicos. Além disso, o porto do Rio de Janeiro con-tinua em atividade, diferentemente do que aconteceu em todos os projetos de recu-peração de área portuária em que o Porto Maravilha se inspirou, como Barcelona, Bal-timore e Buenos Aires. As dificuldades para

lidar com tal diversidade de usos do territó-rio urbano são enormes.

As dimensões do projeto suscitam ime-diatamente uma pergunta: como pagar por todas essas obras? A solução encontrada pela prefeitura para o financiamento do Porto Ma-ravilha foi o estabelecimento de uma operação urbana, com outorga onerosa de potencial construtivo. Esses dispositivos estão previstos no Estatuto da Cidade, de 2001. É a primeira dessas operações executadas no Rio de Janei-ro. Em resumo, a outorga onerosa significa que serão vendidos títulos – os Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) – que aumentam o potencial construtivo da região, ou seja, se um investidor estiver inte-ressado, pode pagar para construir um edifí-cio com altura maior do que a lei permite na área. A previsão é de que sejam arrecadados no mínimo R$ 3,5 bilhões com a venda dos Ce-pacs, embora esse valor possa ser ainda maior, dependendo do resultado do leilão. Para tocar o projeto, a prefeitura criou a Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto (Cdurp), uma empresa de economia mista.

Polêmicas e participaçãoApesar da clara existência de um consen-

so na sociedade carioca sobre a pertinência do projeto – calcado na falta de exposição de informações por parte da imprensa e pelo clima de otimismo que permeia a cidade –, especialistas em urbanismo apresentam di-versas críticas à forma como a recuperação do Porto foi planejada.

A primeira crítica tem a ver com o proces-so legislativo que levou à aprovação das leis que embasam o Porto Maravilha. O vereador Eliomar (Psol/RJ) acredita que, apesar de terem sido realizadas algumas sessões parla-mentares de discussão do projeto na Câmara Municipal, não foi possível realizar um de-bate real. “O prefeito Eduardo Paes (PMDB) convidou, no final do recesso parlamentar de 2009, todos os vereadores para um evento no Palácio da Cidade. Lá, ele fez uma apresen-tação gráfica do Porto Maravilha e pediu o nosso apoio”, conta. “Só que ele chegou com um projeto de lei já pronto. Nas sessões de discussão, tentei apresentar várias emendas, mas poucas passaram. No seu cerne, o que foi aprovado foi aquilo que a prefeitura quis, já que o governo tem maioria na Casa”, reclama. Essa maioria ficou clara no placar da votação. Apenas Eliomar votou contra a aprovação das leis. “O processo seguiu as regras, mas não é possível dizer que houve debate com os vereadores”, diz. A especialista em Direito Urbanístico Rosângela Cavallazzi tem visão

semelhante. “No processo de aprovação das leis que deram origem aos projetos do Porto Maravilha não houve discussão com a socie-dade civil. Não houve discussões suficientes na Câmara de vereadores”, diz. “A população diretamente envolvida também não foi ou-vida sobre as alterações que ocorrerão no espaço urbano, logo, não é possível afirmar a observância do princípio da gestão democrá-tica da cidade”, completa.

A crítica da falta de participação não se resume ao processo legislativo. Moradores e urbanistas que trabalham no local são unâni-mes em dizer que a voz da comunidade não tem o peso que deveria em um projeto que quer mudar tão profundamente o ambiente da cidade. “Pelo que está aprovado no projeto, no papel, é possível saber que a comunida-de não foi ouvida no processo”, afirma Maria Lobo, pesquisadora da UFRJ. Por conta de sua pesquisa de pós-doutorado Participação comunitária e sustentabilidade social no pro-jeto urbano do Porto do Rio, Maria participou do dia a dia da comunidade até 2009. “Apesar de não estar mais na área com frequência, co-nheço as aspirações dos moradores e posso dizer que suas opiniões não estão refletidas no projeto”, conta. Maurício Hora, fotógrafo nascido e criado no Morro da Providência, concorda. “A comunidade não foi consultada, chegaram aqui com o projeto pronto”, afirma.

Em sua defesa, a Cdurp afirma que hou-ve diversas audiências públicas na região. “Comparecemos em reuniões sempre que chamados para tirar dúvidas dos morado-res e realizamos consultas à população”, ga-rante Alberto Silva, assessor da presidência da CDURP. “Nós ouvimos as sugestões da comunidade, até porque há coisas que só quem vive no local pode saber. Um exemplo são as creches. O projeto previa a constru-ção de uma só, mas os moradores sugeri-ram duas, já que a localização prejudicava um bairro, que acabaria sem acesso. Isso foi acatado.” Ele explica, no entanto, que não faz sentido tomar decisões técnicas com a participação da população.

As reclamações dos moradores, porém, são ainda mais urgentes do que o pedido para influenciarem os rumos do projeto. Muitas famílias – 250, segundo a secretaria de Habitação, 1,7 mil segundo ativistas – têm um motivo mais importante para perder o sono. Eles não sabem se poderão continuar morando no local. “Muitas casas foram mar-cadas para serem esvaziadas e ninguém sabe o que vai acontecer com os moradores”, ex-plica Maurício Hora. Outro líder da região, Carlos Machado, reclama do destino reser-

Apesar da clara existência de um consenso na sociedade carioca sobre a pertinência do projeto – em parte pela falta de exposição de informações por parte da imprensa –, urbanistas apresentam diversas críticas à forma como a recuperação do Porto foi planejada

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34 junho de 2011

O papel do Estado e o exemplo inglêsO modelo de administração do projeto Porto Maravilha é de uma com-

panhia de economia mista. Os recursos públicos e privados se juntam para financiar as obras e melhorias. Para o vereador Eliomar (Psol-RJ), esse modelo é um erro. “Quem dá mão, dá condição. Se é permitido aos entes privados participar do financiamento e da administração da empresa, eles vão querer determinar como o projeto deve seguir”, acredita.

O receio tem fundamento. Um exemplo inglês de renovação portuária mos-tra que, para que a estratégia funcione, não basta a melhor das intenções por parte do governo para gastar o mínimo do dinheiro do contribuinte em um projeto de grande porte. Nos anos 1980, durante o domínio de Marga-ret Thatcher como primeira-ministra, a Inglaterra passou por um processo de redução da participação do Estado em funções antes típicas, tendência combinada com forte concentração de poder nas mãos do governo central. A revitalização da área – que um dia havia sido o porto de Londres, às margens do Rio Tâmisa – foi um dos grandes escândalos do governo Thatcher.

Na Inglaterra, existem os boroughs, que se assemelham aos municípios em obrigações, mas com área territorial que, em Londres, corresponde às subprefeituras paulistanas. A área era considerada estratégica, por estar pró-xima ao centro da cidade e às margens do rio e, por isso, muito valorizada. A região estava dividida entre três boroughs. Por anos, antes da chegada de Thatcher ao poder, as administrações dos boroughs envolvidos tentaram acordos para a revitalização da área, mas esbarravam em dois problemas prin-cipais. O primeiro, era a falta de consenso sobre qual deveria ser o futuro da região e o segundo, era a falta de fundos para realizar um projeto de tamanha complexidade. A área estava contaminada depois de séculos de uso como por-to, e o custo da descontaminação era maior do que as administrações locais poderiam pagar para tornar a recuperação economicamente viável.

Para que a revitalização finalmente saísse do papel, o governo Thatcher re-solveu intervir. Tirando poder dos governos locais, ele assumiu a dianteira do projeto e criou uma entidade, que, na Inglaterra, é conhecida como quango: quasi-non-governmental organization, ou seja, um organismo misto, que tem como função liderar um determinado projeto. No caso da revitalização do porto, a entidade criada foi a London Docklands Development Corporation. A concepção da entidade é semelhante à usada para a criação da Cdurp, no Rio.

O objetivo de Thatcher, ao deixar o setor privado financiar e dar as cartas no projeto, era diminuir a participação do Estado na vida das pessoas. O go-verno central, no entanto, tinha algumas obrigações para com o projeto. A principal, era realizar e financiar a descontaminação do terreno. A partir daí, o financiamento caberia ao setor privado. Quem se instalasse na área teria isenção de impostos durante anos. Teoricamente, isso tiraria do governo o papel de intermediário do dinheiro, que, de uma forma ou de outra, viria mesmo do setor privado, na forma de impostos. Se esse plano em si já tem limitações e questionamentos teóricos e ideológicos, a prática da revitaliza-ção da área portuária de Londres foi um pesadelo ainda maior.

A execução do projeto, no final do processo, havia sido bancada majoritariamente pelo poder público, ou seja, pelo contribuinte. Além disso, denúncias de corrupção transbordaram durante a execução das obras, tornando a criação de Canary Wharf um dos maiores escândalos da administração Thatcher.

Para além dos problemas econômicos, o projeto apresentou falhas urba-nísticas sérias. O empreendimento foi um fracasso em seus primeiros anos. Diversas empresas que investiram no local faliram – não custa lembrar que o cenário econômico era o da recessão dos anos 1980. Os prédios cons-truídos lá permaneceram com baixas taxas de ocupação até o início dos anos 2000, quando a economia inglesa se fortaleceu novamente, baseada primordialmente no setor bancário.

Outro problema de Canary Wharf era a acessibilidade. Os projetos pri-vados previam prédios de escritórios, mas não havia menção à criação de sistemas de transporte de grande capacidade. Com uma população que usa transporte coletivo em massa, essa característica minava as possibilidades de sucesso do empreendimento. Os escritórios da região só foram ocupa-dos de fato depois da retomada econômica dos anos 2000 e da extensão da linha Jubilee do Metrô até o bairro.

Na opinião de Alberto Silva, assessor da presidência da Cdurp, o Porto Maravilha não corre o risco de passar por um processo semelhante ao de Canary Wharf. “Não há liberdade total para os investidores. Para que qualquer projeto seja aprovado, há uma série de requisitos que precisam ser atendidos, como tamanho de terreno e regulamentações ambientais”, afirma.

vado aos moradores retirados do local. “As famílias são pressionadas a sair e realocadas em bairros que ficam a 50 quilômetros do centro”, reclama. “Houve algumas audiências nos morros, mas não há espaço para debate, só apresentação do projeto”, garante.

É importante lembrar que tanto a Cdurp como a Secretaria de Habitação da cidade ga-rantem que não haverá remoções na região, mas apenas o realocamento de famílias que atualmente morem em áreas de risco. “Dou minha garantia pessoal de que os moradores do local só saem de lá se quiserem”, afirma Jorge Bittar, secretário Municipal de Habi-tação. Alberto Silva reforça o coro. “haverá habitação social para as famílias que saírem das áreas de risco”, salienta.

Se isso vai se confirmar ao longo do pro-cesso, só o tempo poderá mostrar. Nesse mo-mento, o que se vê é uma profunda descon-fiança por parte dos moradores e ativistas em relação ao poder público. O que acontece com Sidney Ferreira e sua família é uma amos-

tra do que a falta de comunicação pode fazer com a confiança dos moradores nas soluções propostas no projeto. Ney, como é conhecido na região do “Sessenta”, área do Morro da Pro-vidência, viveu a vida toda com a família no bairro. É deficiente visual desde os 15 anos de idade. A casa de sua mãe, dona Sônia, de três irmãos e sua lanchonete foram marcadas pela prefeitura como imóveis que devem ser deso-cupados. “Quando perguntei para os funcio-nários o motivo, disseram que era porque as casas estavam em área de risco. Na hora, recla-mei, porque lá não é área de risco, as casas são antigas, não há perigo de desabar”, conta. Em resposta, os funcionários presentes disseram que um estudo mostrava que a área era peri-gosa. Ney tenta achar um engenheiro que pos-sa atestar que os imóveis da família não estão em áreas de risco, mas ainda não conseguiu.

Segundo Ney, que além de comerciante é músico, as opções que apresentam para os moradores são as seguintes: R$ 300 de aluguel social até que novas unidades fiquem prontas,

uma unidade habitacional em um conjunto longe da área original ou um pagamento de R$ 25 mil em dinheiro – ou R$ 32 mil para a compra assistida pela prefeitura de uma casa na mesma região. “Na prática, isso é expulsão, porque com R$ 300 não se aluga nada na re-gião e com R$ 32 mil não se encontra nem ter-reno vazio aqui”, reclama. Ele afirma que uma casa semelhante à de sua mãe, por exemplo, não sairia por menos de R$ 150 mil.

Nesse aspecto, a prefeitura faz um mea-culpa. “Existe uma política de atendimento às famílias afetadas, mas sabemos que exis-tem questionamentos sobre, por exemplo, o valor do aluguel social”, admite Alberto Silva. “Essa reivindicação é justa e temos que es-tudar o assunto”, diz. Em relação à compra assistida de outro imóvel, Silva explica que R$ 32 mil é o valor que a prefeitura cobre, mas que, se a casa for mais cara, há um enca-minhamento à Caixa Econômica Federal para o financiamento do restante do valor. Resta, aqui, saber se a Caixa pode aplicar regras de

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35junho de 2011

financiamento voltadas a pessoas de baixa renda no financiamento de um imóvel com valor de classe média.

Todas essas informações, assim como o estudo de áreas de risco feito pelo Serviço Geológico do Estado, não estão disponíveis para Sidney e seus vizinhos. Esse fato, junto à percepção da maioria dos moradores de que eles não podem ser sujeitos no projeto, faz com que as críticas sejam constantes e que o debate fique truncado. Sem saber claramen-te quais são todas as possibilidades na mesa e sem mecanismos disponíveis facilmente para sugerir novas saídas, os moradores continuam aterrorizados com a perspectiva de perder suas casas.

Qualidade urbanaNão é só na perspectiva micro do projeto

Porto Maravilha que as polêmicas estão ins-taladas. O meio acadêmico compartilha com os moradores a percepção de que não exis-tem informações suficientes disponíveis à sociedade para se tomar uma posição sobre a revitalização.

Uma das dúvidas mais presentes diz res-peito ao tipo de construção que aparecerá no local depois da venda dos Cepacs. Muitos te-mem que a região portuária do Rio se torne uma cópia de Dubai, com prédios enormes às margens da água. “É preciso prestar atenção à escala das construções, para que os prédios não ‘sufoquem’ os pedestres, matando a vida nas ruas”, alerta a arquiteta Ninna Rabha, que foi administradora regional do Centro do Rio entre 1993 e 2000. O temor é baseado na possibilidade, em alguns lotes, da construção de torres de até 50 andares. Alberto Silva, da Cdurp, afirma que a paisagem do Rio está a salvo desse tipo de perigo. “Os prédios mais altos só serão permitidos em alguns lotes, que não trazem a possibilidade de delimitar a vi-são dos morros”, diz. “Além disso, existe uma regra em relação ao distanciamento entre um prédio e outro, então, não é possível que exis-ta uma fileira de prédios tapando a vista.”

Outro ponto do projeto é que, apesar de o plano prever o adensamento populacional da área, não existe na lei nenhum mecanismo que garanta que moradias serão construídas pelo mercado. O único incentivo formal à construção de casas é o fato de que um Cepac compra mais potencial construtivo para pro-jetos residenciais do que para os comerciais. Apesar de não haver uma obrigatoriedade nesse sentido, Silva afirma que não há como a área se tornar um depositário de espigões de escritórios vazios durante a noite. “Nas áreas em que o potencial construtivo à venda é me-

nor, não faz sentido econômico construir es-critórios. Não quisemos engessar a legislação exigindo o que deve ser construído em cada bloco, porque não sabemos exatamente como a terra será usada, mas há nessa lei incentivo à construção de moradias”, explica.

As dúvidas sobre o Porto Maravilha não terminam por aqui. Questões ambientais como o estudo de contaminação do solo, a preparação para mudanças climáticas e a ne-cessidade, ou não, de um estudo de impacto ambiental são algumas das que continuam sem resposta ou, pelo menos, sem um debate sério. Há outros questionamentos. Sem um di-

álogo sério com os interessados – um debate com perguntas e respostas, não explanações burocráticas –, o engajamento em torno da re-vitalização da zona portuária pode se perder. Quaisquer que sejam os defeitos e qualidades do projeto, eles têm que ser expostos, para que uma oportunidade que é de fato histórica – por envolver um momento econômico favo-rável, com a visibilidade proporcionada pelos eventos internacionais – não seja perdida, com grande prejuízo para a sociedade carioca de uma maneira geral, mas, principalmente, para aqueles que vivem em um local que foi abandonado por tanto tempo. F

Acima, desenhos de como o Porto ficará quando pronto e a área envolvida: a questão ambiental também preocupa

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36 junho de 2011

As veias seguem sangrando A história do Cerro Rico de Potosí, símbolo

da Bolívia, que sofre com a exploração mineral há séculos e tem sua integridade ameaçada

por lídia aMoriM

O sangue escorre. Água que desliza vermelha, às vezes cinza. A terra cede. O Cerro está ferido. Mortal-mente ferido. De longe, se pode ver suas cicatrizes, tão antigas

como as histórias de morte e exploração que nos sussurra o vento. Se de longe o cenário é triste, de perto, é desolador. A destruição está por todos os lados. Terra seca, árida, com pontos vermelhos faltando pedaços. O grande achachila respira com a dificuldade de um condenado à morte.

– Paizinho, mi tata, achachila. Te faço essa oferenda. Proteja-nos, que a terra não devore os filhos de Potosí.

Assim se reza ao fazer ao Cerro oferendas de doces, álcool e flores. Sumaq Urq, a “mon-tanha formosa” em quíchua, luta para seguir

existindo. E as comunidades que vivem aos seus pés tentam, todavia, mostrar reverência. Nos Andes, as montanhas não são somente montanhas. são achachilas, pais que vigiam e cuidam, divindades que protegem. O Cerro Rico é o grande pai de Potosí. Tão esgotado que cumpre sua função espiri tual com dificuldade. Talvez por isso essa seja uma cidade esquecida, abandonada, pobre mesmo sendo tão rica.

Antes de o sol nascer, começa o movi-mento em Potosí. Nas ruas, trabalhadores se sentam em postos de comida para saborear, no café da manhã, fumegantes sopas, as ca-lapurcas. Pela rota principal que leva até o Cerro Rico, lojinhas e barraquinhas vendem cigarros, folhas de coca e, claro, dinamite. Le-andro Tapia nos leva com seu chapéu de plu-mas pelos caminhos tortuosos que conduzem até o cume da montanha. Depois de mais de 20 anos trabalhando nas minas, por ironia do

destino, mudou de lado. Com os pulmões cor-roídos pelo mal da mina, a silicose, trabalha como promotor ambiental dos povos indíge-nas originários da região.

Na chuvinha fina, Leandro caminha tran-quilo com seu poncho tecido à mão por habi-lidosas tecelãs potosinas. Aos 4,5 mil metros de altitude, para, olha com tristeza ao redor e, no meio de um suspiro, questiona: “Onde vamos fazer nossas oferendas, o que vamos fazer, o que deixamos para nossos filhos? Está morrendo o que é nosso.” Leandro vive na re-gião de Jesus de Machaca, próxima ao Cerro e longe, bem longe do movimento das gran-des cidades. Na terra árida do altiplano, nesse ponto, já não é possível plantar. E é exatamen-te por isso que muitos, ainda pequenos, têm que trabalhar nas minas até que seus corpos cansados já não aguentem. “Todo dia morre um mineiro aí dentro”, garante.

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Um país mineradorA história da Bolívia é, em grande parte,

a história da mineração. O desenvolvimento deste setor no território boliviano nasceu com o descobrimento dos filões de prata no Cerro Rico de Potosí e, até hoje, é uma das atividades econômicas mais fortes no país, perdendo só para a exportação de hidro-carbonetos. As mais recentes informações sobre o resultado das exportações de miné-rios mostram que, em 2010, essa atividade somou 2,405 bilhões de dólares.

Ainda no período colonial, a exploração teve fortes impactos socioambientais, como a destruição de florestas para a obtenção de madeira para lenha e a contaminação dos ecossistemas pela disseminação – só nessa época – de mais de 40 mil toneladas de mer-cúrio utilizado para a recuperação da prata. De 1915 até 1985, o país passou da era da prata à era do estanho. A Bolívia foi uma das maiores produtoras em nível mundial, com a atividade mineradora dos chamados barões do estanho: Patiño, Aramayo e Hochschild. Esses 70 anos de exploração intensiva do estanho foram, para muitos geólogos, os res-ponsáveis pela fragilização do Cerro.

Em 1952, com a nacionalização das mi-nas, o controle passou ao Estado, que en-carregou a Corporação Mineira da Bolívia, a Comibol, de continuar com a produção, juntamente com outras empresas médias e pequenas. Em todo esse tempo, a mineração nunca pensou, nem mesmo por um instante, em responsabilidade ambiental ou social.

Do final da década de 1980 até meados de 2006, a mineração no Cerro Rico de Potosí passou por uma crise, em função da baixa dos preços do estanho e da prata. Entretanto, o novo boom na mineração, entre 2006 e 2008, fez subir novamente o número de trabalhado-res e empresas na cidade. Hoje, o Cerro segue sob a administração da Comibol, que trabalha em regime de responsabilidade compartilha-da com as cooperativas. Por dia, se obtém 3,8 mil toneladas de zinco, chumbo, prata e esta-nho. A reativação gera pelo menos 20 mil em-pregos diretos, mas também até 6 mil tonela-das de resíduos tóxicos por dia.

Paradoxalmente, os departamentos com o maior número de operações em mineração apresentam também os maiores índices de pobreza. E tristemente Potosí é o departa-mento com maior número de concessões.

Restrições e desrespeitoChegamos até os 4.550 dos 4.705 metros

de altura do Cerro Rico de Potosí. A partir daí, já não havia caminhos, só pedras, crateras e água empoçada. O cume gelado do Cerro, de

longe, parece ter sido mordi-do de um lado por uma boca gigante. Ao nos aproximarmos da “mordida”, fica à mostra um grande espaço vazio. Quando estávamos ter-minando de subir, começou a chover, como se Pachamama, a mãe-terra, quisesse também contar sua dor.

Em 2009, baseado em estudos da Comi-bol, o governo baixou o Decreto Supremo 27.787, que proíbe qualquer tipo de trabalho acima dos 4,4 mil metros de altura. A medida é um paliativo até que se terminem os estu-dos geotécnicos, topográficos e geofísicos, que mostrariam a verdadeira situação da montanha e permitiriam tomar outras pro-vidências para evitar que o Cerro Rico perca totalmente sua forma cônica e também o tí-tulo de patrimônio da humanidade.

Por enquanto, a única parte do estudo que está pronta é a primeira, a pesquisa geo-técnica, monitorada pelo Serviço Nacional de Geologia e Técnica de Minas, Sergeotecmin. Os resultados são desoladores: o Cerro está totalmente débil, frágil, e a qualquer mo-mento podem acontecer deslizamentos com risco, inclusive, de soterrar os trabalhadores. O que impede a aplicação de medidas de pre-venção e de preservação da montanha é que as duas partes que ficaram sob a responsabi-lidade de Comibol – os estudos topográficos e geofísicos – ainda não estão prontas. Sem esses dados é impossível saber o que é que realmente se deve fazer. Enquanto isso, a cada dia a situação piora.

“Olha esse caminhão! Olha, olha, olha, tem gente dentro dessa mina!” Assim, Lean-dro vai mostrando cada detalhe que o deixa indignado e decepcionado. Os pés ágeis vão pisando as pedras. As pedras, soltas, caem morro abaixo. “O que se pode fazer?”, per-gunta. “Já não há trabalhadores acima dos 4,4 mil metros. O decreto está sendo cum-prido. O Cerro é nosso patrimônio, a cara de Potosí, da Bolívia, e por isso estamos cuidan-do dele e esperando a conclusão dos estudos para outras providências”, garante Fernando Vargas, chefe de áreas verdes e meio ambien-te da Prefeitura de Potosí, um dos responsá-veis por cuidar para que não se trabalhe no cume da montanha. O outro responsável, a Secretaria Estadual, também garante que o trabalho de fiscalização segue firme.

Mas o que eles parecem não saber – ou não querem admitir – é que as coisas não estão caminhando tão bem assim. Subindo o

Cerro, pode-se ver desde grandes empresas até um ou outro mineiro sozinho caminhan-do e entrando pelos socavões. Eram esses “detalhes” que, em cada trecho percorrido, Leandro mostrava, aos gritos, com o dedo in-dicador apontado.

Há crateras em todas as partes da mon-tanha. Ao todo, são 206 buracos gigantes-cos, o mais recente no cume, com 40 metros de largura por 40 metros de profundidade. Toda a área próxima a essa enorme cratera se encontra rachada. O mais grave é que a su-perexploração deixou a montanha debilitada e, por isto, outro fator a ameaça: as mudan-ças climáticas. A capa de gelo que protegia o cume está derretendo, a umidade penetra pelas rachaduras, a água amolece a terra e evidencia a fragilidade da divindade andina.

São centenas de galerias que corroem o Sumaq Urq por dentro – um total de 619, segundo a Sergeotecmin. Algumas são ina-cessíveis devido ao grau de toxicidade que apresentam. Hoje, trabalham no local 26 co-operativas mineradoras, a Manquiri, filial da canadense Coeur d’ Alene Mines Corporation, e mais alguns mineiros clandestinos. Ao todo, são aproximadamente 15 mil homens, mulhe-res e crianças caminhando todos os dias por 285 minas ainda ativas.

Há quem culpe as cooperativas instaladas na região. O presidente da Federação de Coo-perativas Mineiras de Potosí, Julio Quiñones, garante que não. “Trabalhamos até o nível per-mitido, só usamos as entradas acima dos 4,4 mil metros como acesso ao interior da mina. Mas há particulares que trabalham acima da altura permitida e, inclusive, têm contrato”.

E há quem diga que é ela, a Manquiri, quem está desrespeitando a lei. Outros, como Quiño-nes, culpam a mineração clandestina, dizem que são os mesmos moradores das comunida-des próximas que vão tirar um ou outro mine-ral para sobreviver. O fato é que há muitos cul-pados e, ao mesmo tempo, nenhum. No final, a exploração continua, um trabalho silencioso, escondido, nas costas do governo, burlando qualquer lei ou significado simbólico.

A riqueza e a contaminação“Tanta riqueza e não temos nada.” Leandro

Tapia olha uma vez mais o Cerro, as máquinas da Manquiri, os trabalhadores saindo da boca

“Tanta riqueza e não temos nada”, reflete o promotor ambiental dos

povos indígenas Leandro Tapia

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da mina. O Cerro Rico é de Potosí, mas o que sai dele até hoje não é. Pouco do que é extraí-do das minas volta para a cidade. Os casarões históricos estão cobertos de plantas, musgos e mofo. Pedacinhos de balcões, janelas e por-tas históricas vão caindo pouco a pouco.

Pelas ruas, caminham visitantes estran-geiros, pessoas que tentam viver do turismo, crianças e velhos esmolando. Potosí é linda, misteriosa, impressionante, mas também envelhecida e descuidada. Tem segredos nas ruas, rastros de uma época de opulência. E, ao mesmo tempo, é o retrato do abandono. Ninguém agradece a Potosí. Ela chora sozi-nha a desgraça de sua riqueza.

Na década de 1970, segundo Eduardo Ga-leano em As veias abertas da América Latina, Potosí tinha três vezes menos habitantes do que há quatro séculos. Hoje, com a revalori-zação dos minérios, a cidade voltou a cres-cer, e ao redor de suas ruínas, entre diques onde os engenhos armazenam a água conta-minada da lixiviação, aparecem construções clandestinas, casebres de barro com enor-mes televisões LCD dentro de caminhonetes Hummer estacionadas no pátio.

A comunidade de Leandro, localizada aos

pés do Cerro, sofre com a contaminação, as-sim como centenas de outras comunidades de Jesus de Machaca. Na pequena Villa Concepci-ón, por exemplo, vivem cerca de 70 pessoas afetadas diretamente pela contaminação. No local, não há como plantar. Nessa época do ano, uma rala grama verde nasce nas encostas da montanha. O lugar parece bonito, bucólico. Ledo engano. Tudo está contaminado.

Nessa comunidade, as pessoas seguem fazendo suas oferendas ao achachila. Mas o que mais lhes importa nem é perder o Cer-ro. É que viver alí está cada dia mais difícil. Alguns moradores trabalham na mineração e outros, não têm com o que trabalhar. Seus animais são poucos para manter a comunida-de. E nascem mortos ou nem se reproduzem.

A mineração gera drásticos efeitos am-bientais em todas suas etapas: prospecção, exploração e também em atividades como fundição. Tanto dos socavões e depósitos ati-vos como dos já abandonados fluem águas ácidas até os rios. Os resultados são trágicos: a contaminação que sai do Cerro Rico para o rio Pilcomayo chega até a Argentina. Pelo caminho, atinge 33 comunidades só na Bolí-via. A contaminação dos solos faz com que as

plantações já não se desenvolvam. O pouco que cresce está cheio de chumbo, arsênico e até cianureto, proibido em muitos países do Norte por seu alto grau de toxicidade.

Em muitas comunidades, as enfermidades diarreicas aumentaram de maneira alarman-te. Também há relatos de aumento no número de casos de câncer e anomalias em fetos. No entanto, mesmo que se saiba que o arsênico é altamente cancerígeno e que o cianureto pro-voca anencefalia em fetos, ainda não há pes-quisas que comprovem a relação direta entre esses casos e a contaminação. Enquanto os moradores de Villa Concepción contavam um pouco do que estava passando, apareceu um grupo de moradores que acreditavam que não deviam falar. As comunidades andinas têm uma dinâmica diferente. Ninguém pode in-gressar sem a autorização prévia dos dirigen-tes locais, os mallkus. Tínhamos a autorização.

Mas nesse lugar as coisas estão mudan-do. Os jovens já não reconhecem a legitimi-dade de seus dirigentes. À boca miúda, os mais velhos dizem que já não se respeita nada, que as grandes empresas semeiam a discórdia. Leandro resume tudo: “O que eles estão fazendo é dividir as comunidades para tirar nossa força, para que não defendamos nossos direitos.”

Com a presença da reportagem, não tar-dou a estacionar um veículo Gol branco ao lado de onde estávamos, saindo dele um ho-mem gordo, ostentando um farto bigode. Ele fala por todos, já não há discussão. “Podem gravar o que quiserem, mas a comunidade não vai falar. Temos que deliberar antes, todos jun-tos.” Em seu jaleco amarelo, o homem trazia o nome de uma grande empresa mineradora transnacional. Pergunto-lhe: “E você, de onde é? Que empresa é essa que está representan-do?”. O homem desvia o olhar. “A empresa é nossa”, afirma. “Entendo”, respondo. Olhando fixamente o nome da empresa no jaleco. Dei as costas. Enquanto caminhava para ir, escutei uma explosão ao longe. Estavam, como sem-pre, arrebentando as entranhas do Cerro.

O que fazer?A Manquiri já foi questionada por não

respeitar os direitos dos povos originários, por contaminar a água da cidade de Potosí e há quem diga que não respeita a limitação de 4,4 mil metros. Mesmo assim, quem ameaça entrar na Justiça é a empresa, que pretende apresentar uma demanda internacional caso as entidades que defendem a preservação do

Patrimônio Cultural em riscoO Comitê da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco já se

manifestou. Em 2010, já havia declarado o Cerro Patrimônio Cultural e Natural em risco e, recentemente, expressou ao governo boliviano sua preocupação pela morfologia física da montanha. No final de maio, estava prevista a visita de uma comissão técnica para avaliar e fazer um estudo da estrutura e, assim, recomendar medidas de cuidado e prevenção.

O Cerro recebeu o título de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade em 1987, e caso perca sua famosa forma cônica, assim como seus salões históricos, vai perdê-lo. Para obter o reconhecimento, é necessário ser referendado pela sua importância cultural ou natural pelo programa internacional Patrimônio da Humanidade, também da Unesco.

É uma situação delicada, em que o Ministério da Cultura, encarregado de cuidar dos patrimônios históricos do país, nem pode se intrometer. Na última vez que a então ministra Zulma Yulgar tocou no assunto publicamente, em 2010, as cooperativas mineiras pediram sua renúncia. Depois da reação, Yulgar tentou se justificar: “Dei minha voz de alerta, não proibi os cooperativistas de fazerem seu trabalho porque não me diz respeito. Mas me compete, sim, preservar o patrimônio cultural.” A atual ministra, Elizabeth Salguero, entrou na polêmica buscando consenso. A problemática do Cerro é priori-dade em sua gestão, mas, claro, com uma solução que seja interessante para todos.

Ao redor de suas ruínas, entre diques onde os engenhos armazenam a água contaminada da lixiviação, aparecem construções clandestinas e casebres de barro com enormes televisões LCD

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local afetem suas operações. “Não podemos deixar que desapareça nosso Cerro. É rique-za de Potosí, da Bolívia, do mundo, por isso pedimos ajuda da Unesco, para que possa-mos frear essa destruição.” Celestino Condo-ri, presidente do Comitê Cívico de Potosí, se agarra a estudos, imagina uma Potosí sem a montanha e, num pedido desesperado, tenta recorrer a organizações internacionais.

Enquanto isso, os trabalhadores que es-tão nos sindicatos mais organizados e fortes do país protestam. “Não vamos sair do Cerro, vamos fazer cumprir os contratos que assi-namos há três anos, que valem por 25 anos. São nossas fontes de trabalho, sem isso, como vamos sustentar nossas famílias?”, questiona Julio Quiñones.

Se as erosões na montanha podem ter consequências sociais e ambientais gravís-simas, a verdade é que acabar com a mine-ração no local seria devastador não só para Potosí como para toda a economia do país. Quase a metade dos 200 mil habitantes da cidade trabalham – de alguma maneira – no setor. Quiñones sugere um projeto que feche as crateras com as mesmas sobras de mi-neração que já não são utilizadas, mas sua eficácia é duvidosa. Para o engenheiro Hugo Delgado, diretor da Sergeotecmin, a solução está em esperar o resultado dos estudos para propor medidas como planificar o uso

Os conquistadores espanhóis não en-contraram o sonhado El Dorado, mas, graças ao indígena yanacona Diego

Huallpa, se depararam, em 1545, com uma montanha de prata, o metal precioso à flor da terra. Huallpa foi considerado pelos seus um traidor. Para os indígenas que viviam ali, a montanha era sagrada. Nunca haviam tira-do nem uma só pedra porque, se o fizessem, acreditavam que uma grande desgraça podia se abater sobre seu povo.

Os europeus enlouqueceram ao ver o me-tal tão abundante e disponível. Poetas e reis cantavam as riquezas da montanha. O impe-rador Carlos V deu a Potosí o título de Vila Im-perial e a cidade passou a ser mais povoada que os maiores centros europeus à época. As armaduras dos orgulhosos guerreiros eram de prata e de pedras preciosas. Os copos que

Uma história de exploração recebiam os vinhos mais caros também eram do mesmo metal, assim como panelas, talhe-res, espelhos gigantescos e até os penicos.

Assim como os portugueses esbanjavam o ouro que sacavam de Vila Rica de Ouro Preto e São João Del Rey, no Brasil, na Amé-rica espanhola os colonizadores entraram no Cerro Rico de Potosí e arrancaram tudo e mais um pouco. A diferença é que hoje, nessas cidades de Minas Gerais, a exploração está só nas páginas dos livros de história, en-quanto no Cerro o abuso continua.

Ao mesmo tempo em que damas e cava-lheiros da Espanha se cobriam com o metal, africanos e indígenas trabalhavam na Casa da Moeda até morrer. Literalmente. Aí eram substituídos por outros, que tinham que fazer o mesmo. Durante o período colonial, o vice-rei Francisco de Toledo instaurou, em 1572,

a mita, tributo imposto aos indígenas. Uma vez a cada sete anos, durante quatro meses, os homens entre 18 e 50 anos eram obrigados a trabalhar nas minas, quase sem pagamento e sem direito a sair para ver a luz do Sol. Acre-dita-se que isso tenha levado 80% da popula-ção masculina do vice-reinado a desaparecer. “Cada peso que se cunha em Potosí custa dez índios mortos nas cavernas das minas”, escre-veu Frei Antonio de La Calancha, em 1638.

A benção de Potosí é, contraditoriamen-te, sua maldição. Não se sabe até hoje a di-mensão da potencialidade do Cerro. A única certeza é a de que, apesar de sua riqueza aparentemente inesgotável, o lugar tal como conheceu o indígena Huallpa está abando-nando sua famosa forma cônica e transfor-mando-se em um amontoado de minerais e resíduos tóxicos. F

do solo e, em zonas de alto risco, proibir o trabalho. “Estar em zonas tão instáveis é perigoso inclusive para os trabalhadores, já que há o perigo de desabamentos e o risco de uma grande desgraça.” Também está con-templada a mitigação nessas zonas de alto risco. O problema é que, além de ter que es-perar o fim dos estudos, a solução implica altos custos para o governo.

E além de esperar os resultados de Comi-bol, a Sergeotecmin está buscando, ao redor de Potosí, outras zonas para exploração. Para a instituição, é praticamente certo que há na região riquezas semelhantes ou até maio-res que as do Cerro. Por enquanto, não há muitos resultados concretos, mas encontrar outras fontes pode ser extremamente posi-tivo: isso permitiria a realocação de alguns trabalhadores, o que ajudaria – e muito – a solucionar de uma vez o problema e, assim, preservar o que resta da forma cônica do já esgotado Cerro Rico de Potosí.

Há muitas possibilidades e sugestões, mas com o ritmo lento das negociações e a rápida desintegração desse patrimônio, talvez em al-guns anos a montanha em sua forma cônica só possa ser vista em fotos, gravações e, claro, no brasão boliviano. Mas quando acabarem as possibilidades de exploração no local ou no que resta dele, já existe um substituto. Hua-cajchi, que significa em quéchua “a montanha que chorou”, já não tem tantas lágrimas: seus inúmeros mananciais estão diminuindo.

O gerente regional da Comibol, Gabriel Arancibia, conta que já há planos de explorar prata também em Huacajchi. “Vamos fazer a avaliação”, pontua. Mas por que só agora vol-taram seus olhos para Huacajchi? Mineiros do lugar contam que ela ainda não foi explo-rada porque quem a toca morre – segundo a lenda local, uma serpente gigante cuidaria dela. Pachamama a está reservando para quando Sumaq Urq se esgote definitivamen-te. Resignada, ela espera seu momento. F

se as erosões na montanha podem ter consequências sociais e ambientais gravíssimas, a verdade é que

acabar com a mineração no local seria devastador não só para Potosí como para toda a economia do país

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O crime de apologia como instrumento de censuraAs recentes proibições judiciais da Marcha da Maconha demonstram o quão frágil ainda é o direito à livre manifestação de pensamento no Brasil. interpretações esdrúxulas e autoritárias do delito de apologia ao crime por promotores e juízes converteram-se em instrumentos de censura judicial

“T odos podem reunir-se pacifica-mente, sem armas, em locais abertos ao público, independente-

mente de autorização”; está lá no artigo 5º, in-ciso XVI, da Constituição brasileira. Muitos juí-zes brasileiros, porém, por conta própria, têm acrescentado logo após o texto constitucional uma objeção: “exceto se for para fazer apologia ao crime, isto é, defender uma mudança na lei da qual eu discorde”. E foi assim que a Marcha da Maconha foi proibida em várias cidades brasileiras, por ordens judiciais prolatadas às vésperas das datas programadas para as pas-

seatas, inviabilizando qualquer possibilidade prática de recurso às instâncias superiores.

Do ponto de vista estritamente jurídico, o fundamento legal dessas decisões judi-ciais é uma excrescência. A censura prévia é expressamente vedada pela Constituição brasileira (art.5º, IX) e a livre manifestação de pensamento é garantida, sendo vedado apenas o anonimato (art.5º, IV). Se a mani-festação de pensamento for por qualquer motivo ilícita, deverá ser punida após sua expressão, mas nunca proibida antes de ser realizada. Em suma: todos têm o direito

constitucional de falar o que bem entender, mas poderão ser responsabilizados civil ou criminalmente, posteriormente, caso essa manifestação cause danos a alguém.

Na prática, porém, muitos juízes brasilei-ros arrogaram-se o direito de prever o futuro e proibir manifestações de pensamentos que seus dons premonitórios já constataram que serão ilícitos. Juízes que julgam não fatos do passado, mas o que as pessoas irão dizer no futuro. E as proíbem de dizê-lo.

Muitas das manifestações em prol da le-galização da maconha que estavam progra-

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afirmar publicamente que “Tião Medonho fez muito bem em usar maconha, já que tem câncer, e a maconha ajuda a suportar os efei-tos colaterais da quimioterapia”, mas seria perfeitamente lícito afirmar que “o uso da maconha alivia os efeitos colaterais da qui-mioterapia”. Em suma: a apologia é um crime de opinião, mas de uma opinião sobre um fato, e não sobre uma ideia.

Próximo ao crime de apologia, encontra-se no artigo 286 de Código Penal brasileiro o delito de incitação ao crime: “Incitar, pu-blicamente, a prática de crime”. Ao contrário da apologia, a incitação ao crime pune uma manifestação que faz referência a um delito futuro, e não passado. É preciso, para que se possa condenar alguém por este delito, que se prove inequivocamente a intenção do agente de incentivar alguém à prática de algum crime. Em sentido muito semelhante, a lei de drogas (Lei 11.343/2006) também prevê, em seu artigo 33, §2º, punição para quem “Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”. Não se trata, pois, de um mero delito de opinião, mas de uma ine-quívoca atuação do agente no sentido de in-fluenciar psicologicamente alguém a cometer o delito. E, obviamente, uma passeata pedin-do a alteração de uma lei decididamente não caracterizaria qualquer incentivo à prática de crime, até porque, se a lei for alterada, como querem os manifestantes, já não haverá mais um crime, mas uma conduta lícita como outra qualquer. Do contrário, passeatas em defesa da legalização do aborto e da eutanásia tam-bém seriam instigações a abortos e eutaná-sias, o que inviabilizaria qualquer intento por mudanças nas leis criminais.

Nem os juristas mais conservadores do passado conceberam que os delitos de apo-logia ou incitação ao crime pudessem ser usados como pretextos para coibir manifes-tações reivindicando a legalização de uma determinada conduta. Os códigos não são leis estanques e são constantemente atua-lizados para melhor expressar a realidade social. No passado, os Estados Unidos proi-biram a venda de bebidas alcoólicas; hoje proíbem a maconha; amanhã podem proibir o chocolate. O que não se pode proibir é que se reivindique mudanças na lei, sob pena de o Direito tornar-se um mero instrumento de manutenção do status quo.

A liberdade de expressão protege o direi-to de quem quer se expressar, mas também o direito de quem quer ouvir a expressão do pensamento. Nas felizes palavras de Ronald Dworkin: “O Estado insulta os seus cidadãos

e nega a eles responsabilidade moral, quan-do decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas.”

Então seria lícito fazer uma passeata pela descriminalização do homicídio ou do sexo com crianças? Claro que sim! Não deve ha-ver tabus no Estado Democrático de Direito e, se alguém for suficientemente desvairado para propor manifestações nesse sentido, tem todo direito de fazê-lo, ainda que seja pouco provável que consiga reunir meia dú-zia de adeptos para a causa. Se a manifesta-ção, porém, conseguir agrupar um número considerável de pessoas lutando pela causa, é no mínimo razoável que – longe de tentar calá-los – se ouçam seus argumentos para que sejam incorporados à legislação ou sim-plesmente refutados no ambiente saudável da discussão de ideias. É esta tolerância às opiniões alheias, divergentes das nossas, que nos distingue das ditaduras.

sTFPara pôr um fim às proibições judiciais

das Marchas da Maconha, a então procurado-ra-geral da República em exercício Deborah Duprat impetrou no Supremo Tribunal Fede-ral (STF), em 21 de julho de 2009, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187. A relatoria da ação foi enca-minhada ao ministro Celso de Mello, que in-felizmente não a julgou a tempo de evitar as proibições da Marcha da Maconha em 2011.

Apesar da demora no julgamento, a ex-pectativa é de que a decisão do STF seja fa-vorável à liberdade de manifestação de pen-samento, pacificando o entendimento de que a Marcha da Maconha é perfeitamente legal. Trata-se de uma questão juridicamente sim-ples, e um acórdão da suprema corte brasi-leira em sentido contrário poderia levar o Brasil a ser julgado e condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que o Pacto de San Jose da Costa Rica garante ex-pressamente, no seu artigo 13, a liberdade de pensamento e expressão.

A decisão do STF, porém, não colocará fim na imaturidade democrática dos muitos juí-zes brasileiros, que creem ser possível calar as ruas com uma caneta. Feliz do povo que pode sair às ruas para contestar suas leis, seus governantes e seus juízes. Os que ainda não têm este direito precisam conquistá-lo. Na corte constitucional ou nas ruas. Canetas togadas ou bombas fardadas podem até calar alguns por algum tempo, mas não poderão calar a todos para sempre. F

madas para ocorrer no Brasil em maio foram proibidas por ordens judiciais fundamenta-das na premonição de que se faria apologia às drogas nestes eventos. Em São Paulo, o desembargador Teodomiro Méndez chegou a prever que os manifestantes usariam drogas na manifestação, como pode se ler em sua de-cisão, datada de 20 de maio de 2011: “O even-to que se quer coibir não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha”(sic). Para prevenir que o crime previsto ocorresse, Sua Excelência determinou que fossem oficia-dos, entre outros, a Polícia Militar para que adotasse “as medidas legais necessárias para coibir a manifestação”.

O que seu viu, porém, na avenida Pau-lista, em 21 de maio de 2011, não foram as fumaças dos cigarros de maconha, mas das bombas do Batalhão de Choque da Polícia Mi-litar de São Paulo. Muita gente acabou sendo brutalmente agredida por exercer seu direito constitucional de reunião e de manifestação de pensamento. Bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha para calar a multidão e obliterar seus cartazes, bem ao estilo das ditaduras, nas quais a única mani-festação de pensamento possível é a favorável à ordem vigente. A polícia alegou que a vio-lência foi necessária para cumprir a ordem judicial e combater a apologia às drogas.

Bombas contra crimes de opinião. E a po-lícia não viu qualquer excesso na ação.

Apologia ao crimeO delito de “apologia ao crime” surgiu

na legislação brasileira com o Código Penal de 1940, inspirado no código penal fascista italiano de 1930 (Codice Rocco). Sua redação no artigo 287 permaneceu inalterada até hoje: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Um crime claramente incompatível com a liberdade de manifestação de pensamento garantida pela Constituição de 1988 e que, portanto, sequer deveria ser considerado vigente em nosso ordenamento jurídico. Como o Supremo Tri-bunal Federal ainda não se manifestou sobre sua inconstitucionalidade, tem sido usado rotineiramente como fundamento para calar a boca de quem defende mudanças nas leis.

Mesmo juristas conservadores, porém, sempre interpretaram a “apologia ao crime” como um elogio público a um delito especí-fico ocorrido no passado, mas nunca como o elogio a um crime em tese e muito menos a um crime que poderá ser praticado – ou não – no futuro. Assim, seria apologia ao crime

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42 junho de 2011

por pedro alexandre sanches

Chico Buarque é o anti-Wilson Simonal. Essa tese não é o fio condutor do livro ensaístico Simonal – Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, do historiador Gustavo Alonso. Mas é a conclusão mais polêmica e perturbadora a

que chega o trabalho de um pesquisador que se afirma de esquerda, mas está disposto a contestar mitos e dogmas acalentados desde a ditadura cívico-militar brasileira, seja à direita ou à esquerda.

O livro é desdobramento da dissertação de mestrado que Gusta-vo apresentou em 2007 à Universidade Federal Fluminense (UFF). A demora de três anos da Record em editá-lo faz com que chegue simultaneamente à conclusão de sua tese de doutorado, sob o título Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. A linha seguida em ambos é análoga à do também historiador Paulo Cesar de Araújo, autor do livro Eu não sou cachorro, não (Record, 2002), que explicitava preconceitos de classe escondidos atrás da habitual trincheira de guerra aberta entre a sigla MPB e grupos artísticos rejeitados por ela.

O recorte de Alonso se estende à própria ditadura de 1964. Des-preocupado em culpabilizar ou inocentar Simonal das acusações de deduragem, que, a partir de 1971, dizimaram uma carreira até então gloriosa, o historiador quer mostrar que Simonal era um apoiador da ditadura, sim, mas estava longe de ser o único. Invertendo o ponto de vista habitual, encaixa seu personagem à evidência de que o arbítrio existiu não devido à passividade e à apatia da sociedade brasileira, mas porque a maioria dessa sociedade o apoiou, legitimou e aplaudiu.

Memórias como a de um Chico Buarque heroico, defensor de todos contra os militares, seriam uma construção (ou distorção) posterior, assim como a de um Wilson Simonal maquiavélico e solitário na defesa de um regime, contra todo um país de vítimas 100% inocentes. É onde Chico seria o anti-Simonal, embora isso nunca seja proferido.

Alonso, niteroiense nascido por acidente na cidade paulista de Aparecida, durante uma viagem do pai engenheiro e da mãe

O silêncio dos inocentesLivro do historiador Gustavo Alonso questiona mitos da MPB à época da ditadura militar e defende que o arbítrio existiu não devido à passividade e da sociedade brasileira, mas porque a maioria dessa sociedade o apoiou, legitimou e aplaudiu

nutricionista, desenvolve na entrevista abaixo a provocação, ques-tionando o papel de resistência atribuído à peça teatral Roda Viva (1968), de Chico, ou traçando semelhanças entre a hoje hegemôni-ca Tropicália e o movimento da pilantragem, proposto por Simonal e interrompido com sua derrocada.

Fórum – De que lugar ideológico você defende as hipóteses de seu livro?

Gustavo Alonso – Eu me defino como de esquerda. Ainda acho essas categorias válidas, mas não estou muito disposto a adubar, proferir ou louvar certas histórias que foram contadas e viraram mitologia, mesmo na esquerda. Acredito que esquerda e direita existem, sim, mas gosto de desestabilizá-las e distorcê-las um pouco. Se é que se pode meter outra questão nesta polêmica, prefiro o tropicalismo, à medida que ele é e não é a esquerda, e é e não é a direita. Talvez seja a esquerda da esquerda, não sei. É melhor que a crítica da esquerda venha da esquerda. A crítica de direita volta e meia cai num moralis-mo muito grande. Sou de 1980, da geração que não viveu o auge da MPB, os festivais, os anos 1960 e 1970. Não gosto da palavra declí-nio, mas a MPB já não era o que era antes, e minha geração teve que lidar com esse legado. Algumas pessoas dizem: “Ah, você não viveu”. Como se fosse necessário viver a escravidão para saber o que ela foi.

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43junho de 2011

Fórum – Você não viveu também o auge da ditadura. O que isso significa

para seu trabalho?

Gustavo – (Silêncio.) Boa pergunta. (Silêncio.) A questão da ditadu-ra é um pouco a mesma questão da MPB. Talvez ter vivido naquele perío do intenso impossibilite perceber certas coisas através da me-mória, até porque a memória pode construir noções que não corres-pondam tanto à realidade. Talvez o olhar desta geração possa abrir novas possibilidades de análise e entendimento. Acho que o fato de eu não ter vivido a ditadura não chega a ser uma desvantagem. Tam-bém não diria que é uma vantagem, não. É um outro olhar. Falando disso mais pessoalmente, minha família, principalmente minha mãe, tem a referência da resistência à ditadura muito forte dentro dela. No entanto, as questões da esquerda da época não fazem sentido nenhum para ela. Questão da terra? É a favor do grande produtor rural. Igualdade social? Não, não tem que ter igualdade para todo mundo. Encontrei o diploma de engenheiro do meu pai e vi que ele se formou em 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois do AI-5. Meu pai não tem lembranças positivas da ditadura, mas nem negati-vas. Perguntei: “Pai, você se lembra da promulgação do AI-5?”. “Não.” “Mas, pô, foi quatro dias depois, você não se recorda se teve confu-são?”. “Não, não teve.”

Fórum – Seu pai é o brasileiro médio de que você fala no livro, como

Simonal?

Gustavo – É, um pouco indiferente, mas que ao mesmo tempo teve sua vida construída durante o período, como grande parte da sociedade brasileira. Eu queria menos tentar repudiar isso, afinal, bem ou mal, sou fruto disso, e mais tentar entender. Como assim? Como se viveu a ditadura de forma normal? Como apenas 4 mil pessoas estiveram di-reta ou indiretamente envolvidas com a resistência? Que legitimidade tinha essa ditadura na sociedade? A que anseios autoritários ela res-pondeu? Isso me possibilitou uma percepção para além da memória, porque essa memória eu não tenho. Não lembro o que é Medici discur-sando, ou Simonal cantando, ou Caetano no festival. Tenho a lembran-ça de vídeos. O livro teve inspiração nos questionamentos que a gente anda tendo no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da UFF, com Daniel Aarão Reis, Denise Rollemberg, uma série de professores que vêm tentando repensar a ditadura, o apoio, a legitimidade, o consenso. Não para dizer que era válida, que é a leitura que a direita faz e muitas vezes a própria esquerda também faz dessa interpretação – ou seja, de que estamos relativizando a ditadura e, por isto, compactuamos com ela. Não é disso que se trata. Daniel Aarão, que é meu orientador, foi um dos caras que sequestraram o embaixador norte-americano. E é acusado por uma parte da própria academia de ser de direita.

Fórum – A mídia, nos últimos anos, tem a obsessão de querer determi-

nar se Simonal era culpado ou inocente. Vou martelar nessa tecla, até

porque sua posição parece diferente de todas as outras. Simonal era ino-

cente ou culpado?

Gustavo – (Respira fundo. Silêncio.) Também não tenho provas ca-bais de nada, não consegui achar. Eu diria: ele seria um cara que poderia dedurar. Mas quem ele iria dedurar especificamente, Chico, Caetano? Não precisaria da pessoa dele para fazer isso. Mas era um cara que, como a maior parte da sociedade brasileira, estava vivendo a ditadura como uma solução, e não como uma coisa a ser comba-tida. Vivia como expressão dos seus próprios desejos, autoritários, sim, antidemocráticos, sim, desenvolvimentistas e economicistas, sim. Tentar trabalhar com um Simonal ingênuo? Ele não era ingênuo em nenhum momento. Além de transformá-lo em vítima, o transfor-

ma em vítima como se fosse apolítico, como se não se envolvesse nas discussões. Pelo contrário, estava sempre afirmando coisas, dizendo. Uma parte da academia tem essa ideia de que as pessoas eram cala-das, reprimidas, que, se tivessem o direito de falar, falariam contra a ditadura. Mas o que a gente vê na música mais popular é que eles estão performando o regime, mais do que estão compactuando. É o regime que compactua com eles, é legal inverter.

Fórum – Sem entrar em questões maniqueístas de “inocente” e “culpa-

do”, você defende que Simonal não era um cara inocente.

Gustavo – Sim, não foi escolhido para bode expiatório à toa. Bode ex-piatório é bode. Que ele era favorável ao regime, é inegável – como a

maior parte da sociedade brasileira. Foi paro o México, serviu de em-baixador da música brasileira, do futebol, da sociedade. É a mesma situação do Pelé, mas o Pelé é mais gelatina. Roberto Carlos sempre foi gelatina, sempre fugiu dessas discussões. Simonal é o contrário do Roberto, nesse sentido. Ele metia o dedo, era chato, provocante, irônico, debochado. Tanto é que o tom do escárnio que se tinha com Simonal depois da queda era muito parecido com o tom que Simonal tinha antes com as esquerdas louvadoras do samba. O maior proble-ma é que inocentar o Simonal é continuar vendo o problema pela metade. É mais que isso, é tentar reintegrá-lo ao padrão da MPB sem problematizar a ditadura na MPB.

Fórum – Qual é sua leitura do papel de Chico Buarque, tido como um

herói que nos defendeu da ditadura?

Gustavo – Não estou aqui para dizer que essa imagem não tem vali-dade. Ao contrário, está provado que é uma boa imagem. Mas ele não nasceu resistente, não é resistente desde o bercinho. Isso fica muito nublado na historiografia e na academia. Porque é o público dele, o público universitário. Mas a imagem do Chico “Apesar de Você” (1970) é jogada para trás. É colocada lá, desde 1966, tem livros que insistem em falar que, em 1964, Chico juntou molotov em casa. Estou

O livro de Gustavo Alonso é o

desdobramento da dissertação

de mestrado que apresentou em

2007 à UFF

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pouco interessado nessa grande questão, quero entender que ima-gem a sociedade tinha dele, assim como de Simonal. Ele podia re-sistir, mas inicialmente a sociedade não comprava essa imagem. Po-deria juntar coquetel molotov, mas daí à sociedade percebê-lo como resistente depende de uma mediação. E tinha os tropicalistas falan-do que ele era avô musical. Roda Viva é constantemente supervalo-rizada na obra do Chico. A gente compactua com uma imagem que o próprio Chico quer construir dele, do literato, que daqui a pouco vai entrar na Academia Brasileira de Letras. Não se trata de afirmar o bom ou ruim romancista, como foi o debate com a Companhia das Letras, a Record, a Veja. O texto de Roda Viva é uma crítica à jovem guarda. A questão é que foi montada pelo Zé Celso Mar-tinez Corrêa. Aliás, é engraçado que não existe o livro Roda Viva. Foi lançado lá, em 1968, e depois nunca foi reeditado, e o próprio Chico considera uma peça me-nor, já falou em várias entrevis-tas que não gosta muito.

Fórum – Outra lebre que você le-

vanta é da tradução do livro Yellow Submarine, dos Beatles, pelo Nelson

Motta, que também nunca foi reeditada.

Gustavo – É aquela confusão entre pilantragem e Tropicália. Pepper-land virou Pilantrália e o chefão lá da terra virou Superbacana (título de uma canção tropicalista de Caetano). Nelson Motta misturou os dois, nesse espírito do colorido, da ironia, da brincadeira. Toda vez que levantei esta questão da semelhança, na própria academia, to-mei pau. Com exceção do Caetano, todas as pessoas que entrevistei, inclusive os pilantras, reagiram contra essa semelhança.

Fórum – É dessas convenções que todos repetem igual sem muito saber

por quê.

Gustavo – A memória que se constrói hoje sobre Simonal quer recolocá-lo na MPB, e, para recolocá-lo, não pode problematizar a MPB, o tropicalismo, a bossa nova. Tem que colocar ele de volta lá, então, tem que falar ele era um bom bossa-novista, um show-man maior que Roberto. Nesse ponto, Caetano acaba ficando muito parecido com a memória daqueles que ele combateu na esquerda mais tradicional. Ele, e os tropicalistas em geral, se coloca como um vanguardista, um visionário – e é de fato. Mas isso explica também, em parte, o esquecimento do Simonal. Até recentemente, era a me-mória fundada no dedo-duro, ou então não se falava do Simonal. E o tropicalismo ajudou, não a dizer que era dedo-duro, mas a silen-ciar, porque afirmar Simonal seria colocar ele como concorrente. Ele era Roberto Carlos com Jorge Ben e com Chacrinha, os três jun-tos, os três mitos dos anos 1960 para o tropicalismo, reunidos na mesma pessoa. Por que o tropicalismo não incorporou? É a mesma questão que levanto paro o Chico. Até a volta do exílio, a memória que se tinha dele era do cara muito bom por fazer músicas tradicio-nais, “o novo Noel Rosa”. Esteticamente ele sempre foi visto como um grande cara, desde o começo, eu não negaria isso, mas politi-camente ele não era visto como combativo. Chico era feito não só pelas esquerdas, no início dos anos 1970. Volta e meia era incorpo-rado pela direita, Jarbas Passarinho gostava dele. Chico agradava a uma determinada direita folclorista.

Fórum – E o texto de Roda Viva, na sua opinião, não era de resistência?

Gustavo – O texto, tenho certeza absoluta que não é, não era contra a ditadura. Não há nada ali, só há uma denúncia da indústria cultu-ral, do rock, da música importada. A gente acaba compactuando com a imagem que o Comando de Caça aos Comunistas deu para Roda Viva. O que o CCC via? Via uma peça subversiva. Aí dizemos: Roda Viva era uma peça subversiva, por isso foi reprimida, acuada, inva-dida pelo CCC. Essa imagem não se sustenta no texto. Tanto é que a montagem gerou problemas com o Chico Buarque. Zé Celso queria

problematizar a chicolatria, che-gou a propor um cartaz com os olhos de Chico boiando como se fosse num açougue, ironizando a chicolatria. Quem tinha esse perfil debochado, irônico, era o Zé Celso, mas isso é creditado ao Chico, para provar que ele estava resistindo lá em meia oito.

Fórum – O livro fala do exílio na

Itália como divisor de água entre

os dois Chicos.

Gustavo – Esse período na Itá-lia é interessante para repensar

essa metamorfose do Chico, mas não chega aqui no Brasil. Eu só sou-be pelo Luca Bacchini, um italiano que fez essa tese lá. Chico Buar-que foi vendido na Itália como um cantor de protesto. Era isso que os italianos queriam, ou a gravadora RCA achava que queriam – ele não fez nenhum sucesso lá. Achavam que assim iam fazer dos discos dele um sucesso, mas logo perceberam que só “A Banda” tocava lá.

Fórum – A RCA se baseou no que estava acontecendo no Brasil, que

existia uma ditadura e uma resistência contra ela?

Gustavo – É, uma sala secreta de uma gravadora percebeu isso. Nesse caso, a indústria cultural ajudou a forjar a imagem do Chi-co Buarque, o que é paradoxalíssimo. Ele acatou essa forma de ser vendido, mas parece que foi percebendo que era um desejo de um determinado grupo social no qual estava inserido. Depois dessa ex-periência italiana, ele meio toma a tocha do Geraldo Vandré. Não só ele, vários artistas perceberam que convinha cantar um som mais identificado às universidades, que sempre foi o público da MPB. É uma percepção que não veio desde o berço, se deu no cotidiano, nas disputas. Elis Regina fez isso. Chico percebeu logo, e, depois disso, virou este mito. A imagem que ele quer para si e a que a sociedade tem dele são muito coladas, muito simbióticas. Ficou tão forte que algumas problematizações que eram jogadas para outros artistas não eram jogadas paro Chico. Ele nunca foi questionado, por exem-plo, por gravar por uma grande multinacional. Era um compositor inicialmente de sambas, modernos, mas sambas. Como assim, se você está defendendo um ideário nacional, popular? Deveria ser um problema para pessoas que têm um ideal nacional-popular com co-res revolucionárias.

Fórum – Não é curioso que Chico passou a se negar a politizar sua obra

e hoje se recusa a dar entrevistas? Talvez já tenha se tocado disso tudo?

Gustavo – Tendo a achar que sim. Ele é atento a essas questões. Ao mesmo tempo, é refém dessa imagem de medalhão, que ele mesmo e os outros criaram para ele. Como Simonal também era refém da ima-gem que se criou dele. Por isso, acho interessante pensar os dois juntos.

A indústria cultural ajudou a forjar a imagem do Chico Buarque, o que é paradoxalíssimo. Ele aca-tou essa forma de ser vendido, mas parece que foi percebendo que era um desejo de um determinado grupo social no qual estava inserido. Depois des-sa experiência italiana, ele meio toma a tocha do Geraldo vandré

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Fórum – Chico é o anti-Simonal? Isso não é verbalizado, porque se não

existia o Simonal, não existia também o anti-Simonal. Mas existia.

Gustavo – Na memória coletiva ficou entronizado assim, o que foi extremamente lucrativo para ele, e ainda é. Sou um cara que pas-sou a ouvir Chico com 21 anos. Não gostava, sinceramente, achava música de velho. Minha geração tem a possibilidade de fugir do mito de Chico Buarque, o que não é de nenhuma forma desmerecê-lo, mas tentar compreender de que forma esse mito foi gestado. Isto me espanta: as pessoas, na universidade, têm mil teorias para explicar a complexidade do mundo, mas citou Chico Buarque, aca-bou a complexidade, chapou tudo, Chico resistiu e acabou, ponto. Comecei a pensar essas coisas naquela onda insuportável de Los Hermanos, em 2003. Adoro Los Hermanos, mas os losermaníacos são muito chatos, não consigo conversar com eles. São chicólatras nesse sentido, nada é comparável, nada chega a esse degrau. Ou-tra coisa que me levou a pensar essas questões foi aquele plebis-cito das armas, em 2005. Fiquei muito impressionado com o tom agressivo da sociedade. Eu era contra as armas, fui acusado de ser pró-Globo, de querer que a população fosse passiva. O tom era agressivo, ostensivo, meio Veja, principalmente da galera a favor da continuação das armas.

Fórum – É a mesma sociedade que quis uma ditadura algumas décadas

antes? É o que você diz no livro: a sociedade quis, permitiu, apoiou, e

hoje tem vergonha, e Simonal é um bom bode expiatório para deixar tudo

embaixo do tapete.

Gustavo – Sim, mas o mais interessante sobre o Simonal é a reabili-tação, a inocentação. Daqui a pouco, todo mundo vai estar inocente, ninguém apoiou. Já é meio assim.

Fórum – A ditadura existiu porque a maioria da sociedade queria?

Gustavo – Infelizmente. A própria noção de ditadura militar cor-robora isso, como se a ditadura tivesse sido militar. Os presidentes foram militares, mas todo o staff deles era civil. O Congresso fechou algumas vezes, mas havia Congresso. Mais que isso, havia eleições. Com meus familiares, esse é um ponto que sempre incomoda muito,

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quando pergunto: “Vem cá, você votava em quem?”. “Não, não vota-va.” “Como não votava? Você era servidor público, como não votava?”. “Não, não tinha eleição, não.” “Não, calma aí, tinha.”. Não conseguem responder. Simplesmente esqueceram que iam votar. Eu estava pesquisando os festejos de 1972, sobre os 150 anos da In-dependência do Brasil. Foram muitas festas, o corpo de Dom Pedro I veio de Portugal transladado para ficar no Museu do Ipiranga, visitou todas as capitais, e em todas as capitais teve uma multidão receben-do o corpo. Teve as Olimpíadas do Exército, um mundialito de futebol, os filmes, Independência ou Morte. Era o auge do Milagre Econômico, antes da crise de 1973. Pergunto para as pessoas que viveram: “Não, quem estava lá na rua era obrigado, era estudante que à escola tinha que ir”. Pelos jornais da época, não era bem assim. É triste reconhecer isso, mas me parece melhor do que ficar simplesmente com a noção de que a sociedade foi vítima, não tinha nada a ver. Quem não sabia que as pessoas eram torturadas? Isso não dá. Esse é o problema da ima-gem inflada do Pasquim e do Chico, parece que estavam falando aquilo que a sociedade falaria se não estivesse calada. Não, quando se incita a sociedade a falar, ela performa aquilo que o regime vai ser no futuro.

Fórum – Ou seja, a sociedade faz a ditadura, e não o inverso.

Gustavo – É, e é uma ditadura civil-militar. E essa imagem dos milita-res como salvadores da pátria não foi forjada ali, vem desde a Guerra do Paraguai, nos vários golpes preventivos que os militares deram no século XX, todos dentro desse imaginário do exército como repre-sentação da sociedade. Não tenho nenhum apego ao exército, mas a sociedade se vê representada nele. É o Bope. Então, havia os resis-tentes, que eram pouquíssimos, e, do outro lado, as velhas senhoras que apoiavam o regime, o CCC, a Tradição, Família e Propriedade? Não é bem assim. O apoio ao regime era muito maior que esses es-pectros tradicionalmente conservadores. Outra coisa que ajudou muito a pensar a ditadura, me entenda cor-retamente, foi o governo do Lula. Não o governo em si, que é total-mente diferente, mas me chamaram a atenção os 80% de aprovação do Lula. É igual ao índice que o Medici tinha. A sociedade não era passiva, nem o Simonal era passivo ou ingênuo. F

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46 junho de 2011

por sucena shkrada resk

Não há como negar que a comemo-ração de duas décadas da Confe-rência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, também conhecida por

Cúpula da Terra, deverá ter um grande sig-nificado simbólico durante a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desen-volvimento Sustentável – Rio+20, entre 4 e 6 de junho de 2012. Até hoje, o evento é consi-derado o principal marco histórico socioam-biental, mas o que muitos temem nos basti-dores da preparação da futura conferência é a possibilidade de o evento se restringir a um simples balanço e propostas no papel, já que não tem caráter deliberativo, não re-presentando avanços significativos na busca pela sustentabilidade no planeta.

Organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais e empresariais já se mobilizam para pressionar e propor pautas de políticas públicas aos governos, a fim de que a Rio+20 possa resultar em ações efeti-vas. Para isso, está em curso a elaboração de uma agenda de eventos extraoficiais que an-tecederão o encontro oficial. No centro das discussões, está o tema “Economia Verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da extrema pobreza”.

Nesse sentido, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) che-gou a lançar, em fevereiro deste ano, o relató-rio “Rumo a uma Economia Verde: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável e a Er-radicação da Pobreza”. O documento sinaliza que, para concretizar a transição para uma “economia verde”, seria necessário um investi-mento de 2% do Produto Interno Bruto Global (PIB) – cerca de US$ 1,3 trilhão – em dez seto-res: agricultura, edificações, energia, pesca, sil-vicultura, indústria, turismo, transporte, água

Rumo à Rio+20: sociedade quer mais que discursos sociedade se mobiliza para que a

conferência, que será realizada em junho de 2012, no Rio de Janeiro, seja muito mais que um balanço da ECO-92 e priorize ações efetivas

e gestão de resíduos. Mas diretrizes sobre essa pauta ainda estão longe de serem definidas.

A Rio+20 também será palco para se ava-liar os resultados práticos de importantes documentos gestados a partir da ECO-92, como a Agenda 21, as Convenções sobre Mu-dança do Clima e a Diversidade Biológica, a Declaração de Princípios sobre as Florestas, de Combate à Desertificação, entre outros que foram elaborados posteriormente, como a Carta da Terra, em 2000.

Mobilização da sociedade e o FsM 2012

No Brasil, foi formado o Comitê Facili-tador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20. Segundo Aron Belinky, coordenador de Processos Internacionais do Instituto Vi-tae Civilis, que representa o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Fboms) na Coordenação Nacional do Comitê, o papel do grupo – atualmente formado por 14 redes – é trazer mais participantes para o debate até o ano que vem. “Nossas ações são elaboradas por meio de grupos de trabalhos. Um deles é o de formação e mobilização, que deverá levar os temas em discussão para a sociedade e cui-dará da organização do evento paralelo pre-viamente chamado de Cúpula dos Povos, que terá a participação da sociedade civil”, pontua.

O encontro popular, segundo ele, deverá começar antes, provavelmente no dia 21 de maio de 2012. “Além de representantes do Brasil, outros, do Canadá, França, Japão, e de alguns países da América Latina já estão envolvidos nessas ações”, adianta o ambien-talista. “Na Cúpula dos Povos, queremos que seja garantido que a economia verde seja avaliada como um interessante indutor de sustentabilidade, desde que abranja as ques-

tões sociais, além das ambientais, e tenha sempre presente a questão da qualidade de vida dos cidadãos, além da ecoeficiência.”

Uma outra frente da sociedade civil rumo à Rio+20 se dará no âmbito do Fórum Social Mundial (FSM). A decisão foi tomada ao final da edição deste ano, em Dacar, no Senegal. De acordo com o empresário e ativista da área de responsabilidade social, Oded Grajew, que integra o Comitê Internacional do FSM – que ocorrerá entre 27 e 31 de janeiro de 2012 (data sujeita a alterações) –, a edição internacional descentralizada do evento terá como principal pauta a temática ambiental, voltada à conferência.

“O FSM não representa as elites econômi-cas e exigirá uma demanda de mobilização da sociedade sobre outro modelo de desen-volvimento. Trataremos de propostas de mu-dança da matriz energética para a renovável, da questão nuclear, das hidrelétricas em con-fronto com as populações indígenas, do mo-delo de consumo e resíduos orgânicos, entre outros”, aponta Grajew. Segundo ele, a meta é propor políticas públicas ao governo e in-formações sobre indicadores quanto à grave situação do modelo atual de desenvolvimen-to, que leva ao esgotamento de recursos na-turais e ao aumento das desigualdades.

“Como 2012 será também um ano de eleições em alguns países importantes como

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EUA, Alemanha e França, isso prejudica a to-mada de decisões. Talvez essas nações não queiram assumir alguns compromissos, que podem comprometer os resultados nas ur-nas”, alerta. Ele reforça que, no contexto da Economia Verde, as discussões do FSM per-manecerão voltadas a questões sociais, ao combate às desigualdades.

No campo empresarial, Grajew informa que algumas iniciativas em andamento são do Instituto Ethos, que lançou, em fevereiro deste ano, a Plataforma por uma Economia Inclusiva, Verde e Responsável. “A proposta é que possa ser apresentada também uma agenda de sustentabilidade urbana para os candidatos às eleições municipais brasileiras, no ano que vem. O projeto será amadurecido na Conferência Ethos, em agosto deste ano.”

Governança e desenvolvimento sustentável

Um tema complexo que estará na Confe-rência, conforme Belinky, diz respeito à go-vernança em um cenário de desenvolvimen-to sustentável. “Este tema está sendo pouco debatido oficial e extraoficialmente. Deve ser visto não como uma discussão sobre bu-rocracia, mas como uma condição necessária para encaminhar as decisões e recomenda-ções que se tomem na conferência”, analisa.

Belinky afirma que, se por um lado, hoje se enxerga o desenvolvimento sustentável no conjunto, as instituições internacionais e internas a cada país são estanques. “Umas, atuam no campo econômico, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o FMI e a Organização Mundial do Comér-

cio (OMC), que não se conectam nas dimen-sões sociais e ambientais. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Trabalho (OIT), que têm algum poder político, estão desconectadas do lado ambiental. A ideia é integrá-las à questão do desenvolvimento sustentável.”

No caso da questão ambiental, as discus-sões levam à constatação de que não existe nenhuma organização internacional com real poder regulatório. “O Programa das Na-ções Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) é um dos com menor orçamento na ONU e depende de adesões voluntárias. Não é es-sencial dentro do sistema, participa quem quer. Pode encaminhar, no máximo, estudos, recomendações, mas sem poder regulatório”.

Como primeiro passo, uma das propos-tas que serão defendidas pela sociedade civil é que haja uma resolução para se criar uma agência ambiental internacional, aprimoran-do o funcionamento do Pnuma ou por meio de sua união com outras agências. “O gover-

no brasileiro, inclusive, tem defendido uma ‘agência guarda-chuva’, que tenha sob ela vá-rias agências internacionais do sistema ONU.” As entidades, segundo Belinky, enxergam que existe uma necessidade tanto ética quanto política e econômica de tirar as pessoas da pobreza. “Isso não significa que deverão ter padrão de consumo insustentável, como o norte-americano e o europeu. Não é objetivo estender a sociedade perdulária”, adverte.

As expectativas sobre os resultados da Rio+20 caminham na direção de dois ex-tremos. “Será uma grande oportunidade ou uma nulidade. A conferência pode fazer uma convergência, desatar nós ou, então, se não se dispuser, será um ponto de jo-gar conversa fora. Mas, de qualquer forma, a mobilização de propostas da sociedade civil será um avanço. Ou os governos são capazes de mostrar relevância no mundo contemporâneo ou são incapazes de acom-panhar o ritmo que a sociedade avança, se tornando um empecilho.” F

Fique por dentro da Rio+20Agenda preparatória da Rio+20 - http://prezi.com/tpxnhnc3qetb/rio20-roadmap/ site oficial da Rio+20 - http://www.uncsd2012.org/rio20/O Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20 promoverá em 2 de julho, no Rio de Janeiro,a primeira atividade preparatória da Cúpula dos Povos, e está convocando a participação de organizações da sociedade civil e movimentos sociais e populares brasileiros e mundiais. Veja mais em www.Rio2012.org.br.Diálogos Nacionais Rumo à Rio+20 - http://vitaecivilis.org/economiaverde/vitae Civilis - www.vitaecivilis.org.br/CEBDs - www.cebds.org.br/Fórum social Mundial - http://www.forumsocialmundial.org.br/instituto Ethos - www.ethos.org.br/

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48 junho de 2011

imagens revolucionárias

RevoluçõesMichael Löwy (org.)

Boitempo Editorial, 552 págs.

“As fotografias têm uma carga utópica, um potencial subversivo.” A defini-ção é do sociólogo Michael Löwy, no seminário Revoluções – uma política do sensível, realizado em São Paulo, que aconteceu nos dias 20 e 21 de maio. O evento reuniu pensadores que debateram o que é ou não uma revolução. Os movimentos que vêm ocorrendo no mundo árabe, por exemplo, podem ser chamados de revolução?

Löwy considera que uma revolução acontece quando “as classes subalter-nas conseguem quebrar a opressão”. O mundo já conheceu vários momentos desse tipo, quando os excluídos transformaram-se em protagonistas de sua própria história. Revoluções, organizado por Löwy, reúne um registro dessas histórias. Mas não contado por palavras, e sim por imagens. O livro traz uma coletânea de fotografias tiradas nesses momentos que agitaram as estruturas que pareciam imutáveis. Povo, soldados e, claro, os líderes compõem grande parte dos cenários cujo palco era as ruas. Emiliano Zapata, Vladimir Lênin, Leon Trotski, Ernesto Che Guevara e Rosa Luxemburgo são alguns dos diri-gentes, que como ressalta Löwy são tidos quase sempre como “os vencidos”. Mas, citando Walter Benjamim, ele destaca a força messiânica dessas pessoas. Vencidos ou mártires, eles são fonte de inspiração para as gerações seguintes.

Além das imagens, a obra traz breves textos com a cronologia dos movi-mentos escolhidos. São eles: a Comuna de Paris, a Revolução Mexicana de 1910-1920, as duas Revoluções Russas de 1905 e 1917, as Revoluções Ale-mã e Húngara, de 1919, a Revolução e a Guerra Civil Espanhola (1936-1937), as Revoluções Chinesas e a Revolução Cubana. Daí o leitor poderá perguntar, e o Brasil? Para Löwy, no País não aconteceram revoluções, no sentido de os oprimidos terem se emancipado. No entanto, o livro traz um posfácio com movimentos brasileiros que, de certa forma, tiveram um espírito revolucio-nário. Entre eles, há uma fotografia do “governo revolucionário” de Natal, em 1935, que reuniu militares, militantes comunistas, trabalhadores e sindica-listas. O grupo ficou duas semanas no poder, mas teve tempo de decretar a gratuidade dos transportes públicos.

Revoluções é daqueles livros para guardar e mostrar para as gerações futuras. Quem sabe daqui a alguns anos não seja necessário mais um volume, se é que as novas revoluções estão chegando. Afinal, como diz Löwy, num dos capítulos da obra destinado a eventos que marcaram a memória coletiva dos povos nos últimos 30 anos, como maio de 1968, a história não terminou. (Adriana Delorenzo)

O corpo na cidade Em seu ensaio Carne e pedra, o historiador e sociólogo Richard Sennett,

professor da London School of Economics e da Universidade de Nova Iorque, resgata, esmiúça e analisa as interligações entre corpo humano – seus sen-tidos e privações, expressões, sensações... – e arquitetura, urbanismo e vida cotidiana, em diferentes cidades e momentos históricos. É “uma história da cidade contada por meio da experiência corporal do povo”, mas “[...] é mais do que um catálogo histórico das sensações físicas no espaço urbano”, como diz o autor, que há mais de 15 anos começou a investigar, com seu amigo Michel Foucault, a história do corpo.

História e estudo em que, entre muitos aspectos, Sennett apresenta os re-tratos dos vínculos entre o povo e o espaço urbano nas construções e vias; dos projetos que fazem, e desfazem, a união da diversidade em lugares públi-cos; da fragmentação metropolitana em territórios econômicos; da atenção ou da indiferença do “corpo cívico”, andando a pé pela pólis ou deslocando-se de carro pela moderna metrópole ou em rodovias, veloz, reforçando a “sensação de desconexão com o espaço”. São, como sempre, mas de outra forma, pro-blemáticas sociais e individuais, estéticas, científicas, espaciais.

Na primeira parte, os “poderes da voz e dos olhos” apresentam o modus vivendi e a nudez dos cidadãos da Atenas de Péricles – e de tempos de Guerra do Peloponeso, de conflitos entre homens e mulheres, mas também do apo-geu ateniense; a Roma de Adriano, que concluiu a construção do Panteão, e também os primeiros cristãos romanos.

A seguir, com a Paris de Jean de Chelles e de Humbert de Romans estão, por exemplo, as crenças cristãs dando forma ao desenho urbano e aos refú-gios dos “espremidos” pela então nova economia de mercado, seguidas pela sina do povo judeu na Veneza renascentista

Na terceira parte, vê-se os novos rumos tomados com os também novos conhecimentos científicos-anatômicos e a “revolução” de Harvey, no século XVII, bem como com a Paris de Boullée e a Londres de E.M. Forster – e o triunfo individual. Por fim, a Nova Iorque de hoje, multicultural, é o lócus motivador das observações de Sennett sobre povo x cidade.

Mas qualquer tentativa de descrever Carne e Pedra é ínfima dada a com-plexidade da experiência dos corpos nas cidades, desenredada, no entanto, pelas múltiplas conexões que Richard Sennett esta-belece. A obra faz, no míni-mo, com que o leitor, pas-sivo ou ativo na e/ou para com a sua cidade, jamais sinta a sua relação com os espaços urbanos da mesma forma. (Denise Gomide)

Carne e pedra – O corpo e a cidade na civilização ocidentalRichard sennett

BestBolso, 417 págs.

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49junho de 2011

João Gilberto fAz 80 Anos AgorA eM junho. Seria uma ótima oportunidade para a gravadora EMI relançar os seus três primei-ros discos, imprescindíveis a qualquer mortal que deseje conhecer a música popular con-temporânea do mundo. Seria, mas não será. Uma pendenga judicial envolvendo o artista e o selo, que se arrasta por anos e anos, vai continuar privando o Brasil e o mundo de três das obras mais importantes do século XX.

O fato é que, há alguns anos, a gravadora lançou os três discos (ou pelo menos parte deles) em um só, com as faixas emboladas em outra ordem e, o que foi pior, com a adi-ção de um efeito de eco insuportável, que, segundo João e suas testemunhas, adulte-raram a obra. É bom lembrar que as teste-munhas do artista são dois do primeiro time da nossa música, Paulo Jobim, filho de Tom e que participou das obras, e Caetano Veloso.

Não é preciso, no entanto, ser grande expert em nada para perceber o desastre que é a tal compilação chamada ironicamente de João Gilberto, o Mito. As canções foram todas mis-turadas aleatoriamente, sem nenhuma refe-rência às obras originais, o tal do eco irritante realmente existe, a capa é outro desastre e, como se não bastasse, foi lançada em 1992, mais de 30 anos depois dos lançamentos ori-ginais que nunca haviam sido colocados no mercado em CD.

É claro que esse não é um fato isolado e é também claro que pode parecer chatice para quem consome música apenas como mero entretenimento, o que não é nenhum crime. Mas o fato é que, queiram ou não, a canção popular é mais do que isso, e assim deveria

ser tratada. E o caso é mais simbólico ainda por se tratar do nosso cantor popular mais im-portante de todos os tempos (gostem ou não, João é o único que tem o privilégio de ter divi-dido a forma de interpretar a canção brasileira em duas. Uma, antes dele e outra, depois).

A mesma multinacional sofre um processo idêntico movido pela banda Pink Floyd, pois também pegou seus discos da década de 1970, todos conceituais, e dividiu em pica-dinhos feito um salame para ser vendido no varejo. O fato é que muitos outros artistas importantes concordam com este tipo de tra-tamento. Os próprios Beatles, donos de uma das mais caras e bem realizadas discografias do planeta, realizaram coletâneas e compila-ções, organizadas com acuidade, com a ge-rência e monitoramento dos próprios. O resul-tado, nem é preciso dizer, ficou longe do lixo que normalmente se coloca no mercado.

No final das contas, para o ouvinte apaixona-do, que quer se aprofundar e conhecer a obra, só tem um jeito. Os discos Chega de saudade, de 1959; O amor, o sorriso e a flor, de 1960, e João Gilberto, de 1961, estão completos, com capa e encarte, espalhados em vários blogues pela rede para download gratuito, o que a gravadora considera ilegal. Esta mesma gravadora que lançou, de forma “legal”, em 1992, a desastrosa coletânea O Mito, contes-tada pelo próprio autor.

o conhecIdo e cultuAdo selo de World MusIc PutAMAyo finalmente passa a ser dis-tribuído no Brasil pela MCD. A boa notícia já rendeu frutos e alguns lançamentos. Os cin-co primeiros foram España, que traz artistas contemporâneos de Madri e Barcelona tocan-do flamenco, rumba catalã e pop; Yoga, com músicas para meditação; Brazilian Café, com samba, bossa nova e jazz brasileiro; Bossa Nova Around the World, uma coletânea do ritmo brasileiro executado nas diversas partes do mundo, e Paris, que tem interpretações de artistas atuais para a chanson.

O selo Putamayo, nome dado por seu dono, Dan Storper, em homenagem a uma localida-de da Colômbia, tem a peculiaridade de lançar apenas compilações. A ideia surgiu quando Storper, empresário bem-sucedido que ven-dia produtos típicos da América Latina, entrou numa de suas lojas e se incomodou com o rock pesado que tocava. A partir disso, come-çou a cuidar da programação musical de seus pontos de venda. Daí para o selo foi um pulo.

O negócio deu tão certo que o empresário passou a comercializar apenas os discos, dei-xando de lado os ponchos, bolsas e artesana-tos. Seus títulos têm um jeito muito único. São escolhidos com base em de temas que nem

sempre são exatamente musicais. Ele conse-gue o licenciamento dos fonogramas e lança, por exemplo, músicas com apelos esotéricos, músicas de regiões que produzem vinho, mú-sicas de festas africanas, reggae africano, música acústica da África, da França, dance music turca e por aí vai.

O que diferencia o selo dos demais é a acui-dade com que são tratados os lançamentos. Sem a menor intenção didática, Storper con-segue montar coletâneas de bom gosto, com excelente qualidade sonora, capas com belo padrão gráfico e informação farta e, o que é mais importante, com música fluida, diverti-da. As suas escolhas são, ao mesmo tempo, acessíveis e de bom gosto.

Cada um dos lançamentos, tal qual um pe-queno guia turístico, traz um comentário sobre cada artista e a sua importância no país de

origem. O disco Paris, por exemplo, reúne vá-rios artistas da cena atual francesa, que, aqui e acolá, regravaram clássicos das décadas de 1950 e 1960. Entre muitos destaques, vale chamar atenção para a primeira dama Carla Bruni e o jovem Thomas Fersen.

Dan Storper, com a sua coleção de mais de 200 lançamentos, funciona como aquele amigo bem informado, viajado e que adora compartilhar o que ouve mundo afora. Tem, assim como todos nós, a sua visão peculiar. Elabora a sua leitura e a entrega redondinha ao ouvinte. Através dela, enxergamos a mú-sica do mundo, num primeiro momento pela sua lente. A partir disso, com um pouquinho de espírito investigativo, ganhamos o nosso lugar no voo.

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50 junho de 2011

Igrejas e mais igrejasNão só o patrão do Tubaína, mas também

seus colegas de trabalho e os próprios fregueses do bar em que trabalhava, na

Vila Madalena, ficaram surpresos quando ele pediu demissão. Ele tinha uma família pra sustentar, gostava do trabalho de ajudante de chapeiro, encarregado também da limpe-za do bar, amigo de todos ali.

Mas ele tinha planos que nunca revelara a ninguém. Queria ganhar dinheiro, e aquele era o momento da revelação: resolveu abrir uma igreja na garagem de sua própria casa, na periferia da zona sul de São Paulo. Era um cômodo grande, feito por alguém que provavelmente pretendia abrir ali uma casa comercial. E a garagem do Tubaína, que nem tinha carro, virou igreja.

Duas semanas depois, apareceu no bar para contar alegre que já tinha mais de 40 fiéis. Seus colegas fizeram as contas e vi-ram que era um negócio lucrativo, pois 40 fiéis, se ganhassem apenas salário mínimo, pagando o dízimo, renderiam ao novo pas-tor Tubaína quatro salários mínimos. E o negócio tendia a crescer. Se em duas sema-nas já eram tantos...

Um garçom não se con-formava:

– Tubaína, você nunca estudou a Bíblia, não fez curso de pastor nem nada, como faz suas pregações?

– Vou a uma Igreja Uni-versal de manhã, escuto o pastor com atenção e à noite eu repito tudo, contou.

Mais duas semanas se passaram e apareceu o Tu-baína de novo no bar, agora insinuando que aceitaria o emprego de volta. É que a clientela – opa, o núme-ro de fiéis – começou a crescer, e um dia apareceu na porta da sua casa uma Kombi e dela desceram vários homenzarrões mal-encarados, que lhe deram um ultimato: ou ele fecha-va sua igreja naquele dia ou poriam fogo nela com ele dentro.

Não disseram de onde vinham, mas vi-zinhos contaram que eram ligados ao pas-tor de uma igreja um pouco mais antiga, que progredia ali perto. Não permitiriam a concorrência.

Já pensei em morar na periferia de São Paulo, principalmente na zona leste, onde tenho muitos amigos, sabendo que isso sig-nificaria o abandono do convívio com os amigos que moram do outro lado da cidade e dificilmente iriam me visitar, e eu também teria preguiça de atravessar a cidade para encontrá-los, ainda mais com o trânsito horroroso que a cada dia piora na capital. Outra coisa contra é justamente o crescente número de igrejas dessas inventadas a cada dia. Na periferia, há muitas. Que seus adep-tos tenham a religião que queiram, é proble-ma deles. O problema dos outros é que eles são intransigentes, chatos e ficam tentando converter a gente.

Um exemplo aconteceu com meu amigo Zezo, que se separou da mulher e foi morar numa casa perto de uma igreja. No primei-ro fim de semana que estava lá, chegou em

casa por volta das 5 da manhã, de sábado para domingo. Lá pelas 7 horas começaram a tocar a campainha, tentou continuar na cama, fingindo não ouvir, mas continuaram, insistiram, até que decidiu se levantar e ver se havia acontecido alguma tragédia que jus-tificasse aquela insistência.

Abriu a porta e deu de cara com duas mulheres meio jovens, de cabelos compri-dos e saias chegando aos pés. Traziam bí-blias nas mãos.

– Quer encontrar Jesus? – perguntou uma delas.

E ouviu uns palavrões como resposta.No domingo seguinte, novamente, às 7

horas da manhã, depois do Zezo ter dormido pouco mais de uma hora, começa a campai-nha a tocar de novo. E insiste, insiste... “Será que são elas de novo?”, pensou o Zezo. Eram.

– Irmão, você tem que encontrar Jesus.Sobraram palavrões não só pra elas, mas

também para Jesus, cujo santo nome estava sendo usado por um pastor que impunha metas às fiéis, que, além de pagar o dízimo, tinham que achar outros contribuintes.

No terceiro domingo, quando a campainha começou a tocar de novo, o Zezo se levan-tou decidido:

– Hoje eu ponho essas mulheres pra correr.

Abriu a porta pe-ladinho da silva, com as chamadas partes pudendas não só ex-postas, mas exibidas chacoalhando em di-reção a elas.

Aí, sim, deram um pique digno de ga-nhar uma corrida de cem metros rasos, e não voltaram mais. F

MouzAr benedIto, mineiro de Nova

Resende, é geógrafo, jornalista e também

sócio fundador da Sociedade dos

Observadores de Saci (Sosaci).

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51junho de 2011

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