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Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2): 173-198 (2009) Fotografando a pobreza turística Bianca Freire-Medeiros 1 Palloma Menezes 2 Resumo Territórios pobres e segregados, convertidos em destino turístico no Rio de Janeiro, Joanesburgo e Cidade do Cabo, são tomados como referências empíricas neste artigo cujo objetivo mais amplo é discutir de que maneira a fotografia colabora na produção, circu- lação e consumo da pobreza turística. Oferece uma apreciação das interfaces, presentes desde a origem, entre a fotografia e a expe- riência turística, além de uma breve genealogia da construção da pobreza e seus espaços como objeto da curiosidade das elites. Cinco imagens que fazem parte do acervo foto-etnográfico das pesquisadoras servem como plataforma para se refletir sobre as complicadas articulações entre dinheiro e emoções, lazer e miséria, próprias do turismo de pobreza. Encerra compartilhando algumas ponderações sobre os dilemas éticos enfrentados pelos turistas e pelas pesquisadoras diante da tríade turismo-pobreza-fotografia. Palavras-chave: Turismo; Pobreza; Fotografia; Favela; África do Sul. 1 Mestre em Sociologia (IUPERJ) e Doutora em História e Teoria da Arte e da Arqui- tetura (Binghamton University, SUNY). Pesquisadora do CPDOC/FGV. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Sociologia (IUPERJ) e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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Territórios pobres e segregados, convertidos em destino turístico no Rio de Janeiro, Joanesburgo e Cidade do Cabo, são tomados como referências empíricas neste artigo cujo objetivo mais amplo é discutir de que maneira a fotografia colabora na produção, circulação e consumo da pobreza turística. Oferece uma apreciação das interfaces, presentes desde a origem, entre a fotografia e a experiência turística, além de uma breve genealogia da construção da pobreza e seus espaços como objeto da curiosidade das elites. Cinco imagens que fazem parte do acervo foto-etnográfico das pesquisadoras servem como plataforma para se refletir sobre as complicadas articulações entre dinheiro e emoções, lazer e miséria, próprias do turismo de pobreza. Encerra compartilhando algumas ponderações sobre os dilemas éticos enfrentados pelos turistas e pelas pesquisadoras diante da tríade turismo-pobreza-fotografia.

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Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2): 173-198 (2009)

Fotografando a pobreza turística Bianca Freire-Medeiros1

Palloma Menezes2

Resumo Territórios pobres e segregados, convertidos em destino turístico no Rio de Janeiro, Joanesburgo e Cidade do Cabo, são tomados como referências empíricas neste artigo cujo objetivo mais amplo é discutir de que maneira a fotografia colabora na produção, circu-lação e consumo da pobreza turística. Oferece uma apreciação das interfaces, presentes desde a origem, entre a fotografia e a expe-riência turística, além de uma breve genealogia da construção da pobreza e seus espaços como objeto da curiosidade das elites. Cinco imagens que fazem parte do acervo foto-etnográfico das pesquisadoras servem como plataforma para se refletir sobre as complicadas articulações entre dinheiro e emoções, lazer e miséria, próprias do turismo de pobreza. Encerra compartilhando algumas ponderações sobre os dilemas éticos enfrentados pelos turistas e pelas pesquisadoras diante da tríade turismo-pobreza-fotografia. Palavras-chave: Turismo; Pobreza; Fotografia; Favela; África do Sul.

1 Mestre em Sociologia (IUPERJ) e Doutora em História e Teoria da Arte e da Arqui-

tetura (Binghamton University, SUNY). Pesquisadora do CPDOC/FGV. E-mail: [email protected]

2 Mestranda em Sociologia (IUPERJ) e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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Abstract Impoverished and segregated territories which are converted into tourist attractions in Rio de Janeiro, Johannesburg and Cape Town are taken as empirical references in this article which aims to discuss the role played by photography in the production, circulation and consumption of the touristic poverty. An overview of the interfaces between photography and the tourist experience is given, as well as a genealogy of the elaboration of poverty and its spaces as objects of the elites‟ curiosity. Five images from the authors‟ photoethnographic archive are taken as platforms for an examination of the complex articulations between money and emotions, leisure and misery, which are a characteristic of the poverty tourism. The article concludes with some thoughts on tourism activities and photography on impoverished areas. Keywords: Tourism; Poverty; Photography; Favela; South Africa.

„Outros‟ sofrem, „eles‟ fotografam, „nós‟ olhamos. Quem sofre, quem fotografa e quem olha? Com que consequências políticas e éticas? Quais são as condições de possibilidade para a emergência, circulação e consumo dessa „dor fotografada‟? Que emoções e sentimentos derivam da contemplação midiatizada do sofrimento alheio? Susan Sontag, em Diante da Dor dos Outros (2003), coloca-se o desafio de refletir sobre essas delicadas questões.

Do amplo espectro de dores e misérias passíveis de serem cap-turadas pela objetiva e colocadas em circulação pela mídia de modo geral, Sontag fecha o foco nas imagens da guerra e se detém nas situações em

que há uma distância física muitas vezes também temporal entre „outros‟ que sofrem e „nós‟ que olhamos. Este „nós‟, é importante lembrar, não se confunde com „eles‟ que fotografam e atuam como intermediários entre a produção midiática do sofrimento, por assim dizer, e seu consumo. É nesse sentido que Sontag (2003:12) afirma que “as fotos são meios de tornar „real‟ (ou „mais real‟) assuntos que as

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pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar”.

Mais do que respostas, Sontag nos oferece um desfile de situações e personagens, tanto históricos quanto literários, que fizeram da imagem da dor de alguém arte, notícia ou negócio. No desenrolar deste desfile, compõe-se paralelamente um acervo de provocações intelectuais e éticas que a autora dirige a si mesma e ao leitor. Este nosso artigo deve ser lido como apenas uma das inúmeras reações possíveis às provocações de Sontag. Uma reação que redireciona o foco das imagens da guerra para as imagens da pobreza, em particular para as imagens fotográficas do que Freire-Medeiros (2007a) chama de “pobreza turística” – uma pobreza emoldurada, anunciada, vendida e consumida com um valor monetário definido no mercado turístico. E se o interesse de Sontag recai principal-mente sobre os casos em que o consumo de fotografias da dor alheia substitui o contato físico com os que sofrem, o nosso interesse se volta para situações em que a fotografia é prova da proximidade entre quem sofre e quem fotografa.

A seção que se segue oferece uma apreciação das interfaces, pre-sentes desde a origem, entre a fotografia e a experiência turística. Na seção três, fazemos uma breve genealogia da construção da pobreza e seus espaços como objeto da curiosidade das elites para, em seguida, discutirmos algumas imagens que fazem parte do acervo foto-etnográ-fico coletado em três localidades sobre as quais as pesquisadoras vêm refletindo de maneira sistemática3: Rocinha, a „favela turística‟ por exce-lência, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro; Soweto e Cape Flats, territórios estigmatizados que, com o fim do Apartheid4, tornaram-se

3 Este artigo deriva das reflexões contidas nos projetos de pesquisa “Touring Poverty

in Buenos Aires, Johannesburg and Rio de Janeiro” (financiado pela Foundation for Urban and Regional Studies – FURS – desde setembro de 2007) e “A Construção da Favela Carioca como Destino Turístico” (financiado pelo CNPq desde junho de 2006). Ambos os projetos são coordenados por Bianca Freire-Medeiros e contaram, desde o início, com a participação de Palloma Menezes, primeiro na qualidade de bolsita PIBIC/CNPq e hoje como interlocutora privilegiada. As autoras agradecem a Juliana Farias e Fernanda Nunes, pesquisadoras especialmente sensíveis para a análise de imagens.

4 Regime de discriminação racial implementado pelo Partido Nacional na África do Sul entre 1948 e 1990. A catalogação racial de toda criança recém-nascida, a Lei de

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destinos turísticos dos mais visitados da África do Sul. Encerramos compartilhando algumas ponderações sobre os dilemas éticos enfren-tados pelos turistas – e também pelas pesquisadoras – diante da tríade turismo-pobreza-fotografia.

Viajar e fotografar – ontem e hoje

A invenção da câmera e seu aprimoramento, assim como a produ-ção em massa de cartões postais, coincidiram com a democratização da viagem. Como advertem Crashaw e Urry (1997), a expansão do turismo – como indústria e como novo fenômeno sociológico e geográfico – seria impensável sem a popularização das câmeras fotográficas, cujo marco de origem é 1888, ano em que foi lançada a primeira câmera da linha KODAK. Com o slogan “você só aperta o botão e nós fazemos o resto”, a KODAK disponibilizava no mercado câmeras capazes de produzir 100 fotografias com um único filme, que era revelado em seguida pelo fabricante. O fotógrafo amador apenas operava a máquina enviando-a à firma em Nova Iorque, onde o filme seria cortado em tiras, revelado, a emulsão separada da base e colocada em suporte trans-parente. Depois eram feitas cópias de todos os negativos que, junta-mente com a câmera e um novo filme, eram devolvidas ao proprietário, que pagava 10 dólares pelo serviço (Sontag 1979; Berger 1990; Marien 2006).

Em 1841, apenas dois anos após a „invenção‟ da fotografia5, Tho-mas Cook organizou a primeira excursão em grande escala, levando entre

Repressão ao Comunismo e o incentivo à divisão tribal, com a formação dos Bantustões, em 1951, foram os grandes pilares do Apartheid. Com poucas exceções, o espaço urbano foi designado “apenas para brancos” (whites only), permitindo ao Estado evitar o surgimento de bairros racialmente integrados (Christopher 1987; Parnell 2003).

5 A fotografia não foi inventada por uma única pessoa em uma determinada data: a técnica fotográfica foi se constituindo a partir da soma de descobertas de muitos artistas e pesquisadores ao longo de vários anos. Ainda assim, costuma-se dizer que a invenção da fotografia propriamente dita ocorreu em 1839, ano em que Louis Daguerre anunciou a produção do daguerreótipo na França e que William Fox

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400 e 500 excursionistas de Leicester a Loughborough. Nesse mesmo ano, a primeira tabela de horário de viagens de trem foi publicada, o primeiro hotel em terminal de trem foi construído em York, o primeiro serviço atlântico de navio a vapor foi lançado, e a primeira grande agência de viagem apareceu nos Estados Unidos (Lash; Urry 1994). No final do século XIX, a viagem por prazer já estava bem estabelecida, e fotografar havia se tornado um popular passatempo.

Mas foram talvez os escoceses George Washington Wilson e James Valentine os primeiros a antever, ao longo da segunda metade do século XIX, a fotografia em série e a produção cartões-postais como elementos centrais à cultura de viagem. Animados pela ideia de que turistas eventualmente utilizariam as fotografias como uma maneira de relembrar suas viagens, Wilson e Valentine reproduziram os itinerários dos programas turísticos em evidência à época, retratando os locais mais visitados e recomendados pelos guias de viagens (Strain 2003).

Desde então, a fotografia tem dado aos turistas o vocabulário por meio do qual recordam, explicam e justificam como e por que viajam rumo a determinados destinos. Não por acaso, os discursos de viagem estão repletos de metáforas que operam com analogias entre o olho e a lente: expressões como „observar a vista‟, „capturar a vista‟, „cenário atraente‟, „belo como um cartão postal‟, ilustram o quão significativo é o olhar para os turistas e promotores de viagem (Jay 1993; Urry 1995; Strain 2003).

A promoção e a prática de coletar olhares acabaram dominando o modo de viajar, então organizado para facilitar vistas passageiras – frequentemente „eternizadas‟ pelos registros fotográficos – de lugares espetaculares. Daí a assertiva de Urry (1994) de que o turismo torna-se, em larga medida, a obrigação de encontrar o fotogênico: determinadas localidades não podem deixar de ser visitadas porque não se pode perder a oportunidade de fotografá-las. Forma-se uma espécie de círculo herme-nêutico em que turistas buscam e capturam com suas câmeras imagens antecipadas pelos folhetos das excursões, filmes ou programas de televisão. Na volta ao lar, provam, com suas próprias fotografias, que

Talbot divulgou na Inglaterra um processo denominado calotipo, usando folhas de papel cobertas com cloreto de prata (Sontag 1973; Tagg 1988).

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realmente estiveram nos lugares que haviam antes consumido como imagem. Nesse mesmo sentido, Sontag afirma:

A fotografia será a prova incontestável de que o turista fez a via-gem, cumpriu o programa e se divertiu. A fotografia documenta seqüências de consumo efetuadas longe da família, dos amigos ou dos vizinhos [...] Forma de comprovar uma experiência, o ato de fotografar é também um modo de negá-la, na medida em que limitamos determinada experiência a uma busca do fotogênico e a transformamos num retrato, um suvenir. Viajar torna-se estratégia para o acúmulo de fotografias [...] o que formaliza a experiência: pare, tire uma fotografia e siga em frente (Sontag 1973:122).

Apesar de ter sido feita há mais de quatro décadas, essa afirmação

de Sontag parece soar mais atual do que nunca. Com o barateamento das câmeras digitais e o surgimento dos celulares com câmera, o estímulo ao ato de fotografar tudo a todo instante parece ter sido redobrado, espe-cialmente quando se está viajando. Bauman (1998) oferece uma inter-essante reflexão sobre a chegada da câmera digital na conformação de novas temporalidades e geografias sociais cujas implicações são direta-mente percebidas na experiência de viagem:

As material objects, the design and „functionality‟ of digital cameras resemble analogue cameras […] But there are also differ-rences. While analogue cameras depend upon high-street develop-ping to make their photographs „come to life‟, digital cameras make them by themselves and display them instantly on the (variably sized) screen on the back of the digital camera or front of the mobile phone. Whereas analogue photographs always depicted past events taking place elsewhere – what Barthes (2000) called „that has been‟ – digital cameras‟ screens can also show ongoing events „right here‟, when the spaces of picturing, posing and consuming converge. Digital photography is typified by „instantaneous time‟ (Lash & Urry 1994). They seem designed for a late modern consumer society, a „now society‟ where pleasures need to be immediate and the federal of gratification seldom is acceptable (Bauman 1998:122).

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De fato, a popularização das câmeras digitais foi a principal responsável pelo grande aumento do número de fotos produzidas pelos que viajam. Os turistas podem, antes mesmo de retornarem aos seus locais de origem, por meio de qualquer computador ligado à Internet, compartilhar o registro fotográfico das localidades visitadas em seus fotologs e blogs6. Nestes blogs de viagem, as imagens compõem uma parte fundamental da narrativa, inspirando em larga medida as reflexões do autor. São fotos que, em geral, vêm acompanhadas de legendas que conduzem o leitor a certa interpretação do que é visto. Não raro, os turistas fazem propaganda de seus diários em outros sites, o que permite que não só amigos ou parentes acompanhem seu itinerário, mas também que pessoas que lhe são desconhecidas possam ler suas reflexões e fazer comentários sobre texto e fotografias.

Mas, para um número cada vez maior de turistas contemporâneos,

já não basta viajar e fotografar avidamente durante as férias é preciso que o „para onde‟ e o „com quem‟ marquem uma clara fronteira em relação à desprezada classe dos turistas de massa, tida como responsável pela degradação dos lugares e corrupção das culturas locais. Política e ecologicamente corretos, esses „pós-turistas‟ evitam a todo custo “o lazer de ir ver o que se tornou banal”, para usarmos a expressão de Guy Debord (2003:26). Reproduz-se, no âmbito do turismo, aquilo que vemos ocorrer em tantos outros campos: uma vez que os grupos de mais baixo status se apoderam da viagem de lazer como um bem, resta aos demais segmentos “investir em novos bens a fim de restabelecer a distância social original” (Featherstone 1995:38). No processo, locali-dades „marginais‟ ao mercado convencional são reinventadas como destino turístico e disponibilizadas para consumo de um público ávido por experiências que o coloquem um degrau acima na hierarquia de status dos „world travelers‟ (Hutnyk 1996; Freire-Medeiros et al. 2008). 6 Vale lembrar que a definição de fotolog ou blog não é consensual, mas costuma-se

denominar blog um registro cronológico e frequentemente atualizado de opiniões, sentimentos, fatos, imagens ou qualquer outro tipo de conteúdo que o autor queira disponibilizar na Internet para que qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida, tenha acesso – um diário virtual e público. Uma das vantagens das ferramentas de blog é permitir que mesmo os usuários sem conhecimento técnico especializado publiquem tanto textos como imagens (Carvalho 2001; Schittine 2004; Máximo 2007).

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Paradoxalmente, o consumo da pobreza pela via do turismo torna-se um elemento de distinção social, tendo sua circulação garantida pelos fluxos transnacionais de capital, de imagens midiáticas e de pessoas. A pobreza turística beneficia-se ainda da onda do poor chic – “a set of fads and fashions that make stylish or recreational „fun‟ of poverty” (Halnon 2002:

513) ao mesmo tempo em que ajuda a alimentá-la. Esse é o caso dos

destinos turísticos – Rocinha, Soweto e Cape Flats que visitaremos a seguir.

Para ver e fotografar os pobres

A curiosidade de saber e de ver como vivem os pobres não con-stitui novidade: como demonstra Seth Koven (2004), a elite vitoriana fez da experiência em primeira mão entre os indigentes algo essencial aos que aspiravam a falar com autoridade acerca das questões sociais7. Assim é que não apenas os que estavam à frente da igreja e das agências de assistência social, mas também todos os cidadãos que simpatizavam com os pobres, sentiam-se obrigados a visitar – ou mesmo viver e trabalhar em bairros degradados, como Whitechapel e Shoreditch. Era o que se chamava então de slumming. Em 1884, o Dicionário Oxford definia slumming como a tendência de visitar as áreas mais pobres de diferentes cidades, com o propósito de fazer filantropia ou apenas por curiosidade.

Para os críticos, a prática de slumming, disfarçada de altruísmo social, não passava de um entretenimento egoísta que trivializava a po-breza. Daí o esforço, por parte de clérigos, filantropos, investigadores sociais e reformistas, em diferenciar-se de jornalistas inescrupulosos e „curiosos de passagem‟. Para estes curiosos, os guias turísticos do fin-de-siècle, tais como o famoso Baedeker, sugeriam não apenas lojas e teatros, igrejas e monumentos, mas também excursões ao mundo das instituições filantrópicas localizadas nas áreas mais empobrecidas de Londres.

A representação fotográfica dos pobres, bem como de seus espa-ços de moradia e sociabilidade, constituía uma dimensão importante da

7 Para uma apreciação mais aprofundada do excelente trabalho de Koven, ver Freire-

Medeiros (2007c).

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prática de slumming, da promoção da filantropia e do controle imposto às classes populares de uma maneira geral (Tagg 1988). Nesse sentido, Koven (2004) recupera a trajetória do polêmico Dr. Thomas John Bar-nardo, um dos principais filantropos da Inglaterra. Em 1877, Barnardo foi acusado de imoralidade e fraude: boa parte das fotos que compu-nham seus relatórios anuais, livros e panfletos revelavam composições encenadas – crianças, jovens e adultos „antes‟ em trapos miseráveis, rostos sorumbáticos e aparência degradada; „depois‟, sujeitos bem vesti-

dos e saudáveis, graças aos métodos filantrópicos de Barnardo cujo objetivo era comover potenciais benfeitores para sua Missão Juvenil. Em uma batalha judicial que se arrastou por anos, Barnardo argumentou que as fotos posadas – chamadas de „ficções artísticas‟ desprezíveis e imorais por seus inimigos – eram essencialmente verdadeiras, uma vez que os fotografados eram de fato necessitados. Ainda que Barnardo tenha conseguido defender-se das acusações de sodomia e abuso de menores, suas fotos foram retiradas de circulação.

Se a prática do slumming esteve na moda na virada do século, duas décadas adiante já não ocupava o mesmo espaço na agenda da elite. Em artigo intitulado The Slum: A Project for study, publicado en 1928, Nels Anderson observava:

The Word „slum‟ has come into disrepute. Having come into vogue with the wave of humanitarism that swept the country in the eighties and nineties, suddenly, with the decline of slumming as a philanthropic pastime, the word became a taboo, but the slum remains (Anderson 1928:27).

Foi preciso esperar a virada de outro século para que os pobres e

seus espaços de moradia retornassem como objetos do olhar curioso de um número expressivo de atores sociais das camadas médias e altas, com quem passam novamente a compartilhar uma proximidade indiscreta8. Mas, se antes esta proximidade foi garantida pela via da filantropia e do

8 Obviamente, as imagens da pobreza capturadas pelo fotojornalista, filantropo ou

pelo pesquisador em campo continuaram a circular ao longo de todo século XX, povoando a imaginação e mobilizando os sentimentos de piedade e comiseração das elites.

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humanitarismo, hoje o é pela via do turismo. A prática do slumming retorna, por assim dizer, não como uma resposta às insuficiências do mercado, que deveriam ser „consertadas‟ pelos sujeitos caridosos, mas como parte constituinte deste mercado, que define um valor monetário para a pobreza, um preço devidamente acordado entre agentes e consu-midores.

No século XXI, as visitas pagas a regiões pobres e estigmatizadas tornam-se mais e mais comuns: não apenas Rocinha, Soweto ou as Cape Flats, mas diversos outros territórios, sistematicamente evitados pelas elites autóctones, recebem levas de turistas internacionais. A Cova da Moura, „bairro africano‟ e „marginal‟ em Lisboa, já tem um programa de

visitas ao bairro denominado „sabura‟, expressão crioula que significa

apreciar aquilo que é bom, saborear para mostrar que “a realidade [do bairro] é bem diferente da estigmatizada pela comunicação social” como justificado pela Associação Moinho da Juventude9. Em entrevista grã-vada por Freire-Medeiros em Mumbai (março de 2008), Christopher Way contou que foi depois de fazer o passeio pela favela da Rocinha que ele resolveu fundar a agência Reality Tours e investir na conversão de Dharavi, tida como a maior slum da Ásia, em uma das mais novas atrações turísticas da Índia. Não há dúvida de que se trata de experiências bastante heterogêneas (Freire-Medeiros 2007b), mas o fato é que todas realizam complicadas articulações entre dinheiro e emoções, lazer e miséria, domínios cuja sobreposição a moralidade ocidental define como incongruente e agramatical.

Esses tours vêm sendo promovidos por ONGs, agências de tu-rismo ou agentes públicos, os quais defendem a prática do turismo em áreas pobres com base em sua suposta capacidade de incrementar o desenvolvimento econômico, a consciência social dos turistas e a auto-estima das populações receptoras. Seus críticos apontam para o fato de que os moradores das localidades visitadas não usufruem em pé de igual-dade dos benefícios gerados e que, menos do que conscientização poli-tica ou social, o que as visitas motivam são atitudes voyeuristas diante da pobreza e do sofrimento (Freire-Medeiros 2007a; Freire-Medeiros et al 2008).

9 Em: http://redeciencia.educ.fc.ul.pt/moinho/requalif_bairro/sabura.htm

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Avaliar a pertinência econômica dos tours de pobreza – questão

sem dúvida necessária ultrapassa as intenções deste artigo. A ideia é convidar o leitor, a partir de alguns registros fotográficos realizados durante o trabalho de campo, a visitar espaços onde o encontro entre turistas, moradores e câmeras faz emergir e circular a pobreza turística. Comecemos pela Rocinha.

Figura 1 (Palloma Menezes 2008)

Em primeiro plano no canto esquerdo, um homem de pele e

cabelos claros está de costas para câmera que o fotografou. Ele veste uma camiseta preta e traz consigo uma imponente câmera fotográfica. Mas o que será que ele tentava registrar no momento em que foi foto-grafado? Que cena procurava instantaneamente eternizar?

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Sua câmera aponta para uma rua pavimentada, bem asfaltada e sem buracos aparentes. As calçadas, porém, estão tomadas por comércio dos mais diversos tipos. De um lado, colchões impedem a passagem dos transeuntes, que se veem obrigados a caminhar pelo meio da rua. Do outro, flores, CDs, utensílios diversos e botijões de gás também são comercializados na calçada. Ao fundo, mototáxis se encontram parados num local, que parece um ponto fixo, onde aguardam possíveis clientes.

O olhar do sujeito em posse da câmera parece enfocar também os diversos tipos de construções que convivem nessa mesma rua: casas bem acabadas, revestidas de azulejo e decoradas com plantas na varanda; prédios com pinturas antigas e gastas; construções que nunca nem foram emboçadas, muito menos pintadas. Umas têm vários andares e se prestam à moradia multifamiliar; outras, baixas e pequenas, são utilizadas para atividades comerciais. Como se estivessem costurando todas elas, há fios e mais fios emaranhados. Ao fundo, algumas roupas penduradas; pelos cantos, lixo espalhado.

Poderíamos sugerir ainda que a câmera quer enquadrar as pessoas que se movimentam pela rua: o homem que carrega uma mala, o outro que anda com uma gaiola de passarinho na mão, a criança que brinca, ou as pessoas que parecem conversar ao fundo. Muitos poderiam ser, enfim, os focos da câmera nesse cenário. Mas que cenário exatamente é este?

Trata-se da Rocinha, uma favela localizada entre dois dos bairros mais valorizados da cidade do Rio de Janeiro – Gávea e São Conrado. Desde o início da década de 199010, a localidade, apresentada no mer-cado turístico como „a maior da América Latina‟, vem recebendo um número crescente de turistas: atualmente, são 3 mil por mês. Chegam à Rocinha levados por agências cadastradas na Rio Tur ou por guias parti-culares11, que disputam o mercado local. Como destino turístico, a 10 Todos os donos de agências e guias que atuam na Rocinha apontam a Eco-92 (Rio

Conference on Environment and Sustainable Development) como marco do início das atividades turísticas na favela: apesar dos esforços das autoridades em tornar as favelas „invisíveis‟ na época, vários visitantes estrangeiros teriam expressado inter-esse em visitar a localidade e, a partir dessa demanda espontânea, o business teria começado.

11 Como é grande a rotatividade dos guias particulares na Rocinha – há inclusive taxistas atuando como „guias‟ informais –torna-se impossível aferir com precisão o número de pessoas que oferecem esse tipo de serviço.

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Rocinha já se encontra tão consolidada que, para atenderem aos dife-rentes tipos de visitantes, os agentes promotores do turismo no local têm oferecido serviços cada vez mais diversificados (Freire-Medeiros 2007b).

Um turista pode conhecer a localidade a pé, de van, de jipe ou de moto, de dia ou à noite, com refeição incluída ou não. Durante o passeio, que dura entre três e quatro horas, os visitantes – geralmente estrangeiros que já tiveram experiências de viagem em circuitos „alternativos‟ mundo afora – podem adquirir produtos by Rocinha (camisetas, quadros, bolsas, bijuterias etc.), fazer doações para projetos sociais e tirar fotos de algumas partes da favela12.

Ao longo da pesquisa13, acompanhamos os tours, entrevistamos donos de agência e guias, aplicamos questionários para saber opinião dos moradores e turistas sobre a conversão da favela em destino turístico. Turistas andando pela Rocinha, consumindo suvenires, sendo observa-dos por moradores e interagindo com estes, dialogando com os guias e fotografando a favela foram constantemente capturados por nossas câmeras.

Essas imagens produzidas durante o trabalho de campo constroem múltiplas representações: representações sobre a favela e seus habitantes formuladas pelos turistas; representações dos turistas formuladas pelos moradores; representações da favela formuladas pelos moradores para os turistas; representações dos moradores e turistas formuladas por nós pesquisadoras a partir de nossas lentes fotográficas – numa espiral contí-

12 Todas as agências que vendem tours pela Rocinha têm website que geralmente com-

tém descrição dos passeios, comentários dos turistas que já participaram e indica-ções de como o turista deve se comportar durante o tour. Nesses sites, quase todas agências incentivam o turista a levar máquina fotográfica para favela, dizendo por exemplo: “Don’t worry and bring your camera!!!” ou “You're welcome to bring your camera or VCR”. Durante o passeio, os guias costumam explicar que algumas partes da favela poderão ser fotografas e outras não. Essas instruções variam de agência para agência, mas as áreas interditadas à fotografia são em geral aquelas nas quais há pessoas armadas.

13 A pesquisa “A Construção da Favela Carioca como Destino Turístico” vem exami-nando, desde fevereiro de 2005, o processo de conversão da favela em atração turística, do ponto de vista dos agentes promotores, dos moradores locais e dos turistas.

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nua de representações (Freire-Medeiros 2007a). Estas imagens e os este-reótipos, ícones e símbolos que elas evocam nos levam a refletir não apenas sobre questões ligadas à produção, ao consumo e à circulação da pobreza turística, mas igualmente sobre o próprio fazer fotográfico e os dilemas éticos que ele envolve.

Ao olharmos fotografias, muitas vezes nos esquecemos de que há sempre um sujeito de vontade que está por trás delas: aquele que pro-duziu a imagem fotográfica. Como nos lembram Berger (1977), Tagg (1988), Peixoto (1998), Kossoy (1999), Borges (2005), entre tantos outros, o caráter indicial da fotografia e sua gênese como artefato técnico contribuíam para sua identificação como prova da verdade e para a neu-tralização do fotógrafo como agente criativo14. Por isso, é importante lembrar que este agente criativo, essa pessoa dotada de intencionalidade não „tira‟ fotos, mas „produz‟ imagens. As duas coisas podem parecer uma só, mas não são: a produção de imagens envolve um trabalho de enquadramento e recorte da realidade que difere de apenas reproduzir algo que já está dado. Koury resume:

Pensar o objeto fotográfico, em sentido amplo, refere-se à apro-priação. [...] Artefato de objetificação do real, a fotografia submete a realidade ao olhar mecânico da máquina [...]. A fotografia apa-rece, assim, como uma forma singular de apreensão do real, e seu uso tem um significado variado segundo as formas de assimilação ou os discursos produzidos a partir dos elementos conotados que a constituem. Uma mesma fotografia representa uma infinidade de formas de apreensão e apropriação segundo os usos a que se encontra submetida (Koury 2004:131).

Então, que favela é essa que os turistas apreendem com suas

câmeras fotográficas e fazem circular mundo afora? Ao analisar 50 foto-logs que exibiam um volume de mais de 700 fotografias tiradas por turistas durante os passeios pela Rocinha e postadas na internet, Menezes (2007) demonstra que se confirma, em grande medida, o mesmo reper-tório de representações que „exotizam‟ a favela, suas habitações e seus 14 A percepção da fotografia como técnica e/ou duplicação do real não foi hege-

mônica. Como aponta Borges (2005), os membros do movimento pictorialista, por exemplo, reivindicaram por muito tempo um estatuto artístico para a fotografia.

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moradores. A favela que as câmeras estrangeiras capturam é composta de ruelas e valas, de fios emaranhados, de uma vista deslumbrante para o mar, de plantas e bichos „exóticos‟, como galinhas e cachorros. Mais do que qualquer outro elemento, porém, são as casas – tijolos desalinhados e paredes coloridas– e os moradores, quase sempre negros e preferen-cialmente crianças, que mobilizam sua atenção fotográfica.

Figura 2

(Palloma Menezes 2008)

Se não fosse o véu que cobre a cabeça da turista muçulmana, poderíamos dizer que a cena apresentada na fotografia acima chega a ser corriqueira no cotidiano da Rocinha. O fato de estrangeiros se inter-essarem em fotografá-la parece já não causar estranhamento na popula-ção local. Sabem que todos os dias algum turista – ou mais de um – irá fotografar especialmente as crianças nas ruas e vielas da favela. Poucos

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reclamam ou se incomodam de serem o alvo da mira dos estrangeiros15; pelo contrário, muitos expressam, por meio das palavras que sabem falar em inglês, ou de gestos16, o desejo de serem fotografados e instantânea-mente verem suas poses sorridentes retratadas no visor das câmeras digi-tais.

Mas, voltemos à cena apresentada pela fotografia: em primeiro plano, vemos uma mulher agachada, que carrega uma mochila com uma grande garrafa de água. Como ela está de costas, seu rosto não fica à mostra e, por que seu corpo está encolhido, vemos apenas suas mãos, que portam uma máquina fotográfica posicionada na altura dos olhos, mirando um menino sentado. Ao contrário do corpo dela, o dele se encontra quase todo à mostra, vestido apenas com bermuda e chinelos. Atrás dele, há paredes mofadas e descascadas, e uma porta branca de ma-deira, bastante suja, com algumas pichações.

Naquela manhã de um sábado de verão, enquanto o menino sen-tado na soleira da porta capturava a atenção fotográfica da turista, era seu hijab que chamava atenção dos moradores da Rocinha, inspirando repe-tidos comentários jocosos. Se a favela e seus moradores eram atrações turísticas para ela, ela por sua vez também se tornou uma atração para os moradores. Mas, a turista muçulmana não era o único alvo das piadas dos moradores: o turista loiro, que apareceu na foto anterior, era cha-mado de David Beckham; uma jovem indiana era apelidada por alguns rapazes de Beyoncé. Em todos os passeios que acompanhamos, nunca deixamos de presenciar algum momento em que a vitrine se invertia e que os turistas passavam a ser a atração dos moradores.

Mas, isso não quer dizer que estejamos diante de um cenário alheio a hierarquias de poder. Imaginemos a seguinte situação: e se os mora- 15 Apesar de as crianças não reclamarem e de muitas vezes pedirem para ser fotografa-

das, alguns pais não gostam de ver seus filhos sendo fotografados por desconhe-cidos. Em uma creche que é diariamente visitada por turistas, por exemplo, a coor-denadora proibiu que as crianças fossem fotografadas, alegando que as mães sem-tem-se incomodadas.

16 Como relata um turista em seu blog: “Los niños sobretodo eran bastante „coquetos‟ o „fotogénicos‟ a la hora de hacerles fotos. Pasaban gritando „foto, foto, foto!!!‟ (haciendo el gesto con las manos)”. (http://carlosgalan.blogspot.com/2007/02/garota-de-ipanema-y-la-coita-de-riz.html).

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dores começassem a tirar fotos da turista muçulmana e de sua pequena filha que a acompanhava no tour? Será que ela se sentiria tão à vontade ao ser alvo das câmeras dos moradores quanto parecia estar por trás de sua própria lente? Será que ela se sentiria confortável vendo sua filha ser clicada por estranhos? Será que ela permitiria que a própria filha fosse fotografada com partes do corpo a descoberto como o menino sentado na esquina de uma viela?

Essas perguntas apontam para a complexidade envolvida nas inter-conexões existentes entre o ato de consumir a pobreza turística e de fotografá-la. Não temos, por certo, respostas conclusivas, mas iremos compartilhar algumas reflexões em torno dos dilemas éticos próprios do turismo de pobreza ao final do artigo. Antes, porém, vamos deixar a favela carioca e partir rumo às townships da África do Sul.

Figura 3

(Bianca Freire-Medeiros 2007)

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Figura 4 (Bianca Freire-Medeiros 2007)

Atravessamos o oceano e nos deparamos novamente com crianças. Na foto 3, uma menina vista de costas encara, de braços cruzados, a câmera Polaroid. Não há como dizer se ela sorri. Um quadro de giz nos coloca em uma sala de aula, onde não podemos ver outras crianças, mas sabemos que estamos na companhia de pelo menos outros três adultos. Na foto 4, estamos em um espaço pouco iluminado, com paredes sujas.

Dois meninos e uma menina se divertem podemos escutar suas risadas

disputando o foco de atenção das câmeras fotográficas. Uma destas câmeras está sob comando de mãos cuja alvura contrasta com a pele negra das crianças.

Em posse da Polaroid está C., norte-americana residente em Seattle, onde coordena uma ONG que presta apoio jurídico a popula-ções de baixa renda. As mãos capturadas na foto 4 são de S., professora de literatura em uma pequena cidade nos Alpes suíços, onde mora desde que nasceu. Ambas visitavam o continente africano pela primeira vez em um pacote intitulado South Africa: Land, health and devolpment, ofertado por

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uma ONG da Califórnia, pioneira na promoção dos chamados reality tours17. Este pacote, assim como as demais excursões disponibilizadas pela ONG, é cuidadosamente preparado para atender clientes que, por um lado, aspiram a to make a difference na localidade visitada; e que, por outro, não abrem mão dos marcos turísticos mais óbvios, de tempo para compras e de uma hospedagem confortável. Encontros com lideranças de vários movimentos sociais e antropólogos, bem como visitas a museus comunitários e a townships, são intercalados com as atrações turísticas „convencionais‟ e com refeições em restaurantes sofisticados.

Mas C. e S. eram apenas duas das centenas e centenas de turistas que chegam diariamente e das mais variadas formas, com ou sem inten-ções de engajamento político e social, às townships, que compõem as Cape Flats18, e a Soweto19. Assim como no caso da Rocinha, há uma variedade enorme de agências, meios de transporte e de atrações à disposição do turista.

Se hoje o poder público investe pesadamente na promoção do turismo nessas áreas, o fato é que tanto as Cape Flats quanto Soweto se estabeleceram como destinos para turistas estrangeiros na África do Sul sem que qualquer marketing oficial fosse feito nesse sentido. A bem ver-dade, durante os primeiros anos do regime democrático, o turismo nas townships enfrentou uma publicidade adversa, que remetia ao estigma –

17 MSN Encarta define Reality Tourism (turismo de realidade, em uma tradução literal)

como “travel to experience unpleasant realities: travel to areas of the world deemed politically unstable or less developed, in order to experience at first hand economic disadvantage, conflict, repression, etc”. Desde meados dos anos 1990, tem ocorrido um envolvimento crescente de organizações como Food First, The Center for Global Education, Global Exchange e Where There Be Dragons, entre outras, na promoção e venda desses chamados tours de realidade. Para uma apreciação crítica dos reality tours, ver Freire-Medeiros (2007a).

18 As fronteiras geográficas das „Flats‟ não são precisas e variam de acordo com dife-rentes recortes, mas em geral incluem as localidades de Macassar, Khayelitsha, Mitchells Plain, Greater Philippi, Crossroads, Gugulethu, Nyanga, Langa, Manen-berg, Lansdowne, Bonteheuwel, Greater Athlone, Woodstock, Salt-River e District Six.

19 Originalmente uma sigla para South Western Townships, Soweto, em Joanesburgo, é recorrentemente apontada como a township mais famosa do mundo.

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ainda presente, é bom lembrar – que associa os bairros de majoritária-mente negros à violência e à miséria (Ramchander 2007).

Os passeios às Cape Flats e a Soweto são promovidos por dife-rentes agências que seguem basicamente a mesma estrutura, com varia-ções que dependem menos da agência em questão e mais das relações que os próprios guias turísticos têm com os moradores. Nas duas locali-dades, existe também um grande número de bed & breakfast (hospedagem e café da manhã), administrado pelos residentes, e que hoje conta com apoio do poder público.

Com uma população em torno de 4 milhões de habitantes em situação de pobreza, as Cape Flats recebem cerca de 300 mil turistas por ano (Ramchander 2007). Os passeios em geral começam no District Six Museum, que congrega a memória das remoções forçadas no bairro homônimo e que nos últimos anos tem se tornado um dos museus mais visitados da Cidade do Cabo. De lá, seguem para o centro de artes e cultura The Guga S‟Thebe, em Langa, onde os turistas são encorajados a

comprar suvenires variados colares, pulseiras e cintos de miçangas coloridas, quadrinhos feitos com material reciclado, colchas e toalhas de

mesa pintadas à mão supostamente produzidos pelas mulheres e crian-ças da localidade. Gugelethu Seven, Amy Biehl e Trojan Horse são apre-sentados aos turistas como monumentos que celebram a memória dos estudantes mortos durante as revoltas contra o Apartheid, mas não ganham a mesma relevância que os monumentos históricos de Soweto, com veremos adiante. Algumas agências incluem, ainda, a visita a um shebeen, espécie de taverna onde se pode tomar uma bebida fermentada produzida localmente, e uma consulta com um healing doctor, „curandeiros‟ que trabalham com ervas medicinais. Na maioria dos casos, agências externas administradas por brancos contratam guias negros, moradores do local, o que muitas vezes dá aos turistas a falsa impressão de que o dinheiro pago pelos passeios reverte em ganhos diretos para as townships.

As ruas de terra, os khayas (barracos precários), as crianças em trajes gastos, as mulheres com latas d‟água na cabeça, os homens alcooli-zados, as galinhas e as cabras são recorrentemente capturados pelas câmeras estrangeiras. Assim como na Rocinha, os moradores parecem receptivos à presença dos turistas e suas câmeras. Não é difícil imaginar que também façam comentários jocosos a respeito dos visitantes, mas o

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fato de que falam xhosa entre si – o inglês é reservado para as conversas

educadas com os „gringos‟ garante a privacidade das piadas. No caso de Soweto, os passeios começam por uma área chamada

Diepkloof Ext, onde vivem os famosos black diamonds negros que conseguiram ascender economicamente, mas que optam por continuar morando na localidade, em casas de arquitetura sofisticada, bem equipa-das e com alto valor no mercado imobiliário. Os tours seguem pelo Baragwanat Hospital („o maior hospital do hemisfério sul‟), pelas Twin Towers (torres gêmeas que fornecem eletricidade ao norte de Joanes-burgo) e pelo Maponya Mall, um shopping gigantesco, inaugurado em setembro de 2007. Esse lado „desenvolvido‟ e „promissor‟ de Soweto é posto em contraste logo em seguida: metros à frente, os turistas são apresentados ao Kliptown Squatter Camp, um alojamento criado em 1903, onde várias famílias ainda compartilham um ambiente extrema-mente precário. Dependendo do nível de intimidade do guia com os moradores, é permitido aos turistas entrar nos pequenos cômodos e fotografar. A foto 3 registra a visita a uma creche em Kliptown, frequentada por muitas agências e que usufrui de doações esporádicas feitas pelos turistas.

Os passeios por Soweto incluem ainda um „almoço típico‟, uma parada para compra de suvenires e a ida a Vilakazi Street, „única rua do mundo com dois Prêmios Nobel: Nelson Mandela e Desmond Tutu‟.

Mas é na inclusão de seus diferentes marcos históricos de resistência Kliptown Museum, West & Hector Peterson Memorial, Igreja Regina Mundi – que a „pobreza turística‟ de Soweto busca realizar seu diferencial no mercado: “No mundo todo, existem monumentos condenando o fascismo, a tirania e o abuso dos direitos humanos”, lê-se no material de divulgação turística de Joannesburgo, “Soweto representa a prova viva de que, com determinação, força e com uma causa justa, uma comunidade, como outra qualquer, pode fazer a diferença” (City of Johannesburg, 2003 – tradução nossa).

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Conclusão

Algumas questões morais e éticas envolvidas na produção e no consumo de imagens da pobreza são levantadas por Linfield (2004), ao analisar a fotografia de uma menina africana de três anos de idade, cha-mada Memuna Mansarah, que vivia em um campo de refugiados em Freetown. Linfield questiona por que somos tomados por sentimentos

díspares pena e comiseração, frustração e raiva quando diante de imagens como a de Memuna:

Looking at this photograph four years ago, I felt angry. Anger, first, at the sadists who did this to Memuna, and who I knew had done the same to tens of thousands of others. But I felt anger also at Teun Voeten, and at Sebastian Junger, and at the editors of Vanity Fair. For my rage against the perpetrators turned into pity for Memuna, and my pity led to a new anger at feeling mani-pulated by the photo. What could I do with my pity, which felt so shamefully obedient? (Linfield 2004:74).

Assim como Linfield (2004), autores como Hutnik (1996), Moeller (1999), Koven (2004), entre outros, sugerem que fotografias de crianças em situação de risco ou de privação econômica seriam um objeto per-feito para forjar manipulações, simplificações vulgares e propagandas. Neste sentido, essas fotos não só mostrariam a violência, mas constitui-riam em si mesmas uma violência dupla: por um lado, um assalto à capa-cidade do espectador de criar seus próprios julgamentos sobre a temática abordada pela imagem; por outro, a garantia da perpetuação de estéreo-tipos culturais e raciais. Para escapar a essas armadilhas e não ter sua capacidade reflexiva anulada, Linfield (2004) acredita que o espectador precisa ir além daquilo que as imagens mostram. Mas e quem fotografa, que estratégias pode e deve acionar para escapar as estas armadilhas? Que limites éticos devem ser respeitados quando turistas e pesquisadores se vêem diante da pobreza dos outros?

Capturar e consumir a pobreza turística por meio da fotografia, pelo que nos foi relatado pelos turistas, nem sempre é uma ação tão irrefletida quanto a velocidade de seus cliques pode nos levar a crer. Era

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justamente a questão da fotografia o que mais preocupava a turista J. em relação à sua presença na favela. Misturavam-se em sua fala dilemas éticos e práticos: por um lado, se fosse pedir autorização para todos que quisesse fotografar, suas fotos ficariam “all posed and artificial, not really authentic”; por outro, não queria sair fotografando sem pedir autori-zação, “desrespecting people and hurting their feelings”. Durante a visita, ficava entre perguntar se podia tirar fotos (e agir da maneira que lhe parecia correta), ou não falar nada e obter imagens mais espontâneas e esteticamente mais interessantes.

Quando soube da nossa pesquisa, K., que fazia o passeio em favela pela segunda vez, veio nos indagar como os moradores se sentiam quando fotografados. Diante do lapso de silêncio – o que caberia, a nós pesquisadoras, lhe dizer? Explicou as motivações da pergunta: em sua primeira viagem ao Rio, havia feito um passeio de van, com um guia particular, pela favela. A turista, que era negra, relatou que essa tinha sido uma das piores experiências de sua vida, pois se sentira extremamente constrangida ao ver “all that those white foreigners riding on a Jeep, taking pictures non-stop without knowing the first thing about Brazil, about racial and social issues”. Para K., “tourists don‟t seem to realize that people in the favela are humans, they treat them like animals in a zoo”.

Perguntas como essas – e a nossa surpresa lacônica diante delas – são „boas para pensar‟. Fazem-nos avaliar que os limites éticos relacio-nados à pobreza turística e, especialmente, à questão das fotografias parecem estar sendo construídos e negociados a cada encontro entre moradores e visitantes. Os turistas nem sempre sabem como agir, e nós, pesquisadoras, não sabemos o que lhes dizer. Pensamos, por exemplo, na positividade das fotos, na sua capacidade de gerar visibilidade para essas localidades segregadas, de atuarem como contraestigma das ima-gens midiáticas, que associam esses espaços à violência espetacularizada. Incomoda-nos o fato de ser aquele contato, intermediado pela câmera, uma das poucas formas de interação durante os passeios. Mas, não pode-mos ignorar ou homogeneizar nem essas experiências de encontro, nem os usos que são feitos por quem fotografa, por quem é fotografado, por quem olha as fotografias e por quem faz dessas imagens objeto de refle-xão acadêmica. C., por exemplo, imprimiu um uso inesperado às fotografias: os registros feitos por sua máquina Polaroid não foram

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colecionados em um acervo pessoal, mas serviram como pequenas retri-buições àqueles que se dispunham a nos receber. Os instantâneos produzidos e ofertados por C. possibilitaram a conformação de „zonas de contato‟ entre sujeitos de mundos sociais muito distantes que, ainda assim, puderam se reconhecer sem que fossem negadas as diferenças.

Figura 5 (Bianca Freire-Medeiros 2007)

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Recebido em outubro de 2008

Aprovado para publicação em fevereiro de 2009