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; ponto-e-vírgula, 2: 68-80, 2007. Fotografia: ver e ser visto no candomblé Ivete Miranda Previtalli * e Syntia Alves ** Resumo Do intercâmbio cultural dos escravos e ex-escravos africanos que foram para o Brasil e o contato com os europeus e povos indígenas da terra, surgiram as diversas modalidades de religiões afro- brasileiras, dentre elas, o candomblé, o batuque, o tambor de mina, o xangô, entre outras. O candomblé é a manifestação religiosa afro- brasileira eleita para este trabalho, mais particularmente os candomblés que estão fixados em São Paulo, na tentativa de observar a vivência desta religião na terceira maior cidade do mundo. A escolha se deu devido à relação que se estabelece entre uma comunidade tradicional como a do candomblé e o modo de vida “fast” numa metrópole pós moderna usando a fotografia como o elo entre a tradição da religião e a modernidade de São Paulo. Abstract Several forms of African-Brazilian religions arose from the cultural exchanges among African slaves and former-slaves shipped to Brazil, Europeans, and native peoples of the land. These religions are, among others, "candomblé", "batuque", "tambor de mina", and "xangô". The African-Brazilian religion chosen for this study is candomblé, more specifically the São Paulo-based varieties, in an attempt to characterize everyday life for this religion in the world's third largest city. The choice was due to the relationship established between a traditional community like candomblé and the "fast" way of life of a postmodern metropolis by photography, a bridge between the traditions of this religion and the modernity of São Paulo. Tradição e modernidade Numa sociedade de tradição oral como a do candomblé, na qual a palavra é o que leva ao conhecimento, a religião é um departamento importante da vida e não pode ficar desprendida do dia-a-dia das * Doutoranda do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Relações Raciais, Memória, Identidade e Imaginário. E-mail: [email protected] ** Doutoranda do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisadora do Neamp – Núcleo em Estudos de Arte, Mídia e Política da PUC-SP (NEAMP) e fotógrafa. E-mail: [email protected]

Fotografia: ver e ser visto no candomblé

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Autoras: Ivete Miranda Previtalli e Syntia Alves

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  • ;;;; ponto-e-vrgula, 2: 68-80, 2007.

    Fotografia: ver e ser visto no candombl

    Ivete Miranda Previtalli e Syntia Alves**

    Resumo Do intercmbio cultural dos escravos e ex-escravos africanos que foram para o Brasil e o contato com os europeus e povos indgenas da terra, surgiram as diversas modalidades de religies afro-brasileiras, dentre elas, o candombl, o batuque, o tambor de mina, o xang, entre outras. O candombl a manifestao religiosa afro-brasileira eleita para este trabalho, mais particularmente os candombls que esto fixados em So Paulo, na tentativa de observar a vivncia desta religio na terceira maior cidade do mundo. A escolha se deu devido relao que se estabelece entre uma comunidade tradicional como a do candombl e o modo de vida fast numa metrpole ps moderna usando a fotografia como o elo entre a tradio da religio e a modernidade de So Paulo. Abstract Several forms of African-Brazilian religions arose from the cultural exchanges among African slaves and former-slaves shipped to Brazil, Europeans, and native peoples of the land. These religions are, among others, "candombl", "batuque", "tambor de mina", and "xang". The African-Brazilian religion chosen for this study is candombl, more specifically the So Paulo-based varieties, in an attempt to characterize everyday life for this religion in the world's third largest city. The choice was due to the relationship established between a traditional community like candombl and the "fast" way of life of a postmodern metropolis by photography, a bridge between the traditions of this religion and the modernity of So Paulo.

    Tradio e modernidade

    Numa sociedade de tradio oral como a do candombl, na qual a

    palavra o que leva ao conhecimento, a religio um departamento

    importante da vida e no pode ficar desprendida do dia-a-dia das

    Doutoranda do Programa de Cincias Sociais da PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Relaes Raciais, Memria, Identidade e Imaginrio. E-mail: [email protected] ** Doutoranda do Programa de Cincias Sociais da PUC-SP e pesquisadora do Neamp Ncleo em Estudos de Arte, Mdia e Poltica da PUC-SP (NEAMP) e fotgrafa. E-mail: [email protected]

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    pessoas. O adepto do candombl tem que viver o universo religioso

    constantemente e no apenas em datas festivas ou em culto semanais.

    A vivncia que esta manifestao religiosa determina a seus adeptos

    inspira-lhes um ethos peculiar, que vai abranger a todos, independente

    de suas profisses, idade ou classe social.

    Diferente das grandes religies monotestas, o candombl no

    possui um livro sagrado para a transmisso de seus dogmas, sendo

    assim, as palavras so as fontes da fora e da continuidade da religio.

    Por outro lado, ao mesmo tempo em que a comunidade do candombl

    se organiza segundo uma tradio oral, ela tambm est inserida numa

    sociedade mais abrangentemente secularizada. Essa condio imposta

    pelo mundo contemporneo pode parecer uma contradio, isto , uma

    comunidade religiosa que se fundamenta numa tradio oral estar

    imbricada numa sociedade moderna que no processo histrico tornou

    tudo dinmico e dessacralisado. Sendo assim, o que ocorreu que a

    experincia, que marcada pela tradio, isto , algo que passado de

    gerao para gerao, na sociedade secularizada foi substituda pela

    vivncia. A diferenciao se d pelo fato de a experincia estar sempre

    preocupada com o acmulo de conhecimento, enquanto que a vivncia

    diz respeito ao dia-a-dia. Assim, na modernidade tudo sempre novo e

    sempre se transforma.

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    Fotos: Syntia Alves, Nzo Inkossi Mokumbo ni Tata Congo dya Aruanda1.

    Se, por um lado a modernidade acelerou os tempos e reduziu as

    distncias gerando uma padronizao que cada vez mais se

    universaliza, por outro a popularizao da tecnologia gerou uma

    democratizao de novas linguagens que foram introduzidas em muitas

    camadas da sociedade. Nas grandes cidades, a partir dos anos 30, a

    memria, tanto a individual quanto familiar, passou a ser construda

    tendo como base o suporte imagtico. A fotografia veio contar s futuras

    geraes, ou mesmo queles que no presenciaram momentos

    importantes, cenas que merecem serem lembradas.

    Mas o uso das fotografias mais que isso: a oportunidade de

    levar o vivido consigo, o status de ser importante a ponto de ser

    imortalizado. E nisso se incluem os terreiros de candombl da cidade de

    So Paulo que, mesmo mantendo seus costumes e suas tradies,

    incluram como uma das marcas do seu encontro com a modernidade a

    1 Essas imagens registram os filhos-de-santo em uma grande festa de candombl. So cenas de devoo dos adeptos, independente da cor, idade ou classe social. O que os diferencia uma escala social do candombl, que determina o local do filho-de-santo, que depende se ele iniciado ou no e de quantos anos tem de iniciao e obrigaes cumpridas.

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    importncia da utilizao das imagens fotogrficas em suas festas. Da

    mesma maneira que agem outros grupos sociais, a vida dos filhos-de-

    santo e alguns dos acontecimentos importantes do candombl

    passaram a ser registrados.

    Atualmente, a difuso das tecnologias digitais facilitou e

    generalizou o uso da fotografia e de registros audiovisuais como forma

    de documentar os eventos nos terreiros, principalmente as grandes

    festas que passaram a ser registradas por adeptos, visitantes e

    pesquisadores. No caso da utilizao destas imagens nas pesquisas

    acadmicas, as tecnologias digitais promoveram uma eficaz interao

    entre a antropologia virtual e a antropologia escrita. Esses registros

    podem ser realizados pelo pesquisador ou encontrados nos livros de

    memria, dirios e cartas. Muitas delas so imagens feitas pela prpria

    imagem e que adquirem prestgio por causa do status que elas

    representam nos meios sociais do candombl. A tradio oral e a

    fotografia se apresentam neste caso como linguagens distintas, mas que

    caminham juntas acompanhando a modernidade na qual tudo

    acelerado e, por conseguinte essa pressa acaba por influenciar tambm

    o cotidiano do candombl.

    Disso nasce um impasse: a temporalidade, a oralidade, a

    mitologia, o velho em relao ao novo, a maneira de pensar no

    candombl, parece se incompatibilizar com a maneira de ser da

    sociedade contempornea causando desconforto e adaptaes. Porm, o

    modo de viver fast no qual a internet e os meios de comunicaes se

    impe como padro na cultura, e quanto mais entronizado na vida

    moderna mais se torna uma mercadoria implacvel. Parece que no h,

    portanto, maneira de sobreviver para aquele que no propagar suas

    idias na velocidade exigida pela modernidade.

    Mas, se por um lado no mundo moderno h a dessacralizao da

    vida, uma racionalizao generalizada da existncia, por outro lado, em

    Salvador e no Recncavo baiano parece haver uma resistncia dos

    terreiros de candombl ao fluxo da modernidade. Desta maneira as

    famlias e os espaos de muitos terreiros baianos, procuram se manter

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    como nas antigas roas2 dos primeiros candombls. Existem na Bahia

    terreiros de candombl muito antigos, fundados por ex-escravos, onde

    muitas famlias moram na propriedade ou nas cercanias do terreiro,

    mantendo a vida cotidiana muito interligada com a religiosa.

    Em pleno sculo XXI, esses terreiros parecem resistir s

    inovaes da modernidade. Porm, podemos notar que o fato de o

    candombl estar inserido numa sociedade moderna mais abrangente

    gera muitas dificuldades para o modo de viver tradicional desta religio.

    Conversando com uma me de santo3 de um tradicional terreiro baiano,

    ela mostrou o drama do aprendizado oral para pessoas que vivem numa

    sociedade em que tudo funciona no ponteiro do relgio. Esta

    sacerdotisa fez um depoimento, no qual relata: Perguntei outro dia para

    fulana, que uma velha filha de santo da casa, como que ela

    aprendeu cantar tantas rezas, e ela me disse que era lavadeira e que

    vinha sempre no ax e ouvia as msicas. Depois ia lavar roupa

    cantarolando o tempo todo. Como pode hoje em dia uma filha de santo

    aprender? Como que ela vai ficar cantando em frente do computador?

    Na metrpole, todos tm que trabalhar respeitando o horrio do

    relgio. Desta forma, no mais possvel fazer as iniciaes segundo a

    vontade do Orix ou no cronograma do terreiro. Assim sendo, as

    cerimnias passaram a ser realizadas nos dias das frias do trabalho,

    nos feriados nacionais. Pelo mesmo motivo os dias necessrios para as

    iniciaes so encolhidos de acordo com a disponibilidade do nefito,

    nem sempre so raspados seus cabelos como manda a tradio e os

    filhos de santo aprendem as tradies de gravador em punho, com lpis

    e papel na mo.

    Outro exemplo da modernidade que entra nos terreiros no

    preparo das comidas. O processo continua artesanal e demorado, mas

    inicialmente as iguarias dos Orixs eram feitas, por exemplo, com feijo

    ou milho ralado na pedra, ingredientes que hoje podem ser adquiridos

    em forma de farinhas prontas provenientes de moinhos

    2 Roa: uma outra designao para terreiro de candombl 3 Me Stela, me de santo do tradicional terreiro Op Afonj.

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    industrializados. Alm de representar uma significativa mudana nos

    costumes do terreiro, tudo passou a custar mais dinheiro e as relaes

    que antes eram muito mais familiares, hoje em muitos terreiros se

    tornaram muito mais comerciais.

    Tudo na modernidade se converteu em consumo, conforto e

    seduo e isso tambm contagia o candombl da metrpole. Embora ele

    tente resistir modernidade, acaba por sucumbir perante ela com a

    finalidade de sobreviver, sendo assim hoje o candombl est na

    internet, em sites que falam de orixs, inquisses e voduns4, em pginas

    que trazem fotos dos terreiros e dos deuses incorporados em seus

    adeptos. Existem pais e me de santo que jogam bzios pela internet,

    podendo estar consulente de um lado do mundo e sacerdote do outro,

    porm entrando em contato pela rede mundial de computadores. H

    ainda programas de computador que fazem os jogos de bzios que so

    como os Jack Box dos cassinos, o cliente introduz sua data de

    nascimento, nome e quase que imediatamente tem a preleo do futuro

    e conselhos elucidativos para suas questes existenciais. Alm disso,

    existem tambm as comunidades de candomblessistas e listas de

    discusses pelos quais os adeptos, simpatizantes e at pessoas de

    outras religies trocam idias e informaes por meio da internet.

    4 Orixs, inquisses e voduns: Nos ritos religiosos afro-brasileiros, como o candombl, a umbanda, etc., personificao ou deificao das foras da natureza ou ancestral divinizado que, em vida, obteve controle sobre essas foras.

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    Fotos: Syntia Alves5

    Seja pela entrada das cmeras fotogrficas nos terreiros, ou seja,

    pelo ingresso dos terreiros na rede de computadores, no de se

    estranhar que existam crticas dos mais conservadores s

    possibilidades mais dinmicas e modernas do candombl se propalar,

    porm no se pode negar que o candombl est tambm na

    modernidade. Afinal, o candombl do mundo, e como estamos numa

    era de ambigidades, enquanto os filhos so feitos nas casas mais

    tradicionais, dormindo em esteiras, tomando banhos na madrugada e

    tendo seus cabelos raspados, o lpis, o papel, o gravador e as cmeras

    entram nos terreiros mais modernos para auxiliar no aprendizado dos

    nefitos, que podem contar com estas inovaes j que no tm mais a

    disponibilidade de outrora.

    Fotografar os orixs: uma polmica

    Conforme Jos da Silva Ribeiro, coordenador do Laboratrio de

    Antropologia Visual da Universidade Aberta de Lisboa, A primeira

    funo das imagens em antropologia foi (e ) documentar, isto , criar

    5 Imagens de mesas oferecidas para os Orixs Oxal e Ogum. Todas as comidas so preparadas ritualisticamente pelos filhos-de-santo. Os alimentos exprimem as caractersticas dos Orixs que as recebe.

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    algo portador de informao que traz em si a inscrio e o registro de um

    acontecimento observvel ou verificvel.

    Acontece que a observao etnogrfica nos terreiros de candombl

    se d lenta e cuidadosamente, pois a comunidade se acautela para que

    nem tudo possa ser visto pelo observador. Nem sempre a presena em

    cerimnias aberta a todos, e em terreiros mais conservadores mesmo

    para aqueles que so filhos6 a presena nos ritos restrita. Essa a

    base do candombl, isto , o segredo faz parte da estrutura dessa

    religio e constitui a base primordial do poder, o que corrobora a idia

    de Michel Foucault que pensa o duplo saber-poder7. Isso significa que

    aquele que detm o segredo pode realizar, por exemplo, as diversas

    etapas do processo de iniciao. A iniciao no candombl um rito de

    passagem constitudo de inmeras fases que para serem aprendidas, o

    aspirante a pai ou me-de-santo dever estar presente em muitas

    dessas cerimnias, uma vez que somente atravs da sua participao

    em inmeras delas que ser possvel aprender o ritual.

    por intermdio do incansvel ato de presenciar que se faz o

    aprendizado numa comunidade de tradio oral, e nesse contexto a

    fotografia, assim como o gravador e as filmadoras, que poderiam numa

    viso moderna serem auxiliadores da obteno de conhecimento,

    encontram muitos obstculos por conta do carter tradicional que o

    candombl apresenta. Nos terreiros tradicionais de Salvador, nas

    pocas das festas pblicas aonde os orixs vm danar e

    confraternizar com os homens, mesmo que possam ser vistos por todos

    aqueles que estiverem presentes, proibido qualquer registro fotogrfico

    por qualquer um dos presentes.

    A imagem ao mesmo tempo em que fascina, gera desconfiana.

    Como pensou Beloff, a fotografia explicita uma mistura de informao,

    acaso, esttica e inteno, e alm da transmisso do fato, o que pode

    preocupar nos terreiros do candombl a possibilidade que a fotografia

    6 Como so chamados os adeptos de um terreiro de candombl 7 A relao saber/poder recorrentemente trabalhada na obra de Michel Foucault.

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    tem de construir sua verso dos acontecimentos de forma viva e

    fascinante, mas tambm intencional.

    A idia de tornarem-se os estranhos e os fornecedores do

    espetculo num mundo em exposio, no atrai os pais e mes-de-

    santo dos velhos terreiros baianos. Outra exposio visual que tem

    preocupado os adeptos do candombl so as atuais converses para

    modernas igrejas televisivas, principalmente a Igreja Universal do Reino

    de Deus que mostram filmes realizados em terreiros e associam seus

    contedos como obras do demnio. Essa deturpao da imagem dos

    orixs tem se tornado forte argumento para a no utilizao das

    filmadoras e mquinas fotogrficas nas festas pblicas. Alm disso, as

    mes e pais-de-santo desses terreiros tradicionais baianos no expem

    com facilidade suas figuras para os que pouco conhecem, pois pensam

    que suas imagens podem ser indevidamente utilizadas para

    fortalecerem nomes de terreiros mais novos e de raiz pouco explcita,

    alm de oferecerem, em caso de documentrios, matria que se no for

    bem interpretada, pode vir a prejudicar suas imagens perante a

    sociedade como um todo.

    Mesmo com todas estas dificuldades encontradas nos terreiros

    tradicionais, Pierre Fatumbi Verger retratou as religies afro-

    descendentes no Brasil, frica e Cuba no seu consagrado livro Orixs.

    Embora seja proibida a entrada de filmadoras e mquinas fotogrficas

    nos terreiros baianos mais tradicionais, Verger fotografou inmeras

    manifestaes de Orixs em terreiros do estado da Bahia e

    Pernambuco. Esse livro causou grande polmica entre os adeptos do

    candombl, pois o trabalho fotogrfico mostra muitas cenas de iniciao

    em frica, consideradas secretas pela comunidade do candombl.

    Mesmo assim, essa importante obra de antropologia visual tornou-se o

    livro de cabeceira para muitos pais e mes-de-santo de So Paulo que,

    na sua maioria8, por causa da prpria procedncia histrica do

    8 A menos que esses pais ou mes-de-santo fossem de origem nordestina, que neste caso j traziam em sua bagagem histrica a presena do candombl que j era cultuado por algum de sua famlia biolgica.

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    candombl paulista, no possuam conhecimentos herdados de uma

    tradio apreendida de ancestrais africanos.

    O desabrochar do candombl em So Paulo se deu por volta dos

    anos 60 do sculo XX e a seu estabelecimento no espao paulista

    coincidiu com uma efervescncia cultural e de mentalidades no Brasil e

    no mundo, alm de acontecer num momento de intenso processo

    migratrio que atingiu a metrpole e levou para l um significativo

    contingente de nordestinos. Se, com a dispora, as religies tradicionais

    dos africanos se transformaram por causa da interao com as diversas

    culturas que se encontraram no Brasil, no contexto metropolitano,

    segundo Bernardo: o jogo entre continuidade e ruptura, j existente no

    interior do candombl, torna-se mais tenso ainda e, nesse movimento,

    ocorre a inveno. As tradies se fragmentam, as rupturas so

    infindveis (BERNARDO, 1996: 114).

    Foto de Pierre Verger: Orixs.

    Foto Syntia Alves: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda9

    9 A imagem retratada por Verger foi realizada num momento sagrado de um ritual de iniciao na frica. Os rituais iniciticos so muito semelhantes entre Brasil e frica, porm no Brasil esse momento muito reservado e proibido para aqueles que no tem o devido grau hierrquico. A segunda imagem foi feita numa festa pblica de iniciao chamada sada de ia. Apesar da proximidade esttica das fotos, elas se diferenciam fortemente em um ponto: a imagem de Verger um momento que no candombl

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    Contudo, a cultura depende de sua tradio, mesmo que esta

    esteja em permanente construo; desta forma, se h rupturas no

    candombl paulista, tambm h continuidades. As ressignificaes que

    se processam nos candombls paulistas, do-lhes nova face, porm no

    os priva de sua identidade. Na cosmopolita So Paulo, o povo-de-santo,

    conforme Bernardo, reinventa atravs de seus rituais a sua religio,

    introduzindo elementos da modernidade no seu interior. (Bernardo,

    1998: 114)

    Wagner Gonalves, ao investigar o candombl na ps-

    modernidade, numa metrpole como So Paulo, escreve: O candombl

    na era do chip, os jogos de bzios em pleno Viaduto do ch no Centro de

    So Paulo, tanto quanto sacrifcios ainda realizados nas avenidas das

    principais cidades da frica Ocidental ou de Miami, indicam que religies

    mgicas e politestas tambm podem se expandir e atuar em contextos

    nos quais j se dissolveram as antigas lealdades tribais ou rurais

    (Gonalves, 1995: 32).

    Hoje no h mais barreiras para os deuses que outrora

    pertenciam a um determinado grupo e afirmavam laos ancestrais. Na

    metrpole paulistana, negros, brancos, pobres, ricos, homens e

    mulheres podem ser do candombl, ter manifestao de um Orix,

    como se fazia anteriormente nas terras africanas, porm agora num

    outro contexto, que o da modernidade.

    Assim sendo, o candombl de So Paulo no s permite como

    tornou importante a presena de mquinas fotogrficas e filmadoras

    nas festas de sada de ia10, nas confirmaes de ebomi11, entre outras.

    A fotografia est presente nos terreiros e testemunha a histria de sua

    existncia, alm de encontrar nesse espao a funo que encontra em

    tantos outros que o uso da imagem como ampliao de um momento

    que o terreiro quer deixar para a posteridade. Porm, as cerimnias

    interno e secreto, j a imagem da direita um momento pblico no qual a exposio desejada, principalmente nos candombls de So Paulo. 10 Apresentao pblica do nefito. 11 Ebomi: irmo mais velho, aquele que tem sete anos ou mais de iniciado e que j passou por uma cerimnia de confirmao.

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    iniciticas ainda so preservadas das mquinas fotogrficas, pois toda a

    comunidade do candombl acautela-se para que cada terreiro

    mantenha essas cerimnias restritas a um domnio reservado; isto

    impenetrvel em virtude do mistrio que as cercam. Contudo os

    candombls paulistas nasceram numa sociedade industrializada,

    moderna, numa cidade em plena expanso econmica e cultural, e por

    isso no se permitem sucumbir perante aos apelos das idias mais

    tradicionais. Para sobreviver acertam o passo e se deixam seduzir pela

    modernidade.

    Fotos Syntia Alves12

    Desta forma, quando o pesquisador filma, fotografa e grava

    entrevistas dentro de um candombl, acaba por produzir um trabalho

    que possibilita a antropologia se armar com a evidncia visual que ir

    alm da constatao da existncia do outro, pois revela tambm a

    alteridade. A utilizao da imagem e seu emprego como forma de

    transmisso de conhecimento, no caso dos terreiros de candombl de

    So Paulo, concretiza uma eficaz juno entre a antropologia visual e a

    escrita, possibilitando uma melhor sondagem do fenmeno.

    12 Imagens do terreiro em um dia de trabalho para os orixs: na foto da esquerda a filha de santo prepara a comida que ser servida para o orix. Na foto da direita, filhos desfiam folhas de palmeira que iro enfeitar as portas e janelas alm de espantar os espritos indesejveis.

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    Na metrpole, os registros de imagem, sons e audiovisuais so

    sempre bem vindos nas festas pblicas uma vez que popularizam o

    terreiro trazendo mais filhos e clientes. Do mesmo modo, quando um

    terreiro ou me-de-santo so escolhidos para serem sujeitos de um

    trabalho acadmico motivo de orgulho e publicidade.

    Desta forma, o candombl da metrpole abre muitas portas para

    o pesquisador que vem munido com as mais novas tecnologias digitais,

    e embora no v registrar todos os momentos, conseguir com as novas

    possibilidades que os candombls da modernidade oferecem, ampliar os

    mtodos tradicionais de pesquisa, e atravs da produo e anlise das

    produes fotogrfica elaborar um bloco de notas, extraordinariamente

    eficaz, alm de tornar o trabalho muito mais atrativo.

    Bibliografia

    BELLOF, Halla (1985). Camera Culture. Oxford: Basil Blackwell.

    BERNARDO, Teresinha (1996). Tradio e Contemporaneidade. In: Simbologia - Tradio e mitos Afro-brasileiros. Recife: Ed. Massangana.

    __________ (1998). Memria em Branco e Negro. Olhares Sobre So Paulo. So Paulo: Ed. Educ, editora Unesp.

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    VERGER, Pierre Fatumbi (1951). Orixs. Salvador: Tipografia Beneditina Ltda.

    RIBEIRO, Jos da Silva (2005). Antropologia Visual, prticas antigas e novas perspectivas de investigao. In: Revista Antropologia, vol. 48. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S003477012005000200007&script=sci_arttext (consultado em 15/07/2007).