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7 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 1º de setembro de 2008 vem a distribuição, a exibição... Fernão Ramos Sem dúvi- da. Esses são obstáculos a serem ven- cidos. Colocar um filme no mercado não é uma tarefa trivial. Há vigor na produção, mas por outro lado há uma carência imensa em termos de exibi- ção. O que acontece é que a reflexão sobre o cinema fica sempre em torno da estética, que é importante, mas não deve ser a única. Para você ter uma idéia, tem filme de ficção que capta R$ 4 milhões ou R$ 5 milhões do Es- tado brasileiro em isenção fiscal e depois arrecada R$ 40 mil de bilhete- ria. Esse é um ponto que também merece reflexão. JU Ainda sobre a vitalida- de da produção documentária nacional, ela de alguma forma influencia a produção acadêmi- ca? Tem mais gente interessa- da em pesquisar esse tema na universidade? Fernão Ramos Sim. Eu, por exemplo, oriento vários alunos que pesquisam o tema. Temos um centro de pesquisa, o Cepecidoc [Centro de Pesquisas de Cinema Documentário da Unicamp] que conta com a parti- cipação de diversos pesquisadores, alunos e professores. Citando de memória, creio que já somamos per- to de 20 dissertações e teses defendi- das aqui no Instituto de Artes especi- ficamente sobre cinema documentá- rio. Além disso, há congressos inter- nacionais, simpósios e festivais im- portantes sobre documentário. Como estou há bastante tempo na área, penso ter uma visão abrangente da cena atual, e ela tem demonstrado vigor. O tema tem merecido inclusive um espaço mui- to interessante na mídia. Não sei quan- to tempo vai durar esse interesse, mas espero que ele tenha vida longa. JU Em relação à produção de documentários, como ela está distribuída pelo país? Ain- da está concentrada no eixo Sul-Sudeste? Fernão Ramos Esse é um problema. O governo federal tem um programa chamado DOCTV, cuja co- leção completa de filmes [são cerca de 160 produções] o Instituto está comprando com o auxílio do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico, ór- gão do Ministério da Ciência e Tecnologia]. Esse programa tenta fo- mentar os chamados ‘pontos de cul- tura’ pelo país afora. Os pontos estão localizados em regiões isoladas, co- munidades carentes, favelas etc. Está sendo dada certa ênfase para a ques- tão regional. Ou seja, há a possibili- dade da destinação de recursos para que as pessoas retratem o próprio meio em que vivem. Já a produção de longa-metragem, mais voltada para o mercado, está fortemente concentra- da no eixo Rio-São Paulo. Mas penso que essa concentração é menor do que já foi e menor ainda em relação ao cinema de ficção. tes do documentário diversos canais dedicados ao docu- mentário, com uma forma narrativa própria que eu chamo de ‘documen- tário cabo’. São canais como History Channel, Discovery Channel, Animal Planet , GNT, BBC, que trazem documentários sobre personagens da história, personalidades e eventos atuais, vida animal, aviões de guerra, construções de pontes, dinossauros, vida em Marte etc. Tem muita porca- ria, mas também há coisas de boa qua- lidade. O fato de os documentários en- trarem na nossa casa, de alguma forma ajuda o espectador a começar a gos- tar e até mesmo a entender o gênero. JU Muitas pessoas ainda acham o documentário chato? Fernão Ramos Sim, ainda existe essa visão, principalmente em relação às produções clássicas. Mui- tas pessoas ainda acham o formato chato, com aquela voz fora-de-cam- po, com o tom didático etc. Mas hoje em dia o documentário é muito dife- rente. Temos trabalhos de vanguarda com experiências narrativas extrema- mente sofisticadas. No caso brasilei- ro, podemos lembrar de diretores como Cao Guimarães (‘Da Janela de Meu Quarto’), Kiko Goifman (‘33’), Carlos Nader (‘Preto e Branco’), Lucas Bambozzi (‘Do Outro Lado do Rio’), Carlos Adriano (‘A Voz e o Vazio: a Vez de Vassourinhas’) e Sandra Kogut (‘Passaporte Húngaro’) que desenvolvem documentários em primeira pessoa ou experimentais, na fronteira com a videoarte. Documen- tário não é somente ‘fronteiras’, mas também é isso. Outro ponto importan- te que a gente poderia apontar, ainda em relação ao fortalecimento da pro- dução, é a proliferação de câmeras por meio da tecnologia digital. Pratica- mente todo mundo tem sua câmara hoje em dia. Anteriormente, você ti- nha uma bobina que durava dez mi- nutos. E tinha a película, que é extre- mamente cara. Atualmente, a coisa está muito mais simples. A garotada está filmando muito no formato digi- tal. Depois, basta montar no computa- dor e colocar no YouTube, por exem- plo. Essas novas tecnologias também corroboram para esse crescimento ex- pressivo da produção documentária. JU O senhor falou sobre internet. Ela é uma plataforma interessante para a exibição de documentários? Fernão Ramos Olha, eu não vejo problema algum em exibir na internet. A internet pode ser uma mídia como outra qualquer. Você pode pegar um documentário clássico como Cabra marcado para morrer e passar na televisão, visto que é feito a partir de uma estética televisiva, mas passar também na internet. O que ocorre com o YouTube, por exemplo, é que ele fatia a obra. Se você preten- de exibir um documentário de 45 mi- nutos, você tem obrigatoriamente que dividi-lo em três pedaços, para que caiba inteiro no site. Mas também pode ter algo voltado especificamen- te para esse tipo de mídia. É mais uma janela possível. JU Como o senhor mesmo citou, a produção documentária brasileira tem demonstrado vi- gor. Mas a produção é apenas uma das etapas que precisam ser cumpridas, não é? Depois Título: Mas afinal... O que é mesmo documentário? Autor: Fernão Pessoa Ramos Editora: Senac Páginas: 448 Preço sugerido: R$ 65,00 Serviço Serviço No sentido horário, a partir das fotos acima, cenas de “Ônibus 174”, “Justiça”, “À Margem da Imagem”, “Notícias de uma Guerra Particular”, “33” e “Entreatos” Fotos: Reprodução/Luis Paulo Silva Foto: Antoninho Perri Fernão Ramos: “A definição da narrativa documentária é uma questão sempre presente”

Fotos: Reprodução/Luis Paulo Silva Foto: Antoninho PerriVazio: a Vez de Vassourinhas’) e Sandra Kogut (‘Passaporte Húngaro’) que desenvolvem documentários em primeira pessoa

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Page 1: Fotos: Reprodução/Luis Paulo Silva Foto: Antoninho PerriVazio: a Vez de Vassourinhas’) e Sandra Kogut (‘Passaporte Húngaro’) que desenvolvem documentários em primeira pessoa

7JORNAL DA UNICAMPCampinas, 1º de setembro de 2008

vem a distribuição, a exibição...Fernão Ramos – Sem dúvi-

da. Esses são obstáculos a serem ven-cidos. Colocar um filme no mercadonão é uma tarefa trivial. Há vigor naprodução, mas por outro lado há umacarência imensa em termos de exibi-ção. O que acontece é que a reflexãosobre o cinema fica sempre em tornoda estética, que é importante, mas nãodeve ser a única. Para você ter umaidéia, tem filme de ficção que captaR$ 4 milhões ou R$ 5 milhões do Es-tado brasileiro em isenção fiscal edepois arrecada R$ 40 mil de bilhete-ria. Esse é um ponto que tambémmerece reflexão.

JU – Ainda sobre a vitalida-de da produção documentárianacional, ela de alguma formainfluencia a produção acadêmi-ca? Tem mais gente interessa-da em pesquisar esse tema nauniversidade?

Fernão Ramos – Sim. Eu, porexemplo, oriento vários alunos quepesquisam o tema. Temos um centrode pesquisa, o Cepecidoc [Centro dePesquisas de Cinema Documentárioda Unicamp] que conta com a parti-cipação de diversos pesquisadores,alunos e professores. Citando dememória, creio que já somamos per-to de 20 dissertações e teses defendi-das aqui no Instituto de Artes especi-ficamente sobre cinema documentá-rio. Além disso, há congressos inter-nacionais, simpósios e festivais im-portantes sobre documentário. Comoestou há bastante tempo na área, pensoter uma visão abrangente da cena atual,e ela tem demonstrado vigor. O tematem merecido inclusive um espaço mui-to interessante na mídia. Não sei quan-to tempo vai durar esse interesse, masespero que ele tenha vida longa.

JU – Em relação à produçãode documentários, como elaestá distribuída pelo país? Ain-da está concentrada no eixoSul-Sudeste?

Fernão Ramos – Esse é umproblema. O governo federal tem umprograma chamado DOCTV, cuja co-leção completa de filmes [são cerca

de 160 produções] o Instituto estácomprando com o auxílio do CNPq[Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico, ór-gão do Ministério da Ciência eTecnologia]. Esse programa tenta fo-mentar os chamados ‘pontos de cul-tura’ pelo país afora. Os pontos estãolocalizados em regiões isoladas, co-munidades carentes, favelas etc. Estásendo dada certa ênfase para a ques-tão regional. Ou seja, há a possibili-dade da destinação de recursos paraque as pessoas retratem o própriomeio em que vivem. Já a produção delonga-metragem, mais voltada para omercado, está fortemente concentra-da no eixo Rio-São Paulo. Mas pensoque essa concentração é menor do quejá foi e menor ainda em relação aocinema de ficção.

tes do documentário

diversos canais dedicados ao docu-mentário, com uma forma narrativaprópria que eu chamo de ‘documen-tário cabo’. São canais como HistoryChannel, Discovery Channel, AnimalPlanet, GNT, BBC, que trazemdocumentários sobre personagens dahistória, personalidades e eventosatuais, vida animal, aviões de guerra,construções de pontes, dinossauros,vida em Marte etc. Tem muita porca-ria, mas também há coisas de boa qua-lidade. O fato de os documentários en-trarem na nossa casa, de alguma formaajuda o espectador a começar a gos-tar e até mesmo a entender o gênero.

JU – Muitas pessoas aindaacham o documentário chato?

Fernão Ramos – Sim, aindaexiste essa visão, principalmente emrelação às produções clássicas. Mui-tas pessoas ainda acham o formatochato, com aquela voz fora-de-cam-po, com o tom didático etc. Mas hojeem dia o documentário é muito dife-rente. Temos trabalhos de vanguardacom experiências narrativas extrema-mente sofisticadas. No caso brasilei-

ro, podemos lembrar de diretorescomo Cao Guimarães (‘Da Janela deMeu Quarto’), Kiko Goifman (‘33’),Carlos Nader (‘Preto e Branco’),Lucas Bambozzi (‘Do Outro Lado doRio’), Carlos Adriano (‘A Voz e oVazio: a Vez de Vassourinhas’) eSandra Kogut (‘Passaporte Húngaro’)que desenvolvem documentários emprimeira pessoa ou experimentais, nafronteira com a videoarte. Documen-tário não é somente ‘fronteiras’, mastambém é isso. Outro ponto importan-te que a gente poderia apontar, aindaem relação ao fortalecimento da pro-dução, é a proliferação de câmeras pormeio da tecnologia digital. Pratica-mente todo mundo tem sua câmarahoje em dia. Anteriormente, você ti-nha uma bobina que durava dez mi-nutos. E tinha a película, que é extre-mamente cara. Atualmente, a coisaestá muito mais simples. A garotadaestá filmando muito no formato digi-tal. Depois, basta montar no computa-dor e colocar no YouTube, por exem-plo. Essas novas tecnologias tambémcorroboram para esse crescimento ex-pressivo da produção documentária.

JU – O senhor falou sobreinternet. Ela é uma plataformainteressante para a exibição dedocumentários?

Fernão Ramos – Olha, eu nãovejo problema algum em exibir nainternet. A internet pode ser umamídia como outra qualquer. Você podepegar um documentário clássicocomo Cabra marcado para morrer epassar na televisão, visto que é feito apartir de uma estética televisiva, maspassar também na internet. O queocorre com o YouTube, por exemplo,é que ele fatia a obra. Se você preten-de exibir um documentário de 45 mi-nutos, você tem obrigatoriamente quedividi-lo em três pedaços, para quecaiba inteiro no site. Mas tambémpode ter algo voltado especificamen-te para esse tipo de mídia. É mais umajanela possível.

JU – Como o senhor mesmocitou, a produção documentáriabrasileira tem demonstrado vi-gor. Mas a produção é apenasuma das etapas que precisamser cumpridas, não é? Depois

Título:Mas afinal... O que é mesmo

documentário?Autor:

Fernão Pessoa RamosEditora:Senac

Páginas:448

Preço sugerido:R$ 65,00

ServiçoServiço

No sentido horário, a partirdas fotos acima, cenas de“Ônibus 174”, “Justiça”,“À Margem da Imagem”,“Notícias de uma Guerra

Particular”,“33” e “Entreatos”

Fotos: Reprodução/Luis Paulo Silva Foto: Antoninho Perri

Fernão Ramos: “A definição da narrativa documentária é uma questão sempre presente”