Foucault - Berkeley - Problematização

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Aulas de Michel Foucault em Berkeley. Tema: problematização

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    PROMETEUS - Ano 6 - Nmero 13 Edio Especial - E-ISSN: 2176-5960

    6. CONFERNCIA: OBSERVAES FINAIS

    E agora algumas palavras sobre esse seminrio. O ponto de partida. Minha inteno no era lidar com o problema da verdade, mas com o problema de dizer a verdade ou do que diz a verdade como uma atividade. Com isso quero dizer que, para mim, no era uma questo de analisar os critrios internos ou externos que possam permitir a gregos e romanos, ou a qualquer outro povo, reconhecer se uma declarao ou proposio verdadeira ou no. A questo para mim foi, outrossim, a tentativa de considerar dizer a verdade como uma atividade especfica ou como um papel.

    Mas, mesmo no mbito dessa questo geral do papel do narrador da verdade em uma sociedade, havia vrias maneiras possveis de realizar a anlise. Por exemplo: eu poderia ter comparado o papel e o status dos contadores de verdade na sociedade grega, nas sociedades crists, nas sociedades no crists o papel do profeta como um narrador da verdade, o papel do orculo como um contador de verdade, o papel do poeta, do perito, do pregador, e assim por diante.

    Mas, na verdade, a minha inteno no era realizar uma descrio sociolgica dos diferentes papis possveis para contadores de verdade em diferentes sociedades. O que eu queria era analisar como o papel do narrador da verdade foi diversas vezes problematizado na filosofia grega. E o que eu queria mostrar era que, se a filosofia grega levantou a questo da verdade do ponto de vista dos critrios para afirmaes verdadeiras e raciocnios cogentes, essa mesma filosofia grega tambm levantou o problema da verdade, do ponto de vista de dizer a verdade como uma atividade. Ela levantou questes como: Quem capaz de dizer a verdade? Quais so as condies ticas, morais e espirituais que do direito a algum se apresentar como e ser

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    considerado como um narrador da verdade? Sobre que temas importante dizer a verdade? (Sobre o mundo? Sobre a natureza? Sobre a cidade? Sobre o comportamento? Sobre o homem?) Quais so as consequncias de dizer a verdade? Quais so seus efeitos positivos esperados para a cidade, para os governantes da cidade, para o indivduo, etc.? E finalmente: Qual a relao entre a atividade de dizer a verdade e o exerccio do poder, ou deveriam essas atividades ser completamente independentes e mantidas separadas? So elas separveis ou uma exige a outra? Essas quatro questes sobre o dizer a verdade como uma atividade quem capaz de dizer a verdade, sobre o qu, com que consequncias e com qual relao com o poder parecem ter surgido como problemas filosficos no final do sculo 5 em torno de Scrates, especialmente atravs de seus confrontos com os sofistas sobre poltica, retrica e tica.

    E eu diria que a problematizao da verdade o que caracteriza tanto o fim da filosofia pr-socrtica quanto o incio do tipo de filosofia que ainda hoje a nossa. Essa problematizao da verdade tem dois lados, dois grandes aspectos. Um lado est preocupado em assegurar que o processo de raciocnio est correto para determinar se uma declarao verdadeira (ou preocupar-se com a nossa capacidade de ter acesso verdade). E o outro lado est preocupado com a questo: Qual a importncia para o indivduo e para a sociedade de dizer a verdade, de conhecer a verdade, de ter pessoas que dizem a verdade, bem como saber como reconhec-las? No lado que se preocupa em determinar como garantir que uma afirmao verdadeira temos as razes da grande tradio da filosofia ocidental, que eu gostaria de chamar de analtica da verdade. E no outro lado, preocupado com a questo da importncia de dizer a verdade, de saber quem capaz de dizer a verdade, e saber por que devemos dizer a verdade, temos as razes do que poderamos chamar a tradio crtica no Ocidente. E aqui vocs vo reconhecer um dos meus objetivos nesse seminrio, qual seja, a construo de uma genealogia da atitude crtica na filosofia ocidental. Isso constituiu o objetivo geral desse seminrio.

    Do ponto de vista metodolgico, gostaria de destacar o seguinte tema. Como vocs devem ter notado, eu utilizei a palavra problematizao frequentemente nesse seminrio sem fornecer-lhes uma explicao do seu significado. Eu disse muito brevemente que o que eu pretendia analisar na maior parte do meu trabalho no era o comportamento nem das pessoas do passado (o que algo que pertence ao campo da histria social), nem ideias em seus valores representativos. O que eu tentei fazer desde

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    o incio foi analisar o processo de problematizao - o que significa: Como e por que certas coisas (comportamento, fenmenos, processos) tornaram-se um problema? Por que, por exemplo, determinadas formas de comportamento foram caracterizadas e classificadas como loucura, enquanto outras formas similares foram completamente negligenciadas em um dado momento histrico? A mesma coisa para o crime e a delinqncia. A mesma pergunta de problematizao para a sexualidade.

    Algumas pessoas interpretaram esse tipo de anlise como uma forma de idealismo histrico, mas eu acho que essa anlise completamente diferente. Pois quando digo que estou estudando a problematizao da loucura, do crime ou da sexualidade, isso no uma forma de negar a realidade de tais fenmenos. Pelo contrrio, tentei mostrar que era precisamente algo realmente existente no mundo que foi alvo de regulao social em um dado momento. A questo que se coloca essa: Como e por que algumas coisas muito diferentes no mundo foram postas juntas, caracterizadas, analisadas e tratadas como, por exemplo, a doena mental? Quais so os elementos que so relevantes para uma determinada problematizao?

    E mesmo que eu no venha a dizer que o que caracterizado como esquizofrenia corresponda a algo real no mundo, isso no tem nada a ver com idealismo. Pois eu acho que h uma relao entre a coisa que problematizada e o processo de problematizao. A problematizao uma resposta a uma situao concreta que real.

    H tambm uma interpretao errnea segundo a qual nossa anlise de uma dada problematizao est fora de qualquer contexto histrico, como se fosse um processo espontneo surgido de um lugar qualquer. Na verdade, porm, tentei mostrar, por exemplo, que a nova problematizao da doena mental ou da doena fsica no final do sculo 18 estava muito diretamente ligada a uma modificao em vrias prticas, ou ao desenvolvimento de uma nova reao social s doenas, ou ao desafio apresentado por determinados processos, e assim por diante. Mas temos que entender muito claramente, acho, que uma determinada problematizao no um efeito ou uma consequncia de um contexto histrico ou situao, mas uma resposta dada por determinados indivduos (embora se possa encontrar essa mesma resposta dada em uma srie de textos e a certa altura a resposta possa tornar-se to geral que tambm se torna annima).

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    Por exemplo, no que diz respeito ao modo que a parrhesia foi problematizada em um dado momento, podemos ver que h respostas socrtico-platnicas especficas s perguntas: Como podemos reconhecer algum como um parrhesiastes? Qual a importncia de se ter um parrhesiastes na cidade? Qual a formao de um bom parrhesiastes? Respostas que eram dadas por Scrates ou por Plato. Essas respostas no so coletivas, originadas a partir de algum inconsciente coletivo. E o fato que a resposta no seja nem uma representao nem um efeito de uma situao no significa que no responda a nada, que seja puro sonho ou uma anticriao. Uma problematizao sempre uma espcie de criao, mas uma criao no sentido de que, dada uma determinada situao, no se pode inferir que esse tipo de problematizao se seguir. Dada uma certa problematizao, s se pode entender por qual razo esse tipo de resposta surge como uma resposta a algum aspecto concreto e especfico do mundo. A est a relao entre pensamento e realidade no processo de problematizao. E essa a razo pela qual acho que possvel dar uma resposta, a resposta original, especfica e singular do pensamento a uma determinada situao. E esse o tipo de relao especfica entre a verdade e a realidade que tentei analisar nas vrias problematizaes da parrhesia.