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FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI CORPOS, I NSTITUIÇÕES E SUBJETIVIDADES

Foucault, Deleuze e Guattari -- Corpos, Instituicoes e Subjetividades

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Foucault, Deleuze e Guattari -- Corpos, Instituicoes e Subjetividades

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  • FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI

    CORPOS, INSTITUIES E SUBJETIVIDADES

  • FOUCAULT E

    DELEUZE/GUATTARICORPOS, INSTITUIES E

    SUBJETIVIDADES

    HLIO REBELLO CARDOSO JNIORFLVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS

    O R G A N I Z A D O R E S

  • FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI:CORPOS, INSTITUIES E SUBJETIVIDADES

    Coordenao de produo Ivan AntunesProduo Rai Lopes Paginao

    Reviso ?Capa Carlos Clmen

    Finalizao Lvia

    CONSELHO EDITORIALEduardo Peuela Caizal

    Norval Baitello JuniorMaria Odila Leite da Silva Dias

    Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

    Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)Pedro Roberto Jacobi

    Lucrcia DAlssio Ferrara

    1 edio: julho de 2011 Hlio Rebello Cardoso Jnior | Flvia Cristina Silveira Lemos

    ANNABLUME editora . comunicaoRua M.M.D.C., 217 . Butant

    05510-021 . So Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (011) 3812-6764 Televendas 3031-1754

    www.annablume.com.br

    Infothes Informao e Tesauro

    Catalogao elaborada por Wanda Lucia Schmidt CRB-8-1922

  • Agradecimentos

    Agradecemos Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de SoPaulo (FAPESP) pelo fomento s pesquisas realizadas pelos estudiososque escrevem os captulos deste livro! Tambm somos gratos FAPESPpela co-editoria deste livro e pelo apoio financeiro dedicado para talpublicao!

    Um agradecimento especial Universidade Estadual Paulista Jliode Mesquita Filho (UNESP-Assis/SP) por ter oferecido toda sua infra-estrutura para a realizao das pesquisas aqui apresentadas!

    Tambm relevante agradecer ao Grupo de Pesquisa: Deleuze/Guattari e Foucault, elos e ressonncias pelo apoio e colabo-rao nas discusses dos estudos aqui publicados!

    Um agradecimento especial ao professor e pesquisador Hlio RebelloCardoso Jnior pela competncia e disponibilidade, pelo esprito crticoe acolhimento tico constante em sua trajetria acadmica!

  • Uma teoria como uma caixa de ferramentas. preciso que sirva, preciso que funcione.

    Gilles Deleuze

  • Sumrio

    Prefcio| 11 |

    Cap. 1 | Foucault, histria do presente e ontologia histrica:o que estamos nos tornando?Hlio Rebello Cardoso Jnior

    | 15 |

    Cap. 2 | A genealogia foucaultiana como ferramentapara a escrita da histria do presente

    Lucas de Almeida Pereira| 27 |

    Cap. 3 | Amizade, em Foucault, e vida no fascista, em Deleuze eGuattari: modos de vida a favor da diferena

    Thiago Canonenco Naldinho| 41 |

    Cap. 4 | Um estudo sobre os modos de subjetivao naSociedade Disciplinar e de Controle a partir dosagenciamentos existentes na Contemporaneidade

    Mirela Fernanda de Freitas Alves| 55 |

  • Cap. 5 | Estudo sobre a sociedade disciplinar no pensamento deFoucault e a sociedade de controle no pensamento de Deleuze:

    sobre o papel da instituio educacional e o controle na infnciaVivian de Jesus Correia e Silva

    | 75 |

    Cap. 6 | Por que ainda acreditar na escola: uma busca pelatransformao das relaes pedaggicas atravs da

    esttica da existncia e da amizadeLucilla Panacioni de Arajo

    | 95 |

    Cap. 7 | Foucault, com Deleuze e Guattari: problematizando asidentidades culturais, o ideal de progresso e de desenvolvimento

    nas prticas da Unesco e Unicef no BrasilFlvia Cristina Silveira Lemos

    | 115 |

    Cap. 8 | Prticas de conselhos tutelares emdois municpios do interior paulista

    Jeyson Muruyama; Andressa Kelly Bardella Monteiro;Priscila Rabelo de Souza; Flvia Cristina Silveira Lemos

    | 125 |

  • Prefcio

    FLVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOSHLIO REBELLO CARDOSO JNIOR

    Os textos reunidos nesta coletnea so frutos de projetos integradospela linha de pesquisa Ideia de histria e temas histricos em Deleuze/Guattari e Foucault, do Grupo de Pesquisas Deleuze/Guattari e Foucault:elos e ressonncias, certificado desde 2004 pela UNESP, junto aoDiretrio de Grupos do CNPq, cujo lder, professor de Filosofia da UNESP/Assis, o organizador do presente volume, juntamente com apesquisadora Flvia Cristina Silveira Lemos. Todos os demais co-autoresforam alunos da UNESP e estiveram sob a orientao do professor Dr.Hlio Rebello Cardoso Jnior, em projetos de pesquisa financiados pelaFAPESP e pela CAPES.

    Hlio Rebello Cardoso Jnior, no captulo de abertura Foucault,histria do presente e ontologia histrica: o que estamos nos tornando? corajosamente afirma que pretende pensar uma relao entre umahistria do presente e uma ontologia histrica, por meio da intercessode Foucault e Deleuze, em que este destaca como Foucault constituaontologias histricas: o ser-saber, o ser-poder e o ser-si. Foucaulte Deleuze produziriam uma filosofia da imanncia, problematizadorado presente, por meio de uma ontologia histrica de ns mesmos: o queestaramos deixando de ser e nos tornando? Seria no ponto deconfluncia entre disciplina e controle que Foucault e Deleuzepossibilitam a construo de uma histria do presente como ontologiahistrica de ns mesmos.

  • 12 FOUCAULT E DELEUZE/GUATTARI

    Lucas de Almeida Pereira, no captulo Genealogia foucaultiana comoferramenta para a escrita da histria do presente, busca analisar algunsconceitos fundamentais, como o de acontecimento, o de descontinuidadee a crtica noo de origem, para a compreenso da historicidadedentro da fase do pensamento de Michel Foucault conhecida comogenealogia, no mbito de uma histria do presente.

    Thiago Canonenco Naldinho, em seu captulo Amizade, emFoucault, e vida no fascista, em Deleuze e Guattari: modos de vida afavor da diferena , apropria-se do pensamento de Foucault, Deleuze eGuattari, fazendo deles operadores conceituais para produzir resistnciase mquinas de guerra, frente ao panorama da sociedade contempornea.A pergunta apresentada gira em torno de como criar uma tica, estticae poltica da vida que rompa com os microfascismos e tentativas sutisde captura do Capitalismo Mundial Integrado. Como fazer da amizadeestabelecida entre Foucault, Deleuze e Guattari um potente dispositivode deslocamento do pensamento e, de modo imanente, um processo desingularizao da existncia?

    Mirela Fernanda de Freitas Alves, no captulo Um estudo sobre acaracterizao dos modos de subjetivao nas Sociedades Disciplinar eControle a partir dos agenciamentos existentes na Contemporaneidade,interroga os processos de subjetivao engendrados por meio dosmecanismos disciplinares e de controle, problematizando suas tticasespecficas e compostas em dispositivos materiais e concretos queinvestem os corpos, na sociedade contempornea. Da modelizaoindividualizante e fixa em subjetividades homogneas, na sociedadedisciplinar, opera-se uma transio para uma modulao fluida, emmeio-aberto e veloz, em que se passa a falar de uma marcao daidentidade pela diferena, um novo ser fragmentado, que se reveste deidentidades mltiplas, segundo deseja ou necessita, como um consumidorde subjetividades deslizantes e mutantes. Proliferam-se singularidadese no mais sujeitos.

    Vivian de Jesus Correia e Silva, em seu captulo Estudo sobre asociedade disciplinar no pensamento de Foucault e a sociedade de controleno pensamento de Deleuze: um olhar sobre o papel da instituioeducacional e o controle na infncia , questiona a construo do sujeitopedaggico, no campo da Educao Infantil, na sociedadecontempornea. As crianas seriam confinadas cada vez mais cedo,funcionando em uma rede complexa de disciplina e controle dos corpos,em um capitalismo mundial integrado.

  • 13Hlio Rebello Cardoso Jnior | Flvia Cristina Silveira Lemos

    Lucilla Panacioni de Arajo, no captulo seguinte Por que aindaacreditar na escola: uma busca pela transformao das relaespedaggicas atravs da esttica da existncia e da amizade cartografalinhas de foras suscitadas em encontros e experimentaes realizadasem uma prtica de estgio em curso de graduao em psicologia, noestabelecimento escola. A autora se prope pensar no s entradas dapsicologia na educao, mas mltiplas sadas para rachar apsicologizao e medicalizao das prticas institudas no mbito escolare criar zonas de abertura para produo de outras conexes deprofessores e estudantes com a escola.

    Flvia Cristina Silveira Lemos, no captulo Foucault, com Deleuze eGuattari: problematizando as identidades culturais, o ideal de progressoe de desenvolvimento nas prticas da Unesco e Unicef no Brasil, interrogacomo as agncias Unicef e Unesco vm instrumentalizando o conceitode identidade cultural, na gesto diferencial das populaes, por meiode uma biopoltica. Lemos coloca em xeque e problematiza o prprioacontecimento identidade cultural e as tentativas de construo de umaconcepo de direitos humanos sustentada em uma justia equitativa.

    Jeyson Muruyama, Andressa Bardella, Priscila de Souza, emcoautoria com Flvia C. S. Lemos, em captulo sobre as Prticas deconselhos tutelares em dois municpios do interior paulista, baseadosna genealogia de Michel Foucault, analisam os efeitos de prticas deconselheiros tutelares, problematizando como descreviam as crianas,jovens, seus familiares, os direitos e os deveres prescritos no Estatuto daCriana e do Adolescente. O Conselho Tutelar participa da produo emanuteno de uma rede de relaes de poder que captura os corpos eos submete. Atravessado por inmeras outras instituies e, por outrolado, atravessando-as tambm, o Conselho insere-se nos diversosmecanismos que compem o que Deleuze chamou de Sociedade deControle. Os corpos so submetidos a infindveis modulaes, vindasdas instituies disciplinares, as quais j no possuem delimitaesdefinidas. Seus muros foram rompidos e seus mecanismos disciplinaresdifundiram-se na sociedade, por intermdio da sobreposio de funesdas instituies.

  • 1Foucault, histria do presente e ontologiahistrica: o que estamos nos tornando?

    HLIO REBELLO CARDOSO JNIOR

    O OBJETIVO DO presente texto fazer uma reflexo a respeito de doisassuntos que afugentam tanto historiadores quanto filsofos, de parte aparte, cada qual por motivos e idiossincrasias que lhes so prprios.Aos historiadores, nada mais lhes mete medo do que uma, assim chamada,histria do presente: alis, como seria possvel escrever a narrativadaquilo que no acabou e, portanto, adquirira a sedimentao requeridapor toda crtica documental esta que o fundamento de todoconhecimento histrico? Os filsofos, por sua vez, arrepiam-se quandoalgum prope uma suposta ontologia histrica, pois lhes parece umacontradio nos prprios termos da proposio: afinal, como se podeconhecer o Ser na histria, se aquele estabilidade e esta movimentodo tempo?

    Se ambos os lados, historiadores e filsofos, j ficam assimimplicados pelas questes que acima formulo e a eles dirijo, imaginemse ambas as indagaes, para embaralhar os partidos tomados, fossemreunidas em uma nica equao. Por isso, para complicar, eu digo:uma histria do presente necessita de uma ontologia histrica. Essa ,pois, a proposio que temos de tratar. O que ontologia histrica ecomo ela permite uma histria do presente? Antes de resolvermos aquesto assim formulada, vejamos que as relaes entre historiadores efilsofos tm sido marcadas, justamente, por uma dificuldade em realizaruma cooperao mtua.

  • 16 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    Entre historiadores e filsofos

    As tentativas de estabelecer relaes entre filosofia e histria tmoriginado os mais diversos posicionamentos. Por vrios motivos, oscila-se desde a negativa absoluta quanto possibilidade de cooperaoentre ambas at exortaes vagas que exaltam a sua unio.

    Com efeito, recorde-se que palavras de um historiador de peso,como Lucien Febvre, so capazes de desconcertar e afugentar leitoresou historiadores que tambm apreciam a filosofia, quando afirma: Alis,permiti-me dizer muitas vezes: os historiadores no tm grandesnecessidades filosficas (FEBVRE, 1965, p. 4). Naturalmente, tal censuraserviria apenas queles historiadores que acreditam numa suficinciametodolgica adquirida um tanto intuitivamente, de modo que, assimincentivados, pem-se a perscrutar com nimo redobrado a atmosferarepleta dos arquivos.

    Ressalve-se, no entanto, que a rigidez desse posicionamento emparte verdadeira e em parte falsa. Verdadeira, pois se d que os filsofostendem a esquecer os limites materiais do conhecimento histrico, ouseja, os acontecimentos encontrados nos documentos, de maneira quepassam a prescrever uma filosofia da histria no sentido hegeliano,especulao sobre o devir da Humanidade (MARROU, 1958, p. 11,17-18). Falsa, porque uma reao cega no pode vislumbrar apossibilidade de cooperao entre filosofia e histria, do ponto de vistaepistemolgico.

    Porm, este ltimo posicionamento, embora indique certa positividade, ainda uma exortao bastante vaga. De fato, o historiador ficarinsatisfeito se a cooperao epistemolgica se estabelecer em dois sentidos.Em primeiro lugar, e espontaneamente, ao historiador devotado ao afda investigao parecer insuficiente, e talvez contraditrio, que sedemande da filosofia apenas uma disciplina capaz de examinar osproblemas de ordem lgica suscitados pela pesquisa emprica. Em segundolugar, supondo que o mesmo historiador arrisque preocupaes filosficasmais ambiciosas, desconfia que uma interveno da filosofia em questesde ordem cognitiva atinentes objetividade do conhecimento histricopoderia novamente abrir o flanco metafsica que ele julgava ter evitado,com a rejeio filosofia da histria.

    Em ambos os casos, vale notar, o historiador reage com razo, poiso seu trabalho est sendo literalmente monitorado e superposto pelafilosofia.

  • 17Hlio Rebello Cardoso Jnior

    Por seu turno, o filsofo no deseja ver o historiador sufocado dessamaneira. Refletir um pouco e constatar que historiadores clssicos,como Tucdides, Edward Gibbon e Marc Bloch, no esto vinculados anenhum dos dois modos de conceber as relaes entre filosofia e histria,e, entretanto, realizaram obras histricas reconhecidas. Por outro lado,o filsofo, compreensivelmente, no pode admitir que essas admirveisrealizaes da historiografia se faam s expensas da filosofia. paraele inconcebvel que ali, no interior do trabalho do historiador, j noesteja guardada alguma lio que deva ser trazida luz, de modo quea filosofia possa, enfim, cooperar adequadamente com a histria.

    Sendo assim, o esprito do filsofo povoa-se de sentimentosdesencontrados. A sua tarefa complexa. Ele precisa indicar acontribuio da filosofia histria e, simultaneamente, respeitar aliberdade do historiador, para que este no se sinta constrangido econtinue sendo um bom narrador, isto , que conte bem uma histria,como Tucdides, Gibbon ou Bloch. Comear, por conseguinte, pelomais simples, formulando uma tarefa filosfica nos seguintes termos: acooperao entre filosofia e histria deve, em princpio, acolher aautonomia de ambas, em suas relaes de convivncia.

    Creio que uma das solues possveis a esse impasse da convivnciapode ser dada atravs da proposio de uma ontologia histrica, comoassinalado acima. Ns o faremos com a ajuda de dois filsofoscontemporneos: Foucault e Deleuze. Aquele, devido a seu grandeinteresse pela histria e por ter produzido conhecimento histrico; este,porque, justamente, aponta que os livros de histrias do filsofo Foucaultrealizam ontologias histricas.

    Ontologia histrica: o que e para que serve

    A fim de evidenciar tal trajeto, que constitui a plataforma dessetexto, importante indicar que um dos aspectos mais desenvolvidospor Foucault fora uma certa juno entre ontologia e histria, inditano cenrio da filosofia contempornea, inovadora inclusive com relaoa uma potente ontologia de nosso tempo, a de Heidegger, na medidaem que esta inclui lembre-se de passagem o problema dahistoricidade. Foucault, declara Deleuze, seguramente, ao lado deHeidegger, mas de uma maneira totalmente diversa, aquele que maisprofundamente renovou a imagem do pensamento (DELEUZE, 1990,p. 130-131). Deleuze reservou um nome prprio para a novidade legada

  • 18 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    por Foucault: trata-se de um campo conceitual delimitado pordeterminadas ontologias histricas.

    Deleuze procurou sistematizar essa juno entre ontologia e histria,elaborada por Foucault, aplicando obra deste um conceito de definidopor Leibniz: a dobra. As conexes desse conceito, no interior do campoconceitual foucaultiano, no s so uma verso fiel e inovadora dopensamento de Foucault, como o levam ao corao da teoria dasmultiplicidades sistematizada por Deleuze, permitindo em contrapartidadesvendar na obra de Foucault uma importante contribuio ontologiacontempornea. Geralmente, tal aspecto tido como avesso aopensamento foucaultiano ou minimizado em sua importncia, devidoa uma suposta incompatibilidade entre a positividade dos problemashistricos e a abstrao das questes a respeito do ser.

    Como sistematizador das ideias onto-histricas de Foucault, oconceito de dobra, em sua formulao, conexes e aplicao aosconceitos foucaultianos, fornece-nos um mapa do encontro Foucault/Deleuze/Guattari. O conceito de dobra propicia entender por que aobra filosfica de Foucault se enraza to profundamente nas questesprticas que envolvem a histria, inclusive a histria do tempo presente,abrigando perguntas vitais que fazemos diretamente para nosso tempo.

    Uma ontologia histrica engloba, antes de qualquer coisa, certomodo de conceber a relao entre filosofia e histria. Foucault quertransformar a histria em seus mtodos, no modo de lidar com adocumentao histrica, j que certo que a histria faz parte de seumtodo. Mas Foucault nunca se tornou historiador. Foucault um filsofoque inventa com a histria uma relao que difere totalmente da dosfilsofos da histria (DELEUZE, 1990, p. 130). Certamente, ele traznovos temas, novos objetos, novas tcnicas; porm, de forma mais aguda,ele oferece ao historiador, ao cientista social, ao educador, ao linguista,uma compreenso filosfica da histria que no deturpa o trabalhodestes, no os obriga a tergiversar, amargurar-se ou, o que pior, curvar-se a uma ontologia que parece mal acomodada lide emprica.

    Para evitar essas admoestaes que impunham um estranhamentoentre o filsofo e aqueles que precisam da histria como demanda parasuas pesquisas, segundo Deleuze, Foucault teria inventado trs ontologiashistricas, a saber, a do ser-saber, do ser-poder e do ser-si oudobra do ser (cf. DELEUZE, 1986, p. 117, 119-122).

    O ser-saber diz respeito a um estrato ou formao histricasubdividido em duas sries, o enuncivel e o visvel, que tm

  • 19Hlio Rebello Cardoso Jnior

    existncia singular de acordo com o momento considerado. Trata-se daarqueologia do saber, para utilizar a denominao consagrada. Damesma forma, o ser-poder consiste em relaes que obrigam as sriesde enunciados e de visibilidades a um corpo a corpo, apesar de suaexterioridade relativamente aos estratos. Desse modo, temos a conhecidagenealogia do poder. Essas relaes sempre se distribuem de acordocom o momento, isto , para cada confronto entre um enunciado e umavisibilidade, h uma determinada relao. Conforme Guattari e Rolnik,o modo deleuzeano de entender o ser-si, na sua formulaofoucaultiana, relaciona-se noo de produo de subjetividades, naqual se observa, no apenas a sua relao com os estratos, como tambmo seu papel nos processos de singularizao que caracterizam umaesttica da existncia (cf. GUATTARI; ROLNIK, 1993, p. 25-30).

    Essas trs ontologias histricas, do ponto de vista filosficopropriamente, podem ser compreendidas como caracterizando umasubstncia que, ao invs de se definir pela unidade, pelo primeiro-motor,pela transcendncia, pelo ato transcendental ou pelo esquecimento doser, compusesse um ser cujos principais atributos saber, poder e si so especializaes de relaes a partir de elementos quaisquer. Esseselementos podem ser chamados foras, em funo de seu cartereminentemente relacional, uma vez que uma fora somente se explicitana relao com outras foras. Alm disso, uma relao entre forasestabelece sempre uma singularidade, em vista de seu carterheterogneo frente a todas as outras relaes. Essas relaes de forasse especializam como dobras que se fazem e desfazem umas sobre asoutras, no apelando, portanto, para nada alm.

    Com base nesse aprendizado, chegara a hora de desbloquear certasretenes da filosofia contempornea. Segundo Machado, atravs datemtica da dobra em Foucault [...] Deleuze estabelece uma ligaoentre ele e Heidegger e Merleau-Ponty, que ultrapassa a intencionalidadeatravs da dobra do ser ou ultrapassa a Fenomenologia atravs deuma ontologia (MACHADO, 1990, p. 202). Deleuze alerta que essafinta dentro do campo filosfico contemporneo dupla, pois, almda fenomenologia, o pensamento de Foucault tambm inovaria comrelao ao de Heidegger. De um ponto de vista panormico, pode-sedizer que Deleuze destaca a problemtica da dobra do ser emFoucault, a fim de demarcar, neste ltimo, seu desvencilhar-se emrelao intencionalidade da fenomenologia e ideia de dobra,em Heidegger.

  • 20 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    Podemos j retirar uma observao parcial dessas passagens dehistria da filosofia, salientando que Deleuze celebrava com Foucault,concretamente em suas alianas conceituais, a realizao de uma filosofiada imanncia. As ontologias so histricas, de fato, porque, em cadauma delas, a condio que o ser impe ao condicionado, ou seja, osaber, o poder e o si, nunca maior que eles, posto que, nos termosprecisos de Deleuze, sendo condies, elas no variam historicamente;mas elas variam com a histria (DELEUZE, 1986, p. 122).

    Outra forma de explicar o carter das ontologias histricas destacarque essas condies no se referem experincia possvel, isto , elasno so condies apodticas, no sentido kantiano do termo, mascondies problemticas, na medida em que procuram dar conta dascondies da experincia real. O problema do condicionamento nasontologias histricas foucaultianas outra maneira de dizer que taisontologias se estabelecem em um campo de imanncia. Vejamos porqu.

    Essas ontologias fornecem ao historiador perguntas problemas muito precisas que remetem diretamente para a massa documentalou so perguntas que ele faz para seu prprio tempo, porque umproblema somente verdadeiro se formulado em funo de uma clusulade condicionamento imanente que no vai alm da experincia real:[...] o que eu posso saber, ou o que eu posso enunciar e ver em taiscondies? Que posso fazer, que poder pretender e quais resistnciasopor? O que eu posso ser, de que dobras me envolver ou como meproduzir como sujeito? (DELEUZE, 1986, p. 122).

    As questes das ontologias histricas, nesse sentido, instauram umcampo problemtico formado por trs prticas que se efetuam comodobras, cada uma com sua caracterizao prpria: as prticasdiscursivas (domnio ontopragmtico do ser-saber), as prticas no-discursivas ou de poder (domnio ontopragmtico ser-poder) e as prticasde subjetivao (domnio ontopragmtico ser-si).

    O questionrio histrico, no somente o dos historiadores, cientistassociais, educadores, linguistas, como tambm de qualquer um, assim, caracterizado por uma simplicidade pragmtica que, se atende auma premncia que d o tom de toda ao, por outro lado, no deixade envolver uma sofisticao filosfica do conhecimento histrico. Tudose passa como se nos sentssemos agora livres para fazer perguntassimples e diretas. Em um campo problemtico, a pergunta que elesfazem para seu tempo ou que fazem para o passado se equivale, visto

  • 21Hlio Rebello Cardoso Jnior

    que, em ambos os casos, a pergunta est dirigida para o que se v, oque se fala, o que se combate, o que se vive.

    O questionrio histrico desenvolve-se, especialmente, para os doisdiagramas histricos de que fazemos parte: a sociedade disciplinar ea sociedade de controle, dos quais trataremos adiante. De fato, quantoa todos os aspectos que, como vimos, operacionalizam as ontologiashistricas, as quais, por si s, evidenciam a coparticipao de Foucaulte Deleuze/Guattari em um mesmo plano conceitual e temtico, a mesmainterseo entre esses pensadores pode ser observada na especificaodos diagramas das sociedades disciplinar e de controle.

    Sociedade disciplinar e sociedade de controle como campo deestudos das ontologias histricas: histria do presente

    Toda sociedade impe um controle social sobre o corpo. Mas exatamente esse controle que varia historicamente. Na sociedadedisciplinar, o corpo um objeto de anlise e fragmentado, a fim deque a disciplina possa transform-lo num corpo til, na expresso deFoucault (FOUCAULT, 1999b, p. 287) Atravs de certas tcnicas que seaplicam ao corpo, o ser humano visado como um objeto que pode sermodelado. Foucault d o exemplo dos exerccios militares, onde acoordenao dos movimentos dos soldados visa a destitu-los de todadimenso subjetiva, de modo que cada um deles possa estar ligado poroperaes formalizadas. Trata-se de uma organizao do espao oespao disciplinar mas tambm do tempo, pois a ideia que umafuno disciplinar (operaes formalizadas) molde os corpos em tempocontnuo, dentro de cada espao disciplinar. E, quando o indivduo saide um espao para o outro, ou seja, quando ele vai ser moldado segundooutra funo, a operao exercida sobre o corpo no espao anteriorsirva como preparo para a nova funo.

    Por conseguinte, a sociedade disciplinar se organiza de acordo coma contiguidade de vrios espaos disciplinares, onde funes, emboradiferentes entre si quanto a seu objetivo, se interconectam, no sentidode que obedecem ao mesmo diagrama ou organizao. Dessa forma, oideal da sociedade disciplinar maximizar o exerccio da funo emcada espao, para que as vrias funes disciplinares se encadeiemsem lacunas. A sociedade disciplinar precisa igualmente aumentar osespaos disciplinares, a fim de que o deslocamento dos indivduos entreos vrios espaos no interrompa a continuidade da modelao.

  • 22 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    Em determinado sentido, pode-se dizer que a disciplina controla oscorpos para produzir indivduos. Eis a produtividade do poderdisciplinar: produo de individualidade, por meio de modelagem doscorpos nos espaos disciplinares. Quando a funo educar, a matriaso os escolares; quando castigar, a matria so os prisioneiros eassim por diante.

    Desse modo, a tecnologia disciplinar parte da ideia de que osindivduos tm entre si uma igualdade formal. O exame, enquantoprocedimento da tecnologia disciplinar, que transforma o indivduo emobjeto de conhecimento. Eis o elo poder-saber, ou seja, de que forma asrelaes de poder constituem os regimes discursivos de um determinadotipo de saber. Os detalhes da vida cotidiana tornam-se temas de pesquisa,atravs de documentao minuciosa. Para Foucault, quanto a esseaspecto, h uma ligao importante entre as cincias humanas e osprocedimentos disciplinares. De fato, um aspecto disciplinar , ao mesmotempo, um lugar de aplicao de tecnologia disciplinar e um laboratrioonde um saber produzido de modo bruto, isto , como dados a seremorganizados e formalizados em procedimentos, teorias, sistemas etc.Sendo assim,

    [...] pelo jogo dessa quantificao, dessa circulao dosadiantamentos e das dvidas, graas ao clculo permanente dasnotas a mais ou a menos, os aparelhos disciplinares hierarquizam,numa relao mtua, os bons e os maus indivduos. Atravsdessa microeconomia de uma penalidade perptua, opera-se umadiferenciao que no a dos atos, mas dos prprios indivduos, desua natureza, de suas virtualidades, de seu nvel ou valor.(FOUCAULT, 1999a, p. 151).

    A sociedade disciplinar formada por vrios espaos disciplinares,cada qual tomando o corpo como objeto do qual extrai uma determinadafuno disciplinar. Devido articulao em rede dos espaosdisciplinares, Foucault afirma que existe um diagrama da sociedadedisciplinar. Trata-se de um esquema de seu funcionamento que explica,em cada caso, como o corpo submetido a uma tecnologia de poder o diagrama de um mecanismo de poder, porque resume seu modelogeneralizvel de funcionamento, sendo uma maneira de definir asrelaes de poder com a vida cotidiana dos homens que se destaca dequalquer uso poltico para se tornar uma figura da tecnologia poltica(FOUCAULT, 1999a, p. 181). As aplicaes desse diagrama so

  • 23Hlio Rebello Cardoso Jnior

    mltiplas: corrigir prisioneiros, cuidar dos doentes, instruir os escolares,guardar loucos, fiscalizar operrios.

    A grande lacuna da sociedade disciplinar era a questo dos espaosinterdisciplinares. Procura-se coordenar todas as funes disciplinares,mas sempre restavam lacunas disciplinarizao. Por qu?

    Os saberes e os poderes de todos os tempos procuram domar oscorpos, mas estes lhes escapam, perfazendo uma histria da resistnciarelativa vida, j que o ponto mais intenso das vidas, onde se concentrasua energia, fica exatamente ali onde elas se chocam com o poder, sedebatem com ele, tentam utilizar suas foras e escapar de suaarmadilhas (FOUCAULT, 1977, citado por DELEUZE, 1986, p. 101). Oque acontece, portanto, que, por mais disciplinados que fossem, oscorpos encontravam como ponto de fuga os espaos de intervalo entreos lugares de disciplinarizao. Os espaos disciplinares no erameficazes, se no fossem pouco extensos. Em espao aberto, a disciplinano alcanava as subjetividades. Esse era o ponto cego da sociedadedisciplinar. Foucault descobrira pontos de resistncia difusos, na maioriadas vezes imperceptveis para uma percepo disciplinar (FOUCAULT,1985, p. 91-92).

    Foucault ilustra fartamente a ideia de que h resistncia disciplinarizao, pois a subjetividade se diferencia das estratgiasidentitrias que buscam foc-la. H, entre outros exemplos, a tarefaimpossvel da medicina da sexualidade em classificar o espao ocupadopela homossexualidade. Na verdade, o tratamento das perverses deordem sexual deflagrou um furor classificatrio, com o fito de registraras mnimas diferenas entre comportamentos sexuais, expediente esterelativo psiquiatrizao do prazer perverso (FOUCAULT, 1985, p.53-55). O resultado dessa cruzada taxionmica que os comportamentossexuais perversos pareciam ter uma variedade infinita, de sorte que oscritrios para sua classificao nunca eram suficientes. Ora, esse relativofracasso por parte da medicina da sexualidade indica que toda disciplinadeflagra uma resistncia pela qual novos modos de comportamentoso criados revelia do dispositivo.

    Em vista de relativo fracasso das disciplinas, a partir do sculo XX,os dispositivos de captura das subjetividades comeam a funcionar deacordo com uma nova dinmica. As subjetividades passam a sermoldadas em espao aberto. Elas no se reduzem mais individualidade,ao centro de um eu. Ao contrrio, as subjetividades so formadas porfeixes de fluxos que se combinam ou se afastam, em um movimento

  • 24 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    acelerado. As formas de moldagem dos sujeitos no mais se confinamos espaos disciplinares, submetendo os indivduos a uma vigilnciageneralizada - essas novas prticas de compor subjetividadescaracterizam o que Deleuze convencionou chamar de sociedades decontrole (DELEUZE, 1990, p. 219-226).

    Ao invs dos moldes de subjetividade baseados na identidade doindivduo, teremos uma subjetividade em modulao contnua. Noprecisamos mais estar em casa para nos sentirmos filhos ou na escolapara aprendermos como alunos. Por um lado, somos filhos e alunos emqualquer parte, pois ser filho ou aluno um fluxo que passa por ns.Por outro, temos uma margem de escolha, porque, como a subjetividade apenas o ponto de cruzamento de diversos fluxos, podemos deixar deser filhos ou alunos, quando ser um ou outro satura.

    Assim, vivemos, quanto nova sociedade de controle, uma situaoparadoxal. Os lugares que, na poca da disciplina, se constituamenquanto espao de fuga e de resistncia, so agora o lugar do controle.Parece que no adianta ser um nmade com relao aos espaosdisciplinares, j que a prpria sociedade capitalista criou um dispositivonmade que captura a subjetividade em movimento.

    Contudo, como se pode fugir dessa axiomtica capitalista(DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 373) que coopta a subjetivao?

    [...] que para Deleuze e Guattari o que est em jogo sempre apossibilidade de estarmos em conexo com os processosdesterritorializantes que se constituem como possibilidade deconstruo de novos territrios existenciais, deslocados dasestratificaes normalizadoras e fixistas. So tais estratificaesque produziriam a cada vez os sintomas. (LOPES, 1996, p. 106).

    Ora, o prprio Foucault entendia que a possibilidade de construode novos territrios existenciais e, portanto, a fuga dos processos decontrole da axiomtica capitalista dependiam de um modo histricode se compreender a vigncia de nossa subjetividade. A subjetividade,o sujeito, para Foucault, envolve um processo de subjetivao, ou seja,toda experincia que concretiza uma subjetividade engloba modoshistoricamente peculiares de se fazer a experincia do si. A subjetivaono um processo totalmente cooptado pelos dispositivos de saber-poder vigentes. A subjetivao, como modo histrico imanente derealizar as prticas de si, formada por linhas de fuga ou pontos deresistncia.

  • 25Hlio Rebello Cardoso Jnior

    Em A vontade de saber, Foucault descobrira pontos de resistncia rede do poder, mas ele precisava responder a partir de onde se formamessas resistncias difusas, na maioria das vezes imperceptveis(FOUCAULT, 1985, p. 91-92). Tal indagao tornava-se necessria poruma constatao: se as subjetividades oferecem resistncia, se elas estoenvolvidas por processos de subjetivao que vo alm da formasubjetiva, por consequncia, o sujeito dispe de uma mutabilidade ouplasticidade que lhe confere uma dimenso temporal outransformacional. Tal problematizao, quer dizer, a procura de umainstncia positiva de subjetivao, que no aparea meramente comolugar de resistncia aos saberes e poderes, coloca-nos justamente numponto de questionamento daquilo que deixamos de ser com o que estamosnos tornando. Em suma, necessrio, tanto para o historiador quantopara o filsofo, observar essa zona de confluncia entre disciplina econtrole.

    esse ponto de questionamento que torna apta uma histria dopresente, tendo em vista a ontologia histrica e seu modo de captar atransformao histrica.

    Referncias Bibliogrficas

    DELEUZE, G. Foucault. Paris: Minuit, 1986.

    ______. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990.

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    ______. Em defesa da Sociedade Curso no Collge de France (1975-1976).So Paulo: Martins Fontes, 1999b.

    LOPES, P. C. Pragmtica do desejo: aproximaes a uma teoria clnica em GillesDeleuze e Flix Guattari. 1996. Tese (Doutorado) Pontifcia UniversidadeCatlica, So Paulo, 1996.

  • 26 FOUCAULT, HISTRIA DO PRESENTE E ONTOLOGIA HISTRICA

    MACHADO, R. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

    MARROU, H.-I. De la Connaissance Historique. Trois. d. Paris: Seuil, 1958.

  • 2A genealogia foucaultiana como

    ferramenta para a escrita dahistria no presente

    LUCAS DE ALMEIDA PEREIRA

    Este captulo visa a analisar alguns conceitos fundamentais para acompreenso da historicidade no pensamento de Michel Foucault, apartir da genealogia, no mbito de uma histria do presente. Foucaultsempre pensou a histria: prova disso que sua obra possui uma Histriada loucura, em seus primrdios, e uma Histria da sexualidade(FOUCAULT, 2005d), em seu fim. O pensamento foucaultiano atravessouo campo da histria em vrios momentos, no entanto, foi na faseconhecida como genealogia que o pensamento foucaultiano maisalcanou os historiadores, angariando crticas e sendo, inclusive, alvode debates entre historiadores. Livros, como Vigiar e Punir (FOUCAULT,1995) e o primeiro volume da Histria da Sexualidade. A vontade desaber, foram debatidos por nomes, como Michel de Certeau, CarloGinzburg e Jacques Leonard, sempre envoltos em polmica pelo modoousado como Foucault encarava a histria.

    Pretendemos examinar o impacto dessa histria genealgica deFoucault como instrumental terico para uma histria do presente,atravs da anlise de trs conceitos: acontecimento, descontinuidade ecrtica noo de origem. Consideramos tais aspectos fundamentaispara o entendimento da historicidade no percurso de Foucault, poispermitem fazer uma nova abordagem da histria, abrindo ao campohistrico novas perspectivas de pesquisa, enfim, um novo modo de fazerhistria. Propomos, portanto, analisar o que Foucault chama degenealogia, por intermdio desses trs conceitos.

  • 28 A GENEALOGIA FOUCAULTIANA COMO FERRAMENTA ...

    Em vrios momentos da genealogia, Foucault refere-se a umahistria tradicional para diferenciar seu mtodo de anlise. EmArqueologia do Saber (FOUCAULT, 2005), ele enumera algumascaractersticas dessa histria tradicional: ela seria marcada pela buscade continuidade, de sentido, dentro das rupturas, da uniformizao domltiplo, seguindo o projeto de uma histria global (cf. FOUCAULT,2005, p. 6-13). Nas palavras de Foucault:

    O projeto de uma histria global o que procura reconstituir aforma de conjunto de uma civilizao [...] a significao comum atodos os fenmenos de um perodo, a lei que explica sua coeso oque se chama metaforicamente o rosto de uma poca.(FOUCAULT, 2005, p. 10 11).

    Foucault arrola certas caractersticas da histria global: estarelacionaria todos os acontecimentos de uma dada rea espao-temporal,estabelecendo relaes homogneas, de sorte que haveria uma rede decausalidades que permitiria encontrar um grande ncleo comum central.Dessa forma, supe-se que [...] a histria pode ser articulada em grandesunidades estgios ou fases que detm em si mesmas seu princpio decoeso (FOUCAULT, 2005, p. 11).

    Posteriormente, mais exatamente em Nietzsche, a genealogia e ahistria, Foucault ope a essa histria tradicional/global a viso dehistria efetiva, termo diretamente derivado da wirkliche Historiede Nietzsche. Ao contrrio da histria tradicional, que procura totalizara histria e oferecer a segurana de um sentido, a histria efetiva vemquestionar as bases, buscar as rupturas, colocar tudo em termos demovimento, de relaes. dentro dessa perspectiva de histria efetivaque Foucault apresenta os conceitos metodolgicos que embasam suaviso de histria, na genealogia.

    Mas o que seria a genealogia foucaultiana?

    Em primeiro lugar, devemos destacar a importncia fundamentalde Nietzsche para tal empreitada terico-metodolgica. A simplesmeno da palavra genealogia j alude ao pensador alemo e a seuprojeto de uma genealogia da moral. O termo genealogia foiintroduzido por Nietzsche em uma tentativa de inverter a lgica damoral, na qual o bem seria moral dos oprimidos/escravos e mal amoral dos opressores/aristocratas. Foucault retoma alguns aspectos da

  • 29Lucas de Almeida Pereira

    genealogia nietzscheana, no mais visando a uma anlise da moral,mas buscando fundamentar sua teoria do poder. Durante uma passagempelo Brasil, em 1973, Foucault apresentou uma srie de conferncias,posteriormente compiladas no livro A verdade e as formas jurdicas(FOUCAULT, 2001). Na primeira conferncia, Foucault justifica a marcade Nietzsche em suas pesquisas, ao enfatizar:

    [...] parece-me, encontramos efetivamente um tipo de discursoem que se faz a anlise histrica da prpria formao do sujeito, aanlise histrica do nascimento de um certo tipo de saber, semnunca admitir a preexistncia de um sujeito de conhecimento. Oque me proponho agora seguir na obra de Nietzsche oslineamentos que nos podem servir de modelo para as anlises emquesto. (FOUCAULT, 2001, p. 12).

    Nesse sentido, necessrio sublinhar que Foucault ressalta como seutiliza de Nietzsche, ao afirmar que seguir os lineamentos que podemlhe servir. Esse uso do pensamento nietzscheano fundamental para agenealogia de Foucault, pois constitui uma forma de produzir liberdadeao pensamento. Na primeira conferncia de A verdade e as formasjurdicas (FOUCAULT, 2001, p.7-27), Foucault invoca Nietzsche parademonstrar que o conhecimento, ao contrrio do pensamento kantiano,por exemplo, no inerente, mas construdo. Mais que isso, oconhecimento um campo de batalha. Ora, o conhecimento no natural, instintivo, mas inventado, resultado de jogos entre os instintos.

    O carter perspectivo do conhecimento no deriva da naturezahumana, mas sempre do carter polmico e estratgico doconhecimento. Pode-se falar do carter perspectivo do conhecimentoporque h batalha e porque o conhecimento o efeito dessa batalha.(FOUCAULT, 2001, p. 24).

    Podemos ressaltar dois aspectos, dentro dessa discusso. O primeiro a questo do modo como Foucault conversa com o pensamento deNietzsche. Foucault no se interessa em periodizar a obra de Nietzscheou em extrair dela um contexto geral. Foucault atm-se apenas ao quejulga fundamental no pensamento desse filsofo, ou seja, utiliza-o deacordo com seus interesses, como uma caixa de ferramentas, conformeQueiroz (QUEIROZ, 1999, p.60). Nas palavras do prprio Foucault:

  • 30 A GENEALOGIA FOUCAULTIANA COMO FERRAMENTA ...

    [...] tomei este texto de Nietzsche em funo de meus interesses,no para mostrar que era essa a concepo nietzscheana doconhecimento pois h inmeros textos bastante contraditriosentre si a esse respeito mas apenas para mostrar que existe emNietzsche um certo nmero de elementos que pem nossadisposio um modelo para uma anlise histrica do que eu chamariaa poltica da verdade. (FOUCAULT, 2001, p.22).

    O segundo aspecto diz respeito ao ponto central da discusso. QuandoFoucault evoca a questo do conhecimento, ele o faz para discutir oproblema da origem. Foucault contrape dois termos empregados porNietzsche Ursprung (origem) e Erfindung (inveno) (FOUCAULT, 2001.P.14) , usualmente traduzidos como smiles, mas que possuem significadosdistintos. Essa anlise de termos nos leva a um texto anterior de Foucault.Trata-se de Nietzsche, a genealogia e a histria.

    Publicado em 1971, Nietzsche, a genealogia e a histria (FOUCAULT,2005c) pode ser considerado o texto de apresentao da genealogia,por inaugurar os delineamentos das futuras pesquisas de Foucault. Aprimeira definio da genealogia, dada pelo prprio Foucault, : Agenealogia cinzenta; ela meticulosa e pacientemente documentria(FOUCAULT, 2005c p.260). A genealogia um mtodo histricoinovador que se destaca por sua concepo original. O genealogistano deve procurar profundidade, segredos solenes, mas asdescontinuidades, os erros, os acidentes; deve ater-se superfcie dosacontecimentos e seus sutis contornos. Cabe-nos agora perguntar,primeiramente, qual o sentido de origem, na genealogia foucaultiana.

    Como afirmamos anteriormente, a genealogia procura os desvios,no as solenidades. Dessa forma, podemos afirmar que h na genealogiafoucaultiana uma crtica noo de origem. Ora, ao ater-se superfcie,ao recusar a profundidade, temos uma recusa ao conceito de origem,que, para Foucault, possui trs funes, tambm caracterizadas pelopensador francs como postulados da noo de origem (cf. FOUCAULT,2005c p.262 263).

    A primeira funo da pesquisa de origem seria a busca da essnciaexata das coisas. Foucault nos alerta para a necessidade de refutar essabusca de essncia inclume, uma vez que no encontramos identidadespreservadas no comeo histrico das coisas, mas a discrdia entre ascoisas, o disparate (FOUCAULT, 2005C, p. 263.).

    A segunda funo a ser refutada acerca da pesquisa de origem seriasua solenidade. No devemos procurar um ilusrio incio onde as coisas

  • 31Lucas de Almeida Pereira

    se encontravam em estado de perfeio, porque devemos observar queo comeo histrico baixo.

    Por fim, devemos evitar a pesquisa de origem como lugar da verdade.Aqui, temos uma contribuio de Foucault para o campo da pesquisahistrica: o questionamento da verdade. Ele adverte que a noo deverdade, ligada de origem, nos leva, incessantemente, a um pontorecuado no passado, intangvel. A verdade estaria nessa articulaoinevitavelmente perdida em que a verdade das coisas se liga uma verdadedo discurso que logo a obscurece e a perde (FOUCAULT, 2005c, p.263).

    Vimos, com esses trs postulados a respeito da pesquisa de origem,que, na verdade, no existe uma essncia como origem histrica estvel,posto que esta um campo de foras marcado pela heterogeneidade daluta. Nesse sentido, a genealogia no representa a busca de uma origem,de um esprito perfeito, olvidando os fatos, os erros; demora-se, porm,nas meticulosidades, nos acasos de um comeo. Podemos explicitarmelhor essa crtica da origem, ao analisarmos a primeira confernciade A verdade e as formas jurdicas.

    Foucault nos mostra que Nietzsche representa um ponto crucial nahistria da filosofia: o momento de ruptura com a metafsica. Podemosexemplificar essa ruptura na discusso sobre a origem da poesia,conforme apresentada nessa primeira conferncia. Nietzsche afirma queno h uma Ursprung da poesia, mas que esta foi inventada. Foucaultsalienta:

    Um dia algum teve a idia bastante curiosa de utilizar um certonmero de propriedades rtmicas ou musicais da linguagem parafalar, para impor suas palavras, para estabelecer atravs de suaspalavras uma certa relao de poder sobre os outros. (FOUCAULT,2001, p.14).

    Foucault aplica esse mesmo raciocnio em torno da religio. Noh um esprito metafsico que conteria o ncleo da religio, eternamentepresente em todos, como pensava Schopenhauer. Em algum momento,houve um acontecimento que pode ser identificado como comeo dareligio. possvel destacar a forma como tal pensamento trabalhacom rupturas. Ora, se no h uma origem esttica e solene, de ondeseria possvel reconstituir uma verdade intocada, pode-se afirmar quetudo formado por rupturas, por pequenos acidentes. A recusa aos trspostulados de uma pesquisa de origem pode ser apontada, ao levantar-

  • 32 A GENEALOGIA FOUCAULTIANA COMO FERRAMENTA ...

    se essa discusso sobre a poesia. Ao aludir poesia, Foucault no evocauma origem perfeita, mas a rebaixa a um jogo de sons e a uma inveno.

    Finalmente, ao tratar do conhecimento, Foucault afirma que esteno est presente na natureza humana. No h germe do conhecimento,no existe conhecimento inato. Ao contrrio, o conhecimento constituium campo de batalha entre os instintos; o conhecimento [...] umacentelha entre duas espadas (FOUCAULT, 2001, p. 16). Ou seja, oconhecimento no inerente ou faz parte da natureza humana, mas forjado na luta entre instintos, resultado de um jogo (FOUCAULT, 2001,p.16). Com essa crtica, Foucault pretende mostrar que em todas ascoisas h visibilidade, conforme as palavras de Dreyfus e Rabinow:[...] observado da correta distncia e com o olhar certo, h umaprofunda visibilidade em cada coisa (RABINOW; DREYFUS, 1995,p.119).

    O olhar do genealogista deve estar sempre voltado para osacontecimentos das superfcies, essa questo da visibilidade, do olharsuperficial que est diretamente ligado questo da origem. EnfatizaFoucault:

    Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a histria em vezde acreditar na metafsica, o que que ele aprende? Que atrs dascoisas h algo inteiramente diferente: no seu segredo essenciale sem data, mas o segredo que elas so sem essncia, ou que suaessncia foi construda pea por pea a partir de figuras que lheeram estranhas. (FOUCAULT, 2005c, p. 262).

    Quando se afirma que a genealogia se preocupa com a superfcie,tem-se justamente o intuito de evidenciar que os significados das questesmais profundas, na verdade, devem ser analisados a partir das prticassuperficiais, no buscadas em segredos, em essncias misteriosas. Porisso, Foucault afirma que o genealogista deve impor um olhar histrico-superficial e no metafsico quilo que se prope examinar. importanteainda frisar, quanto a este olhar histrico-superficial, que Foucaultressalta a ligao fundamental entre o genealogista e a histria: Ogenealogista tem necessidade da histria para conjurar a iluso daorigem (FOUCAULT, 2005, p. 264).

    Se, de acordo com o raciocnio que traamos acima, no h origem,apenas inveno (Erfindung), no se pode, por conseguinte, atribuircontinuidade, ou melhor, sentido contnuo histria. Nesse momento,devemos abordar a questo da descontinuidade, tendo em vista sua

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    relao direta com o conceito de origem. Foucault prope uma visodescontnua dos fatos, declarando: O sentido histrico [...] reintroduzno devir tudo que se tinha creditado imortal no homem (FOUCAULT,2005c, p. 271). A histria torna-se efetiva, medida que reintroduz odescontnuo em nosso ser. No entanto, a histria tradicional tende adissolver o acontecimento singular numa continuidade ideal, quer dizer,sacrifica o acaso, os acidentes, os acontecimentos, objetivando atribuiruma perfeita continuidade, um sentido contnuo histria.

    Desse modo, essas foras histricas no obedecem destinao oua uma mecnica, mas ao acaso da luta, como j foi exemplificadoanteriormente, com a questo do conhecimento.

    Com base nesse raciocnio, observamos que, se a histria no possuiuma origem cristalizada, podemos sustentar que ela descontinua eno possui sentido, uma vez que a descontinuidade anula qualquersentido atribudo histria, de sorte que [...] o verdadeiro sentidohistrico reconhece que ns vivemos sem referncia ou sem coordenadasoriginrias, em mirades de acontecimentos perdidos (FOUCAULT,2005c, p. 273).

    Na realidade, a descontinuidade uma das vrias reminiscnciasdo mtodo arqueolgico que Foucault desloca para sua nova propostametodolgica. Prova disso o artigo Sobre a arqueologia das cincias:Resposta ao crculo epistemolgico (FOUCAULT, 2005B), publicado em1968, antes mesmo do lanamento de Arqueologia do saber, ondeFoucault procura defender, entre outras teses, a relao entredescontinuidade e histria. Foucault salienta que o conceito dedescontinuidade comeou a tornar-se forte ,quando a ateno dospesquisadores mudou de foco, das vastas unidades (poca, sculos) paraos fenmenos de ruptura (FOUCAULT, 2005b p.84), ou seja, ao invsdas continuidades estticas, procuram-se as interrupes. Assim, Foucaultdestaca como o sentido de descontinuidade na histria mudou deestatuto. Para a histria tradicional, a descontinuidade constitua umincmodo a ser suprimido, ou seja, um pequeno evento que contrariasseuma lgica de continuidade seria olvidado para preservar essacontinuidade. Em suma, na viso da histria tradicional/global, adescontinuidade era [...] esse estigma da disperso temporal que ohistoriador tinha o encargo de suprimir da histria (FOUCAULT, 2005b,p. 84).

    Foucault alerta-nos que, atualmente, a descontinuidade ocupa umaposio de elemento fundamental da anlise histrica, por possuir trs

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    funes: o recorte que o historiador deve fazer, isolando e distinguindoos nveis possveis de uma anlise; resultado da descrio, e no maiselemento a ser excludo, porque [...] o que ele (o historiador) tentadescobrir so os limites de um processo (FOUCAULT, 2005b, p.84); e,por fim, um conceito multiforme: [...] ela assume uma forma e umafuno diferentes conforme o domnio e o nvel nos quais assinalada(FOUCAULT, 2005b p.85). Podemos usar as palavras de Foucault, paradefinir a relao entre descontinuidade e histria:

    Querer fazer da anlise histrica o discurso do contnuo e fazer daconscincia humana o tema originrio de qualquer saber e dequalquer prtica so as duas faces de um mesmo sistema depensamento. Nele o tempo concebido em termos de totalizao,e a revoluo nada mais do que uma tomada de conscincia.(FOUCAULT, 2005b, p. 86).

    Em acrscimo, h um terceiro elo que d coerncia aos dois conceitosque abordamos at o momento, que o acontecimento. Conforme vimos,a partir dos conceitos de descontinuidade e origem, a histria paraFoucault no possui uma origem; assim, podemos afirmar que tambmno possui um sentido contnuo. Com isso, Foucault criticou um modelode histria tradicional, onde o sentido histrico serve para construirexplicaes totalizantes. Rago sintetiza bem essa proposta, ao sublinharque

    [...] trata(va)-se ento, para o historiador,de compreender opassado, recuperando sua necessidade interna, recontandoordenadamente os fatos numa temporalidade seqencial oudialtica, que facilitaria para todos a compreenso do presente e avisualizao de futuros possveis. (RAGO, 1995, p. 68).

    Se o projeto histrico de Foucault recusa um sentido contnuo e osujeito, qual seria o aspecto fundamental de sua anlise? Podemos afirmarque este seria o conceito de acontecimento. No pensamento genealgicode Foucault, o acontecimento supe uma ruptura evidente que faz surgira singularidade. O acontecimento , nas prprias palavras de Foucault,uma inverso nas relaes de fora, a emergncia de uma singularidadeno momento e local de sua produo (cf. FOUCAULT, 2005c, p. 273).O acontecimento deve ser considerado no espao de sua disperso, deforma que somente assim possvel chegar a uma anlise histrica

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    descontnua, formada por relaes de fora e no por continuidades,por linearidades. Para compreendermos melhor o acontecimento, necessrio voltar a Nietzsche, a genealogia e a histria, e examinardois conceitos: provenincia e emergncia.

    A provenincia (Herkunft) trata diretamente do corpo. Sobre ele,encontram-se estigmas de acontecimentos passados, da mesma maneiraque dele nascem desejos, desfalecimentos e erros. A provenincia notrata de uma evoluo, de um destino, de uma ininterrupta continuidade,mas, justamente ao contrrio, da procura dos acidentes, dos desvios,para manter o que se passou na disperso que lhe prpria(FOUCAULT, 2005c, p. 265), enfim, a procura pelo aparecimentoinstvel do acontecimento e no pelo comeo sem arestas. O corpo ,em decorrncia, lugar da dissociao do Eu: A genealogia [...] devemostrar o corpo inteiramente marcado de histria e a histria arruinandoo corpo (FOUCAULT, 2005c, p.267). Nessa passagem, o corpo adquireimportncia histrica, visto que ele o lugar de aplicao das tecnologiaspolticas. Torna-se necessrio tratarmos da questo da profundidadedo corpo, na obra de Foucault.

    Podemos exemplificar essa profundidade histrica de como o corpoaparece como ponto de aplicao de tecnologias polticas, a partir daleitura de Vigiar e Punir. Nessa obra, Foucault nos apresenta diversasformas de dominao e de uso do corpo humano, como o suplcio,onde o corpo deve ser castigado publicamente (cf. FOUCAULT, 1995,p. 10 11), a masmorra, onde corpos devem ser acumulados eesquecidos, e finalmente a priso, que seguiria o princpio de que oindivduo encarcerado e em condies ideais poderia ser re-educado.Mais que isso, podemos notar que, na obra de Foucault, o corpo, suastecnologias e usos so sempre postos em evidncia. No corpus de suaobra, observam-se temas como loucura, delinqncia e sexualidade,entre outros, ou seja, independentemente da fase (Arqueologia,Genealogia, tica) de seu pensamento, Foucault sempre trata do corpo.De acordo com Dreyfus e Rabinow, Foucault tenta escrever a histriaefetiva do aparecimento, da articulao e da disseminao destastecnologias polticas do corpo (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 126).Em suma, a provenincia o instrumento para a recusa da pesquisade um passado vivo em funo da busca da exterioridade doacidente (FOUCAULT, 2005c, p. 266).

    A emergncia designa o ponto de surgimento, o momento em queocorre a inverso de foras, o jogo de poder, conforme Foucault:

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    A emergncia a entrada em cena das foras [...] enquanto aprovenincia designa a qualidade de um instinto, a emergnciadesigna um lugar de afrontamento [...] ningum responsvelpor uma emergncia, ela se produz num interstcio. (FOUCAULT,2005c, p. 269).

    Nessa frase, Foucault sublinha mais um aspecto crucial dagenealogia: no existe sujeito, individual ou coletivo, como motor dahistria, quer dizer, os sujeitos no existem previamente e entram emcena, na verdade: para a genealogia, os sujeitos emergem apenas noscampos de batalha e apenas ali desempenham as funes que lhes sodesignadas.

    O mundo no um jogo que apenas mascara uma realidade maisverdadeira existente por trs das cenas. Ele tal qual parece. Esta a profundidade da viso genealgica. (RABINOW; DREYFUS,1995, p. 122).

    Ainda sobre a questo do acontecimento, preciso abordar maisum aspecto: a acontecimentalizao. Esse conceito deve sercompreendido em dois nveis: em primeiro lugar, uma ruptura com oevidente. Foucault exemplifica essa ruptura com a questo da loucura,visto que no era to evidente que os loucos fossem reconhecidos comodoentes mentais (FOUCAULT, 2003, p. 339), ou seja, quebrar o queera considerado uma evidncia. Em segundo lugar, acontecimentalizarpressupe uma desmultiplicao causal, isto , analisar o acontecimentoa partir da multiplicidade de processos que o constituem. Foucault nosd um exemplo:

    Assim, analisar a prtica do encarceramento penal comoacontecimento [...] definir os processos de penalizao (querdizer de insero progressiva nas formas de punio legal) dasprticas precedentes de internamento. (FOUCAULT, 2003, p. 340).

    Dados os trs conceitos que consideramos fundamentais para acompreenso da dimenso histrica intrnseca genealogia foucaultiana,cabe-nos interrogar como esses conceitos e a prpria genealogia seincorporam ao pensamento de uma histria do presente. Lemos, na obrade Foucault, uma escrita da histria no presente. Para trabalharmos coma questo da histria do presente, necessrio, primeiramente, definir anoo de ontologia histrica. A palavra ontologia remete rea da

  • 37Lucas de Almeida Pereira

    filosofia, que estuda o ser enquanto ser que possui uma natureza comum,compartilhada por todos. Ora, uma ontologia histrica pressupe umatarefa complicada, aparentemente ambgua: pr o ser, aparentementeimvel, na histria, que tempo, mobilidade. Isso nos leva a mais umposicionamento: um dos grandes temas abordados por Foucault , naverdade, a questo do tempo. Foucault se preocupa com o presente, comum pensamento de ao, em especial, a partir da genealogia.

    Analisando sua biografia (algo profundamente antifoucaultiano,no entanto, muito elucidativo acerca do homem e sua obra) escrita porDidier Eribon (ERIBON, 1990), pode-se observar o quanto Foucault foimarcado pelos acontecimentos de sua realidade, de seu presente (aquesto da Arglia, o Maio de 68 etc.), e como ele se preocupou emachar maneiras de poder atuar sobre seu presente (sua militncia poltica,o Grupo de Informao das Prises, mesmo algumas improvveisparcerias com Jean-Paul Sartre).

    O que possvel apreender, de todo esse levantamento biogrfico?Que Foucault escava o passado, para tentar compreender o que nostornamos e o que poderemos vir a ser. Como j frisamos anteriormente,a histria , sob a tica foucaultiana, descontnua (com todas as suasimplicaes, suas recusas origem e ao sentido), de sorte que Foucaultno busca nessa relao passado/presente/futuro um sentidoescatolgico, determinista, de como as grandes estruturas moldaram ohomem moderno, mas intenta observar a composio heterogneaconstituinte de nosso presente, nossa realidade. Enfim, Foucault procura,na histria, problematizar o presente, buscar alternativas para tratardo presente. o prprio Foucault quem afirma:

    Meu projeto no o de fazer um trabalho de historiador, masdescobrir por que e como se estabelecem relaes entre osacontecimentos discursivos. Se fao isso com o objetivo de sabero que somos hoje. Quero concentrar meu discurso no que nosacontece hoje, no que somos, no que nossa sociedade. Penso queh, em nossa sociedade e naquilo que somos, uma dimensohistrica profunda e [...] os acontecimentos que se produziram asculos ou h anos so muito importantes [...] Em um certo sentidono somos nada alm daquilo que foi dito h sculos, meses,semanas. (FOUCAULT, 2006, p. 258).

    Assim, embora possamos aceitar a esquiva de Foucault de que eleno faria um trabalho de historiador, podemos admitir que os

  • 38 A GENEALOGIA FOUCAULTIANA COMO FERRAMENTA ...

    questionamentos presentes em seu trabalho propem certo uso da histriae um mtodo para produo de conhecimento histrico. Por isso, umahistria do presente uma proposta slida e inovadora. Nesse sentido,pensamos com a autora brasileira Margareth Rago, que, em um artigochamado Libertar a histria (RAGO, 2005), aborda a questo da mleitura de Foucault:

    Mal lido, mal escutado, mal compreendido, o filsofo foi soterradopor interpretaes e crticas que invalidam seu aporte, mais ainda,vrios de seus conceitos e problematizaes so incorporados sua revelia nos estudos histricos, sem que lhe reconheam oscrditos. (RAGO, 2005, p. 255).

    Rago atribui a Foucault um papel que se acrescenta ao de modeloalternativo para a escrita da histria, pois ele seria o libertador de umahistria presa a velhos (pr) conceitos, de acordo com a autora:

    A autonomizao da Histria formulada pelo filsofo traduz-se,ento, como um libertar-se de determinadas representaes dopassado, de procedimentos que levam a determinados efeitos,relaes de poder, enfim, de construes autoritrias do passado.(RAGO, 2005, p. 261).

    Mais do que isso, Foucault procura trabalhar problemas colocadosno presente, cuja resoluo exige uma volta ao passado. Desse modo,quando Foucault questiona a oposio razo-loucura, a questo dapunio ou da sexualidade, na verdade, est problematizando nossaatualidade, propondo um diagnstico que no se limite a mostrar oque somos, mas que aponte para aquilo que estamos nos tornando(RAGO, 2005, p. 263).

    nesse sentido que vemos a utilidade do mtodo genealgicofoucaultiano como modelo para a escrita de uma histria do presente.A crtica noo de origem, a introduo da problemtica dadescontinuidade e, principalmente, a noo de acontecimento operamno sentido de buscar na histria um diagnstico para o presente. problematizando o passado descontnuo, que provm de baixo (cf.FOUCAULT, 2005c), no qual Foucault identifica prticas que podemresponder a questes como o que estamos no tornando.

    Pensemos em A vontade de saber. Foucault assevera que a noo damecnica do poder, em nossa sociedade, seria de ordem repressiva.

  • 39Lucas de Almeida Pereira

    Dessa forma, ele busca uma resposta para perguntas presentes (quepoder pretender? Que resistncia opor?), interrogando a histria. Aotratar da hiptese repressiva, Foucault desloca sua anlise para umpassado especfico:

    As dvidas que gostaria de opor hiptese repressiva tm porobjeto muito menos mostrar que essa hiptese falsa do querecoloc-la numa economia geral dos discursos sobre o sexo no seiodas sociedades modernas a partir do sculo XVII. (FOUCAULT,2005d, p. 16).

    Vemos, com essa citao, que A vontade de saber est de acordocom as proposies do mtodo genealgico, j abordadas anteriormente.Foucault no busca correlaes com passados distantes; ao invs disso,situa sua anlise em pontos especficos. A anlise da hiptese repressivanos leva a uma incitao discursiva referente esfera da sexualidade(cf. FOUCAULT, 2005d, p.17), um exemplo de acontecimento,analisando sua emergncia e provenincia, suas relaes com o corpo.Com isso, Foucault coerente com a proposta de umaacontecimentalizao, fazendo emergir singularidades, em especialcom relao ao trinmio poder-corpo-saber, com base no rompimentocom um pressuposto at ento aceito como evidente, no caso, o de umarepresso sexualidade incitada por uma moral burguesa. Alm disso,ao empreender a desmultiplicao causal deste acontecimento, Foucaultencontra relaes de inteligibilidade externa, que suscitaro aabordagem de temas tais quais a educao, a cientificidade etc.embasando a indissolvel relao poder-saber.

    Observamos a relao entre os trs conceitos abordados e agenealogia foucaultiana, visando a criar um plano conceitual para aanlise da histria do presente. importante assinalar que tais conceitosno constituem uma metodologia, no sentido mais amplo do termo,mas so referncias para auxiliar anlises; poderiam ser chamados deferramentas, como pretendia Foucault, as quais nos possibilitam outroolhar sobre a histria, articulando-a com questes filosficas de nossopresente, explcitas na breve anlise de A vontade de saber.

  • 40 A GENEALOGIA FOUCAULTIANA COMO FERRAMENTA ...

    Referncias bibliogrficas

    DELEUZE, G. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 1988, p. 33-53.

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    FOUCAULT, M. Sobre a arqueologia das cincias. Resposta ao Crculo deEpistemologia. In: Ditos e escritos - vol. II. 2. Ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2005b, p. 82-118.

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    FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. 2. Ed. Rio de Janeiro: PUC,2001.

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  • 3Amizade, em Foucault, e vida no

    fascista, em Deleuze e Guattari: modosde vida a favor da diferena1

    THIAGO CANONENCO NALDINHO2

    compreensvel que alguns lastimem o vazio atual ebusquem, na ordem das idias, um pouco de monarquia.Mas aqueles que, pelo menos uma vez na prpria vida,provaram um tom novo, uma nova maneira de olhar,um outro modo de fazer, aqueles, creio, nunca sentiroa necessidade de se lamentar porque o mundo umerro, a histria est farta de inexistncias; tempo paraque os outros fiquem calados, permitindo assim que nose oua mais o som da reprovao por parte deles...(FOUCAULT, 1980).

    Deleuze (1988/1989), em seu Abecedrio, afirma que a possibilidadede haver uma rede de resistncia composta por ele, Foucault e Guattarise situaria como um bom acontecimento frente ao cenrio deempobrecimento de ideias em que vivemos tratar-se-ia de umamquina de guerra contra a bobagem dominante a que somossubmetidos. Referenciando-se em tais palavras, o presente trabalhointenta mergulhar no plano conceitual desenvolvido e compartilhado

    1. O presente trabalho se situa como parte integrante de uma pesquisa mais abrangente,desenvolvida pelo autor, com o apoio da FAPESP.

    2. Bacharel e Licenciado em Psicologia UNESP/Assis. Integrante do grupo de pesquisa Deleuze/Guattari e Foucault, elos e ressonncias (certificado junto ao CNPq e reconhecido pelaFAPESP). E-mail: [email protected].

  • 42 AMIZADE, EM FOUCAULT, E VIDA NO FASCISTA ...

    por tais autores (CARDOSO JNIOR, 2005), para encontrar suasconsideraes acerca das resistncias possveis de serem empreendidas,no panorama contemporneo.

    De acordo com os pensadores em questo, vivemos em sociedadesnas quais as subjetividades so assujeitadas a uma normalizao impostapor uma forma hegemnica de poder o Estado Moderno3, segundoFoucault, ou o Capitalismo Mundial Integrado4 (CMI), para Deleuze eGuattari (FOUCAULT, 1995a; GUATTARI; ROLNIK, 2005).Independentemente do nome ou da definio quanto a sua localizaoou estruturao, a questo mais relevante e urgente sobre tal modalidadede poder gira ao redor do objetivo que este almeja, isto , reduzirpermanentemente o risco potencial presente no desenvolvimento dosprocessos de subjetivao ou singularizao com o intuito de facilitarsua administrao sobre os indivduos. Nesse quadro de dominao, asubjetivao se tornaria possvel praticamente apenas atravs deprocessos de sujeio5 aos saberes dominantes e matriz deindividualizao, desenvolvidos e impostos pelo Estado Moderno ouCMI.

    Entretanto, Foucault, Deleuze e Guattari sinalizam haverpossibilidades de mudana quanto atual situao, as quais seprocessariam por meio de uma estratgia que permitiria no apenasresistir, mas, de certa maneira, escapar constrangedora condio asimultnea individualizao e totalizao exercida pelo modo de poder

    1. O Estado Moderno , conforme Foucault, a forma poltica de poder, surgida no sculo XVI, queabsorveu muito da nova tecnologia de poder que, ao contrrio daquela presente na soberania,manifesta um enorme interesse pela vida, por isso chamada de biopoder. Contudo, deve-seressaltar que o biopoder no idntico ao Estado, pois extrapola os seus limites, agindo emdiversas outras instncias no vinculadas ao aparelho de Estado, como a famlia, asorganizaes no governamentais, empreendimentos privados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores e, de um modo geral, de filantropos (FOUCAULT, 1995a, p. 236-239;1999, p. 35-37, 285-315).

    2. Segundo Guattari, o Capitalismo Mundial Integrado impe duas formas de opresso. A primeira,atravs de mecanismos no plano econmico e social; j a segunda, de igual ou maiorintensidade que a primeira, consiste em o CMI instalar-se na prpria produo de subjetividade:uma imensa mquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escalamundial tornou-se dado de base na formao da fora coletiva de trabalho e da fora de controlesocial coletivo (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 48, grifo dos autores).

    3. De acordo com Foucault, subjetivao o processo pelo qual se obtm a constituio de umsujeito ou, mais especificamente, de uma subjetividade. Tal processo pode ocorrer, dependendodo local e momento histrico onde est situada a moral em que estamos imersos, ora deforma mais autnoma, com mais influncia de prticas de liberao ou formas de subjetivao morais mais orientadas para a tica , ora de maneira mais jurdica, a partir de prticas desujeio impostas por uma forma de poder morais mais orientadas para o cdigo (FOUCAULT,1984, p. 29-30; 1995a, p. 235; 2004a, p. 262; 2004d, 291).

  • 43Thiago Canonenco Naldinho

    dominante qual nos encontramos submetidos. Tratar-se-ia da recusa imposio dessa individualidade normalizada, acompanhada pelareabilitao, na atualidade, da esttica da existncia.

    Esttica da existncia

    Se Foucault trabalhou em seus dois primeiros grandes eixos depesquisa, respectivamente, o saber e o poder, foi apenas durante o perodomais recente, em que passou a abordar especificamente o si ou osprocessos de subjetivao. Essa mudana de foco do autor decorreu dosresultados obtidos por este, durante a elaborao do primeiro volume A vontade de saber de sua Histria da Sexualidade, quando se viuimpelido a estender o perodo que servia de substrato s suas pesquisasat a Antiguidade greco-romana. Foi necessrio ir to longe, poisFoucault descobriu que, para conseguir cumprir o objetivo inicial dessahistria estudar, a partir do sculo XVIII, o surgimento da experincia6

    da sexualidade deveria necessariamente compreender por que o desejoestava no centro, tanto da teoria clssica da sexualidade, quanto daquelasdela divergentes, alm de esclarecer se e como o desejo foi,aparentemente, herdado, durante os sculos XIX e XX, de uma longatradio crist era preciso, enfim, empreender uma genealogia dodesejo e do sujeito desejante.

    Foucault descobre que havia na Antiguidade, diferentemente do queocorre no perodo que abrange desde o sculo XVIII at, em termos, osdias atuais, uma experincia relativa ao sexo e a seus prazeres, distintadaquilo que conhecemos por sexualidade. Denominada comoaphrodisia, tal experincia, presente entre os antigos greco-romanos, definida por Foucault como a unidade constituda pelos atos, prazerese desejos relacionados atividade sexual, com o destaque para o fatode que, ao contrrio do que ocorre na experincia da sexualidade, emque a nfase se destina ao desejo, o foco de ateno nos aphrodisiasituava-se nos atos do indivduo imerso na experincia em questo. Issose deve ao tipo de modalidade moral privilegiada em tal perodo, umavez que, conforme Foucault (1984, p. 26-31) explica, podemos considerara moral antiga como orientada para as prticas de si, ou seja, para atica, apesar de, assim como em qualquer outra moral, haver tambm

    6. Foucault entende por experincia a correlao, numa cultura, entre campos de saber, tipos denormatividade e formas de subjetividade (FOUCAULT, 1984, p. 10).

  • 44 AMIZADE, EM FOUCAULT, E VIDA NO FASCISTA ...

    naquela a presena do cdigo. Tratava-se, por isso, mais de uma questode atitude frente aos acontecimentos da vida, s aes morais em geral no restringvel dinmica dos aphrodisia7 do que da submisso acondutas e regras morais impostas. Ao contrrio de seguir um restritivocdigo moral, o indivduo buscava exercer sua liberdade na prtica deuma tica que lhe permitisse elaborar da maneira mais bela possvelsua prpria vida como uma obra de arte, que fosse portadora de certosvalores estticos e que respondesse a certos critrios de estilo, querdizer, procurava exercer uma tica que fosse uma esttica da existncia.Essa elaborao de si manifestava-se por intermdio de um conjunto deprticas de si (ascese), refletidas e voluntrias, exercidas pelo indivduoque quisesse alcanar um modo de vida almejado, isto , por meio deum intenso e permanente trabalho de si sobre si, que tinha por finalidademodificar o sujeito em seu prprio ser.

    Retornando atualidade, o mais interessante quanto a essatemtica est na similaridade que Foucault (1995, p. 255) identificaentre as questes morais atuais e as da Antiguidade. Segundo o autor,hoje em dia, a maior parte das pessoas no acredita mais que a ticaesteja fundada na religio, nem deseja um sistema legal para intervirem nossa vida moral, pessoal e privada (FOUCAULT, 1995, p. 255),ou seja, a ideia de uma moral centrada na submisso a um cdigo estdesaparecendo. E a esta ausncia de moral corresponde, devecorresponder uma busca que aquela de uma esttica da existncia(FOUCAULT, 2004d, p. 290). Desse modo, haveria na atualidade apossibilidade histrica da reabilitao da estilstica da existncia, sem,todavia, compreend-la como uma tentativa de resolver nossos problemascom uma soluo produzida em outra poca. Em adio a isso, possvelencontrar, em Deleuze e Guattari, pontos de vista semelhantes quanto atais ideias foucaultianas. Podemos afirmar, baseados em fortes indcios,que h nestes autores, especialmente no que se refere noo de corposem rgos, uma concepo de trabalho de si sobre si, processado pormeio de um conjunto de prticas, que tem por finalidade a modificaocriativa do prprio si8 (DELEUZE, 1998, p. 19; DELEUZE; GUATTARI,1996). Dessa maneira, acreditamos que haja, tanto em Foucault quanto

    7. O regime dos aphrodisia no constitua a nica problematizao moral da Antiguidade, alm deser uma temtica menos importante do que os exerccios fsicos e a alimentao (FOUCAULT,1984, p. 49, 104; 1995, p. 253-254, 258-259).

    8. Trabalhamos em detalhes a questo da presena da esttica da existncia e da prtica de sina obra de Deleuze/Guattari, em outra publicao decorrente de nossa pesquisa.

  • 45Thiago Canonenco Naldinho

    em Deleuze e Guattari, a ideia da possibilidade do surgimento deinmeras resistncias eficazes contra o empobrecimento do tecidorelacional empreendido pela forma de poder hegemnico em atuaoem nossas sociedades, o qual tem por objetivo facilitar a produo egerncia da subjetividade , o que situaria, dessa maneira, a estticada existncia como algo extremamente perigoso para o Estado Modernoou CMI, na medida em que, por meio desta, poder-se-ia desenvolvermodos de vida inditos e revelia do modelo dominante.

    Amizade e vida no fascista9

    Contudo, mesmo que agssemos conforme tal estratgia, noestaramos plenamente seguros, uma vez que a modalidade hegemnicade poder possui diversos mecanismos que atravessam o campo social,com o objetivo de localizar e trazer visibilidade qualquer indcio deprocessos de irrupo da diferena. Nessa perspectiva, aps umaminuciosa anlise quanto ao teor revolucionrio de uma singularidadecapturada, decide se esta dever ser combatida ou integrada ao seuamplo axioma de individualidade, o que acaba muitas vezes por nosfazer crer que agimos de forma revolucionria, quando, na realidade,nosso potencial criativo est a servio da norma do poder subjetivante.Ainda quanto aos riscos frente ao poder dominante, situa-se, em paralelo captura neutralizante empreendida por este, a possibilidade de osprocessos de singularizao no se articularem s lutas do nvel deforas reais foras sociais, econmicas, materiais etc. e acabarempor girar ao redor de si mesmos at sua autodestruio, acarretando,muitas vezes, a manifestao desses processos no campo social sob aforma daquilo que Deleuze e Guattari denominam como microfascismos.

    No h receita alguma que garanta o desenvolvimento de umprocesso autntico de autonomia, de desejo, pouco importa como ochamemos. Se verdade que o desejo pode se reorientar para aconstruo de outros territrios, de outras maneiras de sentir ascoisas, igualmente verdade que ele pode, ao contrrio, se orientarem cada um de ns numa direo microfascista. (GUATTARI;ROLNIK, 2005, p. 284).

    9. As descries pormenorizadas, tanto da amizade quanto da vida no fascista, foram expostaspor ns em outras publicaes.

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    Contra tais perigos, encontramos na amizade e vida no fascista modos de vida propostos ou, simplesmente, implicados, respectivamente,nas filosofias de Foucault e Deleuze/Guattari uma ferramentaextremamente eficaz (FOUCAULT, 1993; ORTEGA, 1999, p. 151-172).Consiste numa atitude que comportaria um exigente princpio oudispositivo analtico-crtico que verificaria constantemente nossascondutas, com a finalidade de descobrir indcios de focos demicrofascismos ou, como Foucault os denomina, estados de dominao.Entretanto, vale ressaltar a importncia de tal princpio ser apenascrtico e no regulador, o que vai de encontro necessidade de, setratando de relaes de poder, agirmos de maneira prudente uma vezque o que separa tais relaes dos estados de dominao uma linhaextremamente emaranhada e nebulosa e emprica, pois podemosacabar, mesmo possuindo interesses pr-conscientes revolucionrios,investindo inconscientemente no bloqueio de processos desejantes.

    Contudo, essa atitude especfica no se limita a uma constantevigilncia sobre nossas condutas, j que, simultaneamente, podemosencontrar naquela um fator de constante inveno, diferenciao; dereflexo, trabalho e afirmao de si enquanto fora criativa. Essaatitude seria algo como um certo modo de sensibilidade; uma certamaneira de pensar, sentir e agir; uma postura ativa e aberta frente atualidade: aquilo que Guattari chama de revoluo molecular oufuno de autonomia, e Foucault de atitude de modernidade umaatitude tico-analtico-poltica. Exerc-la requer um permanentetrabalho crtico atuante sobre nossos prprios limites, que seprocessaria atravs de uma ontologia crtica de ns mesmos, aliada auma intensa experimentao. Tal empreitada se apresenta muitoprxima daquilo que Foucault (1984, p. 13) define por filosofia: umaascese, um exerccio de si, no pensamento, uma atividade deautotransformao.

    [...] o que filosofar hoje em dia quero dizer, a atividade filosfica seno o trabalho crtico do pensamento sobre o prpriopensamento? Se no consistir em tentar saber de que maneira eat onde seria possvel pensar diferentemente em vez de legitimaro que j se sabe? (FOUCAULT, 1984, p. 13).

    Nessa ascese, o material a ser trabalhado, por meio de uma intensaatitude experimental, seria o pensamento.

  • 47Thiago Canonenco Naldinho

    A filosofia o deslocamento e a transformao das molduras depensamento, a modificao dos valores estabelecidos, e todo otrabalho que se faz para pensar diferentemente, para fazerdiversamente, para tornar-se outro do que se . (FOUCAULT, 1980).

    Assim, toma destaque a presena, tanto na amizade quanto na vidano fascista, de uma constante preocupao em no s evitar interromperos processos de singularizao, como tambm criar vias de passagementre os nveis do campo social para que aqueles possam interligar-secom outros processos e, assim, multiplicarem-se em suas diferenascriativas. Tal cuidado marca outra caracterstica desses modos de vida,isto , a desindividualizao, a qual, para ser abordada, requer queantes esclareamos a relao da subjetividade com a individualidade.

    De acordo com Foucault, Deleuze e Guattari, no h um sujeitodado, universal. No h uma subjetividade do tipo recipiente, onde seinteriorizam fatores exteriores, mas sim uma subjetividade de naturezaindustrial, maqunica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada,recebida, consumida (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 33). Para Guattari,a subjetividade, assim como a linguagem, em vez de estar confinada auma pessoa, encontra-se em circulao pelo campo social, de ondepode ser assumida e vivida por indivduos em suas existnciasparticulares (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 42, grifo dos autores). Suaproduo realizada essencialmente no campo social e executada nopor entidades individuais ou sociais predeterminadas, mas poragenciamentos coletivos de enunciao compostos por fatoresextraindividuais (sistemas sociais, econmicos, cientficos, religiosos,ecolgicos etc.) e infrapessoais (sistemas de sensibilidade, percepo,produo de pensamento etc.).

    Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivduoe de subjetividade. Para mim, os indivduos so o resultado de umaproduo de massa. O indivduo serializado, registrado, modelado.[] A subjetividade no passvel de totalizao ou decentralizao no indivduo. Uma coisa a individuao do corpo.Outra a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivao: asubjetividade essencialmente fabricada e modelada no registrodo social. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 40, grifo dos autores).

    Dessa maneira, o indivduo no seria uma condio necessria paraa subjetividade, porm, apenas um terminal ou consumidor desta; o

  • 48 AMIZADE, EM FOUCAULT, E VIDA NO FASCISTA ...

    resultado de uma produo de massa pela matriz moderna deindividualizao ou grande mquina de subjetivao capitalstica.

    Estaramos, por conseguinte, fadados a ser marionetes teleguiadasagindo conforme os ardilosos interesses do poder subjetivante modernoou CMI? No necessariamente, pois, para Foucault e Deleuze/Guattari,sempre h vacolos de possvel, de escolha, de autorreferncia, de regrasfacultativas, mesmo nas sociedades mais opressivas e restritasmoralmente. Contra essa imposio de um modo de semiotizao10

    pela forma de poder hegemnica, tais autores nos propem adesindividualizao do sujeito, atravs de um processo deesquizofrenizao11. O indivduo, por meio de uma relao criativacom a subjetividade, poderia se apropriar de componentes desta paraproduzir, por processos de singularizao, novos registros referenciais,novas sensibilidades, novos modos de viver, sentir e pensar distintos daindividualidade uma reabilitao da estilstica da existncia, umaencarnao da vida.

    o conjunto das possibilidades de prticas especficas de modo devida, com seu potencial criador, que constitui o que chamo derevoluo molecular, condio para qualquer revoluo social. Eisso no tem nada de utpico, nem de idealista. (GUATTARI;ROLNIK, 2005, p. 214).

    Essa caracterstica da amizade e da vida no fascista vai de encontroao objetivo poltico, tico, social e filosfico de nossos dias, isto , arecusa daquilo que somos, daquela individualidade padronizada quenos imposta h sculos. Tais modos de vida no negam com isso aimportncia daquilo que realmente torna os indivduos seres individuais,mas sim se opem imposio, exercida pelo Estado Moderno ou CMI,de uma subjetividade normalizada.

    10. Para Guattari, modo de semiotizao seria um conjunto de caractersticas e modos desensibilidade e percepo que d sentido s prticas de determinado grupo, povo ou modode vida (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 24, 25, 31).

    11. Com isso, Deleuze e Guattari no pretendem dizer que os esquizofrnicos so os revolucionriosinatos. Na realidade, o esquizo, como entidade clnica, figura hospitalizada e separada darealidade, seria o resultado da interrupo ou da continuao no vazio do processoesquizofrnico, o qual considerado como potencial revolucionrio. A esquizofrenia comoprocesso seria a oposio ao processo de neurotizao, de edipianizao (DELEUZE;GUATTARI, 1966, p. 357, 380, 381).

  • 49Thiago Canonenco Naldinho

    Desejo, prazer e sexualidade

    Torna-se evidente que, tanto na amizade quanto na vida no fascista,h uma ampla preocupao com o surgimento e expanso dessa potnciacriativa capaz de romper com a dominao do poder hegemnico, pormdiferindo quanto a sua definio. Para Deleuze e Guattari, tal potencialrevolucionrio se encontraria no desejo desejo como processo, produodesejante como produo de qualquer produo. Ao desejo nada faltaria,porque este se encontraria sempre prximo s condies de sua existnciaobjetiva. Dessa maneira, estaramos constantemente imersos emprocessos de singularizao movidos pelo desejo, os quais, contudo,seriam ininterruptamente perseguidos por processos de individuao afavor da subjetividade capitalstica.

    [...] eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontadede viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade deinventar uma outra sociedade, outra percepo do mundo, outrossistemas de valores. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 260-261, grifodos autores).

    Quanto a Foucault, encontraramos tal potncia no prazer,considerado como a fora do encontro que constitui o corpo de relaes(CARDOSO JNIOR, 2005a, p. 16) entre nosso ncleo de subjetividadese as coisas que nos circundam.

    Essa discordncia quanto definio da fora transformacional docampo subjetivo e social possui tambm distintas leituras entre os mesmosautores. Foucault, apesar de no suportar o termo desejo, por noconseguir deixar de remet-lo falta ou represso, sublinha que talvezaquilo que denomina como prazer seja o mesmo que Deleuze (1994)chama de desejo. Entretanto, para Deleuze, essa distino no serestringiria a uma simples troca de palavras.

    No posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazerparece-me interromper o processo imanente do desejo; o prazerparece-me estar do lado dos estratos e da organizao; [] Parece-me que o prazer o nico meio para uma pessoa ou sujeitoreencontrar-se num processo que o transborda. umareterritorializao. Do meu ponto de vista, da mesma maneiraque o desejo relacionado lei da falta e norma do prazer.(DELEUZE, 1994).

  • 50 AMIZADE, EM FOUCAULT, E VIDA NO FASCISTA ...

    Todavia, independentemente de no encontrarmos uma unanimidadequanto a um termo que represente a potncia em questo, permaneceem evidncia o carter de mutao dessa fora que perpassa os processosde subjetivao.

    Como sabemos, tanto em Foucault quanto em Deleuze e Guattari,podemos encontrar a discusso sobre a ampla manifestao de vetoresde singularizao dentro de minorias, no campo da sexualidade. Comefeito, Foucault ressalta, em seus ltimos estudos, o enorme potencialcriativo encontrado entre os homossexuais, devido no a alguma espciede essncia gay, mas posio de enviesado de que estes dispem, notecido relacional consequncia de um conjunto de consideraesprticas processadas em nossas sociedades, as quais acabaramfavorecendo a experimentao e o desenvolvimento de novas formas deprazer e relacionamento, dentro dessa minoria.

    Entretanto, apesar de ser reconhecida como um fecundo campo deinveno de inditas relaes e modos de sensibilidade e percepo,no devemos considerar a sexualidade como a nica sada ofensivacontra a dominao exercida pelo poder subjetivante moderno, pois,para Foucault, Deleuze e Guattari, o fator transformacional no estariacircunscrito apenas ao campo normativo da sexualidade.