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FOUCAULT E O CINEMA: PARA UMA BREVE ARQUEOLOGIA DAS IMAGENS EM MOVIMENTO Nilton Milanez Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB Foucault nas revistas de cinema: microfísica do poder e arqueologia Vamos nos vestir, então, para sair ao encontro com oFoucault do cinema. Quero, neste momento, compreender as circunstâncias enunciativas que cercaram e empurraram Foucault a falar de cinema. A esse tipo de circunstâncias da enunciação cabem perguntas como: a) o que autoriza Foucault a falar de cinema?; b) para quem se fala e de que lugar ele fala?; c) em que condições essas falas são enunciadas? O lugar mais próximo de nós no qual podemos verificar essas materialidades são, num primeiro momento, os textos de Foucault reunidos nos Ditos e Escritos III e VII, da tradução brasileira organizada por Manoel Barros da Motta. Trata-se de nove textos, que compreendem o período de 1974 a 1982. Desses nove textos, sete foram, inicialmente, veiculados em revistas de cinema, cujas capas 1 apresento a seguir em ordem cronológica de publicação, não obviamente como ilustração, mas para reafirmar e que para possamos visualizar o lugar do qual se produziram os discursos foucaultianos acerca do cinema. 1 O Arquivo de Imagens do Labedisco está disponível para domínio público no sitewww.uesb.br/labedisco .

FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

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Foucault. Cinema

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FOUCAULT E O CINEMA:

PARA UMA BREVE ARQUEOLOGIA DAS IMAGENS EM MOVIMENTO

Nilton Milanez

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB

Foucault nas revistas de cinema: microfísica do poder e arqueologia

Vamos nos vestir, então, para sair ao encontro com oFoucault do cinema. Quero, neste

momento, compreender as circunstâncias enunciativas que cercaram e empurraram Foucault a falar de

cinema. A esse tipo de circunstâncias da enunciação cabem perguntas como: a) o que autoriza Foucault

a falar de cinema?; b) para quem se fala e de que lugar ele fala?; c) em que condições essas falas são

enunciadas? O lugar mais próximo de nós no qual podemos verificar essas materialidades são, num

primeiro momento, os textos de Foucault reunidos nos Ditos e Escritos III e VII, da tradução brasileira

organizada por Manoel Barros da Motta. Trata-se de nove textos, que compreendem o período de 1974

a 1982. Desses nove textos, sete foram, inicialmente, veiculados em revistas de cinema, cujas

capas1apresento a seguir em ordem cronológica de publicação, não obviamente como ilustração, mas

para reafirmar e que para possamos visualizar o lugar do qual se produziram os discursos foucaultianos

acerca do cinema.

1 O Arquivo de Imagens do Labedisco está disponível para domínio público no sitewww.uesb.br/labedisco.

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Como podemos ver, a discussão cinematográfica de Foucault teve espaço nas revistas francesas

de cinema dos anos 1970: os CahiersduCinéma, Cahiers Renaud-Barrault, o Cinématographe, e La

RevueduCinéma. Para além das revistas, houve uma publicação no Le Monde, em 23 de março de 1977

e, ainda, uma entrevista com Foucault e o diretor alemão Werner Schroeter, Conversa com Werner

Schroeter, em 3 de dezembro de 1981, que foi publicada em livro pelo Goethe Institute, em 1982.

É bastante importante compreender onde as enunciações de Foucault circularam, considerando

que seus posicionamentos foram publicados, sobretudo, em revistas e jornais de grande circulação na

França, representando posicionamentos de autoridade quando o assunto é cinema. Além disso, esse

pequeno leque, mas não menos significativo da ótica-histórica cinematográfica de Foucault, apresenta

um tipo de gênero exclusivo nas nove publicações: tratam-se todas de entrevistas. O lugar do diálogo é

Figura 4. Sobre História de Paul, jan. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 2. Sobre Marguerite Duras, out. 1975. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 1. Anti-retro, jul-ago, 1974. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 3. Sade, o sargento do sexo, dez. 1975-jan. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 6. O retorno de Pierre Rivière, dez. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 7. Os Quatro cavaleiros do Apocalipse e os Vermes Cotidianos, fev. 1980. Arquivo de Imagens do Labedisco.

Figura 5. Entrevista com Michel Foucault, nov. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.

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marcado às vezes até por mais de dois interlocutores presentes, sejam eles críticos, pensadores ou

diretores de cinema. Com quem Foucault falou de cinema também é um dos pontos relevantes para se

compreender esse lugar de enunciação na rede cinematográfica de discursos imagéticos em

movimento. Acredito, por isso, ser importante pontuar e reproduzir as referências dos textos originais,

mesmo que elas já estejam reproduzidas nos textos das entrevistas nos Ditos e Escritos de nossa

tradução brasileira. Focalizá-las juntas e cronologicamente estabelece um tipo de quadro importante

para um trabalho inicial de análise como este que pretendo encetar.

1. “Anti-retro” (entrevista com Paul Bonitzer e Serge Toubiana), CahiersduCinéma, nºs 251-

252, julho-agosto, 1974, pp. 6-15.

2. “Sobre Marguerite Duras” (entrevista com HélèneCixous). Cahiers Renaud-Barrault, nº 89,

outubro de 1975, pp. 8-22.

3. “Sade, o sargento do sexo” (entrevista com G. Dupont), Cinématographe, nº 16, dezembro

de 1975 - janeiro de 1976, pp. 3-5.

4. “Sobre História de Paul” (entrevista com René Féret). CahiersduCinéma, nº. 262-263,

janeiro de 1976, p. 63-65.

5. “Entrevista com Michel Foucault” (entrevista com Paul Kané), CahiersduCinéma, nº 271,

novembro de 1976, p. 52-53. (Transcrição de uma entrevista com P. Kané em um curta-

metragem realizada por este último sobre o filme de R. AllioMoi, Pierre Rivière,

ayantégorgémamère, masoeuretmonfrère, 1976).

6. “O retorno de Pierre Rivière” (entrevista com G. Gauthier), La RevueduCinéma, nº b312,

dezembro de 1976, p. 37-42 (Sobre o filme Moi, Pierre Rivière, ayantégorgémamère,

masoeur et monfrère, de R. Allio, 1976.)

7. “As manhãs cinzentas da tolerância”, Le Monde, nº 9.998, 23 de março de 1977, p. 24

(Sobre o filme de P. P. Pasolini, Comizi d’Amore, filmado em 1963 e apresentado na Itália

em 1965).

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8. “Os Quatro cavaleiros do Apocalipse e os Vermes Cotidianos” (entrevista com B. Sobel),

CahiersduCinéma, nº 6, fora de série: Syberberg, fevereiro de 1980, p. 95-96. (sobre o

filme de H-J. Syberberg. Hitler, UnFilm d’Allemagne, 1977).

9. “Conversa com Werner Schroeter” (entrevista com G. Courtant. W. Schoreter, em 3 de

dezembro de 1981), in Courant (G.), Werner Schoreter, Paris, Goethe Institute, 1982, p. 39-

47.

Para efeito didático, vou citar apenas um caso, o da primeira publicação, Anti-

retro, em 1974, entrevista de Foucault concedida a Paul Bonitzer - na época crítico de

cinema dos Cahiers de cinéma e, hoje, também roteirista, diretor e ator – e Serge

Toubiana - redator chefe dos Cahiersnaquele momento e, atualmente, diretor da

CinémathèqueFrançaise de Paris2. Para tanto, acrescento na lista sobre os trabalhos de

Foucault com o cinema o belo texto-depoimento de Serge Toubiana, de 2004, Michel

Foucault etlecinéma, sobre a primeira entrevista com Foucault sobre cinema, realizada

na “rua de Vaugirard, em seu apartamento moderno, branco, muito iluminado,

invadido por livros.”, como nos declara Toubiana3. Mas, quais condições de possibilidade levaram

estudiosos de cinema a querer ouvir Foucault sobre o tema? É preciso que entendamos que os

Cahiersestavam passando por uma grande reformulação de posições ideológicas e que a nova direção,

encabeçada por Toubiana, queria romper com o dogmatismo teórico marxista que reinava nos últimos

três anos na revista. Segundo Toubiana4, “Esse encontro com Foucault ia ser uma virada decisiva, o

signo de uma abertura em direção a um novo tipo de questionamento crítico, operando um desvio pela

História, que deveria, em retorno, enriquecer nossa visão nova do cinema”.

Portanto, ao discutir os filmes de O porteiro da noite, da italiana Liliana Cavani e Lacombe

Lucien, do francês Louis Malle, ambos de 1974, sobre a temática erótico-nazista, Foucault destacará as

relações entre amor e poder no interior do quadro de uma memória coletiva dos operários e de homens

ordinários, sem enquadrá-las em visões marxistas que poderiam restringir os discursos em torno do

2 Cf. Ver também DANEY, Serge. In: Cahiers du Cinéma. Anti-rétro (suíte)/Fonction critique (fin). Nº 253, octobre-

novembre, 1974, p. 30-36. 3 TOUBIANA (2004, p. 187) 4 TOUBIANA (2004, p. 187)

Figura 8. Michel Foucault, la littératureet les arts. Org. Philippe Artières, ÉditionsKimé, 2004). Arquivo de Imagens do Labedisco.

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desejo desses filmes a uma intervenção do poder ao mesmo tempo restritiva e mecânica, de caráter

eminentemente econômico. Enfim, é do lugar sobre o qual Foucault discorre acerca de filmes de

grande sucesso junto ao público francês, ao lado de quem fez e faz história de cinema hoje na França.

“Gostaria de dizer para concluir”, diz Toubiana5,

[...] que Foucault nos ajudou enormemente, em um época de virada da história dos

CahiersduCinéma, a sair do dogmatismo marxista, obrigando-nos a reformular, no

território do cinema, certas questões pertinentes e essenciais: aquela da palavra e do

discurso, aquela do lugar do espectador, aquela da enunciação etc. Foucault nos

ajudou largamente a nos livrarmos de um certo maniqueísmo vindo direto de

pressupostos ideológicos. Por isso, como por muitas outras coisas, nós lhe fomos

muito gratos.

Nessa escada rolante é que entendo a entrevista de Foucault à Toubiana e Bonitzer. De um

lado, temos por Foucault a revisão do posicionamento dos lugares de força e exercícios de poder, que

se deslocam da veia econômica e dos aparelhos ideológicos do Estado para se pulverizarem na

sociedade, multifacedos nos espaços e intercambiado pelos indivíduos em relações institucionais e

domésticas. É a microfísica do poder fazendo-se valer de práticas como a descrita por Serge Toubiana,

querendo escapar à empreitada marxista dos Cahiers. Não obstante, esse enfrentamento parece se

sustentar na noção de história enquanto descontinuidade e dispersão. Ao colocar o filósofo de frente

com a política nazista e o desejo, Toubiana e Bonitzer colocam M. Foucault na berlinda para “detectar

a incidência das interrupções”, a fim de identificar “um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos

múltiplos”6, por meio de deslocamentos de conceitos já cristalizados sobre a guerra e suas formas de

subjugação. Multiplicando as rupturas dos discursos dos filmes que ilustram essa conversa,

entrevistadores e entrevistados reorganizam a questão da história segundo as mutações, cortes e

rupturas nas práticas fílmicas. É um período de efervescência de transformação de conceitos. Assim,

5 TOUBIANA (2004, p. 194). 6 FOUCAULT (2000, p. 4).

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quem lê Anti-retro está na ordem do discurso das ideias da Microfísica do Poder e da Arqueologia do

Saber.

Depreendemos, também, da enunciação de Serge Toubiana a questão

da organização de uma memória do povo, determinada pelo seu lugar no

presente com seus contornos históricos fílmicos, que vai ser corroborada,

depois da entrevista de 1974, dois anos depois, na primavera de 1976, pelo

LesCahiers de La Cinémathèque, no número intitulado Mémoire d’une

nation, assinado por François de laBretèque, hoje professeur-pesquisador de

estudos cinematográficos na Université Paul Valéry Montpellier 3. Nesse

documento, o fio que tece a composição de um sistema para a intervenção da

memória fílmica passa pela memória histórica, recitando Foucault, mas que estabelecerá seu nome

apenas ao final do artigo. O subtítulo do artigo Archéologiedesdeuxmémories [Arqueologia de duas

memórias] retoma o caráter baseado sobre os preceitos arqueológicos de Foucault, evidenciando o

papel do arqueólogo ao escavar da camada superficial à mais profunda, com vistas a pensar, primeiro,

o monumento e, depois, a especificidade do presente, segundo as tessituras foucaultianas. Bretèque irá

sinceramente registrar seu desapego à ideia de tomar o cinema como um documento:

Entendamos bem isso: não podemos inocentemente acreditar que se pode, graças ao

cinema, “reconstituir”. Essa, sim, seria a tarefa dos historiadores, se é que eles ainda

acreditam que ela seja possível: temos mais a impressão que, de agora” o passado do

qual ele emana, ao se tratar o filme como “documento em diante, saibamos realmente

do que isso se trata, segundo a forte expressão de Michel Foucault, que fala do

“divertimento dos historiadores de calças curtas”.7

E continua para frisar o lugar do qual fala junto com Foucault nessa proposta de integrar o

cinema ao presente:

7 BRETÈQUE (1976, p. 8). Tradução nossa.

Figura 9.Mémoired'une Nation.Printemps 1976.Numérodouble. Arquivo de Imagens do Labedisco.

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Mas esse é o campo de pesquisas do historiador. Para ele, o cinema continua

efetivamente a ser um “documento”. O próprio historiador se situa no interior do fato

cinematográfico; sua posição específica face ao objeto o leva a operar uma reviravolta

de perspectiva, trabalhando sobre os filmes que ele tratará, segundo os termos de Michel

Foucault, de “monumento”8

O mais tocante, no final de tudo, é a interpelação de Bretèque na citação de uma fala de

Foucault. Refiro-me ao momento da Arqueologia do saber em que Foucault se preocupa em dizer

sobre o desligamento que devemos efetuar da história como memória milenar e coletiva. Bretèque por

sua vez vai operar uma transcrição desgarrada da fala de Foucault e ainda por cima vai interferir na

citação, cortando-a: “ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental, livros, textos (eu

acrescentaria filmes que apresenta sempre e em toda parte”9.

Romper com a ordem do discurso científico, tão bem pesado por nós, (“Ler é maçada, estudar é

nada”, como já nos contadisse Fernando Pessoa), é nesse caso libertar-se de amarras que encerram a

força criativa (esse acredito realmente ser um exemplo daqueles em que a teoria não é usada para

repetir e conferir padrões). É dessa maneira que Bretèque não fica apenas a repetir Foucault, mas se

retoma-se o pensamento de J-J- Courtine10

, o que ele faz é “Pensar com Foucault”. Bretèque, já nos

anos 1970, simplesmente servia-se da teoriaem vez de servir à teoria.

Da maneira como compreendo, sob a perspectiva foucaultiana, Bretèque está inquieto com o

fato de pensar o cinema enquanto tradição e tomá-lo como um modelo de memorização para os

acontecimentos. Sabemos bem com Foucault 11

, que “O documento não é o feliz instrumento de uma

história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória”. Entendemos, por outro lado, que a

história é a transformação desses documentos em monumentos. Ao deslocar o olhar foucaultiano para

8 BRETÈQUE (1976, p. 8). Tradução nossa.

9 BRETÈQUE apud FOUCAULT (1976, p. 8-9), tradução nossa. Cf. A versão ipsis litteris da tradução brasileira é “ela é o

trabalho e a utilização deuma materialidade documental (livro, textos, narrações, registos, atas, edifícios, instituições,

regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc) que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer sociedade, formas de

permanência, quer organizadas, quer espontâneas” (FOUCAULT, 2000, p.7-8). 10COURTINE, 2012. 11 FOUCAULT (2000, p. 8).

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o cinema, isso consiste em ver nos filmes não os rastros e traços dos passados deixados pelos sujeitos

na história, mas se trata de um trabalho de reconhecimento das camadas históricas e do desdobramento

de elementos que, metodologicamente, devem dizer sobre o nosso lugar no mundo, por meio de um

retalhamento do estudo fílmico que leve em consideração o isolamento, o agrupamento, a inter-

relação, descrevendo, dessa forma, a organização de conjuntos que atribuem aos filmes o seu lugar de

monumentos. Em resumo, tratar o filme como documento é dizer que ele tem uma memória que conta

sobre o passado, enquanto problematizá-lo como monumento significa dar-lhe o reconhecimento de

suas condições de possibilidade e de fio discursivo dentro de uma rede com outros filmes e outros

sujeitos. Esse nível de associações se estabelece para compreender os mecanismos de um

funcionamento histórico fílmico, a fim de refletir sobre os tipos de relações possíveis do sujeito no seu

tempo em referência aos acontecimentos, instituições e práticas que administram os tipos de posições

sócio históricas que ocupam/ocupamos na vida.

Quase finalizando, nos anos 1970, evidenciava-se, então, a força criativa de tirar o cinema da

discussão do “real” para pensá-la como objeto do presente. A inquietação muito maior era pensar o

hoje de bases foucaultianas, que trabalhava a articulação entre passado e seu efeito sobre o presente. É

essa linha de raciocínio seguida por Bretèque. “Ler o presente”12

seria considerar uma reflexão sobre a

memória fílmica no que concernem “todas as operações críticas necessárias ao espírito lúcido que

deseja compreender o presente e espera, assim, agir sobre o futuro” (Bretèque, 1976, p. 8).

Terei a oportunidade de falar mais sobre isso adiante. Por ora, é intenso notar que a reflexão do

estudioso do cinema nesse momento vai ressaltar a importância da consideração do arquivo na

constituição da história dos sujeitos como também antecipar resultados dos trabalhos de Foucault sobre

a questão da atualidade e de nossa existência no mundo em um momento específico da história por

meio da discussão do hoje e do agora. Sem dúvida, juntamente com a entrevista de Toubiana e

Bonitzer, em Anti-retro, estamos diante de textos seminais sobre as materialidades que compõem os

estudos cinematográficos como espaço do presente histórico e dos desenhos do devir para nós sujeitos.

Assim, apenas a título de fechamento do tópico, digo que - seja a partir das relações de poder seja dos

estudos arqueológicos sobre história, memória, rupturas e mudanças - Foucault está presente na

12 BRETÈQUE (1976, p. 8).

Page 9: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

reviravolta do cinema pela qual parece passar os anos 1970, colocando em evidência o seu espectro de

arquivista para a arqueologia de um sujeito do presente.

Os filmes por Foucault: a arqueologia, o arquivo e o arquivista

Foucault conversou, debateu, citou, rebateu, se chocou com filmes que eram trazidos por ele

enquanto entrevistado, por seus entrevistadores, por seus amigos, por diretores que entrevistou. O

quadro que apresento abaixo é uma tentativa de sistematização de dados para que possamos visualizar

alguns elementos importantes para a discussão da produção cinematográfica tocada por Foucault e

tratada por ele como um arquivista, resultado das relações entre a arqueologia e o arquivo, das quais

falarei do quadro de filmes que apresento a seguir.

Introduzo as nove entrevistas em ordem cronológica e situo quem nessas entrevistas citou que

título de filme. Muitas vezes os títulos dos filmes foram citados em sua versão original, mas quando

tínhamos uma tradução brasileira para eles, tomei essa opção, pois, de certa maneira, facilita a nossa

procura pelos filmes. A origem da produção fílmica também tem uma singularidade importante para

nós, mostrando o espaço geográfico sobre o qual se disserta, da mesma forma que o nome de seus

diretores, cuja assinatura funciona como a marca de autoria da produção cinematográfica, e até mesmo

o ano de sua produção, que me ajudaram a delimitar um espaço-tempo importante para o

estabelecimento desse arquivo fílmico. Esses dados vão ser por mim compreendidos como a fita que

vai fazer rodar os planos discursivos das relações de Foucault com o cinema.

Quero, com isso, destacar as relações entre as partes que delimitam as fronteiras dessa

formação fílmica e sua composição discursiva dada pelo entrelaçamento desses dados. Eis, então, um

breve quadro de organização dessas informações, construída a partir das referências dos textos dos

Ditos e Escritos III e VII, versão brasileira.13

13 Buscando sempre respeitar a economia de tempo de fala nas mesas-redondas, produzi dois vídeos que condesassem a

produção dos filmes que foram citados nos textos de Foucault sobre cinema. O resultado pode ser buscado no youtube pelo

título “Labedisco - Os filmes por Foucault” ou pelo link de acesso no canal do

Labediscohttps://www.youtube.com/watch?v=6qvd5KJDctg e “Labedisco: A herança fílmica de Michel Foucault” ou pelo

acesso no link https://www.youtube.com/watch?v=5CMjROtU8_Q

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Entrevista/ano Quem citou Filme Diretor Origem Ano

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

Toda uma vida Gustav

Ucicky

Alemanha 1940

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

Glória feita de

Sangue

Stanley

Kubrick

EUA 1957

Anti-retro/1974 Foucault A tristeza e a

piedade

Marcel

Ophüls

França 1969

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

A tristeza e a

piedade

Marcel

Ophüls

França 1969

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

El Coraje del

Pueblo

Jorge

Sanjínes

Bolívia 1971

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

Les Camisards René Allio França 1972

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

Français si

vous saviez

André Harris

e Alain de

Sedouy

França 1972

Anti-retro/1974 Foucault O porteiro da

noite

Liliana

Cavani

Itália 1974

Anti-retro/1974 P.Bonitzer e

S. Toubiana

O porteiro da

noite

Liliana

Cavani

Itália 1974

Sobre Marguerite

Duras/1975

H.Cixous Destruir, disse

ela

Marguerite

Duras

França 1969

Sobre Marguerite

Duras/1975

H.Cixous India Song Marguerite

Duras

França 1975

Sobre Marguerite

Duras/1975

Foucault India Song Marguerite

Duras

França 1975

Sade Sargento do

Sexo/1976-76

G. Dupont Quanto mais

quente melhor

Billy Wilder EUA 1959

Sade, Sargento do

Sexo/1975-76

G.Dupont El Topo Alejandro

Jodorowsky

México 1970

Sade, Sargento do

Sexo/1975-76

G. Dupont O porteiro da

noite

Liliana

Cavani

Itália 1974

Sade, Sargento do

Sexo/1975-76

G.Dupont Saló Pier Paolo

Pasoloni

Itália 1975

Page 11: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

Sade, Sargento do

Sexo/1975-76

Foucault A Morte de

Maria

Malibran

Werner

Schroeter

Alemanha 1976

Sade, Sargento do

Sexo/1975-76

G.Dupont Snuff Movies

(gênero

citado)

- EUA -

Sobre História de

Paul/1976

Foucault e

René Feret

História de

Paul

René Féret França 1975

Entrevista com

Michel Foucault/

1976

P.Kané Eu, Pierre

Riviere..

René Allio França 1976

O Retorno de

PierreRivière/

1976

Foucault Blow-up

depois daquele

beijo

Michelangelo

Antonioni

Itália 1966

O Retorno de

Pierre Rivière/

1976

G.Gauthier Les Camisards René Allio França 1972

O Retorno de

Pierre

Rivière/1976

Foucault Les Camisards René Allio França 1972

O Retorno de

Pierre

Riviere/1976

Foucault Le Pain Noir

(minissérie

TV)

Moatti França 1974

O Retorno de

Pierre Rivière/

1976

G. Gauthier Eu, Pierre

Riviere...

René Allio França 1976

O Retorno de

Pierre

Riviere/1976

Foucault Eu, Pierre

Riviere...

René Allio França 1976

As Manhãs

Cinzentas da

Tolerância/1977

Foucault Mamma Roma Pier Paolo

Pasolini

Itália 1962

As Manhãs

Cinzentas da

Tolerância/1977

Foucault Comizi

d'amore

Pier Paolo

Pasolini

Itália 1964

Os Quatro

Cavaleiros do

Apocalipse.../1980

Foucault Eva Braun Yukio

Mishima

Japão 1970

Page 12: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

As entrevistas. Os textos que lemos nos Ditos e Escritos sobre cinema têm todos eles o formato

de entrevistas. Mas deles fazem parte também a participação ativa na construção de roteiros de filmes

originados de seus estudos e até mesmo de sua presença nos sets de filmagens como é o caso,

inclusive, da entrevista concedida a Paul Kané durante as filmagens do curta-metragem desse diretor

acerca do filme de René Allio, que dirigiu o filme homônimo do livro assinado por Foucault, Moi,

Pierre Riviére... Entrevistas com diretores de cinema como René Féret, sobre o filme Histoire de Paul,

que rediscute as lições foucaultianas sobre a loucura e o aprisionamento asilar. Ou ainda, conversas

com sua amiga HélèneCixous em torno dos filmes a partir da obra de Marguerite Duras). Essas

Os Quatro

Cavaleiros do

Apocalipse.../1980

Foucault Hitler: um

filme da

Alemanha

Hans-Jürgen

Syberberg

Alemanha 1978

Os Quatro

Cavaleiros do

Apocalipse.../1980

B.Sobel Hitler: um

filme da

Alemanha

Hans-Jürgen

Syberberg

Alemanha 1978

Conversa com

Werner

Schroeter1982

Werner

Schroeter

Willow

Springs

Werner

Schroeter

Alemanha 1973

Conversa com

Werner

Schroeter/1982

Foucault Willow

Springs

Werner

Schroeter

Alemanha 1973

Conversa com

Werner

Schroeter/1982

1982

Foucault A Morte de

Maria

Malibran

Werner

Schroeter

Alemanha 1976

Conversa com

Werner

Schroeter/1982

Werner

Schroeter

A Morte de

Maria

Malibran

Werner

Schroeter

Alemanha 1976

Conversa com

Werner

Schroeter/1982

Werner

Schroeter

O dia dos

idiotas

Werner

Schroeter

Alemanha 1981

Page 13: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

diferentes maneiras de reagir às possibilidades de instaurações cinematográficas tanto nas entrevistas,

nas conversas ou artigo de jornal, presenças nas gravações de filmes a partir de seus livros não

compreendem o escopo do que Foucault tinha trabalhado até o momento dentro da sua maneira de

tratar o arquivo.

Conversavam e o público de cinema os ouvia nessas entrevistas. Falavam, porque tinha um

público ávido para escutar isso. Fato é que o trabalho de Michel Foucault influenciou a noção de autor

no cinema e alimentou direta ou indiretamente vários críticos e diretores na esteira das revistas críticas

e de estudo de cinema no início dos anos 1970. Dessa forma, palavras e ditos em formas de entrevistas

ultrapassam o limite de um gênero textual para atingir sua produção discursiva. Essa visada

arqueológica no cinema tem como forma interrogativa a questão do saber que os problemas oriundos

do cinema daquele tempo trouxeram para compreender aquela própria época e, hoje, a nossa, por meio

dos fragmentos de histórias em seus planos, enquadramentos e movimentos de câmera.

Arquivo fílmico. Um dos modos que me auxiliam a entender o grupo de filmes aos quais

Foucault se debruçou e considerá-los em suas formas de descrição foi a de maneira tão feliz de o

cinema ter sido recuperado por Toubiana, Bonitzer e Bretèque, apresentados anteriormente. Retomar a

Arqueologia do Saber é relevante pelo fato da proposta de Foucault defendida aparentemente de forma

um pouco descompromissada, pelo menos da maneira como ele fala do título da obra tanto em

entrevista a J. – J. Brochier, em 1929, texto intitulado MichelFoucault explica seu último livro14

,

quanto no áudio disponível no youtube, em entrevista a Georges Charbonnier. Nessas duas

oportunidades, Foucault simpaticamente declara ter roubado a palavra dos arqueólogos.15

Explica,

entretanto, que a ideia de escavar, desenterrar ossos do passado não dizem respeito a coisas secretas,

silenciosas ou escondidas da consciência humana. Seu objetivo é claro, ele busca definições para as

relações que constituem a superfície própria dos discursos. Foucault mesmo traça essa relação direta da

arqueologia com a descrição do arquivo.

14 FOUCAULT, 2001. 15 Essa entrevista pode ser ouvida em francês, mas também tem o recurso tradutor do youtube. Ela pode se acessada na

busca pelo título “Archéologiedusavoir, de Michel Foucault” ou pelo acesso no link

http://www.youtube.com/watch?v=Wzjw6LGQtMw

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Dito isso, tratar os filmes sob o viés da arqueologia é tomá-lo na sua acepção de arquivo,

colocando em evidência as formas de discursos que tornam visível não aquilo que era invisível a

nossos olhos, mas pelo fato de estarem tão arraigados a essa superfície que nos impede a sua percepção

senão diante de um polimento das palavras e das imagens com óleo da história. É desse contato direto

do pesquisador com o objeto fílmico que será possível refletir sobre os discursos e tipos de saberes que

deles se depreendem do processo arqueológico.

Portanto, o rol de filmes, apresentados acima, com os quais Foucault esteve envolvido, baseia-

se nas suas formas de descrição de tratamento do arquivo, ou seja, estabelecer “diferentes séries, para

constituir, assim, séries de séries”, ou como chamou Foucault, “quadros” 16

. Deslocando essa ideia

para um deslizamento do arquivo fílmico, vejo os filmes listados enquanto quadros de constituição do

cinema em força visual de uma série de investimentos de questões históricas e do sujeito: substrato

discursivo que sedimenta o estudo de um arquivo fílmico no quadro da arqueologia dos saberes.

Discursos e filmes. Com esses filmes incitados à discussão naquele período, que tipos de

quadros foi possível instaurar? Vou de forma bastante sintética propor alguns quadros discursivos

materializados nesse arquivo fílmico. Dentro desses quadros Foucault reafirmou o lugar do sujeito

ordinário e as memórias que determinavam suas formações no cotidiano, no desejo, na moralidade,

mostrando essas marcas ao falar do cotidiano e da pequena história do filme Moi Pierre, Rivière, de

Allio, e as marcas do excesso das paixões em Blowup, de Antonioni. Foucault apontará também uma

memória histórica que vai ser evidenciada pela intervenção de uma memória fílmica, de uma

mentalidade coletiva nacional no cinema por meio de uma minissérie em episódios veiculada na TV

francesa, que contava a história da França no período de 1880 a 1936. Uma memória da arqueologia

das imagens vai se reafirmar por meio da reconstituição da passagem do filme como documento da

memória francesa para um monumento sobre o sujeito, apontando o discurso de uma história sobre as

guerras, ora descritas com banalidade e criticada pelos estudiosos da época como Eva Braun, sua vida

com Adolph Hitler, ora narrada sob o viés do horror como em Hitler, um filme da Alemanha. Trouxe a

questão da memória popular francesa em A tristeza e a piedade e a memória como lugar de repressão

na Bolívia com El corajedel Pueblo. Evidentemente as posições de Foucault não eram de julgamento

16FOUCAULT, 2000, p. 9

Page 15: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

dessas lutas, mas andavam no sentido da compreensão dessas relações de poder e de desejo. E mostrou

para além do horror do holocausto um discurso de poder, resistência e desejo nas lutas de resistência

em Lacombe Lucien e até mesmo problematizou a imagem erótica dos nazistas no imaginário erótico

envolto por seus chicotes do poder em O Porteiro da Noite descrevendo esse monumento, colocando-o

em séries, multiplicando seus estratos.

E falava dos sujeitos do desejo de sua época, nos mostrava quem éramos nós naquele momento

e fez com que nos lançássemos a quem somos nós hoje. Mostrou que o corpo e as imagens fílmicas

centradas nos órgãos sexuais eram nada mais do que um retorno às normas de conduta controladas do

corpo, em Salò, desbancando o lugar de Sade como transgressor para colocá-lo como serviçal do

restabelecimento da norma e abrindo nossos olhos para um erotismo do tipo disciplinar. Ensinou que a

câmera no cinema desliza sobre o corpo com prazer ao se deleitar com suas conjecturas ao lado de

HélèneCixous sobre a literatura de Marguerite Duras transportada para o cinema, no qual elegem as

formas do olhar e sua relação em India Song. Surpreendeu-se com a anarquização do corpo e suas

hierarquias no filme alemão a Morte de Maria Malibran, que coloca em imagens a descoberta e a

exploração do corpo no cinema a partir da própria câmera. Não se surpreendeu com o corpo heróico de

Marilyn Monroe caindo aos pés de Tony Curtis em Quanto mais quente melhor: nada de transgressão

ou submissão, apenas a reiteração novamente de mais um lugar comum. Apresentou o sujeito moral,

em A história de Paul, personagem que se torna um monstro ao fugir das hierarquias e seleções sociais

do que se entende por normal. Mostrou que o corpo e sua paixão tem materialidades e circulam nas

imagens do cinema e dentro de nós.

Por uma economia dos espaços livrescos não posso me estender mais. De qualquer maneira,

acredito que pude levantar um ponto importante: os quadros que montam o arquivo da história naquele

momento giram em torno de duas grandes questões: um, a história do cotidiano, tão remarcada e

discutida por Foucault em relação a sua descontinuidade, sua atualidade e relações pulverizadas de

poder e resistência; outro, as dimensões do corpo que emolduram essa história em suas formas

disciplinares, normativas, ditadas pelo olhar e pelos pequenos modos que os calores e as paixões

atravessam os corpos. Enfim, dois quadros que se entrelaçam entre história e corpos para compor o

Page 16: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

sistema e conjunto de discursos das imagens que foram criadas naquela época, cujas regras,

funcionamentos e práticas que delimitam o campo da memória e da apropriação dos corpos da maneira

como era possível dizer sobre eles.

O arqueólogo-arquivista. Como podemos verificar, o conjunto de filmes discutidos por

Foucault são muito significativos. Primeiro, eles registram a história de uma época bem recente para

aquele período. Segundo, investem no exame dos efeitos de atualidade que as imagens

cinematográficas dos corpos gerenciam. História e corpo, portanto, instauram séries dentro de um

espaço de dispersão de filmes citados, que constituem microacontecimentos histórico-corpóreos.

De um lado, Foucault explica que esses acontecimentos podem sim ser “breves” 17

, o

importante é que eles se organizem em séries “daí a possibilidade de fazer com que apareçam séries

com limites amplos, constituídas de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos” 18

. Não

podemos deixar de lembrar aqui que a Nova História, postulados assumidos por Foucault na

Introdução da Arqueologia, faz irromper em seu bojo as micro-histórias de sujeitos ordinários. A parte

de grandes domínios de memória investigados por Foucault em torno da loucura, da prisão e da

sexualidade, não poderemos jamais deixar de lado as micro-histórias que decorrem desses domínios

memoriais como o dossier de Pierre Rivière e de Alexina Barbin.

De outro, Foucault realça os investimentos políticos em torno do corpo. No que se refere aos

filmes que recuperam a memória das guerras e as lutas de resistência ou o lugar das rebeliões e seus

documentos históricos, Foucault está discutindo os meios pelos quais o corpo é utilizado como

estratégias e práticas de poder a fim de se tornarem um modelo memorial do passado para modelar a

vida dos sujeitos do tempo em que viveu, submetendo o corpo, agora, o corpo social para atender ao

gerenciamento de um certo tipo de política de vida. As dimensões corporais das quais fala sobre os

filmes que lhe são lançados pelo seu tempo edificam uma estrutura administrativa na qual teríamos o

dever de nos reconhecer e a ela nos render.

É claro que no meio desse jogo biopolítico, o corpo vai se tornar um chafariz de resistências,

que por vezes fazem o alarde necessário, lavando a cara daqueles que se pintam com a física, a

17 FOUCAULT, 2000, p. 9. 18 FOUCAULT, 2000, p. 9.

Page 17: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

anatomia e a política de forças que se impõem aos indíviduos que estrebucham diante do

enclausuramento de suas ideias e do esquadrinhamento moral de seus corpos. Por isso, a meu ver,

levantar uma breve tabela categorizante e hierarquizante como a que mostrei, faz dizer que, no total,

Foucault problematizou as condições do sujeito, da história e de seus corpos em 25 filmes, franceses,

italianos, alemães, americanos, boliviano e mexicano, segundo os registros de seus Ditos e escritos

durante o período de 1974 a 1982.

Essa questão do período temporal nos é importante, porque ela é o registro arqueológico do

tempo de uma breve história cotidiana, em sua maioria em países europeus, vide a origem da produção

dos filmes e a nacionalidade de seus diretores, com reverberações, é claro, nas américas do norte e sul-

americana. O arquivo de filmes elencados para discussão faz ecoar recortes bem precisos da história

em espaços geográficos estratégicos, que tem o objetivo não apenas de demonstrar saberes locais, mas

evidenciar “como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração

epistêmica coerente”19

.

O final sem fim: poucas palavras para muitas imagens

Esse tipo de atitude foucaultiana elaborada sobre um conjunto de saberes de uma época é que o

liga à ideia de arqueologia, não obstante do papel de arquivista, pois é Foucault ele mesmo que opera a

organização do efeito de raridade e das leis que comandam as regras e os funcionamentos das imagens

em movimento de sua época. Ao Foucault arquivista coube muito menos separar e hierarquizar uma

gama de filmes do que uma postura que problematizasse seu próprio tempo. A relação entre a

produção cinematográfica e a descrição arqueológica requalificam por meio do arquivista os saberes

do domínio fílmico. O projeto cinematográfico, seu canteiro arqueológico e sua posição arquivista é

que estabelecem a ligação com diversas passagens discursivas das obras de Foucault. “Parece que o

cinema está fortemente em consonância com o projeto arqueológico, quer dizer, que ele participa com

seus próprios meios, sem que se torne um pretexto arbritário para o arquivista, da elaboração de uma

série e do exame do acontecimento do qual fazemos parte” 20

. O Foucault “novo arquivista” do qual

19 REVEL, 2005, p.16. 20 MANIGLIER ET ZABUNYAN, 2011, p. 39.

Page 18: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

falo junto com Deleuze21

, não é o arquivista que fazia como seus predecedentes, tomando as

proposições, as frases e os atos perfomativos. Não falo daqui de um Foucault em torno do enunciado

das construções linguísticas, mas do Foucault que faz deflagrar discursos cujas formações estão além

do conjunto de uma série de letras, ou como diria Deleuze, “Os enunciados de Foucault são como

sonhos: cada um tem seu objeto próprio”22

e, como pude traçar até aqui, estou muito bem

acompanhado por autores, diretores, revista, livros e filmes que fazem esse sonho do objeto discursivo

cinematográfico tomar corpo e reassegurar seu espaço histórico-corpóreo-social.

Ainda assim, levando em consideração a especificidade das formas de intervenção fílmica de

Foucault durante o período de oito anos, Maniglier e Zabunyan, no livro Foucault vaaucinéma,

chamam isso tudo de “o lugar discreto do cinema na produção foucaultiana”23

, sobretudo se

comparado, daí entendemos, a seus estudos sobre literatura e pintura. Mas, a nós o que nos interessa é

realmente esse momento de ruptura, que faz Foucault escapar de suas empreitadas com os arquivos de

longos períodos, diverso de nossa atualidade, ao qual podemos olhar com distância as bordas daquilo

que nós não somos mais. A força com que a problematização cinematográfica tocou Foucault

promoveu em seu olhar naquelas entrevistas um “vetor para o estabelecimento de um diagnóstico

sobre vários aspectos da história contemporânea”. Isso faz com o que o Foucault arquivista em suas

palavras e escritos pudesse determinar uma postura sobre o seu próprio tempo, descrevendo-o.

Portanto, Foucault coloca lado a lado as discussões epistemológicas dos discursos que marcam os

filmes de sua época, assegurando a junção entre um cinema do cotidiano com o arquivo de uma época,

enquanto arquivista de sua história presente.

Referências

BRETÈQUE, François de la. Memoires d’une Nation.In: Les Cahiers de la Cinémathèque. Printemps

1976.Numéro double 18-19. Perpignan, 1976, p. 1-8.

COURTINE, Jean-Jacques.Déchiffrer le corps. Grenoble: JéromeMillon, 2011.

21 DELEUZE, 2004, p.11. 22 DELEUZE, 2004, p.17. 23 MANIGLIER ET ZABUNYAN, 2011.

Page 19: FOUCAULT E O CINEMA Para Uma Breve Arqueologia Das Imagens Do Movimento

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2000.

FOUCAULT, Michel. Michel Foucault explique son dernier livre. In: _______. DEFERT, Daniel;

EWALD, François (orgs).Ditsetécrits. 1954-1975, 2011, p. 799-807.

MANIGLIER, Patrice; ZABUNYAN, Dork.Foucault va au cinéma. Paris: Bayard, 2011.

REVEL, Judith. Foucault. Conceitos essenciais. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani. São Carlos:

Claraluz, 2005.

TOUBIANA, Serge. Foucault etle cinema. In: ARTIÈRES, Philippe (org). Michel Foucault, la

literature et les arts. Paris: ÉditionsKimé, 2004.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: LesÉditions de Minuit, 2004.