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Universidade de Brasília (UnB) Instituto de Ciência Humanas (IH)
Departamento de História (His) Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis)
Área de Concentração: História Cultural Linha de pesquisa: Identidades, Tradições, Processos
Tese de Doutorado Orientadora: Profª Drª Márcia de Melo Kuyumjian
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
Brasília
2014
Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da
Universidade de Brasília, na área de
História Cultural, como requisito à
obtenção do título de Doutor em
História.
Leandro Mendanha e Silva
Brasília
Outubro, 2014
Banca Examinadora
Profa. Dra. Márcia de Melo Martins Kuyumjian (UnB/Presidente)
Profa. Dra. Maria Thereza Ferraz Negrão de Mello (UnB)
Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito (UnB)
Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento (UnB)
Prof. Dra. Luzia Margareth Rago (UNICAMP)
Profa. Dra. Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB/Suplente)
Não acredito em incondicionalidade,
mas dedico aos incondicionais:
Alba, Lala e Dito.
Agradecimentos
Ir ao encontro de quem se ama deixando esse amor ser o enigma do amanhã, sem
decifrar: ou se sente ou não se sente. E nem precisa nomear. Quando sentimos muito é
hora de se pôr ao labor e arquitetar. O arquiteto é só mais um dos operários, mas tem a
grande pretensão de ser o mais importante deles. No entanto, é uma presunção tola, pois
sem todos os outros só constrói castelos no ar. Não é o caso, então vamos lá.
Aos meus queridos pais, e aos seus pais, vozes que sinto na minha quando falo,
quando paro para respirar, no ritmo torto de uma lembrança de infância que nunca retenho
para pensar. A meu pai, Benedito, Dito, com quem respiro e aspiro a grande generosidade.
À minha mãe, Alba, com que respiro e aspiro a garra e o grande amor. A meu avô,
Augusto, com quem respirei e aspiro a cadência poética. À minha vó, Fia, com quem
respirei e aspiro a boa astúcia. A meu avô, Adair, com que respiro e aspiro a dedicação
incansável. E à minha avó, Dinorá, Lala, com quem respiro e aspiro a grande força e
dignidade. À Camila, minha irmã, que me lembra, sempre quando dela me aproximo, que
os sedimentos de uma vida carregam um imenso afeto, um carinho em estar perto. A todos
esses eu sopro em retorno o mais puro afeto.
Existem os amigos e gostaria de agradecer a três em especial: A Mateus, com a
convicção de que, sem nossas trocas intelectuais, artísticas, pautadas no afeto da grande
amizade, este trabalho não seria o mesmo e ainda estaria esperando o momento de
alcançar a sua voz, a coragem necessária para alcança-la. À Bia (que deságua tão
lindamente na Mayara e sua verve de revisora de traduções), com sua sensibilidade
incandescente ao mesmo tempo que sutil, diretamente e indiretamente possibilitou que
essa tese fosse mais do que era para ser. Ambos, companheiros no crime, são daqueles
que inspiram a audácia necessária para transformar uma coisa sem graça, árida –
Foucault: longe do seu lugar. Desenhos de uma ética e escavações de uma recepção
brasileira – em poesia pop: Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos.
Um título sabidamente injusto, que não dá conta de contar o que foi todo trabalho (será
que algum título já deu conta de descrever os trabalhos que as pessoas realmente
fizeram?), mas que espreita maliciosamente, secciona, captura, saí do lugar comum (são
tantas dissertações e teses sobre Foucault) e almeja suscitar curiosidade. E a Yuri, e a sua
parte girassol, que acompanhou uma parte do percurso convivendo com a parte cata-vento
que posso ser.
Gostaria de agradecer aqueles que as circunstâncias, os circundantes, as sintonias,
compõem com esse trabalho. À Eleonora, com quem traçávamos (Eu e Mateus, sempre
ele me desencaminhando) as nossas linhas de fuga nos domingos da vida e que de tanto
bem-receber carinhosamente é a convidada bem-recebida dessa tese. À Tereza, na certeza
de que tem olhos vivos, daqueles que sabem acompanhar um trajeto com a perspicácia de
uma caça ao novo e que, com sensibilidade, sabem ver o que surge, aqui e acolá,
inesperado. E com o devido destaque, em cima do abre-alas, com a fantasia mais bonita
do Carnaval, à Márcia, minha orientadora, que me apoiou o tempo todo, acreditou em
mim, me puxou cada vez que eu deixava os fios rolarem soltos demais, mas nunca
colocando correia e sim confiando. Por fim, agradeço aos professores Wanderson e
Margareth, que entremeados no texto também dele farão parte como leitores. Sejam bem-
vindos. A todos vocês, obrigado pela confiança.
Não poderia faltar a menção aos diversos professores que, da graduação e pós,
contribuíram com a reflexão. Ao PPGHIS. À CAPES, pelo apoio financeiro, fundamenta l
para a realização da pesquisa. Aos funcionários da UnB que auxiliaram nos tramites
burocráticos. E a todos aqueles que, não citados, sabem que sem os nossos momentos eu
não poderia ter tido a força necessária para terminar. Pois no fundo, rematar para mim é
sempre remar, recomeçar e desdobrar.
A teia, não
mágica
mas arma, armadilha
a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente
a teia, não
arte
mas trabalho, tensa
a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:
no
centro
a aranha espera.
(“Teia”. Teia. Orides Fontela)
Resumo
A pesquisa desenvolvida se resumiu em uma investigação com duas vertentes: uma
vertical, outra horizontal. A primeira pesquisa analisou, focalizando a sua obra entre o fim da década de setenta e o início da década de oitenta, a maneira como Foucault apresentou, inverteu e problematizou três grades analíticas recorrentes no seu trabalho.
Refere-se à verdade (na forma de regimes de verdade e dizer-a-verdade), ao poder (na forma do governo de si e dos outros) e a ética (na forma de um estilo ou modo de vida).
Supõe-se que trazendo ao primeiro plano seus cursos no Collège de France e seus Ditos e escritos pode-se compor desenhos que tracem o percurso que tomou uma vida (êthos), trajetória da qual se deriva uma ética do intelectual. Também considera-se que
apreender os problemas, as questões e o formato que aquelas grades tomaram no seu trabalho auxilia na reflexão sobre nossa atualidade (os riscos de uma sociedade de
controle, o cuidado necessário na reivindicação de políticas identitárias, o controle do corpo hoje, etc.) A segunda investigação escavou a maneira pelo qual o pensamento de Foucault foi recebido em alguns jornais brasileiros, principalmente na década de setenta
e oitenta, no que essas discussões públicas colocaram em confronto parte da intelectualidade brasileira. São debates a respeito da oposição entre análise estrutural e
marxista, das novidades teórico-metodológicas para a análise histórica, da “morte” do sujeito, de um pensamento do poder, da pós-modernidade, entre outras querelas e temas que ainda reverberam no conhecimento que se tem do trabalho de Foucault.
Palavras-chave:
Michel Foucault; ética do intelectual; recepção e apropriação brasileira; estratégia; atualidade.
Abstract
The analysis developed in this research is divided in the vertical and horizontal axis. In
the first one, examined the way Foucault presented, reversed and problematized three constant analytic grounds he bases his work, by focusing it between the late seventies and early eighties. Refers to truth (as regimes of truth and tell-the-truth), power (as the
government of self and others) and ethics (as a style or way of life). Is assumed that bringing to front his courses at Collège de France and using what he had said and
written about the subject, can be composed drawings establishing a route that lasted a lifetime (êthos), trajectory from which is could infer the intellectual’s ethics. Moreover, to take on board the problems, issues and shapes those grounds assumed in his work
helps us think our present (the risks of a controlled society, the caution needed in claiming the identity politics, the nowadays control of the body, etc.). In the second part
of this research, is presented the way Foucault's thoughts were welcomed in some Brazilian newspapers, mainly in the seventies and eighties, causing public discussions which placed the Brazilian intelligentsia in a difficult position. There are arguments
about the opposition between the Marxist structural analysis, the theoretical and methodological innovations for historical analysis, the subject’s "death", the thought of
power, the postmodernity, among other disputes and issues that still reflect on the studies about Foucault’s work.
Keywords:
Michel Foucault; intellectual ethics; brazilian reception and appropriation; strategy;
present.
Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I ......................................................................................................................................... 24
“São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas .................. 24
1.1) Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado ............................. 25
1.2) Atmosfera se cria: forja de um norte para a questão do sujeito ................................................. 48
1.3) "Pois desse lado do muro, o jogo é tão duro": o si e os outros do governo ............................... 81
1.4) A verdade na coragem: o navegador e o batedor dos discursos ............................................... 107
CAPÍTULO II ..................................................................................................................................... 146
Variações da modernidade em Foucault: estar a caminho .................................................................. 146
2.1) "Nosso arsenal é o canto. Metal? São timbres que tinem...": o atual. ..................................... 154
2.2) Uma recepção polêmica: Foucault e o pós modernismo .......................................................... 178
2.3) O anti-humanismo e o formalismo como composição do pós-moderno:................................. 213
2.4) "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo": o êthos moderno ............. 235
CAPÍTULO III .................................................................................................................................... 255
Estando provisoriamente aí, onde você não me espera ....................................................................... 255
3.1) Se diz em tom de novidade e ou de ironia: Foucault está na moda ......................................... 256
3.2) Uma valsa desconcertante com o Marx e o marxismo ............................................................. 298
3.3) Amplia a ambiência política: eis que surge uma Microfísica .................................................. 314
3.4) Governar o hoje: Estado, segurança e controle ........................................................................ 333
CAPÍTULO IV .................................................................................................................................... 364
Sempre recomeçar: nas dobras paixões que não tiveram fim.............................................................. 364
4.1) Experimentar é errar a si mesmo ............................................................................................. 368
4.2) Ser pontual num encontro em que se pode faltar: pelas frestas se desenha uma ética ............. 390
4.3) Se arriscar na prática da liberdade: um incrédulo contemporâneo .......................................... 422
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 447
CORPUS DOCUMENTAL................................................................................................................. 457
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 470
INTRODUÇÃO
10
INTRODUÇÃO
Muitas pessoas não sabem ao certo como se deve começar, quem sabe porque pegamos
as coisas e nós mesmos pelo meio. Então, tateamos sabendo que, apesar das dificuldades,
construir os começos tem suas delícias. O primeiro texto que li de Foucault foi um choque.
Recordo-me que era a introdução de As Palavras e as Coisas. Agitou-me! Fazendo borbulhar
o eu e, em seguida, deixando meu espírito sempre no ponto de efervescência. É engraçado como
as palavras nos tomam e como as perseguimos depois disso. Pensando nessas lembranças que
adiam os começos já começando, eu contarei ainda sobre outra recordação, dessas que se
referem aos sustos que nós levamos. Um assombro anterior a Foucault e que não tem a ver
imediatamente com ele, apesar de que o nome suscita essa ligação. Foi logo no começo do curso
de História da UnB. O texto era um capítulo do livro Como se Escreve a História, de Paul
Veyne. Aluno recém-chegado à graduação li e me espantei, mas não foi um choque de
maravilhar-me e sim de incômodo, de uma indisposição inicial. Um pouco ingênuo eu
praguejava: “este positivista estranho que não acredita na cientificidade da História!”. Vários
equívocos. Hoje rio de mim mesmo, do calouro que era. Mas é um riso carinhoso de quem sabe
que, logo após ler o capítulo, comprou e devorou o livro inteiro. E que compreende, igualmente,
o quanto aquelas páginas teimaram na cabeça.
Não foi a partir dessa trama, do aprendizado tátil e tateante sobre como escrever a
história, a minha primeira ligação com Foucault, mesmo porque naquele livro Veyne ainda não
pensava com ele. Houve então esse descompasso, do qual só fui me dar conta anos depois.
Retornando a primeira recordação, lembro que após ler a introdução de As Palavras e as Coisas
sorvi o livro como se fosse um poema erudito. Provavelmente não apreendi muitas coisas, não
saberia dizer, uma vez que à primeira leitura se seguiram outras e hoje não conseguiria me
separar de todas elas. Para mim faz muito sentindo que a recomposição da memória seja um
pouco como o enunciado no seguinte verso: “Se volto sobre o meu passo, é já distância
perdida”.1 A seguir, me aventurei sozinho em A Arqueologia do Saber. Uma experiência árida,
mas que me deu a dimensão da ligação do trabalho de Foucault com as análises históricas.
Descobrir é, muitas vezes e talvez a maioria das vezes, achar por si mesmo o que já era tão
sabido pelos outros, com a intuição, porém, de que os relatos de outros viajantes pouco
oferecem a respeito da própria viagem, que tem que ser feita por conta própria. Foi assim, nessa
ânsia, que me aventurei a escrever uma monografia sobre Foucault. Nela o professor José
1 MEIRELES, “Canção excêntrica”, 2013/1942, p. 31.
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
11
Otávio Guimarães me serviu de bússola. Nesta primeira incursão trabalhei Foucault partindo
do livro As Palavras e as Coisas e me detendo em A Arqueologia do Saber, bem como
acompanhando seus Ditos e escritos até os primeiros anos da década de setenta. Nessas fontes
eu buscava as relações de Foucault com a História, com a análise histórica da verdade. Foi uma
primeira aproximação, que suscitou um dispendioso esforço.
Neste meio tempo me aventurei em disciplinas da filosofia: disciplinas de ética com o
professor Julio Cabrera; uma disciplina de filosofia e feminismo com os professores Wanderson
Flor do Nascimento e Ana Míriam Wuensch – com Nascimento lembro que atravessei um curso
de título inesquecível: “Ideias filosóficas em forma literária”; outra sobre o pensamento político
com o professor Rogério Alessandro de Melo Basali. Os cursos de extensão também foram
muito proveitosos, dois me marcaram especialmente: o curso Política e Subjetividade com o
professor Peter Pál Pelbart e o curso Introdução ao pensamento de Deleuze com o professor
Daniel Lins. Nessas disciplinas e cursos descobri uma parceira que, de maneira idêntica ao
trabalho de Foucault, me capturou: efeito Deleuze-Guattari. Foi enredado nessa bagunça
polifônica que logo após o término da graduação optei por tentar o Mestrado.
Aqui começa outra parte da história dessa tese, dos sedimentos que a compõe. Adentrei
na pós-graduação da área de História Cultural do PPGHIS/UnB e foram nas disciplinas
cursadas, que professoras como Maria Thereza Negrão de Mello, Eleonora Zicari Costa de
Brito, Márcia de Melo Martins Kuyumjian se imprimiram em mim. A última se tornou minha
orientadora, com o carinho do aconselhamento e da leitura cuidadosa, me orienta até hoje. Essas
arritmias são interessantes: conheci algumas dessas professoras ainda na graduação, mas foi na
pós-graduação que o diálogo se fortaleceu e frutificou, fazendo delas importantes referências
para mim. Com essas indicações se entende melhor o lugar da minha dissertação. Quando da
escrita da monografia, já me encantavam os textos políticos de Foucault do começo da década
de setenta que compunham com Vigiar e Punir e História da Sexualidade v. I. No entanto, eles
só revelaram verdadeiramente seus efeitos sobre meu trabalho no mestrado.
A dissertação foi uma viagem da qual retiro saldo positivo, mesmo refletindo sobre o
que nela retificaria hoje: foi uma tentativa de ver como Foucault legou ferramentas para pensar
a história e, também, como podia funcionar na área de História Cultural. Com esses objetivos
em mente, no primeiro capítulo fornecemos (aqui começo o processo de me conduzir
explicitamente com os outros, o nós que compõe esse trabalho) os elementos para que pensando
com Foucault e também com Deleuze e Guattari cogitássemos a ideia de que a história que o
primeiro fazia era rizomática. A partir dessa ideia, no segundo capítulo analisamos a
apropriação de Foucault por Roger Chartier diante das questões das práticas discursivas e não-
INTRODUÇÃO
12
discursivas, do poder e da resistência, bem como das questões epistemológicas e ético-políticas
contrapostas as consequências de um relativismo do tipo Hayden White. No terceiro capítulo
analisamos a apropriação recíproca, o “espaço com”, entre Foucault e Paul Veyne, em torno da
questão da verdade, do regime de verdade. O que interessava ao final da dissertação, de maneira
similar ao que havia ocorrido quando do final da monografia, não era o que havíamos
descoberto de Foucault após repassadas leituras, mas aquilo que ainda estávamos desvendando.
Os últimos cursos, os últimos ditos e escritos, o que dele podíamos retirar a partir e em seguida
aos últimos dois anos da década de setenta.
Neste relato está a nossa primeira ficcionalização neste trabalho: essa narração
retrospectiva só é verdadeira no jogo de uma memória, por isto carregada de uma pessoalidade
que, todavia, vai sempre para fora dela mesma, para os acontecimentos que nos abalaram. É
claro que as leituras não se deram na sequência cronológica que estabelecemos, como se
percorrêssemos metodicamente e por datas o pensamento de Foucault. Entretanto, podemos
dizer que realmente os focos de interesse (a questão de uma análise histórica da verdade, a
questão do poder, a questão da ética) foram se mostrando mais ou menos como apresentamos
acima, sequencialmente. Nessa tese nos consideramos ainda provocados por esse pensamento.
Nos sentimos instigados pelo que na leitura e releitura de Foucault força as janelas para pensar
a nossa atualidade. É um trabalho na travessia de pensamentos e paixões.
A curiosidade historiadora insistente se fez sentir nesse trabalho na procura de encontrar
o campo a partir do qual Foucault podia enunciar suas questões, assim como na busca do
impacto desse pensador em outros meios, em outras pessoas, na sua difusão. Foucault
ultrapassou os diques universitários, foi além de uma reverberação na intelectualidade brasileira
e, tendo esse ultrapassamento em vista, podemos vê-lo aparecer como personagem de jornais,
mesmo que, dado o teor de erudição do seu trabalho, os interlocutores acadêmicos sempre
apareçam para opinar. Procurando os indícios de Foucault em alguns periódicos e sua discussão
em alguns livros e artigos que se tornaram referências para pensá-lo no Brasil, procuramos
dialogar e entender não exatamente o tempo que nos precede, afinal o tempo não espera
ninguém, mas o tempo que, para nós, se torna o antes e o depois. Nessas margens, entre as quais
fabricamos a História, procuramos aquilo que possibilita o nosso próprio pensar, com a
esperança que dessa excursão possamos voltar pensando de outra forma.
A trama desse trabalho pode se dar a ler como um jogo. No xadrez se exige cautela,
mas às vezes os riscos devem ser maiores do que as funções definidas, os movimentos
preestabelecidos feitos em um tabuleiro de jogadas virtualmente infinitas. O interessante no
xadrez é que se pode manter uma notação dos lances feitos e, posteriormente, reconstituir e
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
13
analisar uma partida. Pensamos este trabalho como uma composição em que as peças estão
distribuídas de uma maneira que ao final do jogo possamos acompanhar passo a passo o que foi
feito. Entretanto, para chegar a este resultado – que não cabe a nós, se não a vocês, dizer se foi
satisfatório –, nos arriscamos em algumas manobras. Nelas existem enormes riscos: de
conduzirmos mal a distribuição ou de perdermos suas peças; de nos tornarmos herméticos ou
nos perdermos na narrativa; de, ao tentarmos mostrar as suas complexidades, perdermos o
movimento sistematizando o pensamento; de não cartografarmos adequadamente o espaço de
sua recepção e de sua apropriação brasileira. Nós os assumimos.
Sentimo-nos a vontade em adotar a imagem de um jogo estratégico como o xadrez,
mesmo porque, o nosso personagem principal usou a figura do enxadrista ao falar sobre o seu
trabalho em uma entrevista do final de 1978: “Tudo isso repercutia, um pouco, como um peão
em um tabuleiro, que mexemos de casa em casa, às vezes em ziguezague, às vezes saltando,
mas sempre sobre o mesmo tabuleiro...”.2 Nós podemos compreender o tabuleiro em que
Foucault se movia como um plano de composição de peças que não tentam chegar ao cerne de
um problema (verticalizar para chegar a uma presumida origem), mas mostrar as inúmeras
questões que estão envolvidas na constituição desse problema. Estendendo seu trabalho sobre
um tabuleiro entendemos ainda mais nitidamente o que ele falou a respeito da sua maneira
horizontal de proceder no curso do Collège de France de 1979 (Nascimento da biopolítica):
“...como vocês sabem, sou como o lagostim, ando de lado...”.3 Um plano que expande suas
dimensões acrescentando outros problemas, tramando com outras preocupações, os quais
podem ocasionar terremotos, pequenos tremores, mudanças de posições e de perspectiva de
jogo no próprio tabuleiro. Suas jogadas são de risco. O tabuleiro se arrisca junto com suas peças.
Declaremos nossas intenções. Primeiro explicaremos o nós, que predomina sobre outras
duas formas tão boas quanto, o eu e o diz-se. O nós neste trabalho não serve para neutralizar a
enunciação da questão, não instaura um discurso em que, quem enuncia, está numa posição
superior ao se aferrar a uma pretensa enunciação científica consensual. Escolhemos a primeira
do plural no lugar da primeira do singular, pois sentimos na voz de quem aqui fala um coro em
que não sabemos mais identificar solitariamente a nossa voz ou, de outra forma, porque pouco
podemos nos desembaraçar do que nossos inúmeros interlocutores disseram. Eles nos
multiplicam e nos forçam a pensar. Na medida do possível tentamos estabelecer, nas linhas e
nas entrelinhas, as vizinhanças e os afastamentos. Escolhemos a primeira do plural em vez do
verbo infinitivo (impessoal), pois queremos destacar que não almejamos o anonimato dessa voz
2 FOUCAULT, “Conversa com Michel Foucault’, D.E. VI, 2010/1980, p. 317. 3 FOUCAULT, “Aula de 31 de janeiro de 1979”, 2008/2004, p. 107.
INTRODUÇÃO
14
que nos fala ou que fala por meio de nós. Por meio desse trabalho, que é também um exercício
sobre nós mesmos, queremos nos singularizar, mas esse singular só pode ser um resultado que
não é prévio ao esforço de pensar se apropriando dos outros. Ele é o que se modificou em nós
e se dá a ler a vocês.
Nesse trabalho estamos no meio, no entre o que Foucault falava (o pretérito imperfeito
que nos transporta para junto dele, que nos permite acompanhar, no ledo engano de um tempo
verbal, a enunciação como se estivéssemos no seu continuar, na sua trajetória ininterrupta), o
que ele falou (o que no pretérito perfeito massacra a ação ao realizá-la, ao colocar entre nós e o
nosso objeto um ponto dito instransponível e que só podemos captar indiretamente pelas
palavras deixadas depositadas no que, agora, são fontes impiedosas), o que os jornais com seus
interlocutores falaram e o que nós falamos nos apropriando da argumentação do próprio
Foucault. Contamos uma história entre emotivos, incisivos, descritivos e afirmativos tempos.
No meio de cadências que são as nossas, as dele e as das fontes.
Se assim é, falemos desse empenho, do empenhar-se desse trabalho. Sua aposta é
arriscada na medida em que traça combinatórias entre quatro capítulos e essas, por sua vez,
remetem a três caminhos, que quem quiser pode chamar de hipóteses. Comecemos a nos
explicar por estes últimos. O primeiro caminho possui dois componentes e se formula da
seguinte maneira: para entendermos o pensamento de Foucault necessitamos de captar o campo
de problematização que era o seu e, do mesmo modo, a maneira como formulava as suas
questões. É a tentativa de refletir sobre a articulação do pensamento de Foucault com o domínio
político, com sua atualidade e perceber como esta relação refluí no pensar a si mesmo. É a
tentativa de precisar a atividade e a atitude crítica que tomam forma nesse pensamento e a
maneira e a conduta com o qual ele é endereçado à política. O trabalho de Foucault se dá no
meio, entre a filosofia e a história.
O segundo caminho se refere a um campo de adversidade, no qual floresce a recepção
e a apropriação. O que é um campo de adversidade? De acordo com Foucault, quando se definia
um objetivo era necessário definir também “o sistema geral contra qual podia se chocar esse
objetivo e a busca desse objetivo” e encontrar “a lógica global do conjunto de obstáculos
inimigos ou adversários” que se tinha que enfrentar estrategicamente.4 Foucault fez esta escolha
estratégica do adversário algumas vezes, por exemplo, quando se opôs a uma filosofia do sujeito
que ele considerou podermos encontrar no existencialismo, na fenomenologia e no marxismo
ou, ainda, quando constituiu sua perspectiva confrontando certas categorias que localizou na
4 FOUCAULT, “Aula de 7 de fevereiro de 1979”, 2008/2004, p. 146.
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
15
história das ideias. Mesmo que em certos momentos os seus adversários fossem claros dentro
do panorama francês (Sartre, Merleau-Ponty, certos marxistas etc.), eles não eram, na maioria
das vezes, nomeados. Alguns podiam dizer que era um aristocratismo intelectual que não
reconhecia alguns pensadores como seus interlocutores; outros, que fazendo análises históricas
ele evitava instalar suas discussões histórico-filosóficas dentro de debates filosóficos, os quais
considerava infrutíferos; e o próprio Foucault podia dizer que a maneira de abordar um outro
pensamento era utilizando a técnica da pilhagem interessada: “Os pensamentos, os discursos se
organizam em sistemas. Mas é preciso considerar esses sistemas como efeitos internos de poder.
Não é a sistematicidade de um discurso que detém sua verdade, mas, ao contrário, sua
possibilidade de dissociação, de reutilização, de reimplantação alhures”.5 O que achamos
pertinente para a tese é que tendo tomado os outros neste campo, Foucault também foi recebido
em um campo de adversidade por eles.
O caminho aberto consiste em captar as diferenças entre o momento do pensamento de
Foucault e a sua recepção em alguns periódicos e em parte da intelectualidade brasileira. Na
década de setenta – nos pronunciaremos sobre ela no terceiro capítulo – existiu uma demanda
por um Foucault estruturalista quando, de fato, ele já havia se afastado de algumas das suas
preocupações em comum com o estruturalismo. E, em seguida, a requisição de um Foucault
teórico do poder, no momento em que ele estava repensando as relações de poder por outra
grade analítica que não aquela pressuposta nesta alegada teoria. São leituras informadas em boa
parte pelas discussões francesas sobre o trabalho de Foucault, bem como sobre as suas
discussões com o marxismo. Enquanto que, na década de oitenta – nos pronunciaremos sobre
ela no segundo capítulo –, essa própria recepção estava informada pelas leituras norte-
americanas a respeito de Foucault, bem como sobre as retomadas da ideia de consenso, de um
novo humanismo etc. Pensamos, nos termos discutidos neste trabalho, em como Foucault foi
lido por Habermas na discussão sobre o pós-modernismo que ocorreu nos Estados Unidos, na
Alemanha e no Brasil.
O terceiro caminho tem relação íntima com o que falamos ao justificarmos a escolha do
nós. Trata-se da nossa própria apropriação de Foucault buscada junto a tantos outros que dele
se apropriaram, o que nos faz pensar na diferença que almejamos alcançar ao final desta tese.
São apropriações feitas por Gilles Deleuze, Felix Guattari, Roberto Machado, Hubert Dreyfus,
Paul Rabinow, Jürgen Habermas, Didier Eribon, José Guilherme Merquior, Sérgio Paulo
Rouanet, Gérard Lebrun, Renato Janine, Margareth Rago, Antônio Cavalcante Maia, entre
5 FOUCAULT, “A extensão social da norma”, D.E. VII, 2011/1976, p. 398.
INTRODUÇÃO
16
tantos outros. Diante delas tomamos a atitude de compreendê-las no que elas revelam e do que
elas estabilizam do acontecimento Foucault. Acompanhamos tais apropriações no que nos
permitem levar a bom termo a seguinte proposição: Foucault é um cético sui generis e seu
ceticismo vem através de uma atividade crítica e uma atitude crítica que consistem, juntas, na
sua ética do intelectual. Uma ética que toma forma em um êthos: numa forma de ser e de se
conduzir que tem como objetivo não se manter o mesmo.
Isso é Foucault!? Obviamente, não e sim. É um Foucault possível e um Foucault que
devém. O que nos interessa nessa derivada (que não o entende como alguém que percorreu um
caminho rumo a um ponto final) não é a domesticação de Foucault, não é enunciar a lei que
rege ao mesmo tempo a existência e a obra, mas é o que nessa composição tramada por nós
permite que vejamos muitas coisas do seu trabalho. Enxergar suas possibilidades e
potencialidades de uma maneira que elas mantenham as linhas de fuga que ele mesmo preparava
para si. Além do mais, nos interessa sobremaneira os problemas que o seu trabalho enfrentava,
pois pensamos que as ferramentas que ele legou servem para diagnosticar e abrem a
possibilidade de intervir nas problemáticas contemporâneas.
Os caminhos rascunhados, façamos o nosso jogo da amarelinha, uma vez que esta tese
é, sobretudo, o se estender por leituras que se encontram e que se dão a ler por ao menos duas
combinações possíveis. Tais combinações não pretendem indicar os caminhos de leitura dessa
tese (primeiro esse, depois aquele, apesar de não barrar esse caminho), mas sim pontuar
questões que perpassam todos os capítulos, dando sinalizações para as linhas que as enredam
numa mesma trama. Eis a primeira combinação, o primeiro roteiro: o primeiro item do primeiro
capítulo (Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado) é
um desenho de Foucault como jornalista e conversa com o terceiro item deste mesmo capítulo
(Pois desse lado do muro, o jogo é tão duro: o si e os outros do governo), que desenha um
Foucault militante. Em ambos os itens vemos o endereçamento de questões para a política do
seu tempo. O segundo item do primeiro capítulo (Atmosfera se cria: forja de um norte para
a questão do sujeito) é um desenho de Foucault professor e conversa com o quarto item deste
mesmo capítulo (A verdade na coragem: o navegador e batedor dos discursos), que desenha
um Foucault estilista de si. Em ambos os itens vemos se apresentando a questão da atividade e
da atitude crítica no dizer-a-verdade na função docência e, depois, no dizer-a-verdade público.
Nesta primeira combinação, o primeiro capítulo (“São os passos – são os passos é que fazem
o caminho”: afirmando e dobrando as linhas) é aquele com os quais os demais irão dialogar.
Neste concerto almejado, apresentamos o segundo capítulo (Variações da modernidade
em Foucault: estar a caminho) como diálogo com o segundo e o quarto itens do primeiro
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
17
capítulo. No segundo capítulo pretendemos, ao precisar o que é essa atividade e atitude crítica
que delineamos no primeiro, destacar de onde Foucault pôde falar, desse terreno em que a
História se entremeia com o pensamento (itens 2.1: “Nosso arsenal é o canto. Metal? São
timbres que tinem”...: o atual e 2.4: “Quando nada acontece, há um milagre que não
estamos vendo”: o êthos moderno), bem como de onde aquele campo de adversidade que se
constituiu contra ele fala (itens 2.2: Uma recepção polêmica: Foucault e o pós-modernismo
e 2.3: O anti-humanismo e o formalismo como composição do pós-moderno).
O terceiro capítulo (Estando provisoriamente aí, onde você não me espera) aparece
como diálogo com o primeiro e terceiro itens do primeiro capítulo. Ele pretende ver por meio
de quais grades, de que forma, Foucault envia suas questões à política. Para isso detecta,
inicialmente, esse movimento em que ele distancia-se das suas preocupações da década de
sessenta e preocupa-se com o desdobramento político da sua prática analítica. Depois,
almejamos perceber como Foucault experimenta as diferentes maneiras de entender o poder: na
grade jurídica da repressão, na grade da guerra e na grade da governamentalidade. Como nosso
interesse recaí no trabalho de Foucault a partir de fins da década de setenta tivemos que ver esse
trabalho se apartar, principalmente, do que foram seus pressupostos nos anos imediatamente
anteriores. O que significa dizer que demos destaque as duas grades que trazem as maiores
contribuições do que Foucault entendeu por relações de poder: a beligerante e a governamental,
além da forma que a questão da resistência toma nesse deslocamento.
O quarto capítulo (Sempre recomeçar: nas dobras paixões que não tiveram fim), por
sua vez, dá continuidade ao primeiro capítulo. No primeiro, três dos quatro desenhos esboçados
de Foucault são empreendidos junto a discussão dos seus últimos três cursos no Collège de
France e, no quarto capítulo, buscamos situar o terreno de seus dois últimos livros. Em ambos
esquadrinhamos as suas entrevistas, os seus artigos e suas conferências da década de oitenta. O
quarto capítulo leva as discussões dos três capítulos anteriores aos últimos Ditos e escritos de
Foucault, para que, baseando-nos neles possamos avaliar as consequências do seu trabalho no
plano do ceticismo, da ética do intelectual e da relação com a política. Por fim, o capítulo
encaminha as análises para questões sensíveis do pensamento foucaultiano. Essas são algumas
combinações possíveis a partir daqueles que se interessam pelo percurso tracejado do
pensamento de Foucault. Devemos reafirmar que no nosso trabalho privilegiamos os caminhos
traçados a partir de fins da década de setenta.
Aqueles que, no entanto, se interessam mais pela sua recepção podem distribuir as peças
de outra forma. Eis uma outra combinação, um segundo roteiro. O segundo (Uma recepção
polêmica: Foucault e o pós-modernismo) e terceiro (O anti-humanismo e o formalismo
INTRODUÇÃO
18
como composição do pós-moderno) itens do segundo capítulo (Variações da modernidade
em Foucault: estar a caminho) trazem a apropriação de Foucault nos debates dos anos oitenta
e avançam – somente no que concerne ao debate do pós-moderno – a década de noventa. Essas
discussões trazem consigo a ideia de um Foucault estruturalista/formalista/anti-humanista e
teórico do poder e debatem suas relações com a História. Estes pontos conversam com sua
recepção na década de setenta e, portanto, neles temos uma interlocução entre o segundo e
terceiro capítulos. No terceiro capítulo (Estando provisoriamente aí, onde você não me espera)
vemos sua recepção como parte do estruturalismo, como pensador da História, como um
teorista do poder e suas relações com o marxismo, principalmente, nos três primeiros itens (item
3.1: Se diz em tom de novidade e/ou de ironia: Foucault está na moda, item 3.2: Uma valsa
desconcertante com Marx e o marxismo e item 3.3: Amplia a ambiência política: eis que
surge uma Microfísica) Além disso, nesse terceiro item fizemos uma espécie de breve
recenseamento das obras de Foucault dada a ver nesses jornais, e, também, da obra daqueles
que dele se aproveitaram ou que o confrontaram, lançadas no Brasil durante a década de setenta
e oitenta.
A década de oitenta aparece novamente no quarto capítulo, item 4.2 (Ser pontual num
encontro em que se pode faltar: pelas frestas se desenha uma ética), quando apresentamos
algumas das recepções dos dois últimos livros de Foucault no Brasil, momento em que alguns
interlocutores diziam existir uma “volta” do sujeito no seu trabalho. Como nosso interesse recaí,
igualmente, na força do pensamento de Foucault para o debate de hoje, nós chamamos alguns
interlocutores mais recentes para com eles apresentar os problemas que nos inquietam. Isso se
dá no quarto item do terceiro capítulo (Pensando o governo hoje: Estado, segurança e
controle) e no terceiro item do quarto capítulo (Se arriscar na prática da liberdade: um
incrédulo contemporâneo). Com eles podemos ver até onde se pode ir com Foucault, bem
como algumas discussões que hoje o “ultrapassam”: são pessoas como Giorgio Agamben, Hardt
e Negri, Judith Butler, Paulo Vaz, Wanderson Flor do Nascimento, entre outros.
Como tentativa de escapar às discussões excessivamente densas ou detalhadas que
poderiam evitar o bem fluir da narrativa, nós escolhemos o espaço das notas de rodapé como
lugar de especificação das leituras que fizemos, dos nossos débitos – dos momentos em que a
apropriação se torna muito nítida e que a “dívida” deve ser paga –, de outras leituras tão
interessantes quanto aqueles que privilegiamos ou, ainda, como maneira de exprimir lonjuras.
Em suma, espaço de dádivas que os outros nos dão pelo pensamento e que nos servem de
andaimes para constituir nossa própria reflexão. É um espaço também de explicar essa ou
aquela escolha, enriquecer uma discussão ao mostrar sua amplitude, seus desvios, adensar
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
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certos pensamentos retirando-lhes a superficialidade que o alvo de nossa leitura acabou
impondo.
Dados os três caminhos, a construção das duas combinações possíveis e a exposição de
uma e outra precaução, cabe-nos agora expor os riscos. Primeiro, nos arriscamos a imobilizar
um pensamento móvel e a tratar como autor quem nunca gostou da individualização desse tipo
de função (que reduz as diferenças a unidade) e incessantemente solicitou o anonimato como
signo da escrita e como índice da atividade transformadora de si. Neste sentido, muitas vezes
se parte de um falso problema: ao apontar que a função autor tal como funciona na nossa cultura
e sociedade reconduz a identidade, Foucault estava contestando a necessidade dessa inscrição.
Entretanto, ninguém é absolutamente livre dessas inscrições mesmo quando delas deseja
escapar. Além disso, Foucault, reconhecendo isto, inúmeras vezes retomou seu caminho
mudando-lhe a direção ou indicando sua coerência retrospectiva. Jogo da identidade e da não
identidade que tentamos captar ao compor um quadro de desenhos numa série de correlações e
dominâncias. Mesmo assim nos impõe a questão: como proceder para evitar congelar o discurso
de Foucault ao mesmo tempo em que o reconhecemos numa trajetória? Questão que Antônio
Cavalcanti Maia colocou nos seguintes termos:
Ora, todos aqueles que enfrentaram a tarefa de procurar uma interpretação
integradora do trabalho de Foucault encontraram-se em dificuldades. Uma
obra marcada pelo signo do deslocamento, deliberadamente elusiva – de um
pensador que não se citava [e citava os outros principalmente para aclarar
alguma perspectiva histórica] – situando-se, por vezes, às margens do discurso
filosófico, em um original imbrincamento de filosofia e história.6
Não tentamos integralizar Foucault, mas traçamos um percurso que podemos percorrer.
Afinal, mesmo quando tentamos destruir um desenho, reduzi-lo a pedaços, fazendo coisas tão
opostas a ele que não os reconhecemos, ele possui seus traços, seus rastros, as linhas dos seus
passos. Apostamos em dois procedimentos para andar por essa trajetória: tratamos os
acontecimentos discursivos que ele pronunciou como parte de uma estratégia, de uma
resistência às coisas que considerava intoleráveis – é o discurso como inscrição estratégica. Por
isto, aparecerá no trabalho o uso constante de entrevistas, artigos, conferências que indicam os
problemas que o incomodavam e que ele visava nestes pronunciamentos. Segundo, inserimos
Foucault dentro das problemáticas que eram as dele. Estudamos internamente os problemas que
sentimos serem recorrentes nos seus ditos e escritos, pelos quais podemos pensar os campos de
afinidade e de adversidade que eram os seus. Esse tipo de trabalho reivindica mais a coerência
6 MAIA, “Deleuze leitor de Foucault – elementos de uma crítica da cultura contemporânea” In NETO E RAGO
(orgs.), 2008, p. 57.
INTRODUÇÃO
20
do que a incoerência de um pensamento, porém, desde que pensamos que, nessa tese, esses dois
adjetivos só fazem sentido dentro de uma estratégia, talvez entendamos que algumas coisas que
são reivindicadas como incoerentes são, na verdade, uma posição que tem sua coerência quando
pensamos em quem fala e para quem, qual a luta em que se engaja e qual problema que visa. É
uma maneira de evitar polemizar: nós não detemos a chave da verdade da “obra”, pois não
acreditamos que ela exista, portanto, analisar o percurso de Foucault é uma maneira de entendê-
lo sem pretensão de legitimar o que se sabe, sem finalizá-lo e sem recorrer ao papel do
polemista. De igual maneira, não pretendemos polemizar o pensamento do outro com o qual
ele se opõe ou que se opõe a ele, mas, quando esse vem à tona, indicamos o solo de onde fala.
No fundo, cartografamos sua trajetória, rascunhamos alguns desenhos possíveis que
surgem dela, sem com isto reivindicar a coerência de um sistema. Na verdade, evitamos tal
sistematização, mostrando a mobilidade deste pensamento, tramado em seus impasses, suas
maneiras de ultrapassar o que pensava. Usamos, para nos situarmos dentro dos seus percursos,
inúmeros textos de períodos diferentes, o que demandou precauções. Daí nosso cuidado em
apresentar a data dos textos utilizados (situa-se assim os problemas e identifica-se o momento
em que assinalamos as mudanças), a data de sua publicação na França e no Brasil (o que ajuda
a imaginarmos os começos de sua reverberação mais ampla em cada espaço), nosso esforço
para facilitar ao leitor a localização de cada discurso utilizado entre os dez volumes dos Ditos
e escritos traduzidos no Brasil e, igualmente, a localização das inúmeras aulas escolhidas nos
cursos do Collège de France que trabalhamos.
Um outro risco é não levar a bom termo nenhuma das duas combinações: nem a análise
interna de um pensamento nem o espaço de sua recepção e apropriação. Aceitamos-o também,
uma vez que até mesmo uma estratégia do contorno – que não é a nossa – pode esbarrar no
incontornável e, além disso, parece ser uma agressão muito grande a nós mesmos não
verticalizarmos numa leitura que nos traz a paixão. Um afecto que consideramos nos ser
essencial e, acreditamos, sem a qual esta tese não poderia ter sido escrita. O perigo está em que
fizemos esta leitura intensiva tendo principalmente em conta certo período do trabalho de
Foucault (1978-1984). No entanto, isto deve ser mitigado, visto que a todo momento retomamos
outros períodos do seu percurso indicando as descontinuidades respectivas. Nesse sentido
experimentamos intensamente as palavras de Deleuze:
Quando se admira alguém não se seleciona, pode-se preferir tal ou qual livro
a tal outro, mas toma-se assim mesmo o todo: percebe-se que o que parece um
tempo menos forte é um momento absolutamente necessário ao momento
seguinte. [...] É preciso tomar a obra por inteiro, segui-la e não julgá-la, captar
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
21
suas bifurcações, estagnações, avanços, brechas, aceitá-la, recebê-la inteira.
Caso contrário não se compreende nada.7
O outro perigo está na nossa leitura extensiva das fontes jornalísticas, levando em conta
principalmente o debate travado, sem adentrar nas linhas editorias, nas perspectivas políticas
de cada um dos quatro jornais analisados. Percorremos os seguintes periódicos: Jornal do
Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de. S. Paulo e O Globo. Contudo, isto também deve ser
mitigado, inicialmente porque existem indicativos do contexto político ao longo das análises.
O principal motivo, no entanto, é que seria necessário um outro trabalho, um que escolhendo
apenas a recepção e a apropriação deixasse Foucault escapar por todos os lados. Nele ele só
apareceria insinuado – para nós uma incapacidade que se tornaria um fardo –, ou, se não, que
entregássemos um trabalho de dois tomos. Sentimo-nos confortáveis com nossa escolha, pois
ela permite seguir essas duas linhas e exacerbá-las se for o caso, e é tão somente por excessivo
escrúpulo que justificamos o trabalho feito comparando-o com o que ele podia ser, o exercício
de outros.
Um terceiro risco é que consideramos essa massa de palavras ditas e escritas sem delas
separar a importância, sem discriminar graus de pertinência. No entanto, sobre essas inúmeras
peças que compõe seu trabalho, o próprio Foucault disse serem importantes reflexões metódicas
sobre “um livro terminado, suscetíveis de me ajudar a definir um outro trabalho possível”.8
Neste ponto seguimos à risca uma percepção que temos quando adentramos a imensa leva do
que disse e escreveu Foucault. Deleuze o percebeu bem:
Há algo essencial de um extremo a outro da obra de Foucault: ele sempre
tratou de formações históricas (de curta duração, ou no final, de longa
duração), mas sempre em relação a nós. Ele não tinha necessidade de dizê-lo
em seus livros, era por demais evidente, e deixava para dizê-lo ainda melhor
nas entrevistas que dava aos jornais. É por isso que as entrevistas de Foucault
fazem parte integralmente de sua obra.9
Os ditos como dardos endereçados a nossa atualidade. Sobre a importância de considerar
este corpus de Foucault, Paul Veyne tem a mesma opinião: “Citarei abundantemente os seus
Ditos e Escritos porque ele aí evoca os fundamentos da sua doutrina com mais frequência do
que o faz nas suas obras principais”.10 Renato Janine viu, por sua vez, o jogo de entonações
(ênfases, atenuações, articulações) que a leitura assume para o próprio Foucault.11 E, para nós,
7 DELEUZE, “Rachar as coisas, rachar as palavras”, 1992/1986, p. 107-108. 8 FOUCAULT, “Conversa com Michel Foucault”, D.E. VI, 2010/1980, p. 290. 9 DELEUZE, “Um retrato de Foucault”,1992/1986, p. 131. 10 VEYNE, 2009/2008, p. 13. 11 “Os ensaios de Foucault”. Renato Janine Ribeiro. Folha de S. Paulo. (12/07/1996).
INTRODUÇÃO
22
acompanhar “seu” pensamento é alterar seu acento de acordo com os problemas para os quais
entendemos que ele o remetia, para as questões do seu tempo. Podemos lembrar também o que
Canclini expôs a respeito de Jorge Luis Borges: que “deve-se levar a sério essas entrevistas e
declarações ocasionais de Borges que, de um modo oblíquo, são parte de sua obra”, pois Borges
entendeu que “a fortuna crítica, a rede de leituras que se fazem de um escritor, é construída
tanto em relação à obra como nessas outras relações públicas que propiciam os meios massivos.
Então, incorpora à sua atuação como escritor um gênero específico desse espaço aparentemente
extraliterário: as declarações aos jornalistas”.12 Tal como em Borges, as declarações de Foucault
continuavam sua obra. No entanto, de uma forma diferente, pois Borges fazia desse outro
espaço discursivo um lugar de jogo em que podia a cada momento dizer uma ou outra coisa.
Enquanto que Foucault, não sendo literato, se responsabilizava pelo que dizia, compunha com
ou se afastava dos livros efetivamente lançados, dava indícios de um trabalho em andamento.
Um quarto risco é a acusação de que não nos desvencilharmos do que em Foucault
informa o nosso próprio pensamento. Nessa tese consideramos Foucault nosso contemporâneo,
contemporâneo do nosso pensar. A contemporaneidade não é somente um índice geracional,
ela pode vir, por exemplo, do exterior: algumas características em comum que, mesmo
negativas, venham juntar numa mesma turma indivíduos diferentes. Ela pode ser rotativa, no
sentido que, dependendo do aspecto considerado, da estratégia de luta em comum, pode-se ser
considerado contemporâneo de um outro, de um movimento, e não sê-lo num momento
posterior. Pode-se ser contemporâneo pela afinidade de pensamento de quem tem vários anos
a mais do que você ou muitos anos a menos. Entretanto, nesse trabalho consideramos que
quando dizemos que “o” pensamento de Foucault é nosso contemporâneo queremos dizer,
principalmente, que percebemos várias das lutas (os problemas teóricos e ético-políticos) que
eram as dele como sendo ainda as nossas, na sua exasperação ou atenuação histórica. Aquilo
que ele descortinou foi somado, reconduzido, contestado ou ultrapassado por outros, porém
essas apropriações também fazem parte daquilo no qual ele se aventurou.
Nesse périplo ele muitas vezes assumiu uma postura irônica a respeito do seu presente.
Um estilo irônico, tal como ele fez funcionar, significava não levar a sério os discursos
tomando-os por verdadeiros, como se eles enunciassem o verdadeiro. Quanto a verdade de um
discurso, ela faz parte de um regime em que não se pode dissociar de seus efeitos de poder e
dos mecanismos de poder que o fazem funcionar, bem como das suas reverberações na
constituição de um “sujeito”. A preocupação deixa de ser o que é a verdade e passa a ser como
12 CANCLINI, 2008/1989, p. 109-110.
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
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a verdade funciona, em quais condições, para quem, com que objetivos. As perguntas são: quais
são os efeitos de certas verdades no nosso presente? Quais os riscos das verdades que
assumimos, que procuramos atingir, para a nossa condução? De que maneira ética podemos
assumir o risco de abandonar as velhas maneiras de agir e experimentar outras?
Lançarmo-nos a essas questões e aqueles caminhos com o intuito de refletirmos sobre o
que é o nosso trabalho hoje quando pensado eticamente. O trabalho do historiador, dos mais
diversos intelectuais e, no limiar, o do próprio pensar. É pensar uma ética do intelectual que é
nítida em Foucault (que podemos encontrar aqui e acolá enunciadas) e pensar esta ética como
aquilo que podemos derivar do trajeto que fizemos para ele, um caminho que só é interessante
se capta realmente algo dele. Sobre as histórias que pretendemos narrar podemos dizer:
A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história
que quiser. Escolha entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e
persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se
fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a
pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.13
13 ABREU, 2007/1990, p. 227.
“São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas
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CAPÍTULO I
“São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e
dobrando as linhas
(“Elegia número onze”. Esconderijos do tempo. Mario
Quintana)
Ainda que tirados de imediato um após o outro, os
retratos serão entre si muito diferentes.
("O espelho". Primeiras estórias. João
Guimarães Rosa)
Nestes começos difíceis, em que o caminho da escrita vai se inscrevendo em nós, é
necessário sermos claros e apresentarmos o problema deste capítulo que se desdobrará por todo
o trabalho. Trata-se de seguir a última linha de Foucault, aquela que concerne aos modos de
subjetivação e que nos interpela na nossa atualidade. Um último traçado do seu trabalho que
nos afeta de diversas formas: seja por que nele está implicado a possibilidade de uma ética do
intelectual e de uma estética da existência; seja por que nele colocamos em questão grandes
problemas políticos contemporâneos; seja, enfim, por que nele vários debates que nos rodeiam
encontraram um solo lunar (cheio de crateras nas quais também podemos nos perder) para
pensar. Como essa questão o afetou? Como apareceu essa última linha para o próprio pensador?
Para conquistá-la ele tinha de reconquistar o inesperado. Mas como fazer nascer a surpresa
quando já se constituiu como autoridade? Quando importa quem fala? Quando se tem atrás de
si a importância do emissor? De uma voz que devém na própria garganta como indispensável?
Como nessas circunstâncias deixar nascer as palavras sem voz no desfalecimento do sujeito que
fala? Estas são absolutamente nossas questões feitas ao trabalho de Foucault, mas, antes, são
questões que ele tornou uma prática dele. São indagações que nele concerniram a existência e
extravasaram em uma preocupação ética que encontramos ao longo de uma de suas verticais,
esta verticalidade que tentamos captar dentro de sua dispersão.
Prevemos que nossas tentativas de encontrar um fio de Ariadne sempre correm o risco
de estarem fadadas à ruína e, no entanto, o percurso que iremos fazer pode – quem sabe!? –
trazer o inesperado para alguns leitores. Eis um trajeto ingrato, pois para suscitar imprevistos
escolhemos inicialmente trilhar alguns caminhos já percorridos por tantos interessados neste
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
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personagem e, de certa forma, até mesmo previstos, para atravessando-os desembocar em
outros menos frequentados. Vejamos como reencontrar nesse corpus – livros, ditos e outros
escritos – a força do encontro que ficou no pensamento e que, no entanto, o abalou
profundamente; só para revelar que tudo estava na superfície e que bastava um novo olhar para
vê-lo. "Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina?"1 O que é encontrar?
Sobre a arte do encontro pegamos a flecha de Deleuze, instrumento sem arrependimentos que
nos retira a pessoalidade e nos manda para o impessoal, para o tipo de impessoalidade que
permite que os acontecimentos nos estremeçam:
Mas o que é, precisamente, um encontro com alguém que se ama? Será um
encontro com alguém, ou com animais que vêem povoá-los, ou com idéias
que os invadem, com movimentos que os comovem, sons que o atravessam?
E como separar tais coisas? Posso falar de Foucault, contar que ele me disse
isso e aquilo, detalhar como o vejo. Não é nada enquanto eu não souber
encontrar realmente esse conjunto de sons martelados, de gestos decisivos, de
idéias em madeira seca e fogo, de atenção extrema e de fechamento súbito, de
risos e sorrisos que sentimos serem "perigosos" no mesmo momento em que
se sente a ternura – esse conjunto como única combinação cujo nome próprio
seria Foucault. Um homem sem referências, diz François Ewald: o mais belo
cumprimento...2
1.1) Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado
Aos trancos, viemos vindo.
e já não sei se o que nos rodeia agora
foi escolha ou solavanco.
("Reflexões vespertinas". Caio Fernando Abreu).
Em 22 de fevereiro de 1969, Foucault proferiu uma conferência na Sociedade Francesa
de Filosofia que foi sucedida por outra um pouco modificada pronunciada na Universidade de
Búfalo, nos Estados Unidos, em 1970.3 Nestes pronunciamentos ele respondeu a um princípio
ético – o enunciaremos a seguir – que formulou em textos anteriores e que se referem a
apropriação de alguns temas da escrita contemporânea.4 Essas conferências funcionaram como
retomada de algumas questões que foram desenvolvidas na problematização do livro-
acontecimento de 1966 (de grande repercussão no círculo universitário e midiático) intitulado
As Palavras e as Coisas e sob efeito das leituras tunisianas que fazia desde 1967. Foram parte
anexa da peça que resultou no livro lançado no dia 13 de março de 1969 com o título A
1 ABREU, Carta de Caio para José Márcio Penido apud DIP, 2009, p. 58. 2 DELEUZE, "Uma conversa, o que é, para que serve?", 1998, p. 19. 3 De acordo com a cronologia estabelecida por Daniel Defert, a sorte da publicação dessas conferências teve mais
impacto sobre a teoria literária americana do que sobre o público francês de então. 4 Temas tais como: interior e exterior, apagamento do autor, jogos de linguagem etc.
“São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas
26
Arqueologia do Saber. Então qual foi esse outro elemento do programa de análise das grandes
unidades discursivas enfrentadas neste livro e apresentado naquelas conferências? O elemento
sobre o qual Foucault discorreu foi o tipo de propriedade discursiva que é a relação com o autor
e as diferentes formas que essa relação toma. Como ele formulou o princípio ético da escrita
contemporânea que passa pela pergunta do que é o autor, pela indiferença a ela? Ele a
apresentou nos seguintes termos: Que importa quem fala! Se disse ética, Foucault especificou:
“...essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se
escreve: ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais
efetivamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina
como prática”.5
Encaremos esse elemento – a questão da autoria – com brevidade, pois conhecemos
aquelas conferências pelo nome da primeira, “O que é um autor?”, um dito que compõe o corpus
consagrado do que é considerado a "obra" foucaultiana, mesmo que suas implicações teóricas
mostrem que sempre fazemos funcionar – nós inclusos – uma função autor. Consideramos a
explicitação dessa funcionalidade como sendo boa, pois não esconde que dentro do
empreendimento de retomar os Ditos e escritos de Foucault surgem as incoerências, os recortes
aleatórios – os nossos e o dos nossos interlocutores – e revela, por fim, que é um trabalho tal
qual o do ladrilhador de Abreu:
Ladrilhar uma parede com mosaicos díspares, assim tinha sido: a metade
direita de uma guirlanda não continuava nem completava-se na metade
esquerda de outra guirlanda, mas numa inesperada frisa grega ou barroca,
que também não estendia-se pelo ladrilho seguinte para definir-se num
quadrado ou retângulo, mas dava lugar a um círculo concêntrico decepado.6
Lembremos também que essas conferências se inscreveram no grande burburinho
provocado pelo sucesso de vendas e midiático do livro As Palavras e as Coisas (1966), no
grande debate que se desenvolveu na França a propósito do estruturalismo e sua oposição ao
existencialismo. Na conferência "O que é um autor?", Foucault analisou a relação do texto com
o autor e a individualização deste na nossa cultura tendo como divisa a frase de Beckett: "Que
importa quem fala, alguém disse que importa quem fala"; e, tendo como grade dessa leitura,
dois temas da escrita contemporânea: primeiro, sua libertação do mote da expressão que
proclama a interioridade, uma vez que a escrita se tornou um jogo de signos que é comandada
menos pelos significados do que pelo significante e, além disso, passou a ser experimentada
5 FOUCAULT, “O que é um autor?”, D.E. III, 2001/1969, p. 268. 6 ABREU, 2007/1990, p. 65.
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
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nos seus limites, margens pelas quais o sujeito escapa para fora da escrita. E, segundo, a
escritura não serve mais para exorcizar a morte, pois a escrita se tornou sacrificial para o autor,
no sentido de que na sua escritura ele se despe dos signos que marcam sua individualidade.
Retenhamos da análise do orador o que o nome do autor faz: ele indica, descreve,
designa, classifica e caracteriza uma maneira específica de discurso, da sua recepção, da sua
circulação, do seu funcionamento e do seu status na sociedade. Também aprendemos que ao
autor cabe algumas funções: sua funcionalidade passa por sua apropriação por outros, no que
ela tem de articulação com os sistemas jurídicos e institucionais; pela sua atribuição a
indivíduos através de várias operações específicas; pela forma historicamente diversa em que
se constrói uma instância profunda autor e suas relações com 'sua obra'; e que, diferente dos
textos ordinários, nos textos consagrados os signos remetem o autor não ao locutor real e ao
espaço-temporal do seu discurso, mas a uma pluralidade de ego (vários alter egos) e posições
que se pode ocupar neste discurso. Em suma, uma função, uma funcionalidade e um
posicionamento autor antes do que um sujeito autor. Podemos direcionar a questão da autoria
para o próprio Foucault, que em uma entrevista sobre As Palavras e as Coisas dois anos antes
disse:
Meu livro é uma pura e simples ficção: é um romance, mas não fui eu que o
inventei; foi a relação de nossa época e sua configuração epistemológica com
toda uma massa de enunciados. Embora o sujeito esteja de fato presente na
totalidade do livro, ele é apenas o "se" anônimo que fala hoje em tudo aquilo
que se diz.7
Não foi a última vez que Foucault disse que aquilo que fez foi ficção. Nesta entrevista
ele compreendeu o seu trabalho a partir da linguagem do romance. Uma vez que o disse
esclareçamos o que ele entendeu por este adjetivo (ficção) e sua adjetivação (ficcionalização).
A linguagem da ficção – de acordo com um artigo de 1966 sobre o trabalho de Blanchot – é,
em um sentido menos comum,8 aquela que tem a potência de deslindar as imagens, de aliviá-la
7 FOUCAULT, "Sobre as maneiras de escrever a História", D.E. II, 2005/1967, p. 69. 8 Podemos ter uma ideia, pelo próprio Foucault, de um sentido mais comum – sentido que não é o que ele usa
corriqueiramente – de ficção quando num artigo de crítica literária identificou seu significado comparando-o com
o da fábula: se a fábula é o que é contado (os episódios, as personagens, as funções que eles exercem na narrativa,
os acontecimentos), a ficção, por sua vez, não é nada mais que os diversos regimes segundo os quais a narrativa é
narrada: “postura do narrador em relação ao que ele narra (conforme ele faça parte da aventura, ou a contemple
como expectador ligeiramente afastado, ou dele esteja excluído e a surpreenda do exterior), presença ou ausência
de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas, assegurando sua descrição objetiva; engajamento de toda
narrativa na perspectiva de um personagem, de vários, sucessivamente, ou de nenhum, em particular; discurso
repetindo os acontecimentos a posteriori ou duplicando-os à medida que eles se desenrolam etc. A fábula é feita
de elementos colocados em uma certa ordem. A ficção é feita das relações estabelecidas, através do próprio
discurso, entre aquele que fala e aquele do qual ele fala. Ficção, ‘aspecto’ da fábula” (FOUCAULT, “Por trás da
fábula”, D.E. III, 2001/1966, p. 210).
“São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas
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de sua sobrecarga, de explodi-las e dispersá-la (o interstício das imagens). Esse espaço que é
menos da imagem do que da sua transformação, do seu deslocamento, abre para pensar um
fictício que “não está nunca nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilhança
do que está entre eles: encontros, proximidade do mais longínquo, absoluta dissimulação lá
onde nós estamos".9 A literatura é neste sentido uma distância aberta na linguagem que mostra
que não existe verossimilhança, que ela é construída na repetição, na reduplicação da
linguagem. Uma verossimilhança pressuporia afiançar-se numa verdade fundamental que a
alicerça. Guardemos então que a questão literária trabalhou na obra do próprio Foucault
mostrando que não se tratou de verossimilhança nestas histórias fictícias que ele fez e que, no
seu trabalho, as verdades apareceram dentro de um regime histórico em que elas surgiram e
tiveram seus efeitos.
Veremos ao longo da tese que a relação de Foucault com o seu próprio discurso e com
a categoria ficção foi retomada posteriormente, mas em outros termos. De qualquer forma, o
interesse desta análise para este trabalho não é tanto cercar o problema da autoria e sim a
passagem da problemática do autor para a do sujeito, no que essa passagem comporta de
abertura para pensar os privilégios do sujeito – aquele entendido como indivíduo livre doador
de sentidos – e apresentá-lo de outra maneira, ou seja, como função variável e complexa do
discurso. Foucault propôs uma análise que indica as condições e formas pelas quais um sujeito
pode surgir na ordem de um discurso, sendo a função autor só umas das possíveis especificações
da função sujeito. Naquelas conferências o orador apresentou até mesmo o sonho de um mundo
em que todos os discursos desenrolariam no anonimato, em que certas questões não fariam mais
sentido: "Quem realmente falou? Foi ele e ninguém mais? Com que autenticidade ou
originalidade? E o que ele expressou do mais profundo dele mesmo em seu discurso?". Em vez
dessas questões que partem de um sujeito originário, Foucault sugeriu outras: "Quais os modos
de existência desses discursos? Em que ele se sustentou, como pode circular, e quem dele pode
se apropriar? Quem pode preencher as diversas funções de sujeito?".10 Em vez de indicação, de
descrição, nestas últimas interrogações esboça-se uma experiência que, a partir da questão do
autor, leva o sujeito até o limite. O nosso interesse recairá sobre essas experiências limites.
O que nelas suscita nosso empenho? Trata-se de uma experiência de desubjetivação que
deixa entrever um tema que nos acompanhará durante toda a escrita, aliás, um mote que envolve
a nós que recortamos e selecionamos dentro de todas aquelas palavras pronunciadas e escritas
as que teceremos em desenhos possíveis do pensador. Essa recusa da individualização pela
9 FOUCAULT, "O pensamento do exterior", D.E. III, 2001/1966, p. 225. 10 FOUCAULT, "O que é um autor", D.E. III, 2001/1969, p. 288.
Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos
Leandro Mendanha e Silva
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autoria – tipo de indexação que permite que o autor assim definido seja punido quando
ultrapassa os limites dos discursos estabelecidos – apareceu em Foucault junto a um outro tema
que exploraremos, ou seja, aquele da voz do qual tão lindamente falou na sua famosa aula
inaugural no Collège de France:
Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem
além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar
uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu
encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus
interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um
instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de
quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita
lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível.11
Ambos os temas – renúncia de uma individualização e reivindicação de uma voz
anônima – quando dobrados sobre Foucault agita o solo deste trabalho como sendo instável,
por mais que a narrativa – nos seus diversos momentos – o produza como estável, como sendo
quase retratos fixos. Não queremos reduzir as diferenças do nosso personagem, provê-lo de
uma identidade, mas nos debruçar sobre seu pensamento requer traçar platôs, por mais instáveis
que possam ser. Consideramos que a própria pluralidade de desenhos que forneceremos –
escolhemos a palavra desenho por ter tão próxima de si uma ideia de apagamento, daquilo entre
o grafite e a borracha, um traço que pode ser borrado ou colocado em série ou dar relevo a, e
que é mais fluído do que a palavra retrato e o sentido de imobilidade que comporta – nos
conduzam a pensá-los e repensá-los como sendo, no máximo, possíveis caminhos (desenhos de
um pensamento andarilho). Dois temas do seu pensamento nos servirão de sinalização para as
trilhas que percorreremos: sua reflexão envolve aspectos de preocupação (quanto à atualidade
de onde fazemos as perguntas para o passado) e de crítica (quanto às diferenças e às
semelhanças entre o presente e o passado e seus efeitos). Ambos componentes que achamos
indeléveis do trabalho contemporâneo em História.
Daremos agora um exemplo de como pretendemos trabalhar sobre um pensamento que
procurou se deslocar e se manter o mais próximo possível do anonimato. Se acima
mencionamos as leituras tunisianas de Foucault, iremos agora apresentá-las: Dumézil, Trotsky,
Wittgenstein, os analistas ingleses, Panofsky, Nietzsche, Beckett, Rosa Luxemburgo, Che
Guevara e, até mesmo, textos norte-americanos do grupo panteras negras (sobre estes últimos
disse: "Eles desenvolvem uma análise estratégica liberada da teoria marxista da sociedade").12
11 FOUCAULT, A ordem do discurso, 2005/1970, p. 5-6. 12 DEFERT, "Cronologia”, D.E. I, p. 28.
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Na sua variedade estas leituras expõem um fato sobre a produção de Foucault à época e,
lateralmente, sobre sua recepção. É que ele produziu curtos-circuitos naqueles que tentaram
compreendê-lo, mesmo nos estudantes tunisianos, que Eribon disse adorá-lo. Por um lado,
nestes anos sessenta foi avesso e mesmo hostil ao marxismo; utilizou-se de Nietzsche, que na
época ainda estava envolto pelos problemas do seu uso nazista;13 e, na França, Foucault foi
interpretado e atacado como parte do pensamento tecnocrata de direita que massacrava o sujeito
individual e coletivo. Por outro lado, este tipo de interpretação contrapõe-se as atitudes de um
pensador que repudiou as reações violentas – prisões e torturas – utilizadas pelo governo
tunisiano em relação aos tumultos universitários.14 Mais do que isto, ele se envolveu fisicamente
com as revoltas e as aspirações estudantis tunisianas e algumas daquelas leituras mencionadas
acima indicam que se envolveu intelectualmente nelas. Foucault colaborou com suporte
logístico (abrigando estudantes em sua casa) e financeiro (escondendo o mimeógrafo e
imprimindo panfletos), sendo mesmo alvo de escuta telefônica e ameaças de policiais à paisana.
Ele chegou a sofrer intimidação física, leia-se, levou uma coça.15
Não podemos derivar as relações entre biografia e teoria diretamente de uma
experimentação vivida (como se vida e obra se comunicassem em uma clareza imediata), uma
vez que estão ligadas a experimentações do pensamento.16 Desde que entendamos essa
experimentação do pensar como aquela que Foucault aprendeu com Jean Hyppolite a respeito
13 É notório que a organização de alguns dos escritos de Nietzsche pela sua irmã – simpatizante do nazismo –,
textos que tinham uma variada carga antissemita, contribuiu para a associação do seu pensamento ao III Reich.
Sua interpretação nazista foi orientada pelo filósofo e pedagogo alemão Alfred Baeumler. 14 Como contou Macey: em 1966 o partido do governo tunisiano promoveu uma ideologia estadista de união entre
o partido e o estado. Um sistema dominado pelos técnicos do funcionalismo público. A universidade tornou-se um
espaço de oposição ao governo. Na época da chegada de Foucault um episódio simples – recusa de um estudante
de pagar seu bilhete de ônibus – foi o "estopim" de uma greve em que houve, inclusive, detenções de estudantes e
términos de contratos de professores franceses que participaram. Depois, em 1968, os estudantes tunisianos se
mostraram pró-Palestina e as tensões aumentaram quando da visita do vice-presidente norte-americano Hubert
Humphrey, pró-Israel. A situação degringolou e a polícia novamente entrou na faculdade, momento em que
espancou e prendeu estudantes. Segundo o próprio Foucault, ele era respeitado pelas autoridades locais, no entanto,
suas ações pró-estudantes esvaziou esta proteção. 15 Para vários dos textos aqui analisados sua contextualização se baseia na cronologia estabelecida por Daniel
Defert (consultável no início do empreendimento Ditos e Escritos, v. I); no próprio trabalho colossal de edição e
estabelecimento dos textos que acompanham cada dito (entrevistas, conferências, pronunciamentos diversos) e
escrito (prefácios, artigos, homenagens, manifestos etc.) dos dez volumes brasileiros; e nas biografias escritas por
Didier Eribon, Michel Foucault 1926-1984 e por David Macey, Las vidas de Michel Foucault. Além dessas fontes,
e no caso das análises dos cursos de Foucault no Collège de France, nos serviremos das situações dos cursos
publicadas ao final de cada um. Nos casos de outras fontes e testemunhos ou de questões mais específicas uma
nota explicativa se fará presente. 16 Este trabalho não pretende enveredar pelas problemáticas da biografia, pois não se constituí em um trabalho
biográfico. Sobre os debates sobre a feitura e os problemas da escrita biográfica podemos cf. a primeira parte do
livro Michel Foucault y sus contemporâneos, que discorreu toda ela sobre as dificuldades do projeto biográfico e
das monstruosidades da crítica; para um resumo sobre as relações biografia e história que vai até a biografia do
homem comum da micro-história, cf.: "A biografia como problema" In REVEL, 1998/1996, p. 225-249; e,
finalmente, o livro A mulher calada de Janet Malcolm, incrível trabalho que refletiu sobre os bastidores desse tipo
de empreendimento e que marcou os limites da biografia.
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do pensamento filosófico: "é uma prática incessante; (...) é uma certa maneira de colocar em
ação a não-filosofia, mas permanecendo sempre bem próximo dela, lá onde ela se liga à
existência".17 Aproximar-se dessa maneira, e por meio das próprias experiências, daquilo que
ainda não despertou a inquietação filosófica, de uma filosofia que se faz presente, inquieta e
móvel em relação ao que não é ela. Logo, fica claro que não pretendemos transpor as
experiências para a trabalho em uma mediação transparente, mas sinalizar que entre uma e
outra existem pontos de transformação da ação e do pensamento, espaços de experimentação
em que as experiências modificam os pensamentos e estes problematizam essas.
Foucault falou sobre sua relação com os estudantes tunisianos em uma entrevista para
um jornal da Tunísia em 1967: "Na verdade, encontrei estudantes tunisianos, e então foi amor
à primeira vista. Provavelmente, não encontrei nos estudantes, a não ser no Brasil e na Tunísia
tamanha seriedade e tanta paixão, paixões tão sérias, e o que me encanta mais do que tudo, a
avidez absoluta de saber".18 O sério dizia da situação política: prisões e torturas para os
estudantes tunisianos; prisões, tortura e morte para os brasileiros. Essa experiência na Tunísia
começou, segundo Daniel Defert, exatamente como uma forma de escapar – uma linha de fuga?
– do sucesso incômodo do livro As Palavras e as Coisas. Lido de uma maneira em que o autor
precede o trabalho podemos indagar: vontade de escapar da fama e sua opressão? Ou partindo
da experimentação do pensar que tenta escapar do autor como fonte opressora de significações,
podemos indagar: o que é essa vontade de anonimato que exala do texto "O que é um autor?”
Seria uma maneira de reconquistar o inesperado no pensamento? Em que escrever não seria se
reencontrar, mas se perder?
São duas questões que se atravessam: o anonimato e a busca do imprevisto. Vamos
pensá-las com cuidado. Em janeiro de 1977 Foucault lançou um texto na revista Les cahiers du
chemin, uma apresentação de uma antologia dos arquivos de internamento e encarceramento do
Hospital Geral da Bastilha que ele pretendia tornar um livro.19 Dele Deleuze disse que é uma
obra-prima e é.20 Este texto (“A vida dos homens infames”) está inserido no campo de
problemas tornados públicos pelos livros Vigiar e Punir (fevereiro de 1975) e A Vontade de
17 FOUCAULT, "Jean Hyppolite. 1907-1968", D.E. II, 2005/1969, p. 159. 18 FOUCAULT, "A filosofia estruturalista permite diagnosticar o que é 'a atualidade'?", D.E. II, 2005/1967, p. 61. 19 Pode não ter se tornado o livro que Foucault esperou e que já havia protelado (em 1963 anunciara pela coleção
Archives o livro Les foules, Michel Foucault raconte du XVII au XIX siècle, de la Bastille à Sainte-Anne, le vouyage
au bout de la nuit), mas alguns destes arquivos apareceram na coleção Les vies parallèlles: na publicação do
memorial de Herculine Barbin em 1978 (organizador), no Le cercle amoureux d'Henri Legrand em 1979 e no
livro em colaboração com Arlette Farge, Le désordre des familes, em 1982. Segundo Eribon, também apareceu na
coleção Archives vários anos depois em um livro sobre os encarcerados. 20 DELEUZE, "Um retrato de Foucault", 1992/1986, p. 135.
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