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Universidade de Brasília (UnB) Instituto de Ciência Humanas (IH) Departamento de História (His) Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis) Área de Concentração: História Cultural Linha de pesquisa: Identidades, Tradições, Processos Tese de Doutorado Orientadora: Profª Drª Márcia de Melo Kuyumjian Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos Leandro Mendanha e Silva Brasília 2014

Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos ......Não foi a partir dessa trama, do aprendizado tátil e tateante sobre como escrever a história, a minha primeira

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  • Universidade de Brasília (UnB) Instituto de Ciência Humanas (IH)

    Departamento de História (His) Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis)

    Área de Concentração: História Cultural Linha de pesquisa: Identidades, Tradições, Processos

    Tese de Doutorado Orientadora: Profª Drª Márcia de Melo Kuyumjian

    Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    Brasília

    2014

  • Universidade de Brasília

    Instituto de Ciências Humanas

    Programa de Pós-Graduação em História

    Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Tese apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação em História da

    Universidade de Brasília, na área de

    História Cultural, como requisito à

    obtenção do título de Doutor em

    História.

    Leandro Mendanha e Silva

    Brasília

    Outubro, 2014

  • Banca Examinadora

    Profa. Dra. Márcia de Melo Martins Kuyumjian (UnB/Presidente)

    Profa. Dra. Maria Thereza Ferraz Negrão de Mello (UnB)

    Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito (UnB)

    Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento (UnB)

    Prof. Dra. Luzia Margareth Rago (UNICAMP)

    Profa. Dra. Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB/Suplente)

  • Não acredito em incondicionalidade,

    mas dedico aos incondicionais:

    Alba, Lala e Dito.

  • Agradecimentos

    Ir ao encontro de quem se ama deixando esse amor ser o enigma do amanhã, sem

    decifrar: ou se sente ou não se sente. E nem precisa nomear. Quando sentimos muito é

    hora de se pôr ao labor e arquitetar. O arquiteto é só mais um dos operários, mas tem a

    grande pretensão de ser o mais importante deles. No entanto, é uma presunção tola, pois

    sem todos os outros só constrói castelos no ar. Não é o caso, então vamos lá.

    Aos meus queridos pais, e aos seus pais, vozes que sinto na minha quando falo,

    quando paro para respirar, no ritmo torto de uma lembrança de infância que nunca retenho

    para pensar. A meu pai, Benedito, Dito, com quem respiro e aspiro a grande generosidade.

    À minha mãe, Alba, com que respiro e aspiro a garra e o grande amor. A meu avô,

    Augusto, com quem respirei e aspiro a cadência poética. À minha vó, Fia, com quem

    respirei e aspiro a boa astúcia. A meu avô, Adair, com que respiro e aspiro a dedicação

    incansável. E à minha avó, Dinorá, Lala, com quem respiro e aspiro a grande força e

    dignidade. À Camila, minha irmã, que me lembra, sempre quando dela me aproximo, que

    os sedimentos de uma vida carregam um imenso afeto, um carinho em estar perto. A todos

    esses eu sopro em retorno o mais puro afeto.

    Existem os amigos e gostaria de agradecer a três em especial: A Mateus, com a

    convicção de que, sem nossas trocas intelectuais, artísticas, pautadas no afeto da grande

    amizade, este trabalho não seria o mesmo e ainda estaria esperando o momento de

    alcançar a sua voz, a coragem necessária para alcança-la. À Bia (que deságua tão

    lindamente na Mayara e sua verve de revisora de traduções), com sua sensibilidade

    incandescente ao mesmo tempo que sutil, diretamente e indiretamente possibilitou que

    essa tese fosse mais do que era para ser. Ambos, companheiros no crime, são daqueles

    que inspiram a audácia necessária para transformar uma coisa sem graça, árida –

    Foucault: longe do seu lugar. Desenhos de uma ética e escavações de uma recepção

    brasileira – em poesia pop: Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos.

    Um título sabidamente injusto, que não dá conta de contar o que foi todo trabalho (será

    que algum título já deu conta de descrever os trabalhos que as pessoas realmente

    fizeram?), mas que espreita maliciosamente, secciona, captura, saí do lugar comum (são

    tantas dissertações e teses sobre Foucault) e almeja suscitar curiosidade. E a Yuri, e a sua

    parte girassol, que acompanhou uma parte do percurso convivendo com a parte cata-vento

    que posso ser.

  • Gostaria de agradecer aqueles que as circunstâncias, os circundantes, as sintonias,

    compõem com esse trabalho. À Eleonora, com quem traçávamos (Eu e Mateus, sempre

    ele me desencaminhando) as nossas linhas de fuga nos domingos da vida e que de tanto

    bem-receber carinhosamente é a convidada bem-recebida dessa tese. À Tereza, na certeza

    de que tem olhos vivos, daqueles que sabem acompanhar um trajeto com a perspicácia de

    uma caça ao novo e que, com sensibilidade, sabem ver o que surge, aqui e acolá,

    inesperado. E com o devido destaque, em cima do abre-alas, com a fantasia mais bonita

    do Carnaval, à Márcia, minha orientadora, que me apoiou o tempo todo, acreditou em

    mim, me puxou cada vez que eu deixava os fios rolarem soltos demais, mas nunca

    colocando correia e sim confiando. Por fim, agradeço aos professores Wanderson e

    Margareth, que entremeados no texto também dele farão parte como leitores. Sejam bem-

    vindos. A todos vocês, obrigado pela confiança.

    Não poderia faltar a menção aos diversos professores que, da graduação e pós,

    contribuíram com a reflexão. Ao PPGHIS. À CAPES, pelo apoio financeiro, fundamenta l

    para a realização da pesquisa. Aos funcionários da UnB que auxiliaram nos tramites

    burocráticos. E a todos aqueles que, não citados, sabem que sem os nossos momentos eu

    não poderia ter tido a força necessária para terminar. Pois no fundo, rematar para mim é

    sempre remar, recomeçar e desdobrar.

  • A teia, não

    mágica

    mas arma, armadilha

    a teia, não

    morta

    mas sensitiva, vivente

    a teia, não

    arte

    mas trabalho, tensa

    a teia, não

    virgem

    mas intensamente

    prenhe:

    no

    centro

    a aranha espera.

    (“Teia”. Teia. Orides Fontela)

  • Resumo

    A pesquisa desenvolvida se resumiu em uma investigação com duas vertentes: uma

    vertical, outra horizontal. A primeira pesquisa analisou, focalizando a sua obra entre o fim da década de setenta e o início da década de oitenta, a maneira como Foucault apresentou, inverteu e problematizou três grades analíticas recorrentes no seu trabalho.

    Refere-se à verdade (na forma de regimes de verdade e dizer-a-verdade), ao poder (na forma do governo de si e dos outros) e a ética (na forma de um estilo ou modo de vida).

    Supõe-se que trazendo ao primeiro plano seus cursos no Collège de France e seus Ditos e escritos pode-se compor desenhos que tracem o percurso que tomou uma vida (êthos), trajetória da qual se deriva uma ética do intelectual. Também considera-se que

    apreender os problemas, as questões e o formato que aquelas grades tomaram no seu trabalho auxilia na reflexão sobre nossa atualidade (os riscos de uma sociedade de

    controle, o cuidado necessário na reivindicação de políticas identitárias, o controle do corpo hoje, etc.) A segunda investigação escavou a maneira pelo qual o pensamento de Foucault foi recebido em alguns jornais brasileiros, principalmente na década de setenta

    e oitenta, no que essas discussões públicas colocaram em confronto parte da intelectualidade brasileira. São debates a respeito da oposição entre análise estrutural e

    marxista, das novidades teórico-metodológicas para a análise histórica, da “morte” do sujeito, de um pensamento do poder, da pós-modernidade, entre outras querelas e temas que ainda reverberam no conhecimento que se tem do trabalho de Foucault.

    Palavras-chave:

    Michel Foucault; ética do intelectual; recepção e apropriação brasileira; estratégia; atualidade.

  • Abstract

    The analysis developed in this research is divided in the vertical and horizontal axis. In

    the first one, examined the way Foucault presented, reversed and problematized three constant analytic grounds he bases his work, by focusing it between the late seventies and early eighties. Refers to truth (as regimes of truth and tell-the-truth), power (as the

    government of self and others) and ethics (as a style or way of life). Is assumed that bringing to front his courses at Collège de France and using what he had said and

    written about the subject, can be composed drawings establishing a route that lasted a lifetime (êthos), trajectory from which is could infer the intellectual’s ethics. Moreover, to take on board the problems, issues and shapes those grounds assumed in his work

    helps us think our present (the risks of a controlled society, the caution needed in claiming the identity politics, the nowadays control of the body, etc.). In the second part

    of this research, is presented the way Foucault's thoughts were welcomed in some Brazilian newspapers, mainly in the seventies and eighties, causing public discussions which placed the Brazilian intelligentsia in a difficult position. There are arguments

    about the opposition between the Marxist structural analysis, the theoretical and methodological innovations for historical analysis, the subject’s "death", the thought of

    power, the postmodernity, among other disputes and issues that still reflect on the studies about Foucault’s work.

    Keywords:

    Michel Foucault; intellectual ethics; brazilian reception and appropriation; strategy;

    present.

  • Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 10

    CAPÍTULO I ......................................................................................................................................... 24

    “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas .................. 24

    1.1) Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado ............................. 25

    1.2) Atmosfera se cria: forja de um norte para a questão do sujeito ................................................. 48

    1.3) "Pois desse lado do muro, o jogo é tão duro": o si e os outros do governo ............................... 81

    1.4) A verdade na coragem: o navegador e o batedor dos discursos ............................................... 107

    CAPÍTULO II ..................................................................................................................................... 146

    Variações da modernidade em Foucault: estar a caminho .................................................................. 146

    2.1) "Nosso arsenal é o canto. Metal? São timbres que tinem...": o atual. ..................................... 154

    2.2) Uma recepção polêmica: Foucault e o pós modernismo .......................................................... 178

    2.3) O anti-humanismo e o formalismo como composição do pós-moderno:................................. 213

    2.4) "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo": o êthos moderno ............. 235

    CAPÍTULO III .................................................................................................................................... 255

    Estando provisoriamente aí, onde você não me espera ....................................................................... 255

    3.1) Se diz em tom de novidade e ou de ironia: Foucault está na moda ......................................... 256

    3.2) Uma valsa desconcertante com o Marx e o marxismo ............................................................. 298

    3.3) Amplia a ambiência política: eis que surge uma Microfísica .................................................. 314

    3.4) Governar o hoje: Estado, segurança e controle ........................................................................ 333

    CAPÍTULO IV .................................................................................................................................... 364

    Sempre recomeçar: nas dobras paixões que não tiveram fim.............................................................. 364

    4.1) Experimentar é errar a si mesmo ............................................................................................. 368

    4.2) Ser pontual num encontro em que se pode faltar: pelas frestas se desenha uma ética ............. 390

    4.3) Se arriscar na prática da liberdade: um incrédulo contemporâneo .......................................... 422

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 447

    CORPUS DOCUMENTAL................................................................................................................. 457

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 470

  • INTRODUÇÃO

    10

    INTRODUÇÃO

    Muitas pessoas não sabem ao certo como se deve começar, quem sabe porque pegamos

    as coisas e nós mesmos pelo meio. Então, tateamos sabendo que, apesar das dificuldades,

    construir os começos tem suas delícias. O primeiro texto que li de Foucault foi um choque.

    Recordo-me que era a introdução de As Palavras e as Coisas. Agitou-me! Fazendo borbulhar

    o eu e, em seguida, deixando meu espírito sempre no ponto de efervescência. É engraçado como

    as palavras nos tomam e como as perseguimos depois disso. Pensando nessas lembranças que

    adiam os começos já começando, eu contarei ainda sobre outra recordação, dessas que se

    referem aos sustos que nós levamos. Um assombro anterior a Foucault e que não tem a ver

    imediatamente com ele, apesar de que o nome suscita essa ligação. Foi logo no começo do curso

    de História da UnB. O texto era um capítulo do livro Como se Escreve a História, de Paul

    Veyne. Aluno recém-chegado à graduação li e me espantei, mas não foi um choque de

    maravilhar-me e sim de incômodo, de uma indisposição inicial. Um pouco ingênuo eu

    praguejava: “este positivista estranho que não acredita na cientificidade da História!”. Vários

    equívocos. Hoje rio de mim mesmo, do calouro que era. Mas é um riso carinhoso de quem sabe

    que, logo após ler o capítulo, comprou e devorou o livro inteiro. E que compreende, igualmente,

    o quanto aquelas páginas teimaram na cabeça.

    Não foi a partir dessa trama, do aprendizado tátil e tateante sobre como escrever a

    história, a minha primeira ligação com Foucault, mesmo porque naquele livro Veyne ainda não

    pensava com ele. Houve então esse descompasso, do qual só fui me dar conta anos depois.

    Retornando a primeira recordação, lembro que após ler a introdução de As Palavras e as Coisas

    sorvi o livro como se fosse um poema erudito. Provavelmente não apreendi muitas coisas, não

    saberia dizer, uma vez que à primeira leitura se seguiram outras e hoje não conseguiria me

    separar de todas elas. Para mim faz muito sentindo que a recomposição da memória seja um

    pouco como o enunciado no seguinte verso: “Se volto sobre o meu passo, é já distância

    perdida”.1 A seguir, me aventurei sozinho em A Arqueologia do Saber. Uma experiência árida,

    mas que me deu a dimensão da ligação do trabalho de Foucault com as análises históricas.

    Descobrir é, muitas vezes e talvez a maioria das vezes, achar por si mesmo o que já era tão

    sabido pelos outros, com a intuição, porém, de que os relatos de outros viajantes pouco

    oferecem a respeito da própria viagem, que tem que ser feita por conta própria. Foi assim, nessa

    ânsia, que me aventurei a escrever uma monografia sobre Foucault. Nela o professor José

    1 MEIRELES, “Canção excêntrica”, 2013/1942, p. 31.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    11

    Otávio Guimarães me serviu de bússola. Nesta primeira incursão trabalhei Foucault partindo

    do livro As Palavras e as Coisas e me detendo em A Arqueologia do Saber, bem como

    acompanhando seus Ditos e escritos até os primeiros anos da década de setenta. Nessas fontes

    eu buscava as relações de Foucault com a História, com a análise histórica da verdade. Foi uma

    primeira aproximação, que suscitou um dispendioso esforço.

    Neste meio tempo me aventurei em disciplinas da filosofia: disciplinas de ética com o

    professor Julio Cabrera; uma disciplina de filosofia e feminismo com os professores Wanderson

    Flor do Nascimento e Ana Míriam Wuensch – com Nascimento lembro que atravessei um curso

    de título inesquecível: “Ideias filosóficas em forma literária”; outra sobre o pensamento político

    com o professor Rogério Alessandro de Melo Basali. Os cursos de extensão também foram

    muito proveitosos, dois me marcaram especialmente: o curso Política e Subjetividade com o

    professor Peter Pál Pelbart e o curso Introdução ao pensamento de Deleuze com o professor

    Daniel Lins. Nessas disciplinas e cursos descobri uma parceira que, de maneira idêntica ao

    trabalho de Foucault, me capturou: efeito Deleuze-Guattari. Foi enredado nessa bagunça

    polifônica que logo após o término da graduação optei por tentar o Mestrado.

    Aqui começa outra parte da história dessa tese, dos sedimentos que a compõe. Adentrei

    na pós-graduação da área de História Cultural do PPGHIS/UnB e foram nas disciplinas

    cursadas, que professoras como Maria Thereza Negrão de Mello, Eleonora Zicari Costa de

    Brito, Márcia de Melo Martins Kuyumjian se imprimiram em mim. A última se tornou minha

    orientadora, com o carinho do aconselhamento e da leitura cuidadosa, me orienta até hoje. Essas

    arritmias são interessantes: conheci algumas dessas professoras ainda na graduação, mas foi na

    pós-graduação que o diálogo se fortaleceu e frutificou, fazendo delas importantes referências

    para mim. Com essas indicações se entende melhor o lugar da minha dissertação. Quando da

    escrita da monografia, já me encantavam os textos políticos de Foucault do começo da década

    de setenta que compunham com Vigiar e Punir e História da Sexualidade v. I. No entanto, eles

    só revelaram verdadeiramente seus efeitos sobre meu trabalho no mestrado.

    A dissertação foi uma viagem da qual retiro saldo positivo, mesmo refletindo sobre o

    que nela retificaria hoje: foi uma tentativa de ver como Foucault legou ferramentas para pensar

    a história e, também, como podia funcionar na área de História Cultural. Com esses objetivos

    em mente, no primeiro capítulo fornecemos (aqui começo o processo de me conduzir

    explicitamente com os outros, o nós que compõe esse trabalho) os elementos para que pensando

    com Foucault e também com Deleuze e Guattari cogitássemos a ideia de que a história que o

    primeiro fazia era rizomática. A partir dessa ideia, no segundo capítulo analisamos a

    apropriação de Foucault por Roger Chartier diante das questões das práticas discursivas e não-

  • INTRODUÇÃO

    12

    discursivas, do poder e da resistência, bem como das questões epistemológicas e ético-políticas

    contrapostas as consequências de um relativismo do tipo Hayden White. No terceiro capítulo

    analisamos a apropriação recíproca, o “espaço com”, entre Foucault e Paul Veyne, em torno da

    questão da verdade, do regime de verdade. O que interessava ao final da dissertação, de maneira

    similar ao que havia ocorrido quando do final da monografia, não era o que havíamos

    descoberto de Foucault após repassadas leituras, mas aquilo que ainda estávamos desvendando.

    Os últimos cursos, os últimos ditos e escritos, o que dele podíamos retirar a partir e em seguida

    aos últimos dois anos da década de setenta.

    Neste relato está a nossa primeira ficcionalização neste trabalho: essa narração

    retrospectiva só é verdadeira no jogo de uma memória, por isto carregada de uma pessoalidade

    que, todavia, vai sempre para fora dela mesma, para os acontecimentos que nos abalaram. É

    claro que as leituras não se deram na sequência cronológica que estabelecemos, como se

    percorrêssemos metodicamente e por datas o pensamento de Foucault. Entretanto, podemos

    dizer que realmente os focos de interesse (a questão de uma análise histórica da verdade, a

    questão do poder, a questão da ética) foram se mostrando mais ou menos como apresentamos

    acima, sequencialmente. Nessa tese nos consideramos ainda provocados por esse pensamento.

    Nos sentimos instigados pelo que na leitura e releitura de Foucault força as janelas para pensar

    a nossa atualidade. É um trabalho na travessia de pensamentos e paixões.

    A curiosidade historiadora insistente se fez sentir nesse trabalho na procura de encontrar

    o campo a partir do qual Foucault podia enunciar suas questões, assim como na busca do

    impacto desse pensador em outros meios, em outras pessoas, na sua difusão. Foucault

    ultrapassou os diques universitários, foi além de uma reverberação na intelectualidade brasileira

    e, tendo esse ultrapassamento em vista, podemos vê-lo aparecer como personagem de jornais,

    mesmo que, dado o teor de erudição do seu trabalho, os interlocutores acadêmicos sempre

    apareçam para opinar. Procurando os indícios de Foucault em alguns periódicos e sua discussão

    em alguns livros e artigos que se tornaram referências para pensá-lo no Brasil, procuramos

    dialogar e entender não exatamente o tempo que nos precede, afinal o tempo não espera

    ninguém, mas o tempo que, para nós, se torna o antes e o depois. Nessas margens, entre as quais

    fabricamos a História, procuramos aquilo que possibilita o nosso próprio pensar, com a

    esperança que dessa excursão possamos voltar pensando de outra forma.

    A trama desse trabalho pode se dar a ler como um jogo. No xadrez se exige cautela,

    mas às vezes os riscos devem ser maiores do que as funções definidas, os movimentos

    preestabelecidos feitos em um tabuleiro de jogadas virtualmente infinitas. O interessante no

    xadrez é que se pode manter uma notação dos lances feitos e, posteriormente, reconstituir e

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    13

    analisar uma partida. Pensamos este trabalho como uma composição em que as peças estão

    distribuídas de uma maneira que ao final do jogo possamos acompanhar passo a passo o que foi

    feito. Entretanto, para chegar a este resultado – que não cabe a nós, se não a vocês, dizer se foi

    satisfatório –, nos arriscamos em algumas manobras. Nelas existem enormes riscos: de

    conduzirmos mal a distribuição ou de perdermos suas peças; de nos tornarmos herméticos ou

    nos perdermos na narrativa; de, ao tentarmos mostrar as suas complexidades, perdermos o

    movimento sistematizando o pensamento; de não cartografarmos adequadamente o espaço de

    sua recepção e de sua apropriação brasileira. Nós os assumimos.

    Sentimo-nos a vontade em adotar a imagem de um jogo estratégico como o xadrez,

    mesmo porque, o nosso personagem principal usou a figura do enxadrista ao falar sobre o seu

    trabalho em uma entrevista do final de 1978: “Tudo isso repercutia, um pouco, como um peão

    em um tabuleiro, que mexemos de casa em casa, às vezes em ziguezague, às vezes saltando,

    mas sempre sobre o mesmo tabuleiro...”.2 Nós podemos compreender o tabuleiro em que

    Foucault se movia como um plano de composição de peças que não tentam chegar ao cerne de

    um problema (verticalizar para chegar a uma presumida origem), mas mostrar as inúmeras

    questões que estão envolvidas na constituição desse problema. Estendendo seu trabalho sobre

    um tabuleiro entendemos ainda mais nitidamente o que ele falou a respeito da sua maneira

    horizontal de proceder no curso do Collège de France de 1979 (Nascimento da biopolítica):

    “...como vocês sabem, sou como o lagostim, ando de lado...”.3 Um plano que expande suas

    dimensões acrescentando outros problemas, tramando com outras preocupações, os quais

    podem ocasionar terremotos, pequenos tremores, mudanças de posições e de perspectiva de

    jogo no próprio tabuleiro. Suas jogadas são de risco. O tabuleiro se arrisca junto com suas peças.

    Declaremos nossas intenções. Primeiro explicaremos o nós, que predomina sobre outras

    duas formas tão boas quanto, o eu e o diz-se. O nós neste trabalho não serve para neutralizar a

    enunciação da questão, não instaura um discurso em que, quem enuncia, está numa posição

    superior ao se aferrar a uma pretensa enunciação científica consensual. Escolhemos a primeira

    do plural no lugar da primeira do singular, pois sentimos na voz de quem aqui fala um coro em

    que não sabemos mais identificar solitariamente a nossa voz ou, de outra forma, porque pouco

    podemos nos desembaraçar do que nossos inúmeros interlocutores disseram. Eles nos

    multiplicam e nos forçam a pensar. Na medida do possível tentamos estabelecer, nas linhas e

    nas entrelinhas, as vizinhanças e os afastamentos. Escolhemos a primeira do plural em vez do

    verbo infinitivo (impessoal), pois queremos destacar que não almejamos o anonimato dessa voz

    2 FOUCAULT, “Conversa com Michel Foucault’, D.E. VI, 2010/1980, p. 317. 3 FOUCAULT, “Aula de 31 de janeiro de 1979”, 2008/2004, p. 107.

  • INTRODUÇÃO

    14

    que nos fala ou que fala por meio de nós. Por meio desse trabalho, que é também um exercício

    sobre nós mesmos, queremos nos singularizar, mas esse singular só pode ser um resultado que

    não é prévio ao esforço de pensar se apropriando dos outros. Ele é o que se modificou em nós

    e se dá a ler a vocês.

    Nesse trabalho estamos no meio, no entre o que Foucault falava (o pretérito imperfeito

    que nos transporta para junto dele, que nos permite acompanhar, no ledo engano de um tempo

    verbal, a enunciação como se estivéssemos no seu continuar, na sua trajetória ininterrupta), o

    que ele falou (o que no pretérito perfeito massacra a ação ao realizá-la, ao colocar entre nós e o

    nosso objeto um ponto dito instransponível e que só podemos captar indiretamente pelas

    palavras deixadas depositadas no que, agora, são fontes impiedosas), o que os jornais com seus

    interlocutores falaram e o que nós falamos nos apropriando da argumentação do próprio

    Foucault. Contamos uma história entre emotivos, incisivos, descritivos e afirmativos tempos.

    No meio de cadências que são as nossas, as dele e as das fontes.

    Se assim é, falemos desse empenho, do empenhar-se desse trabalho. Sua aposta é

    arriscada na medida em que traça combinatórias entre quatro capítulos e essas, por sua vez,

    remetem a três caminhos, que quem quiser pode chamar de hipóteses. Comecemos a nos

    explicar por estes últimos. O primeiro caminho possui dois componentes e se formula da

    seguinte maneira: para entendermos o pensamento de Foucault necessitamos de captar o campo

    de problematização que era o seu e, do mesmo modo, a maneira como formulava as suas

    questões. É a tentativa de refletir sobre a articulação do pensamento de Foucault com o domínio

    político, com sua atualidade e perceber como esta relação refluí no pensar a si mesmo. É a

    tentativa de precisar a atividade e a atitude crítica que tomam forma nesse pensamento e a

    maneira e a conduta com o qual ele é endereçado à política. O trabalho de Foucault se dá no

    meio, entre a filosofia e a história.

    O segundo caminho se refere a um campo de adversidade, no qual floresce a recepção

    e a apropriação. O que é um campo de adversidade? De acordo com Foucault, quando se definia

    um objetivo era necessário definir também “o sistema geral contra qual podia se chocar esse

    objetivo e a busca desse objetivo” e encontrar “a lógica global do conjunto de obstáculos

    inimigos ou adversários” que se tinha que enfrentar estrategicamente.4 Foucault fez esta escolha

    estratégica do adversário algumas vezes, por exemplo, quando se opôs a uma filosofia do sujeito

    que ele considerou podermos encontrar no existencialismo, na fenomenologia e no marxismo

    ou, ainda, quando constituiu sua perspectiva confrontando certas categorias que localizou na

    4 FOUCAULT, “Aula de 7 de fevereiro de 1979”, 2008/2004, p. 146.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    15

    história das ideias. Mesmo que em certos momentos os seus adversários fossem claros dentro

    do panorama francês (Sartre, Merleau-Ponty, certos marxistas etc.), eles não eram, na maioria

    das vezes, nomeados. Alguns podiam dizer que era um aristocratismo intelectual que não

    reconhecia alguns pensadores como seus interlocutores; outros, que fazendo análises históricas

    ele evitava instalar suas discussões histórico-filosóficas dentro de debates filosóficos, os quais

    considerava infrutíferos; e o próprio Foucault podia dizer que a maneira de abordar um outro

    pensamento era utilizando a técnica da pilhagem interessada: “Os pensamentos, os discursos se

    organizam em sistemas. Mas é preciso considerar esses sistemas como efeitos internos de poder.

    Não é a sistematicidade de um discurso que detém sua verdade, mas, ao contrário, sua

    possibilidade de dissociação, de reutilização, de reimplantação alhures”.5 O que achamos

    pertinente para a tese é que tendo tomado os outros neste campo, Foucault também foi recebido

    em um campo de adversidade por eles.

    O caminho aberto consiste em captar as diferenças entre o momento do pensamento de

    Foucault e a sua recepção em alguns periódicos e em parte da intelectualidade brasileira. Na

    década de setenta – nos pronunciaremos sobre ela no terceiro capítulo – existiu uma demanda

    por um Foucault estruturalista quando, de fato, ele já havia se afastado de algumas das suas

    preocupações em comum com o estruturalismo. E, em seguida, a requisição de um Foucault

    teórico do poder, no momento em que ele estava repensando as relações de poder por outra

    grade analítica que não aquela pressuposta nesta alegada teoria. São leituras informadas em boa

    parte pelas discussões francesas sobre o trabalho de Foucault, bem como sobre as suas

    discussões com o marxismo. Enquanto que, na década de oitenta – nos pronunciaremos sobre

    ela no segundo capítulo –, essa própria recepção estava informada pelas leituras norte-

    americanas a respeito de Foucault, bem como sobre as retomadas da ideia de consenso, de um

    novo humanismo etc. Pensamos, nos termos discutidos neste trabalho, em como Foucault foi

    lido por Habermas na discussão sobre o pós-modernismo que ocorreu nos Estados Unidos, na

    Alemanha e no Brasil.

    O terceiro caminho tem relação íntima com o que falamos ao justificarmos a escolha do

    nós. Trata-se da nossa própria apropriação de Foucault buscada junto a tantos outros que dele

    se apropriaram, o que nos faz pensar na diferença que almejamos alcançar ao final desta tese.

    São apropriações feitas por Gilles Deleuze, Felix Guattari, Roberto Machado, Hubert Dreyfus,

    Paul Rabinow, Jürgen Habermas, Didier Eribon, José Guilherme Merquior, Sérgio Paulo

    Rouanet, Gérard Lebrun, Renato Janine, Margareth Rago, Antônio Cavalcante Maia, entre

    5 FOUCAULT, “A extensão social da norma”, D.E. VII, 2011/1976, p. 398.

  • INTRODUÇÃO

    16

    tantos outros. Diante delas tomamos a atitude de compreendê-las no que elas revelam e do que

    elas estabilizam do acontecimento Foucault. Acompanhamos tais apropriações no que nos

    permitem levar a bom termo a seguinte proposição: Foucault é um cético sui generis e seu

    ceticismo vem através de uma atividade crítica e uma atitude crítica que consistem, juntas, na

    sua ética do intelectual. Uma ética que toma forma em um êthos: numa forma de ser e de se

    conduzir que tem como objetivo não se manter o mesmo.

    Isso é Foucault!? Obviamente, não e sim. É um Foucault possível e um Foucault que

    devém. O que nos interessa nessa derivada (que não o entende como alguém que percorreu um

    caminho rumo a um ponto final) não é a domesticação de Foucault, não é enunciar a lei que

    rege ao mesmo tempo a existência e a obra, mas é o que nessa composição tramada por nós

    permite que vejamos muitas coisas do seu trabalho. Enxergar suas possibilidades e

    potencialidades de uma maneira que elas mantenham as linhas de fuga que ele mesmo preparava

    para si. Além do mais, nos interessa sobremaneira os problemas que o seu trabalho enfrentava,

    pois pensamos que as ferramentas que ele legou servem para diagnosticar e abrem a

    possibilidade de intervir nas problemáticas contemporâneas.

    Os caminhos rascunhados, façamos o nosso jogo da amarelinha, uma vez que esta tese

    é, sobretudo, o se estender por leituras que se encontram e que se dão a ler por ao menos duas

    combinações possíveis. Tais combinações não pretendem indicar os caminhos de leitura dessa

    tese (primeiro esse, depois aquele, apesar de não barrar esse caminho), mas sim pontuar

    questões que perpassam todos os capítulos, dando sinalizações para as linhas que as enredam

    numa mesma trama. Eis a primeira combinação, o primeiro roteiro: o primeiro item do primeiro

    capítulo (Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado) é

    um desenho de Foucault como jornalista e conversa com o terceiro item deste mesmo capítulo

    (Pois desse lado do muro, o jogo é tão duro: o si e os outros do governo), que desenha um

    Foucault militante. Em ambos os itens vemos o endereçamento de questões para a política do

    seu tempo. O segundo item do primeiro capítulo (Atmosfera se cria: forja de um norte para

    a questão do sujeito) é um desenho de Foucault professor e conversa com o quarto item deste

    mesmo capítulo (A verdade na coragem: o navegador e batedor dos discursos), que desenha

    um Foucault estilista de si. Em ambos os itens vemos se apresentando a questão da atividade e

    da atitude crítica no dizer-a-verdade na função docência e, depois, no dizer-a-verdade público.

    Nesta primeira combinação, o primeiro capítulo (“São os passos – são os passos é que fazem

    o caminho”: afirmando e dobrando as linhas) é aquele com os quais os demais irão dialogar.

    Neste concerto almejado, apresentamos o segundo capítulo (Variações da modernidade

    em Foucault: estar a caminho) como diálogo com o segundo e o quarto itens do primeiro

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    17

    capítulo. No segundo capítulo pretendemos, ao precisar o que é essa atividade e atitude crítica

    que delineamos no primeiro, destacar de onde Foucault pôde falar, desse terreno em que a

    História se entremeia com o pensamento (itens 2.1: “Nosso arsenal é o canto. Metal? São

    timbres que tinem”...: o atual e 2.4: “Quando nada acontece, há um milagre que não

    estamos vendo”: o êthos moderno), bem como de onde aquele campo de adversidade que se

    constituiu contra ele fala (itens 2.2: Uma recepção polêmica: Foucault e o pós-modernismo

    e 2.3: O anti-humanismo e o formalismo como composição do pós-moderno).

    O terceiro capítulo (Estando provisoriamente aí, onde você não me espera) aparece

    como diálogo com o primeiro e terceiro itens do primeiro capítulo. Ele pretende ver por meio

    de quais grades, de que forma, Foucault envia suas questões à política. Para isso detecta,

    inicialmente, esse movimento em que ele distancia-se das suas preocupações da década de

    sessenta e preocupa-se com o desdobramento político da sua prática analítica. Depois,

    almejamos perceber como Foucault experimenta as diferentes maneiras de entender o poder: na

    grade jurídica da repressão, na grade da guerra e na grade da governamentalidade. Como nosso

    interesse recaí no trabalho de Foucault a partir de fins da década de setenta tivemos que ver esse

    trabalho se apartar, principalmente, do que foram seus pressupostos nos anos imediatamente

    anteriores. O que significa dizer que demos destaque as duas grades que trazem as maiores

    contribuições do que Foucault entendeu por relações de poder: a beligerante e a governamental,

    além da forma que a questão da resistência toma nesse deslocamento.

    O quarto capítulo (Sempre recomeçar: nas dobras paixões que não tiveram fim), por

    sua vez, dá continuidade ao primeiro capítulo. No primeiro, três dos quatro desenhos esboçados

    de Foucault são empreendidos junto a discussão dos seus últimos três cursos no Collège de

    France e, no quarto capítulo, buscamos situar o terreno de seus dois últimos livros. Em ambos

    esquadrinhamos as suas entrevistas, os seus artigos e suas conferências da década de oitenta. O

    quarto capítulo leva as discussões dos três capítulos anteriores aos últimos Ditos e escritos de

    Foucault, para que, baseando-nos neles possamos avaliar as consequências do seu trabalho no

    plano do ceticismo, da ética do intelectual e da relação com a política. Por fim, o capítulo

    encaminha as análises para questões sensíveis do pensamento foucaultiano. Essas são algumas

    combinações possíveis a partir daqueles que se interessam pelo percurso tracejado do

    pensamento de Foucault. Devemos reafirmar que no nosso trabalho privilegiamos os caminhos

    traçados a partir de fins da década de setenta.

    Aqueles que, no entanto, se interessam mais pela sua recepção podem distribuir as peças

    de outra forma. Eis uma outra combinação, um segundo roteiro. O segundo (Uma recepção

    polêmica: Foucault e o pós-modernismo) e terceiro (O anti-humanismo e o formalismo

  • INTRODUÇÃO

    18

    como composição do pós-moderno) itens do segundo capítulo (Variações da modernidade

    em Foucault: estar a caminho) trazem a apropriação de Foucault nos debates dos anos oitenta

    e avançam – somente no que concerne ao debate do pós-moderno – a década de noventa. Essas

    discussões trazem consigo a ideia de um Foucault estruturalista/formalista/anti-humanista e

    teórico do poder e debatem suas relações com a História. Estes pontos conversam com sua

    recepção na década de setenta e, portanto, neles temos uma interlocução entre o segundo e

    terceiro capítulos. No terceiro capítulo (Estando provisoriamente aí, onde você não me espera)

    vemos sua recepção como parte do estruturalismo, como pensador da História, como um

    teorista do poder e suas relações com o marxismo, principalmente, nos três primeiros itens (item

    3.1: Se diz em tom de novidade e/ou de ironia: Foucault está na moda, item 3.2: Uma valsa

    desconcertante com Marx e o marxismo e item 3.3: Amplia a ambiência política: eis que

    surge uma Microfísica) Além disso, nesse terceiro item fizemos uma espécie de breve

    recenseamento das obras de Foucault dada a ver nesses jornais, e, também, da obra daqueles

    que dele se aproveitaram ou que o confrontaram, lançadas no Brasil durante a década de setenta

    e oitenta.

    A década de oitenta aparece novamente no quarto capítulo, item 4.2 (Ser pontual num

    encontro em que se pode faltar: pelas frestas se desenha uma ética), quando apresentamos

    algumas das recepções dos dois últimos livros de Foucault no Brasil, momento em que alguns

    interlocutores diziam existir uma “volta” do sujeito no seu trabalho. Como nosso interesse recaí,

    igualmente, na força do pensamento de Foucault para o debate de hoje, nós chamamos alguns

    interlocutores mais recentes para com eles apresentar os problemas que nos inquietam. Isso se

    dá no quarto item do terceiro capítulo (Pensando o governo hoje: Estado, segurança e

    controle) e no terceiro item do quarto capítulo (Se arriscar na prática da liberdade: um

    incrédulo contemporâneo). Com eles podemos ver até onde se pode ir com Foucault, bem

    como algumas discussões que hoje o “ultrapassam”: são pessoas como Giorgio Agamben, Hardt

    e Negri, Judith Butler, Paulo Vaz, Wanderson Flor do Nascimento, entre outros.

    Como tentativa de escapar às discussões excessivamente densas ou detalhadas que

    poderiam evitar o bem fluir da narrativa, nós escolhemos o espaço das notas de rodapé como

    lugar de especificação das leituras que fizemos, dos nossos débitos – dos momentos em que a

    apropriação se torna muito nítida e que a “dívida” deve ser paga –, de outras leituras tão

    interessantes quanto aqueles que privilegiamos ou, ainda, como maneira de exprimir lonjuras.

    Em suma, espaço de dádivas que os outros nos dão pelo pensamento e que nos servem de

    andaimes para constituir nossa própria reflexão. É um espaço também de explicar essa ou

    aquela escolha, enriquecer uma discussão ao mostrar sua amplitude, seus desvios, adensar

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    19

    certos pensamentos retirando-lhes a superficialidade que o alvo de nossa leitura acabou

    impondo.

    Dados os três caminhos, a construção das duas combinações possíveis e a exposição de

    uma e outra precaução, cabe-nos agora expor os riscos. Primeiro, nos arriscamos a imobilizar

    um pensamento móvel e a tratar como autor quem nunca gostou da individualização desse tipo

    de função (que reduz as diferenças a unidade) e incessantemente solicitou o anonimato como

    signo da escrita e como índice da atividade transformadora de si. Neste sentido, muitas vezes

    se parte de um falso problema: ao apontar que a função autor tal como funciona na nossa cultura

    e sociedade reconduz a identidade, Foucault estava contestando a necessidade dessa inscrição.

    Entretanto, ninguém é absolutamente livre dessas inscrições mesmo quando delas deseja

    escapar. Além disso, Foucault, reconhecendo isto, inúmeras vezes retomou seu caminho

    mudando-lhe a direção ou indicando sua coerência retrospectiva. Jogo da identidade e da não

    identidade que tentamos captar ao compor um quadro de desenhos numa série de correlações e

    dominâncias. Mesmo assim nos impõe a questão: como proceder para evitar congelar o discurso

    de Foucault ao mesmo tempo em que o reconhecemos numa trajetória? Questão que Antônio

    Cavalcanti Maia colocou nos seguintes termos:

    Ora, todos aqueles que enfrentaram a tarefa de procurar uma interpretação

    integradora do trabalho de Foucault encontraram-se em dificuldades. Uma

    obra marcada pelo signo do deslocamento, deliberadamente elusiva – de um

    pensador que não se citava [e citava os outros principalmente para aclarar

    alguma perspectiva histórica] – situando-se, por vezes, às margens do discurso

    filosófico, em um original imbrincamento de filosofia e história.6

    Não tentamos integralizar Foucault, mas traçamos um percurso que podemos percorrer.

    Afinal, mesmo quando tentamos destruir um desenho, reduzi-lo a pedaços, fazendo coisas tão

    opostas a ele que não os reconhecemos, ele possui seus traços, seus rastros, as linhas dos seus

    passos. Apostamos em dois procedimentos para andar por essa trajetória: tratamos os

    acontecimentos discursivos que ele pronunciou como parte de uma estratégia, de uma

    resistência às coisas que considerava intoleráveis – é o discurso como inscrição estratégica. Por

    isto, aparecerá no trabalho o uso constante de entrevistas, artigos, conferências que indicam os

    problemas que o incomodavam e que ele visava nestes pronunciamentos. Segundo, inserimos

    Foucault dentro das problemáticas que eram as dele. Estudamos internamente os problemas que

    sentimos serem recorrentes nos seus ditos e escritos, pelos quais podemos pensar os campos de

    afinidade e de adversidade que eram os seus. Esse tipo de trabalho reivindica mais a coerência

    6 MAIA, “Deleuze leitor de Foucault – elementos de uma crítica da cultura contemporânea” In NETO E RAGO

    (orgs.), 2008, p. 57.

  • INTRODUÇÃO

    20

    do que a incoerência de um pensamento, porém, desde que pensamos que, nessa tese, esses dois

    adjetivos só fazem sentido dentro de uma estratégia, talvez entendamos que algumas coisas que

    são reivindicadas como incoerentes são, na verdade, uma posição que tem sua coerência quando

    pensamos em quem fala e para quem, qual a luta em que se engaja e qual problema que visa. É

    uma maneira de evitar polemizar: nós não detemos a chave da verdade da “obra”, pois não

    acreditamos que ela exista, portanto, analisar o percurso de Foucault é uma maneira de entendê-

    lo sem pretensão de legitimar o que se sabe, sem finalizá-lo e sem recorrer ao papel do

    polemista. De igual maneira, não pretendemos polemizar o pensamento do outro com o qual

    ele se opõe ou que se opõe a ele, mas, quando esse vem à tona, indicamos o solo de onde fala.

    No fundo, cartografamos sua trajetória, rascunhamos alguns desenhos possíveis que

    surgem dela, sem com isto reivindicar a coerência de um sistema. Na verdade, evitamos tal

    sistematização, mostrando a mobilidade deste pensamento, tramado em seus impasses, suas

    maneiras de ultrapassar o que pensava. Usamos, para nos situarmos dentro dos seus percursos,

    inúmeros textos de períodos diferentes, o que demandou precauções. Daí nosso cuidado em

    apresentar a data dos textos utilizados (situa-se assim os problemas e identifica-se o momento

    em que assinalamos as mudanças), a data de sua publicação na França e no Brasil (o que ajuda

    a imaginarmos os começos de sua reverberação mais ampla em cada espaço), nosso esforço

    para facilitar ao leitor a localização de cada discurso utilizado entre os dez volumes dos Ditos

    e escritos traduzidos no Brasil e, igualmente, a localização das inúmeras aulas escolhidas nos

    cursos do Collège de France que trabalhamos.

    Um outro risco é não levar a bom termo nenhuma das duas combinações: nem a análise

    interna de um pensamento nem o espaço de sua recepção e apropriação. Aceitamos-o também,

    uma vez que até mesmo uma estratégia do contorno – que não é a nossa – pode esbarrar no

    incontornável e, além disso, parece ser uma agressão muito grande a nós mesmos não

    verticalizarmos numa leitura que nos traz a paixão. Um afecto que consideramos nos ser

    essencial e, acreditamos, sem a qual esta tese não poderia ter sido escrita. O perigo está em que

    fizemos esta leitura intensiva tendo principalmente em conta certo período do trabalho de

    Foucault (1978-1984). No entanto, isto deve ser mitigado, visto que a todo momento retomamos

    outros períodos do seu percurso indicando as descontinuidades respectivas. Nesse sentido

    experimentamos intensamente as palavras de Deleuze:

    Quando se admira alguém não se seleciona, pode-se preferir tal ou qual livro

    a tal outro, mas toma-se assim mesmo o todo: percebe-se que o que parece um

    tempo menos forte é um momento absolutamente necessário ao momento

    seguinte. [...] É preciso tomar a obra por inteiro, segui-la e não julgá-la, captar

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    21

    suas bifurcações, estagnações, avanços, brechas, aceitá-la, recebê-la inteira.

    Caso contrário não se compreende nada.7

    O outro perigo está na nossa leitura extensiva das fontes jornalísticas, levando em conta

    principalmente o debate travado, sem adentrar nas linhas editorias, nas perspectivas políticas

    de cada um dos quatro jornais analisados. Percorremos os seguintes periódicos: Jornal do

    Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de. S. Paulo e O Globo. Contudo, isto também deve ser

    mitigado, inicialmente porque existem indicativos do contexto político ao longo das análises.

    O principal motivo, no entanto, é que seria necessário um outro trabalho, um que escolhendo

    apenas a recepção e a apropriação deixasse Foucault escapar por todos os lados. Nele ele só

    apareceria insinuado – para nós uma incapacidade que se tornaria um fardo –, ou, se não, que

    entregássemos um trabalho de dois tomos. Sentimo-nos confortáveis com nossa escolha, pois

    ela permite seguir essas duas linhas e exacerbá-las se for o caso, e é tão somente por excessivo

    escrúpulo que justificamos o trabalho feito comparando-o com o que ele podia ser, o exercício

    de outros.

    Um terceiro risco é que consideramos essa massa de palavras ditas e escritas sem delas

    separar a importância, sem discriminar graus de pertinência. No entanto, sobre essas inúmeras

    peças que compõe seu trabalho, o próprio Foucault disse serem importantes reflexões metódicas

    sobre “um livro terminado, suscetíveis de me ajudar a definir um outro trabalho possível”.8

    Neste ponto seguimos à risca uma percepção que temos quando adentramos a imensa leva do

    que disse e escreveu Foucault. Deleuze o percebeu bem:

    Há algo essencial de um extremo a outro da obra de Foucault: ele sempre

    tratou de formações históricas (de curta duração, ou no final, de longa

    duração), mas sempre em relação a nós. Ele não tinha necessidade de dizê-lo

    em seus livros, era por demais evidente, e deixava para dizê-lo ainda melhor

    nas entrevistas que dava aos jornais. É por isso que as entrevistas de Foucault

    fazem parte integralmente de sua obra.9

    Os ditos como dardos endereçados a nossa atualidade. Sobre a importância de considerar

    este corpus de Foucault, Paul Veyne tem a mesma opinião: “Citarei abundantemente os seus

    Ditos e Escritos porque ele aí evoca os fundamentos da sua doutrina com mais frequência do

    que o faz nas suas obras principais”.10 Renato Janine viu, por sua vez, o jogo de entonações

    (ênfases, atenuações, articulações) que a leitura assume para o próprio Foucault.11 E, para nós,

    7 DELEUZE, “Rachar as coisas, rachar as palavras”, 1992/1986, p. 107-108. 8 FOUCAULT, “Conversa com Michel Foucault”, D.E. VI, 2010/1980, p. 290. 9 DELEUZE, “Um retrato de Foucault”,1992/1986, p. 131. 10 VEYNE, 2009/2008, p. 13. 11 “Os ensaios de Foucault”. Renato Janine Ribeiro. Folha de S. Paulo. (12/07/1996).

  • INTRODUÇÃO

    22

    acompanhar “seu” pensamento é alterar seu acento de acordo com os problemas para os quais

    entendemos que ele o remetia, para as questões do seu tempo. Podemos lembrar também o que

    Canclini expôs a respeito de Jorge Luis Borges: que “deve-se levar a sério essas entrevistas e

    declarações ocasionais de Borges que, de um modo oblíquo, são parte de sua obra”, pois Borges

    entendeu que “a fortuna crítica, a rede de leituras que se fazem de um escritor, é construída

    tanto em relação à obra como nessas outras relações públicas que propiciam os meios massivos.

    Então, incorpora à sua atuação como escritor um gênero específico desse espaço aparentemente

    extraliterário: as declarações aos jornalistas”.12 Tal como em Borges, as declarações de Foucault

    continuavam sua obra. No entanto, de uma forma diferente, pois Borges fazia desse outro

    espaço discursivo um lugar de jogo em que podia a cada momento dizer uma ou outra coisa.

    Enquanto que Foucault, não sendo literato, se responsabilizava pelo que dizia, compunha com

    ou se afastava dos livros efetivamente lançados, dava indícios de um trabalho em andamento.

    Um quarto risco é a acusação de que não nos desvencilharmos do que em Foucault

    informa o nosso próprio pensamento. Nessa tese consideramos Foucault nosso contemporâneo,

    contemporâneo do nosso pensar. A contemporaneidade não é somente um índice geracional,

    ela pode vir, por exemplo, do exterior: algumas características em comum que, mesmo

    negativas, venham juntar numa mesma turma indivíduos diferentes. Ela pode ser rotativa, no

    sentido que, dependendo do aspecto considerado, da estratégia de luta em comum, pode-se ser

    considerado contemporâneo de um outro, de um movimento, e não sê-lo num momento

    posterior. Pode-se ser contemporâneo pela afinidade de pensamento de quem tem vários anos

    a mais do que você ou muitos anos a menos. Entretanto, nesse trabalho consideramos que

    quando dizemos que “o” pensamento de Foucault é nosso contemporâneo queremos dizer,

    principalmente, que percebemos várias das lutas (os problemas teóricos e ético-políticos) que

    eram as dele como sendo ainda as nossas, na sua exasperação ou atenuação histórica. Aquilo

    que ele descortinou foi somado, reconduzido, contestado ou ultrapassado por outros, porém

    essas apropriações também fazem parte daquilo no qual ele se aventurou.

    Nesse périplo ele muitas vezes assumiu uma postura irônica a respeito do seu presente.

    Um estilo irônico, tal como ele fez funcionar, significava não levar a sério os discursos

    tomando-os por verdadeiros, como se eles enunciassem o verdadeiro. Quanto a verdade de um

    discurso, ela faz parte de um regime em que não se pode dissociar de seus efeitos de poder e

    dos mecanismos de poder que o fazem funcionar, bem como das suas reverberações na

    constituição de um “sujeito”. A preocupação deixa de ser o que é a verdade e passa a ser como

    12 CANCLINI, 2008/1989, p. 109-110.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    23

    a verdade funciona, em quais condições, para quem, com que objetivos. As perguntas são: quais

    são os efeitos de certas verdades no nosso presente? Quais os riscos das verdades que

    assumimos, que procuramos atingir, para a nossa condução? De que maneira ética podemos

    assumir o risco de abandonar as velhas maneiras de agir e experimentar outras?

    Lançarmo-nos a essas questões e aqueles caminhos com o intuito de refletirmos sobre o

    que é o nosso trabalho hoje quando pensado eticamente. O trabalho do historiador, dos mais

    diversos intelectuais e, no limiar, o do próprio pensar. É pensar uma ética do intelectual que é

    nítida em Foucault (que podemos encontrar aqui e acolá enunciadas) e pensar esta ética como

    aquilo que podemos derivar do trajeto que fizemos para ele, um caminho que só é interessante

    se capta realmente algo dele. Sobre as histórias que pretendemos narrar podemos dizer:

    A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história

    que quiser. Escolha entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e

    persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se

    fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a

    pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.13

    13 ABREU, 2007/1990, p. 227.

  • “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas

    24

    CAPÍTULO I

    “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e

    dobrando as linhas

    (“Elegia número onze”. Esconderijos do tempo. Mario

    Quintana)

    Ainda que tirados de imediato um após o outro, os

    retratos serão entre si muito diferentes.

    ("O espelho". Primeiras estórias. João

    Guimarães Rosa)

    Nestes começos difíceis, em que o caminho da escrita vai se inscrevendo em nós, é

    necessário sermos claros e apresentarmos o problema deste capítulo que se desdobrará por todo

    o trabalho. Trata-se de seguir a última linha de Foucault, aquela que concerne aos modos de

    subjetivação e que nos interpela na nossa atualidade. Um último traçado do seu trabalho que

    nos afeta de diversas formas: seja por que nele está implicado a possibilidade de uma ética do

    intelectual e de uma estética da existência; seja por que nele colocamos em questão grandes

    problemas políticos contemporâneos; seja, enfim, por que nele vários debates que nos rodeiam

    encontraram um solo lunar (cheio de crateras nas quais também podemos nos perder) para

    pensar. Como essa questão o afetou? Como apareceu essa última linha para o próprio pensador?

    Para conquistá-la ele tinha de reconquistar o inesperado. Mas como fazer nascer a surpresa

    quando já se constituiu como autoridade? Quando importa quem fala? Quando se tem atrás de

    si a importância do emissor? De uma voz que devém na própria garganta como indispensável?

    Como nessas circunstâncias deixar nascer as palavras sem voz no desfalecimento do sujeito que

    fala? Estas são absolutamente nossas questões feitas ao trabalho de Foucault, mas, antes, são

    questões que ele tornou uma prática dele. São indagações que nele concerniram a existência e

    extravasaram em uma preocupação ética que encontramos ao longo de uma de suas verticais,

    esta verticalidade que tentamos captar dentro de sua dispersão.

    Prevemos que nossas tentativas de encontrar um fio de Ariadne sempre correm o risco

    de estarem fadadas à ruína e, no entanto, o percurso que iremos fazer pode – quem sabe!? –

    trazer o inesperado para alguns leitores. Eis um trajeto ingrato, pois para suscitar imprevistos

    escolhemos inicialmente trilhar alguns caminhos já percorridos por tantos interessados neste

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    25

    personagem e, de certa forma, até mesmo previstos, para atravessando-os desembocar em

    outros menos frequentados. Vejamos como reencontrar nesse corpus – livros, ditos e outros

    escritos – a força do encontro que ficou no pensamento e que, no entanto, o abalou

    profundamente; só para revelar que tudo estava na superfície e que bastava um novo olhar para

    vê-lo. "Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina?"1 O que é encontrar?

    Sobre a arte do encontro pegamos a flecha de Deleuze, instrumento sem arrependimentos que

    nos retira a pessoalidade e nos manda para o impessoal, para o tipo de impessoalidade que

    permite que os acontecimentos nos estremeçam:

    Mas o que é, precisamente, um encontro com alguém que se ama? Será um

    encontro com alguém, ou com animais que vêem povoá-los, ou com idéias

    que os invadem, com movimentos que os comovem, sons que o atravessam?

    E como separar tais coisas? Posso falar de Foucault, contar que ele me disse

    isso e aquilo, detalhar como o vejo. Não é nada enquanto eu não souber

    encontrar realmente esse conjunto de sons martelados, de gestos decisivos, de

    idéias em madeira seca e fogo, de atenção extrema e de fechamento súbito, de

    risos e sorrisos que sentimos serem "perigosos" no mesmo momento em que

    se sente a ternura – esse conjunto como única combinação cujo nome próprio

    seria Foucault. Um homem sem referências, diz François Ewald: o mais belo

    cumprimento...2

    1.1) Transgredir os limites e insurgir contra as linhas: a irrupção do inesperado

    Aos trancos, viemos vindo.

    e já não sei se o que nos rodeia agora

    foi escolha ou solavanco.

    ("Reflexões vespertinas". Caio Fernando Abreu).

    Em 22 de fevereiro de 1969, Foucault proferiu uma conferência na Sociedade Francesa

    de Filosofia que foi sucedida por outra um pouco modificada pronunciada na Universidade de

    Búfalo, nos Estados Unidos, em 1970.3 Nestes pronunciamentos ele respondeu a um princípio

    ético – o enunciaremos a seguir – que formulou em textos anteriores e que se referem a

    apropriação de alguns temas da escrita contemporânea.4 Essas conferências funcionaram como

    retomada de algumas questões que foram desenvolvidas na problematização do livro-

    acontecimento de 1966 (de grande repercussão no círculo universitário e midiático) intitulado

    As Palavras e as Coisas e sob efeito das leituras tunisianas que fazia desde 1967. Foram parte

    anexa da peça que resultou no livro lançado no dia 13 de março de 1969 com o título A

    1 ABREU, Carta de Caio para José Márcio Penido apud DIP, 2009, p. 58. 2 DELEUZE, "Uma conversa, o que é, para que serve?", 1998, p. 19. 3 De acordo com a cronologia estabelecida por Daniel Defert, a sorte da publicação dessas conferências teve mais

    impacto sobre a teoria literária americana do que sobre o público francês de então. 4 Temas tais como: interior e exterior, apagamento do autor, jogos de linguagem etc.

  • “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas

    26

    Arqueologia do Saber. Então qual foi esse outro elemento do programa de análise das grandes

    unidades discursivas enfrentadas neste livro e apresentado naquelas conferências? O elemento

    sobre o qual Foucault discorreu foi o tipo de propriedade discursiva que é a relação com o autor

    e as diferentes formas que essa relação toma. Como ele formulou o princípio ético da escrita

    contemporânea que passa pela pergunta do que é o autor, pela indiferença a ela? Ele a

    apresentou nos seguintes termos: Que importa quem fala! Se disse ética, Foucault especificou:

    “...essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se

    escreve: ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais

    efetivamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina

    como prática”.5

    Encaremos esse elemento – a questão da autoria – com brevidade, pois conhecemos

    aquelas conferências pelo nome da primeira, “O que é um autor?”, um dito que compõe o corpus

    consagrado do que é considerado a "obra" foucaultiana, mesmo que suas implicações teóricas

    mostrem que sempre fazemos funcionar – nós inclusos – uma função autor. Consideramos a

    explicitação dessa funcionalidade como sendo boa, pois não esconde que dentro do

    empreendimento de retomar os Ditos e escritos de Foucault surgem as incoerências, os recortes

    aleatórios – os nossos e o dos nossos interlocutores – e revela, por fim, que é um trabalho tal

    qual o do ladrilhador de Abreu:

    Ladrilhar uma parede com mosaicos díspares, assim tinha sido: a metade

    direita de uma guirlanda não continuava nem completava-se na metade

    esquerda de outra guirlanda, mas numa inesperada frisa grega ou barroca,

    que também não estendia-se pelo ladrilho seguinte para definir-se num

    quadrado ou retângulo, mas dava lugar a um círculo concêntrico decepado.6

    Lembremos também que essas conferências se inscreveram no grande burburinho

    provocado pelo sucesso de vendas e midiático do livro As Palavras e as Coisas (1966), no

    grande debate que se desenvolveu na França a propósito do estruturalismo e sua oposição ao

    existencialismo. Na conferência "O que é um autor?", Foucault analisou a relação do texto com

    o autor e a individualização deste na nossa cultura tendo como divisa a frase de Beckett: "Que

    importa quem fala, alguém disse que importa quem fala"; e, tendo como grade dessa leitura,

    dois temas da escrita contemporânea: primeiro, sua libertação do mote da expressão que

    proclama a interioridade, uma vez que a escrita se tornou um jogo de signos que é comandada

    menos pelos significados do que pelo significante e, além disso, passou a ser experimentada

    5 FOUCAULT, “O que é um autor?”, D.E. III, 2001/1969, p. 268. 6 ABREU, 2007/1990, p. 65.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

    27

    nos seus limites, margens pelas quais o sujeito escapa para fora da escrita. E, segundo, a

    escritura não serve mais para exorcizar a morte, pois a escrita se tornou sacrificial para o autor,

    no sentido de que na sua escritura ele se despe dos signos que marcam sua individualidade.

    Retenhamos da análise do orador o que o nome do autor faz: ele indica, descreve,

    designa, classifica e caracteriza uma maneira específica de discurso, da sua recepção, da sua

    circulação, do seu funcionamento e do seu status na sociedade. Também aprendemos que ao

    autor cabe algumas funções: sua funcionalidade passa por sua apropriação por outros, no que

    ela tem de articulação com os sistemas jurídicos e institucionais; pela sua atribuição a

    indivíduos através de várias operações específicas; pela forma historicamente diversa em que

    se constrói uma instância profunda autor e suas relações com 'sua obra'; e que, diferente dos

    textos ordinários, nos textos consagrados os signos remetem o autor não ao locutor real e ao

    espaço-temporal do seu discurso, mas a uma pluralidade de ego (vários alter egos) e posições

    que se pode ocupar neste discurso. Em suma, uma função, uma funcionalidade e um

    posicionamento autor antes do que um sujeito autor. Podemos direcionar a questão da autoria

    para o próprio Foucault, que em uma entrevista sobre As Palavras e as Coisas dois anos antes

    disse:

    Meu livro é uma pura e simples ficção: é um romance, mas não fui eu que o

    inventei; foi a relação de nossa época e sua configuração epistemológica com

    toda uma massa de enunciados. Embora o sujeito esteja de fato presente na

    totalidade do livro, ele é apenas o "se" anônimo que fala hoje em tudo aquilo

    que se diz.7

    Não foi a última vez que Foucault disse que aquilo que fez foi ficção. Nesta entrevista

    ele compreendeu o seu trabalho a partir da linguagem do romance. Uma vez que o disse

    esclareçamos o que ele entendeu por este adjetivo (ficção) e sua adjetivação (ficcionalização).

    A linguagem da ficção – de acordo com um artigo de 1966 sobre o trabalho de Blanchot – é,

    em um sentido menos comum,8 aquela que tem a potência de deslindar as imagens, de aliviá-la

    7 FOUCAULT, "Sobre as maneiras de escrever a História", D.E. II, 2005/1967, p. 69. 8 Podemos ter uma ideia, pelo próprio Foucault, de um sentido mais comum – sentido que não é o que ele usa

    corriqueiramente – de ficção quando num artigo de crítica literária identificou seu significado comparando-o com

    o da fábula: se a fábula é o que é contado (os episódios, as personagens, as funções que eles exercem na narrativa,

    os acontecimentos), a ficção, por sua vez, não é nada mais que os diversos regimes segundo os quais a narrativa é

    narrada: “postura do narrador em relação ao que ele narra (conforme ele faça parte da aventura, ou a contemple

    como expectador ligeiramente afastado, ou dele esteja excluído e a surpreenda do exterior), presença ou ausência

    de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas, assegurando sua descrição objetiva; engajamento de toda

    narrativa na perspectiva de um personagem, de vários, sucessivamente, ou de nenhum, em particular; discurso

    repetindo os acontecimentos a posteriori ou duplicando-os à medida que eles se desenrolam etc. A fábula é feita

    de elementos colocados em uma certa ordem. A ficção é feita das relações estabelecidas, através do próprio

    discurso, entre aquele que fala e aquele do qual ele fala. Ficção, ‘aspecto’ da fábula” (FOUCAULT, “Por trás da

    fábula”, D.E. III, 2001/1966, p. 210).

  • “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas

    28

    de sua sobrecarga, de explodi-las e dispersá-la (o interstício das imagens). Esse espaço que é

    menos da imagem do que da sua transformação, do seu deslocamento, abre para pensar um

    fictício que “não está nunca nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilhança

    do que está entre eles: encontros, proximidade do mais longínquo, absoluta dissimulação lá

    onde nós estamos".9 A literatura é neste sentido uma distância aberta na linguagem que mostra

    que não existe verossimilhança, que ela é construída na repetição, na reduplicação da

    linguagem. Uma verossimilhança pressuporia afiançar-se numa verdade fundamental que a

    alicerça. Guardemos então que a questão literária trabalhou na obra do próprio Foucault

    mostrando que não se tratou de verossimilhança nestas histórias fictícias que ele fez e que, no

    seu trabalho, as verdades apareceram dentro de um regime histórico em que elas surgiram e

    tiveram seus efeitos.

    Veremos ao longo da tese que a relação de Foucault com o seu próprio discurso e com

    a categoria ficção foi retomada posteriormente, mas em outros termos. De qualquer forma, o

    interesse desta análise para este trabalho não é tanto cercar o problema da autoria e sim a

    passagem da problemática do autor para a do sujeito, no que essa passagem comporta de

    abertura para pensar os privilégios do sujeito – aquele entendido como indivíduo livre doador

    de sentidos – e apresentá-lo de outra maneira, ou seja, como função variável e complexa do

    discurso. Foucault propôs uma análise que indica as condições e formas pelas quais um sujeito

    pode surgir na ordem de um discurso, sendo a função autor só umas das possíveis especificações

    da função sujeito. Naquelas conferências o orador apresentou até mesmo o sonho de um mundo

    em que todos os discursos desenrolariam no anonimato, em que certas questões não fariam mais

    sentido: "Quem realmente falou? Foi ele e ninguém mais? Com que autenticidade ou

    originalidade? E o que ele expressou do mais profundo dele mesmo em seu discurso?". Em vez

    dessas questões que partem de um sujeito originário, Foucault sugeriu outras: "Quais os modos

    de existência desses discursos? Em que ele se sustentou, como pode circular, e quem dele pode

    se apropriar? Quem pode preencher as diversas funções de sujeito?".10 Em vez de indicação, de

    descrição, nestas últimas interrogações esboça-se uma experiência que, a partir da questão do

    autor, leva o sujeito até o limite. O nosso interesse recairá sobre essas experiências limites.

    O que nelas suscita nosso empenho? Trata-se de uma experiência de desubjetivação que

    deixa entrever um tema que nos acompanhará durante toda a escrita, aliás, um mote que envolve

    a nós que recortamos e selecionamos dentro de todas aquelas palavras pronunciadas e escritas

    as que teceremos em desenhos possíveis do pensador. Essa recusa da individualização pela

    9 FOUCAULT, "O pensamento do exterior", D.E. III, 2001/1966, p. 225. 10 FOUCAULT, "O que é um autor", D.E. III, 2001/1969, p. 288.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

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    autoria – tipo de indexação que permite que o autor assim definido seja punido quando

    ultrapassa os limites dos discursos estabelecidos – apareceu em Foucault junto a um outro tema

    que exploraremos, ou seja, aquele da voz do qual tão lindamente falou na sua famosa aula

    inaugural no Collège de France:

    Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem

    além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar

    uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu

    encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus

    interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um

    instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de

    quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita

    lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível.11

    Ambos os temas – renúncia de uma individualização e reivindicação de uma voz

    anônima – quando dobrados sobre Foucault agita o solo deste trabalho como sendo instável,

    por mais que a narrativa – nos seus diversos momentos – o produza como estável, como sendo

    quase retratos fixos. Não queremos reduzir as diferenças do nosso personagem, provê-lo de

    uma identidade, mas nos debruçar sobre seu pensamento requer traçar platôs, por mais instáveis

    que possam ser. Consideramos que a própria pluralidade de desenhos que forneceremos –

    escolhemos a palavra desenho por ter tão próxima de si uma ideia de apagamento, daquilo entre

    o grafite e a borracha, um traço que pode ser borrado ou colocado em série ou dar relevo a, e

    que é mais fluído do que a palavra retrato e o sentido de imobilidade que comporta – nos

    conduzam a pensá-los e repensá-los como sendo, no máximo, possíveis caminhos (desenhos de

    um pensamento andarilho). Dois temas do seu pensamento nos servirão de sinalização para as

    trilhas que percorreremos: sua reflexão envolve aspectos de preocupação (quanto à atualidade

    de onde fazemos as perguntas para o passado) e de crítica (quanto às diferenças e às

    semelhanças entre o presente e o passado e seus efeitos). Ambos componentes que achamos

    indeléveis do trabalho contemporâneo em História.

    Daremos agora um exemplo de como pretendemos trabalhar sobre um pensamento que

    procurou se deslocar e se manter o mais próximo possível do anonimato. Se acima

    mencionamos as leituras tunisianas de Foucault, iremos agora apresentá-las: Dumézil, Trotsky,

    Wittgenstein, os analistas ingleses, Panofsky, Nietzsche, Beckett, Rosa Luxemburgo, Che

    Guevara e, até mesmo, textos norte-americanos do grupo panteras negras (sobre estes últimos

    disse: "Eles desenvolvem uma análise estratégica liberada da teoria marxista da sociedade").12

    11 FOUCAULT, A ordem do discurso, 2005/1970, p. 5-6. 12 DEFERT, "Cronologia”, D.E. I, p. 28.

  • “São os passos – são os passos é que fazem o caminho”: afirmando e dobrando as linhas

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    Na sua variedade estas leituras expõem um fato sobre a produção de Foucault à época e,

    lateralmente, sobre sua recepção. É que ele produziu curtos-circuitos naqueles que tentaram

    compreendê-lo, mesmo nos estudantes tunisianos, que Eribon disse adorá-lo. Por um lado,

    nestes anos sessenta foi avesso e mesmo hostil ao marxismo; utilizou-se de Nietzsche, que na

    época ainda estava envolto pelos problemas do seu uso nazista;13 e, na França, Foucault foi

    interpretado e atacado como parte do pensamento tecnocrata de direita que massacrava o sujeito

    individual e coletivo. Por outro lado, este tipo de interpretação contrapõe-se as atitudes de um

    pensador que repudiou as reações violentas – prisões e torturas – utilizadas pelo governo

    tunisiano em relação aos tumultos universitários.14 Mais do que isto, ele se envolveu fisicamente

    com as revoltas e as aspirações estudantis tunisianas e algumas daquelas leituras mencionadas

    acima indicam que se envolveu intelectualmente nelas. Foucault colaborou com suporte

    logístico (abrigando estudantes em sua casa) e financeiro (escondendo o mimeógrafo e

    imprimindo panfletos), sendo mesmo alvo de escuta telefônica e ameaças de policiais à paisana.

    Ele chegou a sofrer intimidação física, leia-se, levou uma coça.15

    Não podemos derivar as relações entre biografia e teoria diretamente de uma

    experimentação vivida (como se vida e obra se comunicassem em uma clareza imediata), uma

    vez que estão ligadas a experimentações do pensamento.16 Desde que entendamos essa

    experimentação do pensar como aquela que Foucault aprendeu com Jean Hyppolite a respeito

    13 É notório que a organização de alguns dos escritos de Nietzsche pela sua irmã – simpatizante do nazismo –,

    textos que tinham uma variada carga antissemita, contribuiu para a associação do seu pensamento ao III Reich.

    Sua interpretação nazista foi orientada pelo filósofo e pedagogo alemão Alfred Baeumler. 14 Como contou Macey: em 1966 o partido do governo tunisiano promoveu uma ideologia estadista de união entre

    o partido e o estado. Um sistema dominado pelos técnicos do funcionalismo público. A universidade tornou-se um

    espaço de oposição ao governo. Na época da chegada de Foucault um episódio simples – recusa de um estudante

    de pagar seu bilhete de ônibus – foi o "estopim" de uma greve em que houve, inclusive, detenções de estudantes e

    términos de contratos de professores franceses que participaram. Depois, em 1968, os estudantes tunisianos se

    mostraram pró-Palestina e as tensões aumentaram quando da visita do vice-presidente norte-americano Hubert

    Humphrey, pró-Israel. A situação degringolou e a polícia novamente entrou na faculdade, momento em que

    espancou e prendeu estudantes. Segundo o próprio Foucault, ele era respeitado pelas autoridades locais, no entanto,

    suas ações pró-estudantes esvaziou esta proteção. 15 Para vários dos textos aqui analisados sua contextualização se baseia na cronologia estabelecida por Daniel

    Defert (consultável no início do empreendimento Ditos e Escritos, v. I); no próprio trabalho colossal de edição e

    estabelecimento dos textos que acompanham cada dito (entrevistas, conferências, pronunciamentos diversos) e

    escrito (prefácios, artigos, homenagens, manifestos etc.) dos dez volumes brasileiros; e nas biografias escritas por

    Didier Eribon, Michel Foucault 1926-1984 e por David Macey, Las vidas de Michel Foucault. Além dessas fontes,

    e no caso das análises dos cursos de Foucault no Collège de France, nos serviremos das situações dos cursos

    publicadas ao final de cada um. Nos casos de outras fontes e testemunhos ou de questões mais específicas uma

    nota explicativa se fará presente. 16 Este trabalho não pretende enveredar pelas problemáticas da biografia, pois não se constituí em um trabalho

    biográfico. Sobre os debates sobre a feitura e os problemas da escrita biográfica podemos cf. a primeira parte do

    livro Michel Foucault y sus contemporâneos, que discorreu toda ela sobre as dificuldades do projeto biográfico e

    das monstruosidades da crítica; para um resumo sobre as relações biografia e história que vai até a biografia do

    homem comum da micro-história, cf.: "A biografia como problema" In REVEL, 1998/1996, p. 225-249; e,

    finalmente, o livro A mulher calada de Janet Malcolm, incrível trabalho que refletiu sobre os bastidores desse tipo

    de empreendimento e que marcou os limites da biografia.

  • Foucault em erupção e a decifração do magma nos trópicos

    Leandro Mendanha e Silva

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    do pensamento filosófico: "é uma prática incessante; (...) é uma certa maneira de colocar em

    ação a não-filosofia, mas permanecendo sempre bem próximo dela, lá onde ela se liga à

    existência".17 Aproximar-se dessa maneira, e por meio das próprias experiências, daquilo que

    ainda não despertou a inquietação filosófica, de uma filosofia que se faz presente, inquieta e

    móvel em relação ao que não é ela. Logo, fica claro que não pretendemos transpor as

    experiências para a trabalho em uma mediação transparente, mas sinalizar que entre uma e

    outra existem pontos de transformação da ação e do pensamento, espaços de experimentação

    em que as experiências modificam os pensamentos e estes problematizam essas.

    Foucault falou sobre sua relação com os estudantes tunisianos em uma entrevista para

    um jornal da Tunísia em 1967: "Na verdade, encontrei estudantes tunisianos, e então foi amor

    à primeira vista. Provavelmente, não encontrei nos estudantes, a não ser no Brasil e na Tunísia

    tamanha seriedade e tanta paixão, paixões tão sérias, e o que me encanta mais do que tudo, a

    avidez absoluta de saber".18 O sério dizia da situação política: prisões e torturas para os

    estudantes tunisianos; prisões, tortura e morte para os brasileiros. Essa experiência na Tunísia

    começou, segundo Daniel Defert, exatamente como uma forma de escapar – uma linha de fuga?

    – do sucesso incômodo do livro As Palavras e as Coisas. Lido de uma maneira em que o autor

    precede o trabalho podemos indagar: vontade de escapar da fama e sua opressão? Ou partindo

    da experimentação do pensar que tenta escapar do autor como fonte opressora de significações,

    podemos indagar: o que é essa vontade de anonimato que exala do texto "O que é um autor?”

    Seria uma maneira de reconquistar o inesperado no pensamento? Em que escrever não seria se

    reencontrar, mas se perder?

    São duas questões que se atravessam: o anonimato e a busca do imprevisto. Vamos

    pensá-las com cuidado. Em janeiro de 1977 Foucault lançou um texto na revista Les cahiers du

    chemin, uma apresentação de uma antologia dos arquivos de internamento e encarceramento do

    Hospital Geral da Bastilha que ele pretendia tornar um livro.19 Dele Deleuze disse que é uma

    obra-prima e é.20 Este texto (“A vida dos homens infames”) está inserido no campo de

    problemas tornados públicos pelos livros Vigiar e Punir (fevereiro de 1975) e A Vontade de

    17 FOUCAULT, "Jean Hyppolite. 1907-1968", D.E. II, 2005/1969, p. 159. 18 FOUCAULT, "A filosofia estruturalista permite diagnosticar o que é 'a atualidade'?", D.E. II, 2005/1967, p. 61. 19 Pode não ter se tornado o livro que Foucault esperou e que já havia protelado (em 1963 anunciara pela coleção

    Archives o livro Les foules, Michel Foucault raconte du XVII au XIX siècle, de la Bastille à Sainte-Anne, le vouyage

    au bout de la nuit), mas alguns destes arquivos apareceram na coleção Les vies parallèlles: na publicação do

    memorial de Herculine Barbin em 1978 (organizador), no Le cercle amoureux d'Henri Legrand em 1979 e no

    livro em colaboração com Arlette Farge, Le désordre des familes, em 1982. Segundo Eribon, também apareceu na

    coleção Archives vários anos depois em um livro sobre os encarcerados. 20 DELEUZE, "Um retrato de Foucault", 1992/1986, p. 135.

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