Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-

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  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    1/71

    SRLMR TRNNUS

    MU HRIL

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    2/71

    LEITURAS

    C I ~ G FILOSÓFICAS

    Aristóteles e o logos, Barbara

    Cassil1

    Aristóteles no séc ulo

    XX,

    Enrico Berti

    Da nahneza, José

    Gabriel

    dos

    Santos

    Diálogos com a cultura contemporâ nea, W M

    Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo

    Perine

    Filosofia a partir de seus problemas (A), 2 ed.,

    Mario Ariei

    González

    Porta

    Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8 ed.,

    Rubem

    Alves

    Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1

    Foucault, simplemente - textos rennidos,

    Salma

    TamJUs

    Mucllail

    Metáfora

    viva (A),

    Paul Ricoeur

    \1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd

    l\ iilismo (O), Franco Volpi

    Ofício do filósofo estóico ( O), RacheI

    Gazolla

    Ordem do discurso (A), 10 cd., Michell oucault

    Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa

    Quc

    é

    a filosofia antiga? (O), Pierre

    Hadot

    Razõcs dc Aristóteles (As), 2 ed., Enrico Berti

    Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.

     

    ed.,

    Giovallni Reale

    Sete lições sobre o ser, 2 ed,

    Jacques Maritain

    Sobre O político de Platão,

    Comeljus Castoriadjs

    Sócrates ou o despertar da consciência, fean Toel

    Duhot

    Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho,

    Carlos

    Arthur A. Nascimel1to

    Transformação da filosofia,

    vol.

    1, Karl Otto

    Apel

    Transformação cl filosofia,

    vol.

    2, Karl Otto Apel

    Vontadc de crer

    (A),

    William

    James

    SRLMR TRNNUS

    MU HRll

    FOUCRULT

    SIMPL SM NT

    · ~ x t Q S :-eL:f :id:i5

    PUCRS/BCE

    0.968.999-2

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    3/71

    PREPARAÇÃO:

    Marcelo Perine

    DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa

    REVISÃO:

    Maurício

    B.

    Leal

    \

    r

    ,. • .

    . -'.' ,

    J

    P ~ R S ' BIBLIOTECA

    5: . . j 0 ~ 1 \ I \ 5 - ó2P

    -

    -

    Edições oyola

    Rua 1822 n° 347 - Ipiranga

    04216-000

    São Paulo, SP

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    Editorial: [email protected]

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    ohra

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    mecânico. incluindo fotocópia

    e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou b anco de

    dados sem permissão escrita

    da

    Editora.

    ISBN: 85-15-02992-8

    © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004

    SUMRRIO

    Apresentação

    A TAAJETÓRIA

    DE

    MICHEL FOUCAULT

    A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA

    Filosofia e ou história?

    O MESMO E O OUTRO

    Faces da história da loucura

    EDUCAÇÃO E SABER SOBERANO

    7

    9

    2

    37

    49

    o

    LUGAA

    DAS

    INSTITUiÇÕES NA SOCIEDADE OISClPLlNAA ... 59

    DE

    PRÃTICAS SOCIAIS

    I

    PRODUÇÃO DE

    SABERES

    73

    FOUCAULT E A LEITURA DOS FILÓSOFOS .

    85

    OLHARES E DIZERE S .

    97

    ,__ o,

    _

    ..

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    4/71

    OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA

    Rlgumas reflexões a partir de M i c h ~ Foucault

    e ornelius astoriadis

    ...

    . ................... 109

    ..... COMO NA OALA DO MAR UM AOSTO DE AAEIA··

    Notas sobre maio

    de 68

    .......... ....

    115

    MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO

    DO

    AUTOA 123

    BIBLlOGAAFIA

    ........... 133

    RPRESENTRÇÃO

    o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento plural.

    Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de

    abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação

    cuidadosa para

    que se possa enfrentar esta diversidade e ao mesmo tempo dar

    conta

    de

    sua

    inventividade e de

    sua

    densidade conceitual. Por

    outro lado

    ao

    percorrê-los o

    próprio pensamento é

    instigado a

    tornar-se

    múltiplo

    e

    igualmente afinado com

    a inventividade e

    o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter.

    Em sua maioria são conferências artigos e capítulos de livros já

    publicados.

    Como reunião

    de textos dispersos o livro compor

    ta

    suas p róprias diversidades

    não deixando

    de

    formar

    no

    en

    tanto

    uma

    unidade

    dotada de significado.

    Relativamente

    às

    diversidades trata-se

    em

    primeiro lugar

    de um livro escrito em diferentes

    momentos. Os

    textos

    que

    o

    compõem

    expressam a

    marca temporal

    dos

    momentos em

    que

    foram produzidos revelada

    por

    vezes

    na

    eleição dos

    Çlbjetos

    tratados e por outras

    na contextualização das análises. Tam

    bém

    os

    temas discutidos

    são diversos. À semelhança dos escri

    tos de Foucault a

    abordagem

    de temas

    como

    o ensino a cultu

    ra o poder a história a loucura

    s

    instituições a democracia

    a filosofia

    não permite que

    se determine

    para

    este livro a pre-

    apresentação 7

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    sença de um

    único

    objeto.

    Por

    fim, o caráter

    dos

    textos é igual

    mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,

    tratando de

    métodos

    periodizações e

    problemas

    centrais

    dos

    escritos de Foucault, servem de iniciação

    à sua

    leitura. Outros

    mais específicos, realizam análises detidas sobre

    temas

    preci

    sos favorecendo a

    compreensão

    de um

    pensamento tão

    pro

    fundo e complexo quanto instigante.

    A unidade

    de

    significado do livro, por sua vez, deve-se à

    natureza

    dos textos que o constituem. Resultado de

    uma

    leitu

    ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,

    este livro

    tem

    sua

    índole

    vinculada

    ao

    ensino. Todos os textos

    nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora

    ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam

    tão didáticos, pois

    na

    medida em que discutem diferentes as

    pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo esclarecem

    o leitor a seu respeito.

    Desse modo aos leitores deste livro diverso, escrito em

    muitos tempos,

    desdobrado em muitos

    temas, será possível

    apreender

    um

    pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre

    sente. Assim

    como

    dizer o u c a u l ~

    simplesmente

    implica tantas

    outras coisas - como a pluralidade do pensamento a diversifi

    cação das abordagens, a profundidade das análises

    -

    a leitura

    desta

    simples

    reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar.

    Márcio lves da Fonseca

    Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP

    8 I Foucault.

    simpl sm nt

    TR JETÓRI E

    MICHEL FOUC ULr

    Mas

    o que é filosofar

    hoje

    em dia ( ..) senão o trabalho

    critico do

    pensamento sobre

    o

    pensamento?

    Senão (

    ..

    ) tentar

    saber de que

    maneira e até onde seria possível pensar diferentemente

    em

    vez

    de leptimar o

    que

    á se sabe?

    M. FOUCAULT O uso dos

    prazeres

    13.

    A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)

    pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu

    primeiro

    grande

    livro, e 1984,

    com

    seus

    últimos

    livros publicados. Os estudio

    sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com

    certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três

    momentos. O primeiro, conhecido como período

    da

    arqueo

    logia , é voltado

    principalmente

    para questões relativas à cons

    tituição

    dos

    saberes e inclui os principais livros publicados na

    década de 1960:

    A

    história da loucura (1961), O

    nascimento

    d clí-

    nica

    (1963), As palavras

    e

    as

    coisas

    (1966) e

    A

    arqueologia

    do

    saber

    (1969). O segundo

    mamemo

    conhecido

    como

    períodó

    da

    ge-

     

    Este texto

    é

    uma

    versão modificada de aula ministrada no curso

    Michel Foucault - Razão e Desrazão , na Pontifícia Universidade Católica

    de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão Belo

    Horizonte, PUC/MG, v. 2 n.

    1

    fev. 1992.

    a trajetória de Michel Foucault I 9

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

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    nealogia , é centrado sobre questões relativas aos mecanismos

    do poder e inclui os principais livros da década de 1970:

    Vigiar

    e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade intitulado

    A vontade

    de

    saber

    (1976). O terceiro momento trata de questões

    relativas à

    constituição do sujeito

    ético e

    inclui os volumes

    II e

    III

    da História

    d

    sexualidade

    intitulados, respectivamente, O uso

    dos prazeres

    e

    O

    cuidado de

    si (1984(

    Tomando esta repartição

    como

    ponto de

    partida

    e roteiro,

    temarem os esboçar os traços que caracterizam esses três mo

    mentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a

    transcrição

    da

    seleção de

    passagens em

    que, a cada vez, o pró-

    prio

    Foucault declara

    suas preocupações

    e seus

    propósitos,

    fa

    remos iniciar a abordagem de cada um desses

    momentos.

    •••

    Em

    texto

    de

    1968,

    assim

    descrevia Foucault

    os propósitos

    de suas primeiras investigações: determinar, nas suas dimen-

    sões diversas, o

    que

    deve ter

    sido

    na

    Europa, desde

    o século

    XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos

    discursos

    científicos ( ..)

    para

    que se

    constitua

    o saber que é

    nosso

    hoje

    e de maneira

    mais precisa, o

    saber que

    se

    deu por

    domínio

    este

    curioso objeto que

    é o homem,,2.

    O

    primeiro momento de

    seus escritos

    tem, portanto,

    um

    enfoque explicitamente histórico ( na Europa, desde o século

    XVII ..

    até o saber

    que é

    nosso

    hoje ) e a

    preocupação

    está

    1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situaçõe s ocor

    ridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos

    Dits

    et écrits (são

    quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos,

    aulas etc. que Foucault

    p r o u z i r ~

    e realizara em diversos países),

    e

    ainda

    mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Fouca ult ministrou no

    Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos),

    cuja publicação foi iniciada em 1997.

    2. FOUCAULT M. Resposta a uma Questão , Revista Tempo Brasileiro,

    28

    (Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar,

    1972.79.

    1

    I Foucault,

    simpl sm nt

    centrada na descrição dos discursos,

    não

    porém quaisquer dis

    cursos, mas aqueles considerados científicos e mais particular

    mente, os das chamadas ciências humanas ( o saber que se deu

    por domínio

    este curioso

    objeto

    que é o homem ).

    Observe-se

    que esta

    descrição

    histórica dos

    discursos

    não

    é

    feita

    nem

    à maneira

    do

    comentário ,

    nem

    ao

    modo

    de uma

    análise lingüística. O

    comentário

    é

    uma

    espécie de

    discurso

    se

    gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir

    alguma verdade implícita

    no dito

    explícito do discurso primei

    ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen

    contrada

    e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe,

    por ou-

    tro

    lado,

    que esta origem

    e este

    sentido

    - mais essencial

    e ao

    mesmo tempo, mudo - de algum

    modo

    atravessam o sentido

    explícito, nele

    dormitam,

    a

    fim de que possam

    ser

    trazidos

    à

    luz

    pelo comentário. Supõe, pois, um

    conteúdo

    de significações

    já-dito

    e simultaneamente,

    jamais-dito 3. Nas análises de

    Foucault, ao contrário, os discursos são

    tomados em

    sua posi

    tividade, como fatos , e trata-se de buscar

    não sua origem

    ou

    seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as

    regras que

    presidem seu

    surgimento,

    seu

    funcionamento,

    suas

    mudanças, seu desaparecimento, em determinada

    época,

    assim

    como

    as novas regras que presidem a formação de

    novos

    dis-

    cursos

    em outra

    época. A análise lingüística,

    por sua

    vez,

    diz

    respeito à língua como sistema formal que rege a formulação

    tanto

    de

    enunciados

    efetivamente realizados como a

    dos

    que,

    em tese e

    em número

    infinito, poderiam vir a ser constituídos.

    a descrição

    foucaultiana dos

    fatos discursivos se

    limita

    a

    enun-

    ciados já formulados que

    compõem

    as formações discursivas, e

    quer estabelecer

    não

    as regras

    formais

    de

    sua

    inteligibilidade,

    mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade

    do

    aparecimento,

    das

    transformações e do desaparecimento

    3.

    Cf. FOUCAULT M., Resposta ao Círculo de Epistemologia , in Estrutu-

    ralismo e Teoria

    d

    Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes,

    1971, 21; ver também

    L Archéologie du savoir,

    Paris, Gallimard, 1969, 36.

    a trajetória de Michel Foucault

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    7/71

    de tais ou quais discursos, e não de

    outros,

    numa época dada e

    numa dada

    sociedade, jogo este que é portanto, variável num

    curso histórico

    marcado por diferenças e

    descontinuidades.

    Pode-se

    chamar

    a esse jogo de regras de epistéme de uma épo

    ca, seu a priori histórico,

    ou

    ainda o

    solo

    onde são constituídas

    as formações discursivas

    historicamente

    realizadas e

    que

    com

    põem as diferentes configurações

    no

    espaço do saber. Assim é

    por exemplo,

    que

    em s

    palavras e

    as coisas as análises mostram

    como

    na

    Europa

    dos séculos

    XVII

    e XVIII emergem determina

    das formações discursivas que vão constituir a gramática geral,

    a

    história

    natural e a análise das riquezas, enquanto no século

    XIX

    vão surgir a filologia, a biologia e a economia,

    de

    que as

    primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo

    ou

    conjunto

    de regras que, numa determinada época e para

    uma

    determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como

    se

    pode

    dizê-lo, quem pode dizê-lo, a

    que

    instituições isso se

    vincul a etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro

    e o

    que

    deve ser excluído como desqualificável, eis o procedi

    mento

    que Foucault

    chama

    de arqueologia .

    Mas não

    é

    genericamente, de quaisquer discursos que

    Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do

    saber considerado científico e dentr o dele, a região das chamadas

    ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação

    desse donúnio é

    uma

    escolha de certo modo hipotética,

    uma

    primeira aproximação ou um primeiro esboço,,4. Trata-se de

    uma

    circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por

    um

    lado,

    a demarcação do domínio não l imita o ãmbito de aplicabilidade

    da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em out ros campos

    do saber. Por outro, essa

    d e ~ r c ç ã o

    não pretende definir, salva

    guardar

    ou

    confirmar os contornos do próprio domínio escolhi

    do; pelo contrário, o campo

    do

    saber assim assumido

    como

    obje-

    4. FOUCAULT,

    M.,

    Resposta ao Círculo de Epistemologia ,

    in Estrutu-

    ralismo e Teoria da

    Linguagem,

    27; ver também L Archéologie du savoir, 43.

    2

    I Foucault

    simol sm nt

    to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito

    da

    própria análise. Nada me prova , diz Foucault, que os reencon

    trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)

    ao termo

    da

    anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli

    mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me

    prova que tal descrição poderá dar conta

    da

    cienrificidade (ou

    da

    não-cientificidade) desses conjun tos discursivos que assumi c omo

    ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre

    sunção de racionalidade científica s A escolha

    do

    domínio, por

    tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio

    escolhido. Trata-se tão-somente de um privilégio de partida,,6.

    •••

    E

    contudo

    é

    um

    privilégio. Será nos escritos posteriores

    que se tornarão mais claros os motivos de

    semelhante

    eleição.

    Em uma

    passagem de 1976, a respeito dos escritos

    do

    segundo

    momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: O que

    tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do

    poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon-

    tos

    de

    referência, dois limites:

    por um

    lado, as regras

    de

    direito

    que delimitam formalmente o poder

    e

    por outro, oS efeitos de

    verdade que este poder produz, transmite e que

    por

    sua vez

    reproduzem-no,,7.

    Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre

    eles sobre

    os que

    têm por domínio este curioso objeto

    que

    é o

    homem - que melhor lhe permite trazer

    à tona

    os mecanis

    mos existentes entre exercícios de poder e produção de sabe

    res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do

    5.

    FOUCAULT, M., L Archéologie du savoir, 53 54.

    6.

    FOUCAULT,

    M., Resposta ao Círculo de Epistemologia , in

    Estrutura-

    lismo

    e

    Teoria da Linguagem, 27; ver

    também

    L Archéologie du savoir,

    43.

    7. FOUCAULT, M.,

    Soberania

    e disciplina , in Microfísica

    do

    poder,

    trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,

    1979,179.

    a trajetória de Michel Foucault I

    3

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    8/71

    saber cujo terreno

    é

    mais movediço, mais

    claramente

    aberto a

    combates

    e cuja história, por isso mesmo,

    pode

    ter mais eficá

    cia política 8.

    Trata-se, agora, de evidenciar as articulações

    entre

    saber e

    poder, mediados, por assim dizer, pelo

    que podemos

    chamar

    de modos de produção da verdade. Por verdade deve-se

    entender não

    o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou

    a fazer aceitar , mas o conjunto de regras segundo as quais se

    i s t i n g u ~

    o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efei

    tos específicos

    de

    poder 9.

    E

    assim

    como

    a verdade de

    que

    se

    trata não é nenhuma essência universal, mas regras historica

    mente

    diferenciáveis, também o

    poder não

    deve ser compreen

    dido como

    uma

    idéia

    ou uma

    identidade teórica , mas como

    exercício,

    como

    prática,

    que só

    existe em sua concretude , mul

    tifacetado e cotidiano

    10.

    Ora, compreende-se

    que

    é sobre os discursos científicos,

    e

    particularmente

    sobre os das ciências

    humanas, que

    vai incidir

    a investigação,

    uma

    vez que, se toda sociedade tem seu regime

    de verdade

    com

    efeitos de poder, em

    nossa

    sociedade a

    produ

    ção

    da

    verdade é

    regulamentada por

    regras

    que autorizam

    a

    eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conse

    qüente

    exclusão de

    outros

    saberes,

    que

    qualificam os objetos

    dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições

    apropriadas, e cujos efeitos

    de

    poder,

    particularmente

    no caso

    das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar.

    Nesse momento

    de

    seus escritos,

    Foucault amplia

    o âmbi

    to

    das análises: de análises quase sempre mais preocupadas

    com

    discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento

    8. FOVCAULT, M.,

    Sobre a geografia , in

    Microfisica do poder,

    154.

    9. FOUCAULT,

    M., Verdade e poder , in

    Microfisica do poder,

    13.

    10. Ver a este respeito,

    por

    exemplo, em

    Microftsica

    do

    poder:.

    Introdu

    ção (de

    R.

    Machado),

    XVI;

    Verdade e poder ,

    6;

    Os Intelectuais e o poder ,

    75-76; Poder-Corpo , 149; Genealogi a e poder , 175; Soberan ia e discipli

    na , 183-185;

    O olho

    do poder , 221; Sobre a

    história

    da sexualidade , 251.

    I Foucault Simplesmente

    com a trama das instituições e práticas sociais, como faz prin

    cipalmente em sua

    história do nascimento

    das prisões Vigiar e

    punir .

    Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção

    mais complexa de dispositivo estratégico , entendendo-se que,

    enquanto

    a epistéme é

    também

    um dispositivo - ou, antes, um

    elemento prioritariamente discursivo do dispositivo - o dis

    positivo,

    prioritariamente

    de

    natureza

    estratégica, envolve arti

    culações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradis

    cursivos, tais

    como

    práticas jurídicas, projetos arquitetônicos,

    instituições sociais diversas. Quando

    Foucault

    passa a explici

    tar esse momento de sua investigação, passa também a defini

    lo

    menos como

    arqueologia ,

    para denominá-lo

    genealogia .

    Assim, arqueologi a e genealogia

    se

    distinguem ao mesmo

    tempo em

    que guardam, de

    certo

    modo,

    a mesma natureza e o

    mesmo

    teor. Mais

    de

    uma vez

    Foucault afirma que

    os propósi

    tos explícitos nos escritos

    da

    fase genealógica já estavam pre

    sentes, mas

    não

    percebidos,

    nos

    primeiros escritos. Mas adverte

    também que

    uma

    mudança ocorreu

    na

    condução das análises.

    Enquanto a arqueologia , escreve ele, é ométodo para a aná

    lise

    da

    discursividade local, a genealogia é a

    tática

    que, a

    partir

    da discursividade local assim descrita, ativa os saberes liber

    tos da sujeição

    que

    emergem

    desta

    discursividade l1. Poder-se

    ia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na

    genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise

    descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia

    constrói

    uma

    política de resistência e de luta. A

    denominação

    genealogia

    será mantida

    por Foucault

    ao referir-se

    ao

    terceiro e

    último

    momento de sua trajetória. Mas com outras transformações.

    Em

    entrevista

    concedida pouco

    antes de sua morte, assim

    se

    exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: Ten-

    11. FOUCAULT, M.,

    Genealogia e poder , in

    Microftsica do Poder,

    172.

    a t rajeto ria de Michel Foucault I 5

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    9/71

    to responder a

    um

    problema preciso: nascimento de

    uma

    mo

    ral, de uma moral enq uanto reflexão sobre a sexualidade, sobre

    o desejo, o prazer,,12.

    Entre a publicação do volume I

    da História

    da

    sexualidade

    -

    A

    vontade de saber

    (1976) - e a dos volumes II e

    1II

    - O

    uso dos

    prazeres

    e O cuidado de

    si

    (1984) - passaram-se oito anos. Neste

    intervalo, Foucault

    alterou

    radicalmente o plano inicial previs

    to

    para a obra. Uma mudança

    importante ocorreu

    relativamen

    te ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores,

    continua

    a fazer filosofia fazendo pes quisa histórica. Mas ago

    ra

    a

    cronologia

    é

    outra.

    Até

    então

    as histórias

    que

    escrevera

    atravessavam, quase sempre,

    um

    percurso que ia desde o final

    do Renascimento (por volta do século

    XVI

    até a nossa Moder

    nidade (séculos XIX e

    XX ,

    com realce para a

    chamada

    Idade

    Clãssica (séculos

    XVII

    e

    XVIII ,

    buscando trazer

    à

    luz as trans

    formações

    que marcaram

    a passagem

    do

    Renascimento à Idade

    Clássica e, principalmente, as

    que assinalaram

    a passagem do

    final

    da

    Idade Clãssica

    à

    Modernidade, na direção, pois, de com

    preender nosso presente. O

    projeto

    inicial da História da sexua-

    lidade

    anunciava um percurso histórico

    semelhante. Porém,

    como

    reconhece o

    próprio

    Foucault, a pergunta

    que

    ele

    então

    se

    colocou

    -   Por

    que

    tínhamos feito da sexualidade

    uma

    expe

    riência moral? - levou-o a

    procurar mais

    atrás pelo nasci

    mento de

    uma

    moral , detendo-se então

    na Antiguidade

    grega

    e greco-romana, nos últimos séculos antes

    de Cristo

    e

    nos

    pri

    meiros séculos da era cristã

    13

    .

    12. EWALD, F., O cuidado

    com

    a verdade ,

    in

    O Dossier- últimas entrevis·

    tas org. de C H ESCOBAR, trad.

    Ana Maria

    de A Lima e M da Glória R da

    Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75.

    13. Cf. BARBEDEITE, G.

    eSCALA,

    A.,

    O

    retorno

    da

    moral ,

    in

    O Dossier

    últimas entrevistas

    136; R

    BELLOUR,

    Um

    devaneio moral , in

    O

    Dossier

    - últi·

    mas entrevistas 86; FOUCAULT, M., História

    da

    sexualidade voI. 11, O uso dos praze-

    res

    trad. M. T da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, Introdu-

    ção , 16.

    6 I Foucault

    simpl sm nt

    A alteração na

    cronologia

    foi

    acompanhada

    por

    mudanças

    teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga

    ções será o sujeito,

    não

    porém como aquele curioso objeto de

    um

    domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se

    constitui

    a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou

    tros, enquanto

    sujeito

    do

    desejo 14,

    como

    espaço de referência.

    Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos

    códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini

    doras

    do

    que

    é

    permitido

    ou

    interditado, mas a

    da

    conduta, do

    modo

    de comportar-se

    ou

    das posições em face de códigos e

    leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de prátic as de si ,

    técnicas da vida , artes da existência ls.

    Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação

    permite

    me

    lhor aproximar dados

    da

    Antiguidade de problemas de nossa

    atualidade,

    mantendo,

    assim, a característica da genealogia

    de

    compreender

    o presente. A este

    propósito,

    eis

    algumas

    observa

    ções de Foucaulr:

    O que

    me

    impressionou

    é

    que

    na ética grega

    as pessoas se

    preocupavam

    com sua conduta moral, sua ética,

    suas ligações

    com

    elas próprias e

    com

    os outros muito

    mais do

    que

    com

    problemas religiosos (

    ..

    .

    A segunda observação é que

    a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou

    pelo menos legal-institucional ( ..

    .

    O terceiro ponto a observar

    é

    que

    o que os preocupava, seu tema, era constituir

    um

    tipo de

    ética

    que

    era uma estética da existência . E as aproximações

    que em seguida faz: ''(.

    .

    ) eu me pergunto

    se

    nosso problema

    atualmente não é,

    de

    certa

    maneira, semelhante a este, desde

    que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada

    na religião, e nem quer um

    sistema

    legal

    que interfira

    na

    nossa

    moral pessoal, privada ( ..

    .

    Estou interessado nessa semelhança

    de problemas 16.

    14. Cf.

    FOUCAULT,

    M., O

    uso

    do

    prazeres

    Introdução ,

    10-11.

    15. Cf. ibid., 15.

    16.

    DREYFUS,

    H. L e

    RABINOW,

    P.,

    Sobre

    a

    genealogia

    da ética:

    uma

    visão

    do trabalho em andamento , in

    O Dossier - últimas

    entrevistas

    43-44.

    a traietória de Michel Foucault I 17

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    10/71

    Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica,

    que o própr io Fouca ult faz questão de reconhecer. Aliás, ao pri

    meiro tópico

    da

    Introdução

    de O uso

    dos prazeres

    dá o

    título

    Modificações .

    Em

    outra

    passagem

    realça essas diferenças,

    jun-

    tando sugestivamente

    as

    duas pontas

    de

    sua

    trajetória,

    da Histó-

    ria da

    loucura

    à História da sexualidade: A propósito da loucura,

    parti do 'problema'

    que ela podia constituir num certo

    contexto

    social, político e epistemológico: o problema que a loucura co

    locava para os outros. Aqui, parti do problema que o comporta

    mento sexual podia colocar aos próprios indivíduos (

    ..

    ). Em

    um

    caso, tratava-se

    em

    suma de saber como se 'governava' os lou

    cos,

    agora como

    'governar-se' a si próprio . E

    conclui

    apontan-

    do

    para aproximações: São,

    em

    resumo,

    duas

    vias de acesso

    inversas

    em

    direção a uma mesma questão: como se forma uma

    'experiência'

    onde

    estão ligadas a relação a si e aos outros l?

    Com

    efeito, na passagem dos

    momentos

    anteriores ao úl

    timo,

    as

    semelhanças também

    existem. E elas

    têm pelo

    menos

    dois eixos comuns.

    Primeiro,

    há, em

    todos

    eles, um

    mesmo

    propó sito de base: escrever a históri a das relações que o pensa

    mento mantém com a verdade 18.

    Dito

    de outro

    modo,

    todos

    os

    escritos

    são sustentados

    por uma

    mesma pergunta

    de

    fun-

    do: Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser

    próprio a pensar quando se percebe como louco

    A

    história da

    loucura), quando

    se

    olha

    como doente

    (O nascimento

    da clínica),

    quando

    reflete sobre si

    como

    ser vivo, ser falante e ser traba-

    lhador As palavras e

    as coisas),

    quando

    se

    julga e se pune en

    quanto criminoso Vigiar

    e punir)?

    Através de quais jogos de

    verdade o ser humano se

    reconheceu como homem

    de desejo

    História da

    sexualidade)?" '.

    17. EWALD, F.,

    O

    cuidado com a verdade , in O Dossier - últimas

    entrevis-

    tas,

    76.

    18. Ibid., 75.

    19. FOUCAULT, M., O

    uso

    dos

    prazeres,

    Introdução , 12 (os títulos entre

    parênteses foram acrescentados

    por

    nós).

    8

    Foucault.

    simpl sm nt

    l

    Um segundo

    eixo desses escritos

    está em certo ângulo

    a

    partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio

    nam

    a problematizações . Aliás, o segundo

    tópico da Intro-

    dução de O uso dos prazeres tem por

    título

    As formas de proble

    matização . Eis

    ainda

    uma

    passagem em

    que esse eixo

    comum

    é

    explicitado:

    Em

    A

    história

    da

    loucura

    a

    questão era saber como

    e porque a loucura, num

    dado momento,

    foi problematizada

    através de

    uma certa

    prática

    institucional

    e um certo

    aparelho

    de

    conhecimento.

    Do

    mesmo modo,

    em

    Vigiar e punir,

    tratava

    se de analisar as mudanças na problematização das relações

    entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti

    tuições

    penitenciárias

    no fim

    do

    século XVIII e no início

    do

    século XIX. Agora,

    como

    se

    problematiza

    a atividade sexual?,,20.

    Os dois eixos comuns, por sua vez o propósito de fazer a

    história das

    relações

    entre pensamento

    e verdade e o

    ângulo das

    p r o b l e m a t i z a ç õ e s ~ articulam-se entre si, já que

    por

    problema-

    tização deve-se entender

    o conjunto

    de práticas discursivas ou

    não-discursivas

    que

    faz

    alguma

    coisa

    entrar no

    jogo

    do

    verdadeiro

    e

    do

    falso e a constitui como

    objeto

    para o pensamento

    JJ

    .

    •••

    A

    partir daqueles

    eixos de aproximação pode-se, finalmen-

    te, compreender a

    reunião dos

    três

    momentos da trajetória

    de

    Foucault

    em

    um

    mesmo conjunto, sem contudo escamotear

    suas

    diferenças: o

    primeiro momento

    interroga o

    que habitual-

    mente se entende por progresso

    do

    conhecimento , conduzin-

    do

    à análise das

    práticas

    discursivas constitutivas

    dos

    saberes

    reconhecidos

    como

    verdadeiros; o

    segundo interroga

    o

    que

    ha

    bitualmente se entende por poder ,

    conduzindo

    à análise dos

    mecanismos

    de exercícios dos

    poderes

    relacionados à

    produção

    de saberes; o terceiro momento interroga o que

    habitualmente

    20.

    EWALD,

    F., O cuidado com a verdade , in O ossier últimas entrevis-

    tas, 76.

    21. Ibid., 76.

    a trajetória de Michel Foucault I 9

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    11/71

    se entende

    por

    sujeito , conduzindo

    à

    análise da constituição

    de

    si mesmo como sujeito 22. Ou pode-se, inversamente, enu

    merar

    os

    momentos

    dessa trajetória

    c e n t ~ n d o

    as diferenças

    sem

    necessariamente

    perder

    suas conjunções: trata-se, como

    indica um estudioso

    de

    Foucault, de três campos ou continentes

    de reflexão,

    um

    mais marcadamente epistemológico, outro po

    lítico, outro étic0

     

    ; ou trata-se, como se exprime o

    mesmo

    Fou

    cault, de três ordens de problemas, o da verdade, o do poder e

    o

    da conduta

    individual 24.

    De todo

    modo,

    a reconstituição da trajetória desse pensa

    mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o

    conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que

    Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas

    passagens, ele descreve

    como

    exigências, por exemplo, assim

    expressas: Conseguir

    pensar

    algo

    que não

    seja o

    que

    se pensa

    va

    antes,,25; ser capaz permanentemente

    de

    se desprender

    de

    si

    mesmo 26;

    pensar diferentemente do que

    se

    pensa

    e perceber

    diferentemente

    do

    que

    se

    vê,,27.

    Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças

    compõem

    assim

    um tipo

    de

    pensamento

    - a

    que

    se

    pode

    cha

    mar filosofia - que duvida

    do

    estabelecido, que abala o habi

    tual

    e que, por isso mesmo, expõe a si

    próprio

    à mobilidade e

    dispõe-se constantemente a se recompor.

    22.

    Cf.

    FOUCAULT, M., O uso

    dos

    prazeres, Introdução , 11.

    23. Cf. EWALD, F., Michel Foucault , in O

    Dossier

    - últimas entrevistas, 71.

    24. BARBEDElTE,

    G. eSCALA,

    A.,

    O

    retorno da moral , in O Dossier

    últimas

    entrevistas,

    129

    25.

    EWALD,

    F.,

    O cuidado com

    a verdade ,

    in

    O

    Dossier - últimas

    entrevis-

    tas,

    74.

    26. Ibid., 81.

    27. FOUCAULT, M., O uso dos

    prazeres,

    Introdução , 13.

    2

    I Foucault. simplesmente

    FILOSOFI COMO

    CRíTIC D

    CULTUR

    Filosofia e/ou história?

    A

    título de introdução, lembremos

    um

    conhecido problema

    afrontado

    por

    Husserl e muitas vezes explorado

    por

    Merleau

    Ponty. Poderia receber ele formulações diversas,

    todas

    elas, po

    rém, contrapondo dois pólos

    ou

    dois termos: trata-se do anta

    gonismo

    ou da correlação

    entre

    idéia e fato, ou entre essência e

    experiência,

    ou

    ainda entre interioridade e exterioridade,

    ou

    mes

    mo entre

    subjetividade e objetividade, e

    que constituiria

    a base

    do antagonismo

    ou

    da correlação entre o pensamento filosófi

    co e a elaboração científica. Esta,

    como

    se sabe, é uma questão

    a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti

    cularmente

    das relações entr e a filosofia e as ciências

    humanas.

    Basta evocar, por exemplo,

    Le philosophe et la

    sociologie,

    Éloge de la

    philosophie, Risumés de cours como ainda os opúsculos Les sciences

    de l hommeet

    la

    phénoménologie

    e Le

    métaphysique dans l homme.

    Ne-

      Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen

    tada

    no

    V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó

    ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em

    Cadernos PUC,

    n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi

    republicado com o acréscimo de Discussão em Epistemologia

    das Ciências

    Sociais, FAVARETIO,

    C F., BOGus,

    L

    N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos

    pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.

    a filosofia como critica da cultura I

    2

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    12/71

    les, o autot

    aborda

    aquela questão do ângulo das relações entre,

    por

    um lado, a filosofia e,

    por

    outro, a psicologia, as ciências da

    linguagem,

    a história, a sociologia.

    Em quase

    todos esses en

    saios,

    retoma

    a questão desde

    onde

    Husserl a tinha levantado e

    a conduz na direção

    da superação do

    impasse. Interessa-nos, para

    introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posi

    ção a respeito

    da

    filosofia e

    da

    história.

    Primeiramente,

    Mer

    leau-Ponty rejeita certas alternativas

    que confundem ou

    falseiam

    O

    conceito de história e que fazem

    da

    filosofia e

    da

    história tra

    dições rivais l.

    Não

    há que escolher,

    por

    exemplo,

    entre

    uma

    filosofia que postula uma consciência fora

    do

    tempo, desliga

    da de todo interesse pelo fato , e as '''filosofias da história', que,

    ao

    contrário, inserem no curso das

    coisas

    uma

    lógica oculta ,

    como que a predeterminá-I0

    2

    Alternativas deste teor

    podem

    in

    corporar seja uma

    ilusão

    retrospectiva ,

    projetando

    as catego

    rias de hoje na leitura do passado, seja uma ilusão prospecti

    va , reduzindo os

    fatos

    à

    imediatez

    de seu

    presente

    sem qual

    quer abertura para

    o

    futur0

    3

    • Ademais,

    pressupõem isolados

    entre si o fato e o homem interior ,

    a

    história e o intempo

    ral,,4, elegendo,

    numa

    verdadeira

    guerra

    fria ,

    ou bem

    o

    mito

    da filosofia

    ou

    bem

    a idolatria da objetividade 5. Em contra

    partida,

    Merleau-Ponry afirmará que

    é precisamente

    pela nossa

    inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção

    numa

    cultura

    particular, que podemos realizar o movimento de com-

    L MERLEAu-PONTY, M.

    Éloge

    de

    l

    philosophie, in

    Éloge

    de la

    philosophie et

    autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da rivalidade aparece igual

    mente em outros

    textos.

    Por

    exemplo, em Le métaphysique

    dans

    l'homme ,

    in

    Sens et non-sens,

    Paris, Nagel, 1965, 171;

    ou

    em Le philosophe et la socio

    logie , in

    Éloge

    de

    l philosophie et

    au tres essais,

    112.

    2. MERLEAU-PONIT, M., Máteriaux

    pour

    une théorie de l'histoire , in

    Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43.

    3. Ibid., 45.

    4. Ibid., 43.

    5.

    Cf MERLEAU-PONTY, M., Le philosophe et la sociologie , in

    Éloge.

    113-114; Le métaphysique dans l'homme , in Sensetnon-sens 160.

    I Foucault

    simplesmente

    preensão de

    outras situações

    e

    de outras

    formações culturais. Se

    nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o

    único

    meio de acesso à

    compreensão

    de

    outras

    situações parti

    culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian

    tes da nossa

    6

    Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,

    pela

    qual

    vivenciamos uma co-existência histórica ?,

    que

    impe

    de,

    por

    um lado, a submissão da história à força de uma lógica

    todo-poderosa e atemporal

    e, por outro,

    a

    sua redução

    a uma

    reunião

    de fatos

    circunstanciais

    e

    sem

    significação.

    Nessa

    medi

    da, história e filosofia serão

    não

    apenas solidárias, mas ainda

    mutuamente

    indispensáveis.

    Uma

    história

    que

    se estreitasse a

    um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a

    significação através do concurso

    da

    filosofia

    não

    saberia, lite

    ralmente,

    do que

    ela fala ,

    assim como uma

    filosofia

    que

    sobre

    voasse os fatos só desembocaria

    em

    verdades formais, isto

    é,

    em

    erros s. Assim, se

    para

    Merleau-Poncy só

    haverá história na

    medida

    em

    que houver uma lógica na contingência, uma razão

    na desrazão 9, pode-se completar que só haverá filosofia se os

    sentidos ou

    as verdades

    que

    ela

    busca

    forem

    procurados no

    seio

    do

    devir,

    na trama

    histórica dos acontecimentos.

    Merleau-Ponty

    atribuía

    assim certa inerência

    entre o

    tra

    balho do h istor iador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira

    nem a

    última

    vez que um pensador travou relações entre filoso

    fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos,

    em que neste

    caso as relações

    não

    são

    tão

    sistemáticas a ponto de conduzir

    finalmente

    à

    anulação

    de uma

    sob

    o jugo da

    outra;

    e

    sobretudo

    6.

    Cf MERLEAU-PONTY, M.,

    Le philosophe et la sociologie , in

    Éloge

    137; Le métap hysiq ue dans l'homme , in Sens

    et non-sens,

    162;

    Ciências

    do

    homem e enomenologia, trad.

    S.

    T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61.

    7. MERLEAU-PONTY, M.,

    Ciências

    do homem e enomenologia, 69.

    8.

    MERLEAU-PONTY,

    M., Le méta physi que

    dans

    l'homme , in

    Sens

    et non

    sens, 171.

    9. MERLEAU-PONTY, M., Matériaux

    pour

    une théorie de l'histoire , in

    Résumés des Cours, 46.

    a filosofia como critica da cultura I

    3

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    13/71

    nem

    tão

    precisas

    que

    desfaçam certa

    ambigüidade

    a atravessar,

    na prática, o

    intercâmbio entre

    ambas. Ora, a

    nosso

    ver, é essa

    certa ambigüidade

    que,

    além de marcar

    uma postura fortemen

    te

    anti

    dogmática, parece

    abrir

    espaço para a possibilidade da

    eventual

    reunião

    das duas atividades

    numa

    mesma prática. E é

    essa a

    prática

    que, ao

    que

    parece, é executada

    nos

    escritos his

    tórico-filosóficos de Michel Foucault.

    A partir destas considerações iniciais,

    tentemos

    ver

    como

    o

    próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e

    enquanto

    história e,

    em seguida, em que sentido se poderia di

    zer que algo

    como

    uma crítica da

    cultura

    permeia esse trabalho.

    É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Fou

    cault

    em classificações estabelecidas

    do

    saber,

    buscando

    dese

    nhar seus traços eventualmente inalteráveis

    ou

    circunscrever

    características invariáveis.

    Questões

    dessa ordem são ampla

    mente

    discutidas por

    estudiosos

    de Foucault.

    Não nos

    importa

    aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo

    dessa resistência à classificação. É

    que

    esses ~ r i t o s

    assumem

    um

    caráter por assim dizer flutuante, que atesta

    uma

    evasão

    sadia em relação a todo

    dogmatismo. Podemos

    dizer

    que

    Pou

    cault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e

    toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questioná

    lo. Já no final da Introdução de A arqueologia do saber escrevera

    ele: Não me perguntem quem sou e não me digam para per

    manecer o mesmo: isso é

    moral

    de

    estado

    civil; ela rege noss os

    papéis. Que ela nos deixe livres quando se

    trata

    de escrever lO. E

    num debate a

    propósito

    do

    primeiro

    volume da História da se-

    xualidade depois de a ele referir-se como

    um

    livro-programa

    tipo queijo gruyere, cheio de buracos para

    que

    neles

    possamos

    nos

    alojar , escreve:

    Não

    quis dizer - 'Eis o

    que

    penso', pois

    ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei ( .. . O

    que

    existe de incerto

    no que

    escrevi é

    certamente

    incerto (

    ..

    .

    E

    10

    FOUCAULT, M., L Archélogie du savoir, Paris, Gallimard,

    1969,28.

    2 -1 j Foucault Simplesmente

    não

    estou certo quanto

    ao que

    escreverei nos próximos volu

    mes ; chama-o de discurso hipotético e, mais de uma vez,

    de

    jogo ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e zigue

    zagueante de suas investigações

    12

    .

    Noutra ainda, justifica

    ter

    gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de

    opinião

    entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas obser

    vações,

    não

    será

    porém

    artificioso

    afirmar que

    os escritos de

    Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia.

    Ele

    próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são pou

    cas as vezes

    em

    que se refere a seu

    trabalho de

    historiador.

    Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de con

    selheiro na

    militância

    política e designando-lhe, ao contrário,

    a função mais modesta de fornecer os instrumentos de análi

    se , conclui

    dizendo

    ser este, hoje, essencialmente, o papel do

    historiador 14. Por

    outro

    lado, quando, durante

    uma

    entrevis

    ta,

    após

    a observação de

    que

    em muitos momentos você se

    definiu como

    historiador , lhe é

    perguntado

    por

    que

    'historia

    dor' e não 'filósofo ', sua resposta indica que a questão da filo

    sofia hoje

    não

    deixa de ser

    igualmente

    uma

    questão

    de história:

    é a

    questão

    deste presente

    que

    é o

    que

    somos,,15.

    Noutra

    oca

    sião, já mais

    claramente

    afirmará: E mesmo que eu diga que

    não sou

    filósofo, se

    for

    da verdade

    que me

    ocupo,

    eu sou apesar

    de tudo filósofo , realçando porém que a questão da verdade

    que

    ele coloca é a

    de perscrutar qual

    é

    sua

    história, quais são

    seus efeitos,

    como

    isso se entrelaça

    com

    as relações de

    poder

    JJ

    .

    Ou

    ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem-

    11

    FOUCAULT,

    M., Sobre a História

    da

    sexualidade , in Microfisica do

    poder,

    incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,

    19'(9, 243.

    Ver

    também

    259.

    12 Cf. FOUCAULT, M., Soberania e disciplina , in

    Microfisica

    do

    poder,

    180.

    13

    FOUCAULT,

    M., Sobre a geografia , in Microfisica do poder,

    164.

    14.

    FOUCAULT,

    M.,

    Poder.Corpo , in

    Microfisica do poder,

    151.

    15.

    FOUCAULT,

    M.,

    Não ao sexo rei , in

    Microfisica do

    poder,

    239.

    16. FOUCAULT, M., Sobre a geografia , in Microfisica do

    poder,

    156.

    a

    filosofia como crítica da cultura

    5

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    14/71

    po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do

    Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é

    produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu

    propósito

    fazer

    a história

    da 'verdade' -

    do

    poder

    próprio

    aos

    discursos aceitos como verdadeiros" 7.

    Eis, pois,

    que

    filosofia e história se entrelaçam

    num

    mesmo

    trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas

    que história e que verdade?

    Ou

    melhor, de que tipo de história

    esse filósofo que se ocupa d a verdade é hoje o historiador?

    Afastemos, de início, os traços de uma

    história que

    Fou

    cault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da

    clínica

    1963)

    aponta dois recursos tradicionais

    que

    rejeita e chama-os

    de

    "es

    tético" e "psicológico". O

    primeiro

    consiste em descrever

    uma

    história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo

    historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando de

    tectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no

    âmbito interno

    de uma

    época (buscando captar seu

    espírito,

    sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "inter

    pretar" os fatos no

    sentido

    de

    encontrar como que

    por detrás

    deles suas razões mais secretas,

    uma

    lógica escondida,

    como

    se

    os fatos fossem

    sempre

    uma espécie

    de

    "alegoria" a dizer outra

    coisa

    que não

    eles próprios 8.

    É

    basicamente a esses

    mesmos

    recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a

    elaboração da

    história

    tanto por um

    método que

    procede pelo

    "recurso

    histórico-transcendental

    (isto

    é

    que quer encontrar,

    por meio

    de

    todo

    acontecimento, de

    toda manifestação histó

    rica, as linhas de

    sua

    origem, apontando assim

    em

    direção a

    um

    horizonte

    sempre

    longínquo

    e cad a vezmais recuável) como

    por

    um

    método que

    procede pelo "recurso empírico ou psico

    lógico" (isto é que quer interpretar as significações explícitas

    dos

    fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um

    sentido

    17. FOUCAULT, M., Não ao sexo rei , in Microfúica

    do

    poder; 239-23l.

    18. FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII.

    6

    I Foucault. simplesmente

    oculto" de que supostamente estariam carregadosr

    9

    . Esses pro

    cedimentos

    têm

    em comum o uso da técnica

    que

    lhes

    é

    apro

    priada, a saber, o tratamento

    dos

    textos na forma

    de

    "comentá

    rios", capazes que seriam de trazer

    à

    luz a suposta origem e o

    suposto segredo

    que

    o discurso explícito

    implicitamente

    conte

    ria. Mais ainda, esses

    procedimentos cunham

    a

    história com

    a

    marca

    unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios

    às histórias

    do

    espírito" e às histórias "globais".

    Com

    efeito,

    uma história do

    espírito"

    é

    precisamente

    aquela

    que, median

    te a "decifração" dos textos,

    quer

    desvelar a "consciência", as

    "intenções" ou o "espírito"

    que

    os

    teriam inspirado

     

    ; uma "his

    tória global"

    é

    precisamente aquela que,

    na

    dispersão dos fatos

    e

    documentos, quer

    encontrar "vestígios"

    que

    permitam traçar

    uma

    linha contínua,

    uma direção única,

    que

    expliquem,

    de

    mo

    do uniforme e

    homogêneo,

    as multiplicidades e as

    transforma

    ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou

    "progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti

    nuidades ininterruptas

     

    de

    uma teleologia segura. Ainda mais,

    assegurando a linearidade

    do

    progresso, essas histórias salva

    guardam

    a

    unidade soberana do

    sujeito, "consciência históri

    ca"

    que

    se

    constitui

    em núcleo

    unificador

    ou

    centro

    originário

    capaz de

    reunir em

    si a explicação e

    portanto,

    a dissolução da

    heterogeneidade,

    da

    multiplicidade, da dispersão.

    Ao se

    salvar

    a linha segura da

    continuidade

    histórica, de

    algum

    modo salva

    se

    ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: Querer fazer

    da análise histórica o discurso do contínuo e fazer

    da

    consciên

    cia humana o

    assunto

    originário de todo devi r e de toda

    prática

    são as duas faces de

    um

    mesmo sis tem a de pensament,?JJ22.

    19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a

    uma

    questão", Tempo Brasileiro)

    28

    Rio de Janeiro, 1972,59.

    20. Ibid., 65.

    21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir,

    21.

    22. Ibid., 22.

    a filosofia como critica da cultura I 7

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    15/71

    Nem

    histórias do espírito, nem histórias globais, as históri

    as que Foucault

    escreve são, como ele

    mesmo

    as chama, histó

    rias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua sin

    gularidade de acontecimentos, em suas correlações,

    em

    suas

    transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que,

    no lugar de

    uma

    teleologia

    da

    continuidade e do progresso,

    buscam

    antes "detectar a incidência das interrupções 24, de sor

    te que se antes a descontinuidade equivalia ao impensável ,

    que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado

    me-

    diante sua integração numa explicação continuísta, passa agora

    a ser "um dos elementos fundamentais

    da

    análise histórica 25.

    O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra to

    dos os fenômenos

    em

    torno de um centro único - pri nc íp io ,

    significação, espírito, visão do mundo,

    forma

    de

    conjunto; uma

    história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dis

    persão 26. Concomitantemente, as

    histórias

    que Foucault escre

    ve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as aná

    lises dos discursos considerados quer

    em

    suas correlações inter

    nas, isto

    é,

    interdiscursivas, quer em suas relações com o extradis

    cursivo, isto é,

    com

    as práticas e as instituições sociais.

    À

    prática

    desse

    procedimento Foucault

    chamou

    primeira

    mente arqueologia e posteriormente genealogia . Sem dúvi

    da, reporta a Nietzsche

    não

    só o termo genealogia , como o

    modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreen

    dida

    como "história efetiva (Wirkliche Historie) à história tra

    dicional dos historiadores. Faz ver que esta última

    "reintroduz

    (e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história

    que reria por função recolher em

    uma

    totalidade bem fechada

    sobre si

    mesma

    a diversidade, enfim reduzida,

    do

    tempo; uma

    23. Cf. ibid., 17.

    24. Ibid., I .

    25.

    FOVCAULT,

    M., Réponse au Cercle d'épistémologie ,

    Cahiers

    p ur

    l analyse, 9, Paris, Seuil, 1968,

    10.

    26. FOUCAULT, M., L Archéologie du savoir, 19.

    8 I Foucault Si mplesmente

    história

    que

    nos

    permitiria nos

    reconhecermos em toda

    parte

    e

    dar a todos os deslocamentos passados a forma

    da

    reconcilia

    ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um

    olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva , ao contrário, a

    genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado

    imortal

    no

    homem"; reintroduz

    "o

    descontínuo

    em nosso pró

    prio ser,,28. A história tradicional,

    em

    sua perseguição da origem

    (Ursprung),

    considerando acidentais todas as peripécias que

    pu

    deram ter

    acontecido,

    todas

    as astúcias,

    todos

    os disfarces 29,

    pretende recuar ao reencontro de uma identidade

    enfim

    desve

    lada, essência

    única

    e sempre a mesma. Para a genealogia, ao

    contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida

    de pura de um sentido ou de uma essência; o

    que

    existe é preci

    samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca

    ras sob as quais

    não

    há um rosto a ser desmascarado: A genea

    logia

    é um

    carnaval organizado 30. Recolhamos estes traços da

    história praticada

    por

    Foucault

    na

    seleção de algumas passa

    gens

    em

    que ele explicita o perfil

    da

    genealogia. Primeiro, ela

    recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias:

    A

    genealogia

    não

    se

    opõe

    à

    história como

    a visão altiva e

    profun

    da do filósofo ao olhar de toupeir a do cientista; ela se opõe, ao

    contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações

    ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe

    à

    pesquisa da

    'origem '31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em

    direção aos discursos que compõem os saberes: É isto que eu

    chamaria de genealogia, isto

    é, uma

    forma

    de

    história que

    dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí-

    27. FOUCAULT,

    M.,

    Nietzsche, a genealogia e a história , in Microftsica do

    poder, 26.

    28. Ibid., 27.

    29. Ibid.,

    17.

    30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de

    metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc.

    31. Ibid.,

    16.

    a filosofia como crítica da cultura I 9

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    16/71

    nios de objeto etc.,

    sem

    ter que se referir a

    um

    sujeito, seja ele

    transcendente com

    relação

    ao campo de

    acontecimentos, seja

    perseguindo sua identidade vazia ao longo da história 32. Ter

    ceiro, ela

    não está preocupada com

    o progresso :

    Tenho esta

    precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressivi

    dade

    que

    se dá por princípio não tomar o ponto em que

    nos

    encontramos

    por final

    de

    um progresso

    que nos

    caberia recons

    tituir com precisão

    na

    história. Isto é, ter em relação a nós mes

    mos, a nosso presente,

    ao

    que somos,

    ao aqui

    e agora, este ceti

    cismo que impede que se

    suponha

    que

    tudo

    isto é melhor ou

    que é mais do que o passado (

    ..

    ). E não digo que a humanidade

    não progrida. Digo que considero

    um

    mau método colocar o

    problema

    'por

    que

    progredimos?'. O

    problema

    é

    'como

    isto se

    passa?'. E o

    que

    se passa agora

    não

    é forçosamente melhor, ou

    mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou

    antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito cons

    tituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma histó

    ria

    marcada

    pela

    descontinuidade

    dos acontecimentos, enten

    dendo-se por acontecimento , não

    uma

    decisão,

    um

    tratado,

    um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças , forças

    que no jogo da história não

    obedecem

    nem

    a

    uma

    destinação,

    nem a uma mecânica,

    mas ao

    acaso da luta , acaso do

    jogo que

    não é simples sorteio , mas antes risco sempre renovado (

    ..) 34.

    Mas a

    prática

    deste

    procedimento

    na escrita da história

    não

    é

    também

    movida

    ao

    acaso

    de

    um capricho. Afinal,

    por

    que

    tantas inversões ? Com efeito, não se trata

    pura

    e simplesmen

    te de

    efetuar substituições

    de algum modo

    arbitrárias: a conti

    nuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a

    linearidade pela diferença;

    nem

    de troca r o núcleo consciência

    por

    outro chamado discursos . Ao contrário, essa orientação

    32.

    FOUCAULT,

    M.,

    Verdade

    e

    poder , in

    Microfisica

    do

    poder

    7.

    33.

    FOUCAULT,

    M.,

    Sobre

    a prisão , in

    Microfisica

    do

    poder; 140.

    34.

    FOUCAULT,

    M., Nierzsche, a genealogia e a história ,

    in Microfoica

    do

    poder 28.

    3

    Foucault.

    simpl sm nt

    conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser

    inocente,

    funciona

    como uma estratégia

    porque

    calcada num

    comprometimento crítico com pretensões a

    uma

    eficácia políti

    ca. Ouçamo-lo mais uma vez: Uma edição

    do

    Petit Larousse

    que

    acaba de sair diz: 'Foucault:

    um

    filósofo que funda sua teoria da

    história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (

    ..

    ). Meu

    problema

    não

    foi

    absolutamente

    dizer: viva a descontinuidade,

    estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é

    possível que

    se

    tenha, em certos momentos e em certas ordens

    do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu

    ção, estas transformações

    que não

    correspondem à imagem tran

    qüila e

    continuísta que normalmente

    se faz? Mas o

    importante

    em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu

    de, ou melhor,

    esta

    rapidez e

    esta amplitude

    são apenas o sinal

    de outras coisas:

    uma

    modificação nas regras de formação dos

    enunciados aceitos

    como

    cientifi camente verdadeiros 35.

    Ora, é precisamente a eleição, para domínio

    da

    investiga

    ção histórica,

    daquilo que

    é aceito

    como

    cientificamente ver

    dadeiro

    que nos encaminha

    à

    abordagem

    dos vínculos dessa

    história com a questão

    da

    verdade enquanto assunto da filoso

    fia, e daí à compreensã o do que

    chamamos

    seu comprometimen

    to crítico com a cultura.

    Com efeito,

    ao

    privilegiar os acontecimentos discursivos

    como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es

    tudos: entre os discursos, aqueles

    que

    são reconhecidos como

    científicos e, entre estes, os

    que compõem

    a região mais cam

    biante e imprecisa

    que

    é constituída pelos saberes das chamadas

    ciências

    humanas.

    Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E

    essa estratégia

    se

    aloja no ponto de cruzamento entre a questão

    da verdade e os mecanismos

    do

    poder.

    Por

    um lado, ocupar-se,

    enquanto

    filósofo,

    com

    a questão

    da

    verdade significa aqui

    não

    ir

    em

    busca de

    uma

    essência a ser descoberta, mas descrever e

    35. FOUCAULT, M., Verdade e poder , in Microftsica do poder 3 4.

    a filosofia como crítica da cultura

    j 3

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    17/71

    analisar os modos como a verdade vem sendo historicamente

    produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento

    do

    jogo de regras - regras que são transformáveis de

    uma

    socieda

    de

    para

    outra, de

    uma

    época

    para

    a outra -

    que

    autoriza a

    qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a pro

    dução de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado,

    e

    ao mesmo

    tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a ques

    tão

    da

    verdade encarada segundo seus modos históricos de pro

    dução é ocupar-se

    também do

    vínculo circular que ela

    mantém

    com os modos de exercício do poder: o exercício

    do

    poder cria

    perpetuamente saber

    e,

    inversamente, o saber acarreta efeitos de

    poder 36.

    Assim, podemos dizer que,

    se

    a verdade é efeito do po

    der das regras

    segundo

    as quais

    determinados

    saberes têm a

    competência

    para

    a verdade, essa competênci a lhes atribui, por

    seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue

    não só

    o verdadeiro e o falso,

    como

    o

    permitido

    e o interditado,

    o correto e o errado, o normal e o patoló gico etc.). Eis a pergun

    ta de filosofia política

    que Foucault

    se coloca: Em uma socie

    dade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir dis

    cursos

    de

    verdade dotados de efeitos

    tão

    poderosos?,,37

    Ora,

    posto que em

    nossas sociedades ocidentais são os

    discursos reconhecidos como científicos os que compõem os

    saberes aceitos

    como

    verdadeiros, é desses saberes

    que

    tratará a

    genealogia. E posto que

    é

    a região das chamadas ciências hu

    manas

    a

    que melhor

    ou mais claramente permi te fazer ver aquele

    entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder,

    na

    medida em que ela envolve saberes cujo perfil epistemológi

    co ,

    por

    ser pouco definido 38, abriga combates, linhas de

    força, pontos de confronto, tensões 39, é sobre ela que vai par

    ticularmente

    recair a invesrlgação.

    36.

    FOUCAULT

    M., Sobre a prisão ,

    in

    Microfisica do poder,

    142.

    37. FOUCAULT M., Soberania e disciplina , in Microfísica

    do poder,

    179.

    38. FOUCAULT M., Verdade e poder ,

    in

    Microfísica do poder, l

    39.

    FOUCAULT M.,

    Sobre a geografia , in

    Microfísica do poder, 154.

    3

    I Foucault. Simplesmente

    Nesse sentido pois, ocupando- se da análise das relações entre

    saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro

    duzem e se reproduzem, a genealogia

    pretende

    constituir-se em

    foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor

    um

    saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti

    cas atuais,,40. E isso

    duplamente.

    Busca, por

    um

    lado, recuperar,

    num

    trabalho que

    exige paciência e erudição,

    conteúdos

    histó

    ricos que

    foram

    subestimados ou silenciados pelo saber quali

    ficado das históri as tradicionais:

    mostra, por

    exemplo, de

    que

    modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o

    homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin

    do

    ao

    sujeito

    detentor do

    conhecimento sobre o homem a com

    petência que autoriza o domínio de seus objetos , dissoci ando

    assim o sujeito do

    conhecimento que

    possui a verdade de seus

    objetos que nada sabem ; descreve, em face das histórias

    da

    Razão e do mesmo, a história

    da

    Desrazão e do Outro, revelan

    do os mecanismos correlatos

    de

    exclusão, de enclausuramen

    to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci

    mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po

    der

    na

    forma

    da

    disciplina etc. Por

    outro

    lado,

    é

    aliada

    da

    recu

    peração de saberes considerados ingênuos, hierarquicamente

    inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade

    (por

    exem

    plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.) .

    A

    genea

    logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição

    dos saberes na hierarquia de poderes

    próprios à

    ciência,

    um

    empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,

    isto é, torná-los capazes

    de

    oposição e de luta contra a coerção

    de

    um

    discurso teórico, unitário, formal e científico. 42

    Mais ainda:

    lembremos que

    enquanto a arqueologia pre

    tendia realçar principalmente as epistémes isto

    é,

    o nível das

    40. FOUCAULT M.) Genealogia e poder , in Microfísica

    do poder,

    171.

    41. Ibid., 170.

    42. Ibid., 172.

    a filosofia como critica da cultura I

  • 8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net

    18/71

    correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente

    ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as

    estruturas

    sociais. Lê-se, por exemplo,

    numa

    passagem de

    Vigiar

    e punir: O sistema carceral reúne numa mesma figura discur

    sos e

    arquiteturas, regulamentos

    coercitivos e proposições cien

    tíficas

    ..

    43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação

    que

    lhe é

    dirigida

    por um entrevistador: Você mostrou

    como

    o saber psiquiátrico traz ia consigo, pressupunha, exigia a reclu

    são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da

    prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia

    política a estrutura

    da

    fábrica 44. Enten de-se ass im que, ao esta

    belecer a

    história

    da

    constituição

    dos saberes explicitando seu

    vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como

    peças

    nas

    tramas de uma rede - por ele chamada de disposi

    tivo - que envolve

    tanto

    as inter-relações dos saberes como

    suas articulações com as práticas institucionais.

    Ora, sem entrarmos

    na

    pluralidade possível de acepções

    que podem ser cobertas pelo termo cultura , nem nos diferen

    tes ângulos sob os quais

    pode

    ser

    abordado e, menos

    ainda, nas

    muitas questões que suscita, poderíamos considerar cultura ,

    de um modo

    tão

    geral quanto simples, o conjunto de saberes

    teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se

    move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam

    as possibilidades de nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido

    que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos histórico

    filosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar

    uma

    crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura qualificada .

    E, finalmente, não há

    que

    se esquecer que, contudo, essa

    crítica da cultura, esse t r b ~ l h o filosófico de constituição de

    43. FOUCAULT, M., Surveiller et

    punir

    Paris, Gallimard,

    1975,276.

    44. Cf. Sobre a geografia ,

    in

    Microfísica

    do

    poder

    16l.

    45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses Paris, Gallimard, 1966, Préface,

    11.

    É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente

    usado neste Prefácio.

    4

    Foucau t.

    simplesmente

    um saber histórico das lutas é, ele próprio, (saber , partícipe

    da

    história e

    da

    cultura . Daí o cuidado insistente de Fou

    caulr em não se vir a rransform ar a análise realizada pelas ge

    nealogias em outro saber centralizador

    ou

    monopolizador

    da

    verdade

    e,

    portanto,

    habilitado

    para o poder. Assim, em opo

    sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem

    um

    caráter

    local e específico

    46

    Em

    oposição

    ao

    teórico legislador , Fou

    cault sonha com o intelectual destruidor das evidências e das

    universalidades 47. Neste sentido , escreve Roberto

    Machado,

    «nem a arqueologia,

    nem, sobretudo,

    a genealogia têm

    por

    objetivo fundar

    uma

    ciência, construir

    uma

    teoria

    ou

    se consti

    tuir

    como

    sistema: o programa

    que

    elas formulam é o de reali

    zar análises fragmentárias e transformáveis. 48

    Essa mobilidade

    que

    é

    constitutiva

    da postura mesma

    das

    investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de

    quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E

    permite

    que

    reencontremos, a respeito da filosofia e da histó

    ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que

    apontávamos

    em nossas pr imeiras considerações em torno de

    Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter

    nativa entre

    uma

    história atravessada por

    um

    sentido teleológi

    co e uma

    história

    desprovida

    de

    sentido porque concebida

    como

    um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen

    te tanto a ininteligibilidade da

    história

    como as pretensões de

    uma

    História Universal inteiramente desdobrada diante do his

    toriador como o seria

    sob

    o olhar de

    Deus,,49.

    As histórias

    que

    Foucault

    escreve, além de avessas a

    qualquer

    aspiração de uni

    versalidade, assumem,

    na

    prática, aquela simultaneidade entre

    46.

    Cf.

    principalm ente Verdade e poder , Genealogia e poder , Os

    intelectuais e o poder ,

    in

    Microfísica ..

    47.

    FOUCAULT,

    M., Não ao sexo rei ,

    in

    Microfisica

    do

    poder

    242.

    48. MACHADO R., Introdução , in

    Microfísica

    do poder XIII.

    49. MERLEAU-POl\. TY, M., Le métaphysique

    dans

    l'homme , in

    Sens

    et

    non·sens

     

    158,

    Ver

    também, Éloge .. 59.

    a

    filosofia como

    crítica da cultura

    5

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    a ausência de

    um

    sentido único e a presença de inteligibilidade,

    agora,

    porém,

    conduzindo este

    aparente

    paradoxo a uma

    nova

    direção: A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que

    seja absurda ou incoerente. Ao

    contrário,

    é inteligível e deve

    poder

    ser

    analisada em

    seus

    menores

    detalhes,

    mas segundo

    a

    inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas 50. Segundo,

    e

    conseqüentemente, afirmando que

    é pela inerência a uma

    situação

    histórica particular que podemos compreender a sig

    nificação de

    outras

    situações

    que compõem

    a

    trama da

    histó

    ria, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal

    de

    um espectador abso

    luto,

    de

    um

    conhecimento

    sem

    ponto

    de

    vista,,51. Afinal, nem

    ilusão retrospectiva ,

    nem

    ilusão prospectiva . Saber pers

    pectivo , eis como Foucault (na descrição

    da

    genealogia nietzs

    chiana) caracteriza a história: os historiadores

    que

    perseguem a

    neutra objetividade de

    uma

    consciência isenta e soberana pro

    curam, na medida do possível,

    apagar

    o

    que

    pode revelar, em

    seu

    saber, o

    lugar de onde

    eles

    olham,

    o momento em

    que

    eles

    estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua pai

    xão ; já o saber perspectivo ,

    ao contrário,

    sabe

    que

    é perspec

    tivo , olha de

    um

    determinado ângulo, com o propósito deli

    berado

    de apreciar, de dizer

    sim

    ou não , é um olhar

    que

    sabe

    tanto

    de onde olha como o que olha 52.

    Por ser perspectivo , e se saber assim,

    elaborado

    a partir

    da

    cultura que

    o torna possível,

    olha-a

    criticamente,

    mas

    a olha

    de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu

    mesmo

    olhar crítico, de

    sorte

    que, se provoca deslocamentos,

    que se dispor, ele próprio, a deslocar-se.

    50.

    FOUCAULT,

    M.,

    Verdade

    e

    poder , in

    Microfísica

    do

    poder

    5.

    51.

    MERLEAu-PONTY,

    M., Le

    philosophe et

    la sociologie ,

    in Éloge

    136.

    52. FOUCA.uLT, M., Nieczsche, a genealogia e a história , in

    Microfoica

    do

    poder

    30.

    6 I Foucault. Simplesmente

    O M SMO O OUTRO

    Faces da história da loucura

    De

    que

    valeria

    a

    obstinação

    do

    saber

    se ele

    assegurasse apenas

    a

    aquisição dos conhecimentos

    enão

    de certa maneira

    e tanto quanto

    possível odescaminho

    daquele que

    conhece? Existem

    momentos na

    vida

    nos

    quais

    a questão

    de saber se se pode

    pensar

    diferentemente

    do que se pensa

    e

    perceber

    diferentemente

    do que se vê é

    indispensável para

    continuar a

    olhar

    ou a refletir.

    M. FOUCAULT, o

    uso dos

    prazeres

    13.

    Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histó

    rias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o

    tempo que percor rem é quase sempre aquele que vai desde o fi

    nal do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa

    Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a

    chamada

    Idade Clássica (séculos

    XVII

    e

    XVIII).

    É

    possível sugeri r que a questão que, genericamente, po

    demos

    denominar

    do

    outro e

    do mesmo

    se

    estenda como

    um

    pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por

    propô-la, partindo

    de

    uma

    ilustração que está nas

    primeiras

    Conferência

    apresentada

    na

    VII Semana de

    Estudos em

    Filosofia

    da

    Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault

    e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995.

    o

    m smo

    e o outro j

    7

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    páginas

    do

    Prefácio de As palavras e as

    coisas.

    Trara-se da rero

    mada de uma classificação dos animais,

    citada

    por Jorge

    L

    Borges,

    supostamente extraída

    de uma

    enciclopédia

    chinesa.

    Segundo esta

    classificação, os animais se dividem em: a) per

    tencentes

    ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)

    leitões, e) sereias, f) fabulosos,

    g)

    cães

    em

    liberdade, h) incluí

    dos na presente classificação, i) que se

    agitam como

    loucos, j)

    inumeráveis,

    k)

    desenhados com um pincel fino de pêlo de

    camelo,

    I)

    et

    cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que

    de

    longe parecem

    moscasJ1

    1

    .

    Esta

    classificação

    reúne

    de

    modo incongruente

    categorias

    sem

    nexo que, a nós, parecem impossíveis de nomear, falar, pen

    sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de

    nomear,

    falar,

    pensar

    podem

    ser analisadas em torno de três termos:

    ordem)

    lugar,

    espaço. Com

    efeito,

    uma

    ordem

    que, naquela classifica

    ção, parece vincular a seqüência

    das

    classes

    nela

    reunidas, a sa

    ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta

    ordem

    que ali pa

    rece

    não

    caber . A

    estranheza da

    ordem

    está em

    sua articulação

    com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e

    sua

    ordenação,

    ainda que meramente

    alfabética:

    O absurdo

    ar

    ruína o

    e

    (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade

    o em (lugar)

    onde

    se repartem as coisas enumeradas 3.

    Ordem e lugar, porém, dependem de um

    espaço

    homogê

    neo e comum dentro

    do

    qual somente

    ou

    sobre o qual as

    coisas

    possam

    ser localizáveis e ordenáveis,

    espaço

    que torna

    possível

    nomeá-las,

    dizê-las, pensá-las. Assim, é a

    justaposição

    desse e (ordem), desse em (lugar) e desse

    sobre

    (espaço) que

    instaura, para

    nós, a

    estranheza dessa

    classificação

    4

    .

    Estranhe

    za, porém,