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Frágil: Uma Notícia Sobre o Medo

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Livro escrito por Roberto Lôbo e publicado pela Omni Editora.

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Roberto Lôbo

FRÁGILUma notíciasobre o medo

© C O P Y R I G H T 2007 Roberto Lôbo

DIREÇÃO EDITORIAL Luís-Sérgio SantosCOOREDANAÇÃO DESTA EDIÇÃO Osvaldo Araújo

CAPA Camila Barros

Xilogravura de Nicolas le Rouge — 1496.

ISBN 978-85-88661-98-1

Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido por nenhum meio mecânico ou eletrônico, incluindo fotocópia, scanner,

duplicação ou distribuição via internet, sem autorização escrita do editor.

O M N I E D I T O R A A S S O C I A D O S L T D A . Rua Joaquim Sá, 746 n Fones: (85) 3247.6101 e (85) 3091.3966

CEP 60.130-050 n Fortaleza, Ceará, BrasilE-MAIL [email protected]

www.omnieditora.com.br

Sumário

Apresentação A permanência das idéia, 09

Apresentação Complexo e paradoxal, 11

Apresentação Profunda Coerência, 09

Capítulo 1 Nasce a vida, nasce o medo, 21

Capítulo 2 É humano ter medo, 23

Capítulo 3 Uma antropologia do medo, 26

Capítulo 4 O medo leva ao grupo, 29

Capítulo 5 O medo leva aos fantasmas, 30

Capítulo 4 A fantasia nasce no fundo das cavernas, 32

Capítulo 7 O fantasma ganha espírito, 33

Capítulo 8 Os primeiros cultos eram rituais defensivos, 39

Capítulo 9 Fantasmas bons e fantasmas maus, 43

Capítulo 10 O medo dos fantasmas e a criação de Deus, 48

Capítulo 11 A crença em fantasmas e suas implicações na vida social, 53

Capítulo 12 O medo e o papel dos mitos, 54

Capítulo 13 O medo e a pluralidade de deuses, 56

Capítulo 14 O medo e a cultura religiosa, 58

Capítulo 15 A Antiguidade e a cultura do medo, 59

Capítulo 16 O medo e a figura do demônio, 61

Capítulo 17 A superstição é filha do medo, 63

Capítulo 18 A personalidade e os medos adquiridos na infância, 68

Capítulo 19 As manifestações do medo, 75

Capítulo 20 O medo de não satisfazer as expectativas sociais, 76

Capítulo 21 Sobre o vazio existencial e o medo da solidão, 77

Capítulo 22 O medo da morte e o anseio de vida eterna, 83

Capítulo 23 O medo de amar e a incapacidade de entrega, 86

Capítulo 24 O crescimento pessoal e o medo do desconhecido, 88

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS COMENTADAS, 91

O indivíduo saudável avalia equilibradamente tudo o que a situação sinaliza e escolhe enfrentá-la, caso os obstáculos possam ser superados.

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Apresentação

A permanência das idéias

O que você quer é a imortalidade, disse Goethe.A imortalidade é um eterno processo (...)- Você fez tudo para tornar-se imortal.- Bobagem, apenas escrevia livros.- Exatamente! Exclamou Goethe.

Milan Kundera

P ara o autor deste diálogo imaginado entre Goethe e Hemingway,

existem duas imortalidades: “a pequena — recordação de um

homem no espírito daqueles que o conheceram”, e a “grande —

recordação de um homem no espírito daqueles que não o conheceram.”

Com certeza, Roberto já alcançou a primeira, imprimindo lem-

branças e idéias indeléveis na memória de muitas pessoas: familiares, co-

legas, pacientes, leitores fiéis ( alguns colecionam seus escritos publicados

em jornais e revistas da cidade) e ouvintes, atraídos por suas palestras e

conferências em congressos e jornadas de Psiquiatria e Psicodrama.

Roberto se distingue entre os que se distanciam da mediocridade,

aqueles que apresentam, como ele, grandes defeitos e grandes qualida-

des. Destas, emergem sua criatividade, sua independência de pensamen-

to e sua firmeza na realização de metas e ideais.

Foi possível observá-lo em plena ação criativa, ao trabalharmos

juntos no atendimento de grupos psicodramáticos, durante dois anos. Ar-

quitetava cenas que se enquadravam com perfeição ao diálogo necessário

à compreensão do dinamismo psíquico dos participantes e, com maestria,

complementava as interações que acenavam com uma libertação interior.

Kundera afirma que “existem carreiras que, por princípio, con-

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frontam um homem com a grande imortalidade, incerta, é verdade, até

improvável, mas incontestavelmente possível: são as carreiras de artista e

de homem de Estado.”

Frágil — uma notícia sobre o medo, embora faça parte de uma

literatura especializada, é acessível ao leigo. Assim, Roberto se credencia à

grande imortalidade, pois certamente conquistará a admiração e o respeito

dos leitores que não o conhecem.

Em linguagem elegante e simples, o autor faz a exegese do medo,

desde os meandros longínquos dos povos primitivos até a contempora-

neidade, direcionando para a compreensão de sentimentos atuais como o

medo de amar.

Este livro, portanto, representa a permanência das idéias de um

homem dedicado ao saber e ao desvelamento da mente humana, configu-

rando uma real imortalidade

Sônia Lobo

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Apresentação

Complexo e paradoxal

F rágil. Quebradiço, fraco, pouco durável, sujeito a erros e culpa,

adjetivo de uma só forma para os dois gêneros, diz o Aurélio.

Diferentemente da letra R, de Roberto, Rodrigo e Rafael,

Frágil é o nome do filho caçula do colega e amigo Roberto Lobo; títu-

lo do livro que os convido à leitura. Frágil é o título, o tema é o medo,

vocábulos de apenas duas sílabas, mas que encerram muito significa-

do.

Seu autor, Roberto Lobo, médico psiquiatra, exemplo de

filho, irmão, marido, pai, amigo, eu o conheci, em 1969 na Casa de

Saúde São Gerardo (hospital de psiquiatria). Eu e mais três colegas

acadêmicos que se interessavam por psiquiatria, fomos apresentados

a ele, já médico. Na oportunidade, seus grandes olhos assumiram um

tamanho maior ainda, em midríase bilateral, ao se fixarem na colega

Sônia Carneiro, que, poucos anos depois, se tornaria Sônia Lobo, sua

companheira de vida, mãe de seus filhos e também parceira de muitos

trabalhos profissionais.

Roberto Augusto de Mesquita Lobo, cearense de Santa Quité-

ria, este homem perspicaz, objetivo, dinâmico, empreendedor, tenaz,

criativo, alegre, afetivo, do violão e do canto, foi um menino ativo e

prescrutador, na fazenda de seu Luís Lobo e de dona Julita (seus pais)

e realizou muitas peripécias em que superou receios e obstáculos em

seus folguedos lúdicos, no ambiente sócio-geográfico da zona rural.

Os atos de subir em árvores, embrenhar-se nos matos, buscar pássaros,

andar à cavalo, cair, banhar-se em represas, com liberdade, prazer e

alegria, estimularam sua espontaneidade e contribuíram significati-

vamente para o perfil de sua personalidade. Superados os desafios

infantis, vieram os da juventude, a mudança para a capital, os afazeres

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e a disciplina da caserna, (em breve período), o estudo da medicina, a

opção pela psiquiatria.

Em seus desafios, Roberto, em associação com o Dr. Leão San-

tiago e o Dr. Glauco Lobo, criou uma organização hospitalar (Hospital

Mira y Lopez), em meio a muitas dificuldades. Depois, buscou, na Cidade

Luz, auferir conhecimentos da psiquiatria francesa. Ao retornar ao Ceará,

Roberto, com a ajuda de outros colegas (e iniciativa da mulher) contribuiu

decisivamente para a implantação do Psicodrama no Ceará, um instru-

mento para muitos psiquiatras e psicólogos de organizações públicas e pri-

vadas e um benefício para a comunidade. Com outros colegas, participou

da criação da Associação Cearense de Psicodrama e idealizou e liderou a

criação do Instituto do Homem, órgãos de formação de psicodramatistas..

Incorporou o método psicoterápico de Moreno às suas atividades profis-

sionais, em ambulatório público, em hospital, em escola, na clínica priva-

da, nas aulas dos cursos de formação e de especialização em psicodrama.

Psicodrama bipessoal, de casal, de família, de grupo, passaram a constituir

sua prática quotidiana. Por ter tido o prazer de participar, como psico-

dramatista, de várias de suas atividades profissionais, e de tantas outras,

lúdicas e sociais, pude testemunhar a sua competência, seu talento e sua

extraordinária criatividade. Já há algum tempo, Roberto passou a escrever

artigos em jornal e revista locais.

Provocado por parentes, amigos, clientes e leitores, o dileto amigo

empenhou-se em nova realização, a de escrever um livro. Ei-lo, que surge:

Frágil, uma notícia sobre o medo. Para mim, foi uma agradável e honrosa

surpresa, o convite para ser um dos apresentadores.

Frágil é como o ser humano se sente, em muitas ocasiões, quan-

do tomado pela experiência subjetiva do medo, um dos gigantes da alma

(lembro Mira y Lopez). Este fenômeno é um companheiro presente

na história da humanidade. É nosso aliado em muitos instantes e nosso

adversário implacável em muitos outros. Instantes há, em que somos

senhores dele; em diversos outros, ele é nosso senhor. Complexo e pa-

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radoxal, como nós!!!

Os conteúdos discorridos pelo autor, logo adiante, são produtos de

muita leitura, muita reflexão sobre elas, de suas vivências como pessoa,

em diversos papéis e, muito particularmente, das reflexões sobre a prática

da clínica, do trabalho diário com o medo, esta emoção tão presente na

clientela. Ele trata o tema numa exposição clara, leve e rica.

Uma notícia sobre o medo não deixa de ser um eufemismo, em

face da configuração de conteúdos encontrados sobre esta emoção, num

Frágil que é forte.

Este livro trata, não só dos atributos próprios que caracterizam o

medo, mas também de aspectos sociológicos, antropológicos, históricos.

O autor, pois, aborda o fenômeno do medo em suas diversas formas de

expressão, em contextos os mais variados, na sua participação da forma-

ção e desenvolvimento da personalidade do indivíduo, na família, em fe-

nômenos sociais, na mitologia, nas práticas religiosas, em fatos históricos

relevantes.

Logo no início, o leitor encontrará considerações sobre a gênese

da vida biológica e do medo e poderá se tranqüilizar de não sentir vergo-

nha de ter medo, por ser este um fator humano que viceja em simbiose

com o desejo, sem os quais o ser humano não evolui. Logo, ele, o medo,

é apresentado em seu paradoxo, de ajuda e de obstáculo. Num momento

o autor revela que ele leva ao processo grupal, noutro, que leva à ideação

dos fantasmas, bons e maus, dos rituais defensivos, e fala das crenças me-

drosas e suas implicações no papel dos mitos, na pluralidade dos deuses,

no papel atemorizador do demônio, na superstição.

Num outro espaço do livro, no capítulo 20, o medo aparece na não

satisfação das expectativas sociais, o medo do fracasso.

O leitor, se se permitir exercitar sua curiosidade e avidez pelo

tema singular, encontrará no capítulo 21a referência ao medo, em forma

de vazio existencial e ao medo da solidão, em seus aspectos mais tolerá-

veis e também nos seus mais sofridos, fruto da dicotomia existencial do

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homem, integrante e separado da natureza, pela consciência (relembro

Erich Fromm).

Nos capítulos finais, o autor ocupa-se de outras fortes expressões

de medo: o medo da morte com o desejo de vida eterna e o medo de amar,

de entregar-se. A leitura pode estimular a uma reflexão sobre o medo da

morte, esta possibilidade autêntica (para lembrar Heidegger). A sua ne-

gação, sua escotomização da consciência e seu conseqüente refúgio no

inconsciente (lembro Freud) possibilitam que seu conteúdo constitua

um importante núcleo de “coex” a integrar a “sombra” da personalidade

(lembrando Grof e Jung) e a comprometer a autonomia do ego, o que o

autor afirma como inapropriado para uma convivência social saudável.

Ainda, de forma clara e amena, encontramos o comentário à iden-

tificação do medo de amar nas insatisfações das relações amorosas, que

Roberto tanto trabalhou em sua clientela.

Por fim, no último capítulo, são destacadas as considerações filo-

sóficas sobre o crescimento pessoal, sobre a necessidade de se vencer a

inércia, necessidade de abertura para o novo, para que haja a transforma-

ção do ser. Transmutação da energia do medo? (lembro F. Perls).

O tema me parece interessante, oportuno, atual, num momento

em que nós humanos ainda vivenciamos o medo a todo instante: medo

de doenças, medo de assalto, de seqüestro, medo de bala perdida, de aci-

dente, medo de desastres ecológicos, medo de guerras, medo de fracasso,

medo do inferno, medo da morte, medo de amar. Quem sabe, medo de

ler sobre o medo?

Oxalá o leitor não tenha medo de servir-se, á vontade, de Frágil,

pois em si, ele não é o próprio medo, mas é mais que uma notícia (interes-

sante e saborosa) sobre o medo.

Jucionou Coelho Silva

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Apresentação

Profunda coerência

Q uando interpelada por Roberto Lobo a escrever uma “Apre-

sentação” para este Frágil: uma notícia sobre o medo, foram

dois os principais sentimentos: o de sentir-me profunda-

mente honrada, presenteada mesmo, com a escolha e o de uma certa

surpresa. Desde quando o doutor Roberto precisa de apresentação? O

psiquiatra respeitado por seus pares e tão querido por seus inúmeros

pacientes, que carrega, entre seus muitos feitos, o de ser um dos pio-

neiros do Psicodrama no Ceará, fundador que foi da Associação Ce-

arense de Psicodrama (ACEP) e seu primeiro presidente;o terapeuta

com especializações no Institut Riviére e no Hôpital Sant’Anne de

Paris; o fundador/idealizador do Hospital Mira y López e da Fundação

Instituto do Homem, que formou tantos de nossos psicodramatistas,

indubitavelmente dispensa apresentações.

Conheço Roberto Lobo desde 1990. Tem sido, ao longo destes

anos, meu professor, terapeuta, supervisor, colega de trabalho e Ami-

go. Juntos, trabalhamos por vários anos com terapia de grupo em seu

belo consultório debruçado sobre a Beira-Mar. (Sempre brincamos

que a vista, por si só, já era terapêutica).

Em nenhum momento, o dr. Roberto (mantenho aqui o “dou-

tor” como fórmula de respeito, que em absoluto impede o sentimento

de amizade) deixou de transparecer a profunda coerência, a “presença

em si”, a retidão de caráter aliada à profunda compreensão e compai-

xão pelo ser humano, que são suas marcas registradas. E como deixar

de fazer referência nesta “Apresentação” à sua alegria de viver, a seu

senso de humor que transbordavam na acolhida calorosa, no abraço

terapêutico, com que recebia cada paciente? Relembro aqui o de-

poimento da psicanalista famosa, que, em idade avançada, avaliando

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seu próprio trabalho, dizia ter ajudado apenas os pacientes frente aos

quais humanizou-se. A contabilidade do dr. Roberto é bem mais ge-

nerosa. A humanidade neste sentido parece nunca ter se ausentado de

seu exercício profissional.

Ademais, acostumamo-nos todos a ser presenteados, de forma

bissexta, com as suas crônicas inteligentes. Publicadas, de forma mais

esporádica do que desejaríamos, forçavam-nos a pensar, a tirar folga

da rotina do não-aprofundamento das nossas grandes (e nunca esgo-

tadas) questões.

Sob o título instigante de Frágil: uma notícia sobre o medo,

estão 25 capítulos arrumados em duas partes principais. Na primeira,

encontraremos uma compilação da história dos medos de nossa espé-

cie e seus desdobramentos, as superstições, e, na segunda, as defesas

que erigimos para enfrentá-los no entrecruzamento entre a história co-

letiva e a individual. Aí, sobretudo, encontraremos a rica experiência

do autor e sua filosofia de vida. Subitamente, entre um parágrafo mais

erudito e outro, quase que ouvimos — literalmente — a voz do autor,

a presentear-nos, a compartilhar conosco, o que aprendeu e decantou

na tessitura de sua existência. Sua generosidade transborda ainda nos

comentários à bibliografia consultada que vêm no final do livro. Bi-

bliografia que nos dá a pista da riqueza dos interesses e da inquieta-

ção existencial do autor, pois reúne historiadores de porte a teólogos,

cientistas sociais, filósofos e, last but not least, psicoterapeutas.

Por fim, a preocupação legítima com os rumos de nossa civi-

lização e com a sobrevivência de nosso planeta transparecem a cada

linha revelando o quão antenado está Roberto Lobo à época a qual

pertence. Referenda assim a indagação de Jean Delumeau: “Refina-

dos que somos por um longo passado cultural, não somos hoje mais

frágeis diante dos perigos e mais permeáveis ao medo do que nossos

ancestrais?”.

Algumas das possibilidades de resposta a esta pergunta e, mais

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ainda, as pontes possíveis para que a superemos, a frágil esperança,

estão nas páginas deste livro que agora temos nas mãos.

Caterina de Saboya Oliveira

A única maneira de melhor administrar e fazer jus à grandiosidade que é o fenômeno humano é tomar

consciência da sua existência.”

Roberto Lôbo“

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Capítulo 1

Nasce a vida, nasce o medo

O tempo é lento e longo, impossível de medir. Porém, é preciso

voltar aos tempos mais remotos para imaginar o inimaginável

momento da criação da vida, fenômeno de entranhas obscuras,

que está sendo recriado pelo conhecimento científico. Tal extraordinária

história da vida sugere um cenário inicial caótico: vidas desabrocham e

extinguem-se em profusão, em pequenos eventos bioquímicos rápidos e

sutis. Mutações estonteantes acontecem ao sabor do acaso. Neste proces-

so repetitivo e demorado, neste ambiente pleno de casualidades, algumas

vidas resistem às condições insalubres do meio e inauguram novos proces-

sos, anexam-se umas às outras, expandem-se, dividem-se, reproduzem-se,

passam a existir enquanto espécies, incorporando à sua estrutura orgânica

esses — digamos — ajustes adaptativos.

São ajustes incorporados que se tornam duradouros, quando tra-

zem alguma vantagem adaptativa para a espécie, tornando-a mais resis-

tente às hostilidades que a cercam, ameaçam e agridem. Assim, consta-

ta-se que as forças mais primitivas do organismo vivo têm um objetivo

preciso e não requerem aprendizado: há uma aptidão inata e uma articula-

ção automática das atividades mais elementares. Um movimento que flui

para a vida, onde tudo está permanentemente em busca da sobrevivência.

Ademais, as chances de sobrevivência aumentam de maneira significativa

com a adoção de alguns inovadores mecanismos de proteção, que se carac-

terizam pelo poder de estimular: os impulsos e os instintos.

É abissal a distância, no tempo, entre o hoje e o momento na

biologia em que surgem os impulsos e instintos. É revelador da força da

natureza o fato de que ambos ainda usem os mecanismos originais, fun-

cionem do mesmo jeito e continuem responsáveis pelo destino de todos,

pelo sucesso de uns e pelo desatino de outros. A anexação ao organismo

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destas duas aquisições individuais criou e garantiu o poder de indu-

zir determinados estados fisiológicos, que, com o passar do tempo,

ganharam visibilidade em nossa intelecção, e hoje respondem pelo

nome de “emoções”.

Emoções... são tantas! São a própria sensação de existir. Tornam

a vida complexa, rica, colorida, dando-lhe tempero indispensável. São

tantas e tão freqüentes, tão à flor da pele, que quase se ignora o quanto

são profundas, antigas e primitivas as suas raízes. A evolução da família

humana deve muito a uma dessas emoções mais primitivas: o medo. Os

seres que sobreviveram e evoluíram foram sempre exatamente aqueles

que aprenderam a identificar e a selecionar as situações e os elementos

capazes de conformar ameaças à sua constituição e preservação.

O medo é uma emoção fundante: faz parte do repertório fisioló-

gico de defesa de todo ser vivo e existe para preservar a vida. É também

uma emoção inseparável dos seres vivos e, em se tratando do ser humano,

a sua compreensão e seu funcionamento tornam-se um pouco intrincados

e complexos, na medida em que, possuindo psiquismo — uma mente cria-

dora —, o homem tem a capacidade de engendrar novos medos, medos

que podem muito, medos capazes de provocar reações em cadeia e desdo-

bramentos vários, como o comprometer do processo natural de formação

da personalidade. Para superá-los, há a necessidade de que o indivíduo

seja capaz de distinguir quais são os medos que realmente têm a ver com

ele, e têm uma sadia função, daqueles que nele foram incrustados, pela fa-

mília e pela cultura, e tendem a trazer apenas desarmonia e desequilíbrio.

Ao ultrapassar a primeira barreira da distinção entre os diversos tipos de

medos, o indivíduo estará apto a enfrentá-los, e poderá talvez reencontrar

a espontaneidade e a alegria de viver.

Os medos mais primários foram adquiridos durante a formação

das espécies. Entre eles, temos o medo da dor física, o medo do fogo e

dos fenômenos naturais, além do medo das feras e dos animais peço-

nhentos. O medo de cobra é comum a quase todos os animais. O bebê

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humano e o filhote de outras espécies animais, por exemplo, reagem

instintivamente, sem aprendizado prévio, com afastamento e temor à

presença de qualquer ofídio.

O medo pode, porém, ter um efeito devastador na vida do indi-

víduo, levando-o a perder a capacidade de pensar e agir com espontanei-

dade. O medo pode confundir o homem: posto diante do que seria uma

oportunidade, o indivíduo afetado afasta-se da situação, porque esta lhe

parece constituir uma ameaça à vida e à própria personalidade. A sensação

causada pelo ambiente de terror que envolve essas pessoas é que finda

por decidir como e quando é preciso atuar. E a decisão, nessas circunstân-

cias, não é boa. A escolha de que situação enfrentar, e de como e quando

enfrentar, poderia ser feita com racionalidade. O indivíduo saudável avalia

equilibradamente tudo o que a situação sinaliza e escolhe enfrentá-la, se

a relação risco-benefício se apresenta favorável, caso os obstáculos possam

ser superados. Então, ele arma-se de todas as suas potencialidades para

aproveitar a oportunidade ou, se for o caso, reúne todas as forças para en-

frentar as agruras da realidade.

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Capítulo 2

É humano ter medo

D as emoções humanas, o medo é talvez a mais antiga. Possivel-

mente, somente a sensação de dor o antecede. Em detalhe, o

medo se expressa através de uma mobilização psicofísica. Ao

sentir-se em face de algum tipo de perigo, real ou imaginário, o organismo

reage com o disparar de modificações neuroendócrinas e circulatórias, que

afetam toda a situação de equilíbrio anterior.

Dentro do processo evolutivo, a aquisição da mente e o alarga-

mento posterior de suas fronteiras deram origem a uma nova categoria

de medo: os de natureza psíquica. Estes medos só os têm aqueles que,

de algum modo, são capazes de imaginar e idear a sua própria existência.

Assim, são muito comuns e inseparáveis da condição humana.

A nascente mais primária destes medos está nas dificuldades que

o indivíduo encontra durante o processo de formação da personalidade.

Suas raízes geralmente estão fincadas na história da pessoa e na interação

desta com o ambiente familiar — sobretudo, com a mãe.

Muitos destes medos são transmitidos e assimilados através do am-

biente sócio-cultural como “realidades”. Aprendemos desde a mais tenra ida-

de a crer que determinadas emoções são “más”, enquanto outras são “boas”.

No entanto, as emoções não estão vinculadas a qualquer código moral: as

emoções não são nem contrárias nem conforme a moral: são amorais. Senti-las

é bem diferente de comportar-se exatamente (agir) com base nelas.

A inaptidão para lidar com as emoções é o que mais embaraça

a convivência social. Aliás, todas as vezes em que o indivíduo dá-se o

desplante de agir ao sabor das emoções, ele corre o risco da prática de

atos inconseqüentes.

Assumir que sentimentos como o egoísmo e a desambição, a do-

minação e a submissão, a avareza e a generosidade, a frouxidão e a afoiteza

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e a inveja e a despretensão existem, em maior ou menor intensidade, na

estrutura de cada pessoa, é mais conveniente do que simplesmente repri-

mi-los. A questão é que se perde o domínio do destino quando, consciente

ou inconscientemente, a existência das emoções primitivas é negada.

Ora, mais importante do que reprimir as emoções (ou mesmo

apenas negá-las) é tomar consciência de sua existência e buscar ter um

controle sobre as mesmas. Quando do início do processo de socialização,

na primeira infância, temos a oportunidade de observá-las com mais faci-

lidade. Estas emoções também são reconhecidas por ocasião de uma psi-

coterapia mais aprofundada. Nas palavras de Jean-Yves Leloup:

“É bom lembrar que o homem evolui através do desejo e do

medo. Não há medo sem um desejo escondido, e não há desejo que não

traga consigo um medo. O desejo e o medo estão ligados. Temos medo do

que desejamos e desejamos o que nos faz medo. Na evolução de um ser

humano, o medo não superado e o desejo bloqueado vão gerar patologias.

O medo superado e o desejo não bloqueado vão permitir a evolução”.

A História mostra que o equilíbrio e o comedimento pessoais

acontecem quando os indivíduos conseguem situar-se no “espaço inter-

mediário” que separa os extremos das emoções contraditórias. Portanto, a

única maneira de melhor administrar e fazer jus à grandiosidade do fenô-

meno humano é tomar consciência da sua existência.

A verdade é que a vida social harmônica é incompatível com o

descontrole e o predomínio de emoções primitivas, o que não significa

negar a existência da energia bestial que pulsa dentro de cada pessoa.

Nesse contexto, a idéia de autoconhecimento passa pelo reconhecimento

e domínio dos instintos bestiais. Negá-los pode conduzir à hipocrisia e até

mesmo causar uma aversão da pessoa a si própria.

O medo, ao mesmo tempo em que protege, pode impedir o fluxo

espontâneo da vida. Dependendo da sua intensidade, pode levar à perda

da capacidade de pensar e agir com naturalidade. Em tese, quanto mais

ampla for a consciência e o controle em relação aos medos e desejos, maior

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será a possibilidade de alcançar a estabilidade interior e o equilíbrio das

condutas. Perde-se a chance de ter uma vida participativa e construtiva

por medo ou vergonha — consciente ou inconsciente — de não admitir

sentimentos socialmente rejeitáveis. Negá-los é a maneira mais fácil de

continuar infeliz e medroso.

Os sentimentos ignorados causam mais problemas do que aqueles

conscientes. Daí porque alguns indivíduos tendem a manter os relacio-

namentos num nível muito superficial, para proteger a intimidade. Esta

experiência leva ao artifício mental de julgar que a sensação de “não ver”

resulta no mesmo que “não ter”. Mas agir como a avestruz não livra nin-

guém do seu lado bestial, simplesmente porque se lhes fecha os olhos.

Não importa qual a astúcia utilizada, mesmo assim o medo continuará a

existir, na condição de “lado-sombra” da estrutura da personalidade.

Quando atinge a criança, o medo deve ser esclarecido. Não cabe

ao adulto ironizá-la ou emitir qualquer juízo de valor de modo pejorati-

vo. Uma palavra de encorajamento pode não surtir o efeito desejado. O

medo tem mais de uma face: uma leva à sensação de impotência, des-

perta temor e pessimismo. A outra é positiva — e funciona como algo

mobilizador do crescimento pessoal e social, podendo até ajudar a “dar

colorido” à personalidade.

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Capítulo 3

Uma antropologia do medo

C edo o ancestral primitivo teve que aprender a ajuizar desejos,

além de conviver com o medo. O desejo lhe trouxe ingredientes

emocionais que viriam a ter decisiva importância na construção

da condição humana.

O existir primitivo era marcado por uma permanente insegurança.

O ancestral estava mais para caça do que para caçador. Um dado significa-

tivo da evolução é exatamente o fato do homem ter sido um artífice deci-

sivo da sua própria condição. Tanto da sua construção propriamente dita,

quanto da sua expressão histórica e contemporânea. Nada disso teria sido

possível se ele não fosse dotado de uma estrutura capaz de desenvolver a

inteligência criativa e por meio dela criar as extensões sócio-culturais para

os membros e sentidos.

O domínio da agricultura foi um elemento importante no longo

e penoso percurso do homem primitivo. A garantia do alimento para os

dias seguintes atenuou muito a angústia da fome - o medo de não sobre-

viver. Este avanço técnico trouxe uma mudança radical no estilo de vida

tradicional: fixou o primitivo na terra e o induziu a conceber os primeiros

abrigos, esboços de edificações precursoras da aldeia, da vila e da cidade.

A busca de proteção levou o ancestral a construir cidades muradas

quando os grupamentos humanos saíam da Pré-História para entrar na era

das Antigas Civilizações.

Desde então, o homem caminhou seis mil anos até chegar à com-

plexidade do mundo atual.

O enfrentamento das hostilidades do ambiente foi um dos princi-

pais motores que levaram o homem em direção ao progresso - uma ques-

tão de sobrevivência. Não seria exagero dizer que o medo e o desejo ani-

maram as ações humanas desde os primeiros passos.

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A delicadíssima fronteira que separa o estado natural da civiliza-

ção humana começou a ser demarcada quando o selvagem teve a consci-

ência da própria existência.

O descobrir-se diferente num universo indiferenciado foi acom-

panhado da sensação de profunda solidão. Esta emoção foi experimentada

com um profundo estranhamento, logo seguido do sentimento de pânico,

base de outras emoções.

Para suavizar a surpresa da emoção de desamparo causada pela

percepção e pela sensação de “libertação” da natureza, o antepassado hu-

mano concebeu defesas psicológicas: máscaras, atrás da quais passou a se

esconder. Escondido atrás das máscaras, ele fez o seu “script”, e passou a

representar o próprio drama.

Ao interpretar o ator principal desta extraordinária aventura, tor-

nou-se uma “persona”, ou seja, experiência vivida ora na interação com os

seus semelhantes (tanto na dor como na perplexidade), ora ao enfrentar as

adversidades do meio-ambiente.

A força do grupo foi uma outra não-planejada aquisição que mui-

to contribuiu para o processo evolutivo humano. As inscrições rupestres

apontam que as primeiras experiências coletivas ocorreram no ambiente

úmido, lúgubre e escuro do fundo das cavernas. O medo é o elemento

que está por trás desta busca de segurança. A coexistência pelo medo es-

timulou as primeiras experiências de convivência social. Deste modo, foi

descoberta a importância da associatividade e a sua conseqüência mais

significativa: o poder da cooperação.

A experiência de enfrentar momentos adversos em grupo foi per-

cebida como positiva e ajudou a mitigar a necessidade de segurança. De

certa maneira, o fato ensejou a idéia de planejar ações futuras.

Ao longo do tempo, o hábito de agir sem refletir mostrou que atuar,

simplesmente, era uma atitude capaz de causar grandes danos. Já o ato de pla-

nejar e projetar-se para a frente pode ser entendido como uma manifestação

do instinto de preservação – uma defesa contra ameaças permanentes.

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A complexidade do mundo contemporâneo está colocando o ser

humano diante de outro grave problema, agora, por incrível que pareça,

criado pela ação dos grupos, dos grandes conglomerados detentores do

poder econômico. Por trás da superestrutura social construída há a busca

de segurança, mas, ela também cria outras situações de medo, tão primiti-

vas e cruéis, ou mais, que as vividas pelo ancestral no seu alvorecer. A ver:

“A exploração desenfreada fomentada pelas estruturas de poder cada vez

maiores, jogam a população na condição de mero figurante nesse drama

cujo papel principal foi tomado do homem. A sociedade organiza-se como

uma rede de relações de poder autoritário que se espraia não só pelas cha-

madas instituições políticas, mas por todas as relações sociais”.1

A idéia que os fatos colocam é imaginar a construção do psiquismo

a partir de um viés antropológico e cultural — matéria que trata dos cos-

tumes, condutas, crenças, organização social, ou seja, das características

sócio-culturais da humanidade.

1 Freire & Brito, p 29). Utopia e Paixão. Rio de Janeiro: Rocco. 1984

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Capítulo 4

O medo leva ao grupo

D e volta a um passado bastante distante, encontra-se a espécie hu-

mana com um status apenas ligeiramente melhor do que alguns

outros animais. O primitivo naquela condição era fraco e impo-

tente.

A história só é digna de ser contada a partir da formação de

algum tipo de vida social, do mínimo espírito de associação. A coopera-

ção social simboliza um fator extraordinário de sobrevivência. Aliás, to-

dos os instintos sociais humanos desenvolveram-se bem antes da área

intelectiva e espiritual: instinto maternal, fragmentos de cooperação,

curiosidade, criatividade, compaixão, altruísmo, competitividade são

sentimentos que têm raízes profundas na Pré-História. Contudo, são

anseios que também podem ser observados de maneira mais discreta

em outros antropóides.

O autocontrole é outra qualidade de relevo e que distingue o ser

humano dos outros primatas - a capacidade de modificar qualquer com-

portamento social, ainda que instintivo, de maneira a torná-lo mais útil

para a sua sobrevivência.

Quanto mais apto para controlar as emoções e os instintos, mais

maduro será o indivíduo. A maturidade humana tão ambicionada depen-

de de autocontrole, de planejamento e do realce do lado racional.

A antropologia cultural revela que o ser humano tem uma tendên-

cia inata a um comportamento egoísta: subordinar aos seus os interesses

do outro, razão porque não se pode afirmar que, em condições naturais,

seja o homem dado à cooperação.

Tudo leva a crer que a abnegação e o altruísmo não sejam inteira-

mente inatos. A doutrina que considera o egoísmo como princípio diretor

da conduta humana talvez corrobore esta assertiva.

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As características que dão uma superioridade ao homem não são

transmitidas de uma geração a outra pela hereditariedade direta. A civi-

lização é uma aquisição da espécie, conquistada em etapas — não é uma

ingerência biológica.

A humanidade foi construída na experiência de atividades grupais

iniciadas nas cavernas. A associatividade constituiu-se muito cedo na his-

tória humana, ao preço da busca permanente da sobrevivência.

A civilização é fruto de experiências plenas de frustrações e de

esforços do homem contra a morte violenta. Por essa trilha, a sociedade

humana evoluiu em ciclos milenares através de um cooperativismo re-

lutante. A busca de segurança motivou a experiência de reciprocidade.

Pode-se dizer ainda que o homem foi capaz de aprender a cooperar por

causa do medo.

Capítulo 5

O medo leva aos fantasmas

A luta contra as adversidades naturais teve uma evidente partici-

pação na evolução das espécies, porque incitava ao ato de viver

e empurrava os seres à sobrevivência. O medo dos fenômenos

naturais, por exemplo, forçou os ancestrais a procurar companhia mútua

em algum abrigo. Desta união, na escuridão lúgubre das cavernas, brotou

um primeiro lampejo de inteligência — uma fantasia.

O selvagem foi tocado, naquele instante, pela sensação de que

havia “algo mais” — algo acima dele, alguma coisa superior. Daí a vir a

sonhar com fantasmas foi um dos mais extraordinários acontecimentos da

história da humanidade.

A vida intelectiva teve início a partir desta fantasia onírica. An-

tes deste evento, a vida dos antepassados era constituída basicamente