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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA UNICEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE FACES CURSO DE LETRA Helena Ferreira Pimenta FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a cegueira: de mulher do médico a assassina Brasília,06 de junho de 2014

FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a cegueira: de ...€¦ · em Ensaio sobre a cegueira: de mulher do médico a assassina Brasília, 2014. 80 f. Monografia apresentada ao

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  • CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UNICEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES

    CURSO DE LETRA

    Helena Ferreira Pimenta

    FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a

    cegueira: de mulher do médico a assassina

    Brasília,06 de junho de 2014

  • II

    HELENA FERREIRA PIMENTA

    FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a

    cegueira: de mulher do médico a assassina

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura no Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e da Saúde - FACES, do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

    Orientador: Prof. Da. Cinthya Costa

    Santos

    Brasília – DF, 06 de junho de 2014

  • III

    PIMENTA, Helena Ferreira

    FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a

    cegueira: de mulher do médico a assassina

    Brasília, 2014. 80 f.

    Monografia apresentada ao Centro Universitário de Brasília

    - UniCEUB, para a obtenção do título de Licenciatura do Curso de

    Letras, da Faculdade de Ciências e da Saúde.

    000000

  • IV

    CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UNICEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES

    CURSO DE LETRAS

    Helena Ferreira Pimenta

    FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a Cegueira: de mulher do

    médico a assassina

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como

    requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura

    no Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e da

    Saúde - FACES, do Centro Universitário de Brasília –

    UniCEUB

    Aprovada em ____/____/_____.

    BANCA EXAMINADORA:

    _________________________________________________

    CINTYA COSTA SANTOS

    Doutora

    Instituição

    _________________________________________________

    ANDRÉ MOREIRA

    Titulação

    Instituição

    _________________________________________________

    SIMONE SILVEIRA DE ALCÂNTRA

    Doutora

    UnB

  • V

    À minha querida e amada Helena Ferreira

    Pimenta. Nunca se esqueça e nem duvide

    do tamanho do seu potencial, porque a

    única pessoa que pode te impedir lhe

    alcançar seus objetivos é você mesma.

  • VI

    AGRADECIMENTOS

    No princípio eu era duas partes, que

    se juntaram e fizeram de mim quem hoje

    eu sou e por isso, Sr. Wellington e Sra. Mª

    do Socorro, pai e mãe, não tem como não

    agradecê-los. Obrigada, mãe, pelo

    entusiasmo e fé que deposita em mim.

    Obrigada, pai, pela ansiedade que

    compartilhou comigo e, por que não, pela

    pressão que tanto me enlouqueceu.

    Agradeço à minha orientadora,

    Cinthya Costa Santos, uma graça de

    pessoa que, com muita calma e paciência,

    me ajudou a colocar as minhas ideias no

    lugar. Obrigada por não enlouquecer com a

    minha verborragia velocidade cinco, por

    não se desesperar pelas vinte vezes que

    mudei de tema, por me amarrar ao chão

    todas as vezes que as ideias saltavam da

    minha cabeça como piabas alucinadas,

    atrás de uma migalha de pão. Sem a sua

    orientação, esse trabalho não teria

    encontrado seu caminho a tempo.

    Agradeço aos meus irmãos mais

    novos, de quem eu me sinto um pouco mãe

    e a quem eu amo tanto, Sarah Pimenta e

    Matheus Pimenta. Seu apoio e torcida

    silenciosa sempre me ajudam demais, sem

    contar que sempre que preciso de colo e

    de sorrir, vocês estão sempre por perto,

    mesmo quando distantes.

    Algumas pessoas merecem ser

    citadas, porque me aguentaram quando eu

  • VII

    surtei, me acalmaram quando achei que

    não iria conseguir, que se preocuparam

    com o andamento da minha pesquisa,

    porque me deram colo e enxugaram

    minhas lágrimas, ouviram minhas

    reclamações e riram do meu drama, que

    sentiram minha falta, que não me julgaram

    pelo meu sumiço, amor é pouco perto do

    que sinto por vocês, meus amigos: Marcelo

    Bertoldo “Gordinho”, Marcelo Raro “Celo”,

    Leika Saori “Tamagoshi”, Vitor Correa

    “Marinheiro”, Caio Cestari “Barbicha”, o

    Grupo das sete, as Verificats, os Linguiças

    aplicadas e o Camarote. Desculpa pelo

    meu mau humor, meu desespero, minha

    ansiedade, meu sumiço, meu silêncio,

    minhas loucuras, meus surtos. Obrigada

    por acreditarem na minha capacidade, por

    torcerem pelo meu sucesso.

    Meu agradecimento mais que especial

    guardei para o final. Às minhas mães, não

    de sangue, mas de coração, por escolha,

    mães que eu adotei, Idália, Márcia Beatriz

    e Dona Eleonora. Amo cada uma de vocês

    por serem quem são, por tudo que

    representam em minha vida, por todo o

    amor que me deram gratuitamente, por

    puxarem minha orelha, por olharem por

    mim e por me enlouquecerem de vez em

    sempre.

    Essa vitória é minha e um pouquinho

    de cada um de vocês.

  • VIII

    “era um escritor, e de um sujeito com

    essa profissão espera-se tudo”

    Rubens Fonseca

  • IX

    RESUMO

    A noção de identidade como uma unidade imutável e indivisível começou a cair com o início da globalização. O indivíduo continuou mantendo sua necessidade de sentir-se único, mas convivendo em grupo, grupos esses que, devido ao processo de globalização, já não possuem mais as barreiras de tempo e espaço para limitarem-se. A noção de identidade passou então a ser construída por práticas sociais de uma sociedade cada vez mais ampla em conceitos e ideologias, abrangendo sua visão de mundo e expandindo as possíveis situações a que este indivíduo poderia estar exposto. Da necessidade de adaptação é que deriva o que estudiosos, como Guiddens, denominam de fragmentação da identidade. Para cada situação, o indivíduo possui uma identidade que melhor se adequa, podendo, ainda, no caso de situações completamente novas, o indivíduo enfrentar uma crise de identidade, até que, com base em conhecimentos sociais acumulados, esse indivíduo torna-se capaz de adaptar-se construindo para si uma nova identidade. Com base na análise de um momento específico da personagem mulher do médico, presente no romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, a presente monografia pretende demonstrar o que ocasiona a fragmentação do indivíduo, como ela ocorre e de que forma a personagem a incorpora.

    PALAVRAS-CHAVE: José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, identidade,

    pós-modernidade.

  • X

    ABSTRACT

    The idea that a person’s identity is an unchangeable thing that is not affected by the society no longer is no longer existent now that globalization exists. People will continue to have the need for their individuality while living in a society with no boundaries in time and space because of globalization. With globalization, a person’s identity is more and more affected by the ideologies of the world as a whole and not just by the ideologies of the place, he lives. A famous writer called Giddens describes identity fragmentation as the necessity people have to adapt to their society. For every society a person finds himself, he creates an identity that is well adapted to that place. When he is in a new society he has an identity crises until he can better understand the rules of the new society and by so doing adapt to the new society by creating a new identity. Based on the analysis of the character of the doctor’s wife in the romance novel Blindness written by the Portuguese author José Saramago, this monograph intends to show the concept of identity fragmentation as it happens in the personality of the character showing how her personality evolves during the book.

    KEYWORDS: José Saramago, Blindness, identity, post-modernism .

  • XI

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12

    1 Saramaguiano ........................................................................................... 15

    1.1 Quem foi Saramago.......................................................................... 15

    1.2 Saramago enquanto escritor ........................................................... 17

    1.2.1 Estilo Saramaguiano ...................................................................... 18

    2 EMBASANDO SARAMAGO ..................................................................... 20

    2.1 Literatura pós-moderna de Saramago: características ................. 20

    2.2 O narrador e personagem ................................................................ 27

    2.2.1 O antigo x o novo: a mudança no ponto de vista ............................ 27

    2.2.2 Do que se constitui uma personagem ............................................ 34

    2.3 Ideologia, identidade e sujeito no discurso ................................... 39

    2.4 Identidade fragmentada, o “eu” moderno ...................................... 42

    3 ANÁLISE ................................................................................................... 50

    3.1 Simplificando a análise .................................................................... 51

    3.2 Identidade fragmentada: A mulher do médico, assassina ........... 53

    3.2.1 Síntese da obra: Ensaio sobre a cegueira ..................................... 54

    3.2.2 Análise Estática: Quem é a mulher do médico .............................. 56

    3.2.3 Análise Dinâmica: Fragmentando-se .............................................. 57

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 75

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 79

  • 12

    INTRODUÇÃO

    “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome,

    essa coisa é o somos”.

    (José Saramago, 2013)

    A sociedade pós-moderna diz respeito ao que não se estabelece. O que

    marca essa sociedade é o dinamismo, a agilidade, a flexibilidade. Tudo é variável,

    problemático e paradoxal. Reconciliando-se com o passado, com a história, o pós-

    modernismo se faz eclético na literatura podendo assumir qualquer forma e,

    reunindo traços como indeterminação do sentido, questionamento da narração,

    canal de diálogo narrador – leitor aberto, passa a exaltar a subjetividade do autor e o

    prazer do leitor.

    Todas essas características são observadas nas obras de José Saramago,

    autor português que criou a personagem, objeto de análise desta pesquisa, em uma

    de suas mais renomadas obras, Ensaio sobre a Cegueira. Ler Saramago é uma

    experiência única que nos remete quase que instantaneamente a sensações como:

    estranhamento, sedução, encanto, confusão, fascínio, revolta. Isso porque não se

    trata de um escritor convencional. Ele subverte as regras a seu favor. Vírgulas,

    pontos finais, pontos e vírgulas são manipulados pelo escritor de forma a aproximar

    sua escrita à oralidade e aproximá-lo de seu leitor.

    Não são apenas com as normas gramaticais que Saramago faz sua “mágica”.

    Normas sociais, culturais, ele “brinca” com cada uma delas sem se deixar intimidar.

    Ele instiga, provoca seus leitores, os faz pensar, os inclui como parte ativa da

    narrativa, sem apagar o narrador e sua importância. Ele transgride até mesmo as

    normas literárias ao assumir que, para ele, o narrador é mais que um personagem, o

    narrador é a representação do próprio autor dentro da obra, sua voz, sua

    materialização.

    [...] a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. [...] O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal. Não o relato de sua vida, não a sua biografia, quantas vezes

  • 13

    anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente

    ousaria ou saberia contar. (SARAMAGO, p. 26 e 27, 1998)

    Entender quem foi Saramago, sua trajetória, seu estilo, sua forma de escrever

    e de ver a literatura se faz essencial a esta pesquisa, uma vez que o objeto de sua

    análise encontra-se dentro de um de seus romances, para ser mais específica, a

    personagem chamada pelo autor de mulher do médico, em seu romance Ensaio

    sobre a cegueira. Dentre todas as características que nos ajudam a definir um autor

    como sendo pós-moderno, ou não, um conjunto delas é a que mais interessa a esta

    pesquisa, uma vez que, juntas, nos auxilia a compreender o que é que forma a

    identidade nesse período de contradições. E a partir de quais vozes podemos

    perceber a identidade formando-se e transformando-se no decorrer do romance.

    Como acontece a fragmentação de identidade na personagem “mulher do

    médico” no livro Ensaio sobre a cegueira de José Saramago? Compreender como

    se dá o processo de fragmentação na identidade da personagem mulher do médico

    que, ao se ver em meio a uma situação caótica e a uma regressão forçada do

    progresso, muda, sem ao menos se dar conta, de identidade de acordo com o que a

    situação lhe exige, como papéis que ela se vê obrigada pela situação a interpretar. A

    partir deste estudo é que se pretende analisar essa personagem central, fluindo

    entre suas identidades variadas, fragmentadas e flutuantes que são ao mesmo

    tempo tão contraditórias com o que ela acreditava conhecer de si mesma e tão

    naturais que é possível identificar o sentimento de surpresa, mas nunca o de culpa,

    ou de arrependimento.

    A pesquisa realizada neste trabalho pode ser classificada como qualitativa,

    pois visa reunir opiniões e informações a respeito do assunto que será analisado.

    Tem caráter bibliográfico e teórico por buscar traduzir as opiniões, estruturar e

    relacionar sistemas e modelos teóricos através de conhecimento científico

    previamente acumulado sobre o problema aqui explorado.

    Ainda quanto à metodologia, o trabalho opta pelo método indutivo. Essa

    opção se justifica porque o método escolhido permite partir de dados particulares,

    suficientemente constatados, inferindo-se, assim, uma verdade geral que pode ou

    não estar contida no assunto proposto.

  • 14

    Enquanto procedimento, este trabalho realiza-se por meio de informações e

    teorias contidas em livros que abordam a pós-modernidade, a formação da

    identidade, a subjetividade, a identidade na pós-modernidade e a análise literária,

    configurando-se, primeiramente, uma pesquisa documental, seguida de uma análise

    da personagem mulher do médico.

    No capítulo um, será apresentado aos leitores o escritor José Saramago, sua

    trajetória pessoal marcada por dificuldades e amor à leitura; sua trajetória

    profissional que perpassou da poesia ao teatro e o surgimento de seu estilo único,

    denominado estilo saramaguiano.

    No capítulo dois, a pesquisa será embasada teoricamente. Serão expostos:

    os conceitos de modernidade e pós-modernidade nas artes e as características da

    pós-modernidade; o ponto de vista sobre o narrador tradicional em contraponto ao

    narrador pós-moderno; o papel da personagem e suas características de acordo

    com sua classificação; o que é identidade e ideologia na análise do discurso e qual é

    a sua percepção pelo sujeito; e, finalizando o capítulo, o conceito de identidade na

    pós-modernidade e como ocorre sua fragmentação.

    E, por final, no capítulo três poderá ser verificada a metodologia que será

    utilizada nesta pesquisa; seguida de um rápido esclarecimento teórico a respeito do

    que é uma análise literária e sua principal preocupação; uma resenha sobre a obra,

    Ensaio sobre a cegueira, na intenção de contextualizar o leitor sobre o enredo que

    cerca os trechos escolhidos para a análise; e, finalizando, análise de trechos

    retirados da obra que tem por objetivo demonstrar um dos processos de

    fragmentação pelo qual passa a identidade da personagem mulher do médico.

    Espera-se que, ao final desta pesquisa, o leitor possa compreender a

    personagem analisada como uma multiplicidade de personalidades flutuantes e

    mutantes, que se alternam e transformam-se de acordo com a necessidade ou a

    mudança social imposta.

  • 15

    1 SARAMAGUIANO

    Estranhamento, sedução, encanto, confusão, fascínio, revolta, essas são

    algumas das emoções que a leitura das obras de Saramago costuma causar em

    seus leitores. Isso porque ele não se prende a normas, sejam elas gramaticais ou

    sociais, não detém sua escrita perante valores morais, éticos ou religiosos; em

    suma, Saramago é transgressor.

    Ele é um escritor que afirmava não se preocupar em entrar para a posteridade,

    mas sim com seus leitores e é por isso que a sensação de intimidade é tão familiar

    em suas obras. Para Caio Yurgel (2013), em seu artigo Entre o excesso e a

    concisão: os estilos de Saramago e Cardoso Pires, essa intimidade é resultado

    da preocupação do escritor com seus leitores, criando um ambiente com abundância

    em diálogos havendo a presença do leitor sem eliminar o escritor.

    [...] José Saramago chega a uma fórmula: foram os leitores, e não os livros, que o transformaram em escritor. Em poucas palavras: ele só se convenceu de que era escritor quando descobriu que tinha leitores e uma corrente de afeto começou a se manifestar entre eles. Livros sem leitores não existem, são apenas um amontoado de papel. “Não sou desses que escrevem sem pensar no leitor”, afirma. Saramago diz não compreender o ponto de vista daqueles que escrevem pensando na posteridade, e não no presente, erro a seu ver muito perigoso, já que ninguém pode ter certeza de que a posteridade vai, de fato, se interessar por aquilo que hoje se faz. Se não tivesse a esperança de que seus contemporâneos se interessariam pelo que escreve, não conseguiria escrever, a ideia de posteridade, por si, não

    lhe traria nenhum tipo de consolo. (CASTELLO apud YURGEL, 2013, p. 64)

    1.1 QUEM FOI SARAMAGO

    José Saramago, escritor português nascido em novembro de 1922, segundo

    biografia disponível no site da Fundação José Saramago, teve uma vida simples,

    nasceu em uma família pobre que, em busca de melhores oportunidades, mudou-se

    para Lisboa. Seu nome deveria ter sido apenas “José de Sousa”, como seu pai, mas

  • 16

    o funcionário responsável pelo seu Registro Civil decidiu, por conta, acrescentar o

    “Saramago”, nome pelo qual sua família era conhecida na região e que também

    designa uma “planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em

    épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres” (Fundação

    Saramago, 2011). Somente aos sete anos, no momento em que foi matricular-se no

    ensino primário, é que ele veio a descobrir que seu nome completo era José de

    Sousa Saramago, e, juntando esse fato ao de que ele fora registrado dois dias

    depois de seu verdadeiro nascimento, é que Saramago aponta como sendo seus

    problemas de identidade, de acordo com sua autobiografia disponível no site da

    Fundação José Saramago. Cursou a escola até o segundo ano do secundário,

    sempre como muito bom aluno, já demonstrando aptidão para as letras, mas não

    concluiu os estudos devido às condições financeiras de sua família, e, por isso, foi

    transferido para o estudo profissionalizante, onde estudou cinco anos para formar-se

    serralheiro mecânico, curso que, na época, além das matérias técnico-

    profissionalizantes, possuía no currículo francês e uma matéria de literatura.

    Em entrevista publicada na revista CULT (1998), Saramago afirma que, se

    publicou seu primeiro romance com vinte e poucos anos, o fez porque, antes de ser

    escritor, foi leitor. Como não tinha recursos financeiros para adquirir seus próprios

    livros e passava o dia a trabalhar, sua única opção era frequentar bibliotecas

    públicas à noite. Saramago (1998, p. 21) afirma: “lia tudo o que encontrava. Às

    vezes, não entendia nada, ou quase nada, de alguns livros que lia; não tinha

    ninguém que me dissesse: esse agora não convém, é melhor que você leia esse

    outro.”

    Teve muitos empregos durante sua vida, entre os quais: crítico literário, redator

    de crônicas em um jornal e tradutor. Filiou-se ao partido comunista de Portugal em

    1969 e em 1975, ao ficar novamente desempregado, dessa vez devido às mudanças

    ocorridas por causa do golpe político-militar, Saramago decide se dedicar de vez à

    arte de escrever. O estilo saramaguiano tem seu surgimento marcado na obra

    Levantando do Chão. Porém, é somente em 1982 com Memorial do Convento que o

    autor ganha reconhecimento internacional. O governo português vetou a

    participação do Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu em

    1992, alegando que a obra era ofensiva aos cristãos, por causa dessa censura

    Saramago e sua esposa Pilar exilaram-se para a ilha de Lanzarotes. Em 1998 foi

  • 17

    premiado com o Nobel da literatura pelo conjunto da sua obra e faleceu em 2012 em

    Lanzarote.

    1.2 SARAMAGO ENQUANTO ESCRITOR

    Apesar de ser conhecido por seus romances, a carreira literária abrange os

    mais variados gêneros como: poesia, contos, crônicas e peças de teatro. Segundo

    Maria Luiza Ritzel Remédios (2011), o escritor teve seus contos, poemas e peças de

    teatro publicados em jornais entre os anos de 1947 e 1953.

    O gênero literário que marcou o começo de sua carreira foi a poesia, marcada

    por “uma estética neoclássica voltada para um vocabulário elaborado, uma certa

    sobriedade e um ritmo equilibrado dentro de representações ancoradas no real”

    (LOPES apud REMÉDIOS, 2011, p 163). Ainda segundo Remédios (2011), é a partir

    de seu livro O ano de 1993 que o conhecido estilo saramaguiano começa a formar-

    se. O livro em questão, apresenta uma coletânea de textos formados por uma

    mescla de poesia e prosa e uma de suas características foi a dificuldade da crítica

    em encaixá-lo dentro de um único gênero. Nesse ponto, segundo Remédios (2011),

    seus textos já apresentam longas frases marcadas pela ausência de vírgulas e

    pontos finais; já sua escrita revela-se sucinta, com muitas elipses e sugestões.

    É trabalhando como jornalista que Saramago ganha notoriedade através de

    suas crônicas, gênero em que o escritor, segundo Remédios (2011, p. 163), carrega

    “de humor, autoironia e perplexidade”. Saramago narra em suas crônicas e contos a

    história do homem fazendo uso de estratégias que oscilam “do humor sarcástico ao

    lirismo romântico [...] destaca-se a linguagem que revela o ‘poder de crítica desses

    escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o

    poético, o político’ (CHINARELLI, 2010) ” (REMÉDIOS, 2011, p.164).

    Mas é com o romance que Saramago se consagra como escritor e solidifica

    seu estilo todo único de escrever, de criar.

  • 18

    1.2.1 Estilo Saramaguiano

    Saramago foi um escritor de grande potencial inovador e criativo e conseguiu,

    com maestria, escrever o homem como uma eterna dúvida, em eterna busca. Em

    seus textos a crítica se faz sempre presente, assim como seu posicionamento

    ideológico.

    Nos romances, Saramago trabalha a relação mimética dialeticamente, sendo que a história que os perpassa, é o ‘outro tempo que vem ativar a consciência do presente’ (SEIXO, 1997, p.56). E ele recorre aos mecanismos da alteridade, da intertextualidade e da metaficção para desvelar a literalidade do texto, transformando-o em trabalho poético.

    (REMÉDIOS, 2011, p. 164)

    E foi sua busca por uma voz que lhe fosse própria que Saramago acabou por

    encontrar um estilo único de escrever, onde o convencional não tem espaço, a

    começar pela pontuação. O uso singular da pontuação, onde, segundo Camila

    Rocha Muner (2010, p. 11), “à virgula e ao ponto final são atribuídos novos valores.”,

    faz com que o processo de construção de sentido adquira “plasticidade” e

    movimente-se “na perspectiva de sugerir outras leituras, mais criativas até”.

    O recurso da pontuação contribui para a construção de um discurso direto

    próximo à oralidade, mas, ao mesmo tempo em que a escrita de Saramago o

    aproxima de seu leitor, pode também gerar confusão se seu leitor, segundo Muner

    (2010, p.11), “não estiver habituado à quebra da previsibilidade da linguagem”.

    O diálogo de suas personagens desenvolve-se de tal forma que mais se

    assemelha com um fluxo de consciência, do que com a conversa entre duas ou mais

    pessoas. Já seu narrador, figura polemizada por Saramago,

    às vezes irônico, às vezes pesaroso, bem humorado ou crítico [...] parece querer incomodar a consciência daqueles que leem suas obras [...] é peculiar a Saramago fazer uso da invasão do pensamento das

    personagens, a fim de revelar suas verdades mais recônditas. (MUNER, 2010, p. 12)

    Por enxergar e explorar a escrita pelo que ela pode oferecer de diferente é que

    Caio Yurgel (2013) define a literatura de Saramago como sendo uma literatura de

    excesso. Seu interesse pelos detalhes, sua recusa em prender-se a estruturas pre-

    definidas, sua maneira sutil de “contar” é que, de acordo com Yugel (2013, p. 63-64),

  • 19

    impedem “a narrativa de sucumbir à ditadura do desfecho” e permitem “ao escritor

    abandonar a linha reta do enredo e conduzir o leitor por caminhos menos

    pragmáticos e finalistas. ”

    Desmistifica a literatura, reconhece seu leitor e o prazer existente na leitura,

    sem sucumbir à indústria da massificação. O estilo saramaguiano é assim chamado

    por ser revestido de marca autoral e, talvez, a principal marca em sua obra,

    encontra-se no narrador. Para Saramago, o narrador carrega em si a figura do autor,

    sendo assim sua personificação dentro da obra. É através do narrador que o autor

    imprime à obra suas impressões, não podendo o autor se eximir de suas

    responsabilidades quanto ao que escreve.

  • 20

    2 EMBASANDO SARAMAGO

    Partindo de Antonie Compagnon (1999), que observa a diferença entre aqueles

    que se intitulam modernos e aqueles que apenas o são, pode-se afirmar que

    Saramago, mesmo que nunca tenha se autointitulado pós-moderno, o era. Não pela

    pretensão, mas pelas diversas características presentes em suas criações. Seu

    espírito transgressor, paradoxal e dialógico se faz presente em suas obras.

    Saramago reescreve o passado adaptando-o ao presente, produzindo uma

    linguagem em que, segundo Maria Alzira Seixo (apud REMÉDIOS, 2011, p. 164), “o

    passado objetcual contamina-se pelo presente crítico e perspectivante”. Saramago

    confronta o individual e o grupal, o ontem e o hoje, brinca com o espaço e com o

    tempo e, quando necessário, tira de seus personagens suas identidades, roubando-

    lhes seus nomes, buscando assim “o valor da literatura como meio expressivo, sua

    atualidade mas não [...] sua eternidade. [...] reconhece o prazer da leitura e busca

    sintetizá-lo em novas formas” (YURGEL, 2013, p.66).

    2.1 LITERATURA PÓS-MODERNA DE SARAMAGO: CARACTERÍSTICAS

    Com romances que, segundo Beatriz Berrini (1998), se utilizam de questões

    espelhadas em nosso tempo e que se caracterizam como questões cruciais não

    apenas no espaço de Portugal (sempre pano de fundo das histórias de Saramago),

    mas no planeta, Saramago promove “um certo desenraizamento em favor de um

    universalismo, de uma globalização” (BERRINI, 1998, p. 11). Para obter essa

    globalização, Saramago escreve de forma a obscurecer o tempo e o espaço e, para

    isso, focaliza a trama em torno de determinadas ideias e define o enredo através de

    determinados problemas, o que cria no leitor a

  • 21

    consciência de que seria possível abstrair tal espaço ou transpor os conflitos para outras épocas, uma vez que ultrapassam tais contingências. [...] as ideias que se problematizam nas mentes das personagens constituem o fulcro central dessas narrativas. Tempo e espaço secundarizam-se: o que está em jogo é a consciência de que vivemos hoje num mundo terrível e que é urgente partir em busca de soluções para os problemas vitais que nos

    perturbam (BERRINI, 1998, p. 11)

    Saramago obscurece o tempo, mas não o apaga. Ele trabalha com esse

    elemento de forma a torná-lo paradoxal, sendo definido por ele próprio como “linear

    e labiríntico”, uma vez que na aparência ele avança linearmente, enquanto seu

    interior é equivalente a um turbilhão. Sua essência turbulenta, no entanto, não

    revoga a aparência linear percebida pelo leitor. O “romance permite [...] dar essa

    sensação de linearidade, mas ao mesmo tempo encontra nela essa espécie de

    turbilhão interno que é, pela sua própria definição, labiríntico. ” (SARAMAGO apud

    REIS, 1998, p. 136)

    Esse resultado caótico, ocasionado por esse paradoxo temporal do qual suas

    narrativas são compostas, advém de organização e cuidado. Saramago preocupa-se

    com a estrutura do romance, onde os fatos devem estar apoiados uns nos outros,

    não podendo nunca ficar em suspenso, para não perder sua estabilidade. Essa

    organização, todavia, altera-se à medida que o romance evolui,

    Eu sei onde vou, ou sei onde vou chegar, mas não sei como lá chego. Há um exemplo recente claríssimo: quando, no Ensaio sobre a Cegueira, o médico é levado na ambulância e a mulher dele diz ao condutor ; e ela responde: É falso, claro está, como sabemos, mas o que é verdadeiro, o que é autêntico, é que o autor do livro, naquele exacto momento, não sabia nada sobre o destino daquela mulher; ela podia cegar no capítulo a seguir e é no ir escrevendo que me apercebo de que aquela

    mulher não pode cegar. (SARAMAGO apud REIS, 1998, p. 128)

    A sua memória constitui uma característica importante em seu estilo, pois tem

    papel ativo na construção das suas narrativas e é de tal significância que Saramago

    (apud REIS, 1998) chega a afirmar que, sem elas, seria incapaz de escrever,

    havendo assim, uma arqueologia de sua própria pessoa junto às histórias por ele

    contadas. Ele, no entanto, não alimenta seus livros com histórias da sua vida, pois

    não se tratam de memórias sobre fatos ou coisas, e sim da memória que Saramago

    tem dele mesmo enquanto o próprio sentido de sua vida e de sua experiência,

    ajudando-o dessa forma a colocar sentido ao que está sendo narrado. Elas servem

  • 22

    ainda como a ponte através da qual Saramago transita constantemente entre o que

    está a escrever e o seu tempo.

    A pós-modernidade guarda em si o espírito da modernidade que se traduz na

    contradição. Ao falar sobre a modernidade, Antonie Compagnon (1999) a trata como

    uma tradição, mesmo assumindo que falar em tradição moderna seja algo

    antinômico, porém não se trata de uma divergência, mas sim de um paradoxo, uma

    vez que a tradição moderna configura-se em uma tradição voltada contra si mesma.

    Já a modernidade estética, segundo o autor, essa, sim, é contraditória em si mesma,

    ela afirma e nega, anuncia seu surgimento já decretando seu definhar.

    Os paradoxos que ele discorre tratam cada um de um momento importante

    dessa tradição moderna, e todos caracterizam crise, uma vez que a modernidade é

    composta de contradições não-resolvidas.

    O prestígio do novo, segundo Compagnon (1999), é o que marca o surgimento

    da modernidade e o ponto crucial nesse primeiro momento é a ruptura, o progresso

    e o tempo presente. Utilizando-se do pensamento de Nietzsche, ele separa os

    modernos em dois tipos: o típico, que sabe e sente que é moderno; e os de má

    consciência, que são modernos sem nunca saberem que o são.

    E, como no começo o verbo se fez carne, não há melhor começo que a origem

    da palavra. Tendo sua origem no latim, moderno significava agora, recentemente.

    Não designava o novo, mas sim o presente, o atual, distinguindo-se então do velho,

    daquilo que era passado acabado, concluído. Quando do surgimento da palavra, a

    noção de tempo não se aplicava a ela, sendo um conflito entre o ideal e o atual.

    Entretanto, hoje em dia aquilo que é moderno logo fica ultrapassado, o tempo não só

    passou a fazer parte do conceito, como acelerou-se. E foi com a invenção do

    progresso que incluímos à palavra moderno o sentido que tem para nós atualmente.

    Com uma concepção positiva de tempo, de um desenvolvimento linear e cumulativo

    e com ela abre-se um futuro infinito seguido por uma lei de aperfeiçoamento

    constante.

    Com a afirmação do progresso não apenas do conhecimento científico e

    filosófico, mas também nas artes, os modernos passam a considerar-se superiores

    aos antigos e começam a questionar o fundamento da estética clássica. Do ponto de

  • 23

    vista dos modernos, os antigos são primitivos e, portanto, inferiores e parte desse

    ponto de vista a negação dos modelos anteriormente estabelecidos. A arte

    contemporânea se torna o único valor, o que é atual hoje, no futuro será clássico,

    sendo assim, a arte de ontem perde todo o seu valor.

    A modernidade passa então a retratar seu tempo e suas respectivas

    temáticas, e dessa combinação instante e totalidade, movimento e forma,

    modernidade e memória emerge o prazer de representar o presente, não somente

    pela beleza, mas pela transitoriedade, imediatismo. O presente para os modernos

    consiste na negação do passado, do tempo, ele é constituído apenas de uma

    sucessão de modernidades, sem passado ou futuro; sua única relação é construída

    com a eternidade. Para a modernidade, o tempo que passou é esvaziado de

    substância e por isso esvaziado de significado.

    Alguns traços da modernidade, a partir da opinião de Baudelaire (apud

    COMPAGNON, 1999), são: o não-acabado – evocação da velocidade do mundo

    moderno. Estando esse sempre em mudança, exige também do artista igual

    velocidade no traço para que sua execução possa acompanhar o presente; o

    fragmentário – quanto mais o artista se debruça sobre os detalhes, mais caótica a

    obra se torna. A pintura em detalhes, através de rápidas impressões; a

    insignificância (ou perda de sentido) – há uma indeterminação de sentido na obra,

    onde as ideias antigas são ridicularizadas e a autonomia – ela mesma, faz suas

    regras, não reconhecendo nenhuma norma exterior a sua arte. Assim ele constrói

    seu próprio manual de instrução. Com a finalidade de sempre renovar a arte e

    purificá-la de convenções, a tradição moderna irá se voltar para a cultura popular

    sempre que for necessário.

    Segundo Compagnon (1999), os primeiros modernos não tinham preocupação

    com o futuro, o presente era para eles algo eterno, infinito e, por isso, ficou como

    característico deles a ruptura e começo absoluto. O novo, para esses modernos, não

    era pensado em um presente que visava o futuro, mas sim no presente enquanto

    presente, por isso mesmo eles não tinham essa noção negativa de

    desaparecimento.

  • 24

    Eles não possuíam dogmas relacionados ao progresso, superação,

    desenvolvimento; não consideravam o tempo ou a história, só o que importava era o

    presente e, por isso, não pensavam na decadência da arte; e, ao mesmo tempo que

    esqueciam a história, não a subestimavam ou a tinham como algo de pouca

    importância ou inferior. E é com a mudança dessas concepções que nasce a

    vanguarda.

    Antoine Compagnon (1999) nos lembra ainda que, embora comumente

    confundidas, a modernidade e a vanguarda são paradoxais, uma vez que seus

    dilemas são diferentes. Enquanto a modernidade alimenta uma paixão pelo

    presente, a vanguarda se utiliza de consciência histórica do futuro para ser

    avançada no tempo. O surgimento da vanguarda veio com a decadência da

    modernidade. Com a constante renovação, a passagem do novo para o velho

    passou a ser instantânea e as vanguardas, então, ao tentarem conspirar contra essa

    decadência se voltaram para a esquecida história, e mudaram o conceito de novo

    para uma superação crítica, ignorando assim a verdadeira modernidade.

    Do sentido militar ao estético, vanguarda é entendido como antecipação e,

    nesse momento, a arte só poderia ser definida em termos históricos, agarrando-se

    desesperadamente ao futuro, o presente deixa de ter valor, o importante agora é

    antecipar. Rompendo com o passado e com o presente, as vanguardas passaram a

    utilizar a arte a serviço do progresso social e isso era considerado arte esteticamente

    à frente do seu tempo. O artista adota uma nova missão, a de guia para os

    movimentos sociais. Baudelaire, no entanto, criticava arduamente essa postura,

    definindo-os como espíritos feitos para a disciplina e conformidade.

    A arte nesse segundo momento está indo em direção ao seu limite, buscando

    sua origem. Trata-se sempre de imitação, mas da imitação do essencial, uma

    imitação conceitual.

    Na poesia, por exemplo, o “eu” lírico desaparece, ocasionando uma

    desorientação no leitor. Essa destruição do mundo e do eu prevê a autodestruição

    da obra e um inevitável desfecho no silêncio. Para as palavras a possibilidade de

    terminarem silenciadas gera uma proximidade com o impossível, limite estabelecido

    a toda obra. Permeando-se, assim, por uma negativa que mantém implícito o

  • 25

    sentimento de decadência, de fim próximo, mas, ao mesmo tempo, mostrando toda

    a essência do modernismo que consiste em utilizar processos específicos de

    determinada disciplina para criticá-la de forma a aprofundar seu domínio nessa

    mesma disciplina.

    O pós-modernismo nasce do cansaço gerado pelas “vanguardas e [...] suas

    contradições” e da decepção “com a tradição de ruptura cada vez mais integrado ao

    fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo” (COMPAGNON, 1999) e, por

    isso, Compagnon o aborda como a exaustão. Trata-se de uma reação contra o

    moderno, onde a polêmica se torna importante. A pós-modernidade é tão complexa

    e paradoxal quanto a modernidade, porém o pós-moderno já nasce decadente,

    irracional e anárquico, mas, antes de se tornar estético, ele é a ideologia da

    sociedade de consumo.

    Seu primeiro paradoxo é sua pretensão de acabar com o moderno, mas, ao

    romper com o moderno, ele reproduz o modus operandi do modernismo. Afirmar

    estar em um momento posterior à modernidade é aceitar a própria modernidade com

    suas noções de progresso e superação. O pós-modernismo não tem desejo de ser

    revolucionário ou inovador, não se fundamenta no futuro nem no presente, de modo

    que o pós-moderno retoma o passado e o adequa às suas necessidades atuais,

    simplifica e fragmenta, assume a pluralidade e a coexistência dos estilos. O pós-

    moderno é uma retomada. Para Compagnon (1999), a pós-modernidade pode então

    ser considerada mais moderna que o moderno, propondo uma nova maneira de

    pensar as tradições e as inovações, a imitação e a originalidade, não havendo mais

    a emoção da novidade.

    Sendo o pós-modernismo “um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala

    e depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991), ele não

    se restringe a um único campo. Podemos percebê-lo na maioria das formas atuais

    de pensar, sendo assim, o pós-modernismo se manifesta nos mais diversos campos

    das ciências humanas. Um fenômeno propositalmente histórico, extremamente

    inquisidor e inevitavelmente político, suas dúvidas e inquietações apoiam-se ao

    passado para formular as críticas do presente e questionar o futuro. Sendo assim,

    “não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o

    passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON, 1991, p. 20).

  • 26

    O pós-modernismo procura ensinar que, ao aceitar as diferenças, o consenso

    público passa a ser questionado e que esse consenso passa a ser considerado

    ilusório, seja ele formado com base na cultura das minorias, seja formado com base

    na cultura de massa, pois ambas se manifestam dentro da mesma sociedade,

    sociedade essa que tem sua realidade social estruturada por discursos. Em resumo,

    a arte e a vida já não podem ser vistas como coisas diferentes. Elas se misturam, se

    confundem. A arte questiona a vida e a vida passa a ser o motivo de ser da arte. E é

    nessa reelaboração crítica do passado que repousa a ironia do pós-modernismo. Ele

    repensa de forma irônica a função social, seja na arquitetura; na literatura; na

    pintura, e sua história, nessa forma de repensar é que se pode perceber o caráter

    provisório que o pensamento pós-moderno adota diante das contradições humanas.

    Não há uma busca por conceitos e valores absolutos e imutáveis, e sim uma recusa

    a qualquer estrutura fixa. Na literatura, por exemplo, não há uma narrativa-mestra,

    pois, mesmo que esses sistemas sejam atraentes e até mesmo necessários, não

    deixam de ser uma ilusão.

    Uma vez que a fronteira entre vida e arte desaparecem, as fronteiras entre os

    gêneros literários tornam-se fluidas e os gêneros passam a misturar-se dificultando

    sua classificação. “Além de serem indagações ‘fronteiriças’, a maioria desses textos

    pós-modernistas contraditórios também são especificamente paródicos em sua

    relação intertextual com as tradições e as convenções dos gêneros envolvidos”

    (HUTCHEON, 1991, p. 28). É através da paródia que a ansiedade pela continuidade

    é contestada e, ironicamente, o que a continuidade acaba por revelar é a própria

    descontinuidade. Considerada pela autora “uma forma pós-moderna perfeita”, a

    paródia, ao mesmo tempo que incorpora, desafia aquilo a que parodia, levando

    ainda a reconsideração do que pode ser considerado original.

    Dentro das indagações realizadas pelos pós-modernistas, outro conceito que

    passa por uma reformulação intensa é a subjetividade. O indivíduo preceptor já não

    é mais considerado coerente ou gerador de significados. A exemplo disso, a autora

    cita a literatura, onde “os narradores passam a ser perturbadoramente múltiplos e

    difíceis de se localizar (...) ou deliberadamente provisórios e limitados – muitas vezes

    enfraquecendo sua própria onisciência aparente” (HUTCHEON, 1991, p 29). Toda

    essa mudança de conceitos, essa contestação do indivíduo, ocasiona uma

    descentralização e abre espaço para o diferente, para todos que estavam à margem

  • 27

    da sociedade, essa abertura vem para solidificar o pensamento pós-moderno de que

    a cultura não pode ser considerada unificada e homogênea, fazendo parte de uma

    comunidade descentralizada, composta pelas diferenças e construída através da

    consciência de que não existem hierarquias naturais, somente aquelas construídas

    pelos homens.

    A estética pós-moderna ou poética pós-moderna, segundo Hutcheon (1991),

    não pode ser deduzida apenas da teoria, ou apenas da prática. Ela só existe através

    de uma interação complexa de reações compartilhadas e provocações em comum.

    Para Hutcheon (1991), “uma poética do pós-modernismo se limitaria a ser

    autoconsciente para estabelecer a contradição metalinguística de estar dentro e

    fora, de ser cúmplice e distante, de registrar e contestar suas próprias formulações

    provisórias.” Não há uma verdade universal, pois, como tudo no pós-modernismo,

    sua poética também é variável e, como primeiro passo para poder iniciar qualquer

    estudo sobre as realizações em relação a nossa cultura e os sentidos por ela

    produzidos, é necessário o abandono do desejo e das expectativas por um sentido

    único; e a aceitação e reconhecimento dos valores das diferenças.

    2.2 NARRADOR E PERSONAGEM

    2.2.1 O antigo x o novo: a mudança no ponto de vista

    Uma necessidade pessoal revelada pelo próprio Saramago em Diálogos com

    Saramago (1998, p. 125) e que transparece em seus narradores baseia-se em sua

    tentativa de explicar tudo: “andar a volta das coisas, para tentar chegar o mais

    próximo possível delas [...] como se em cada momento eu me apercebesse de que

    alguma coisa tinha ficado por esclarecer e insisto e mostro-a de outra maneira e

    ilumino-a de outro modo”. Essa talvez seja a essência dos narradores de Saramago

    que, em sua busca por esclarecer, utilizam-se de todas as vozes disponíveis

    (narradores, leitor, personagens).

  • 28

    Por vezes é um eu que insensivelmente os remete ao próprio autor. Outras, esse eu é substituído por um nós, e na sua se adensam muitas vozes. O nós será então o narrador mais o leitor, ou mais esta ou aquela personagem. Ora se situa no passado da narrativa ora no presente da escrita. [...] O nós de Saramago é uma forma a mais a aproximá-lo da imagem do : está ao lado dos ouvintes e presentifica-os consigo na narrativa graças ao nós. Ou leva-os para junto

    das personagens humildes e inclui-as no pronome (BERRINI, 1998, p. 57)

    É nessa mistura de características clássicas e pós-modernas que os

    narradores de Saramago se estruturam, contando histórias das quais somente eles

    possuem conhecimento e ninguém mais, a não eles, sabem contá-las utilizando-se

    dessas infinitas modulações de vozes que as compõem.

    Em sua análise sobre a figura do narrador, Walter Benjamin (1987) faz

    algumas considerações importantes e que definem o papel dessa figura essencial às

    narrativas. O narrador, na concepção de Benjamin, é, antes de mais nada, um

    observador e, por isso, se mantém a uma certa distância que lhe seja favorável na

    hora de contar a história. Mesmo que participe de forma ativa da história, os papéis

    de narrador e personagem se separam, pois o narrador, apesar de parecer, não

    pode estar de fato entre nós; para assumir o papel de narrador, o distanciamento se

    faz necessário.

    No entanto, a narrativa a qual o autor se refere no texto se trata da narrativa

    que nasceu junto com os narradores de uma tradição muito antiga e que vem se

    extinguindo: a tradição oral. Os narradores, para Benjamin (1987), surgem da

    necessidade de transmitir experiências de pessoas a pessoas. Sendo o narrador

    uma figura autônoma, ele podia extrair as experiências a serem relatadas através de

    viagens por ele realizadas e, portanto, por ele vividas; a essas narrações era

    associado o saber do passado. Outra forma da qual o narrador poderia extrair seus

    relatos era através das experiências que ganhavam honestamente sem precisar sair

    de seu país de origem através do vasto conhecimento das histórias e tradições.

    Outro aspecto importante do narrador, segundo Walter Benjamin (1987), seria

    seu senso prático. A narrativa teria para o autor sua verdadeira natureza explicitada

    pela praticidade, ou seja, ela precisa ser útil de alguma forma, fosse trazendo uma

    moral ou mesmo ensinando uma norma de vida e, sendo assim, o narrador é a

    pessoa apta a dar esses conselhos, o narrador é quem saberá transmitir esses

  • 29

    conselhos com sabedoria. Porém, a partir do momento em que as experiências vão

    deixando de ter valor, a sabedoria vai se extinguindo e junto com ela a arte de

    narrar. Além desse desinteresse crescente nos conselhos e experiências

    transmitidas por terceiros, o autor chama a atenção de seu leitor para aquele que ele

    considera o primeiro marco da “morte da narrativa” que é o surgimento do romance.

    O que separa o romance da narrativa [...] é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. [...] O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa [...] é que ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. [...] O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.

    (BENJAMIN, 1987, p. 201)

    O autor critica os novos gêneros que nascem com a modernidade e os coloca

    como uma ameaça ao modelo de narrativa que até então se conhecia. O gênero

    mais ameaçador é a notícia. Por não possuir o caráter pedagógico que Walter

    Benjamin atribui à narrativa, ela também se distancia da narrativa, mas é seu caráter

    informativo que a transforma na maior das ameaças à narração. O aspecto principal

    da informação é sua veracidade (que depende da verificação imediata) e esse

    aspecto põe em xeque os saberes que “vêm de longe”. Antes da notícia, os saberes

    que “vêm de longe”, mesmo não fazendo parte da vivência de seus ouvintes e,

    portanto, não podendo ser verificados, tinham autoridade e eram válidos. A

    facilidade com que recebemos notícias de todo o mundo faz com que as pessoas

    percam seu interesse no longínquo e se apeguem cada vez mais ao próximo. Outro

    ponto muito criticado pelo autor é que o excesso de informação faz com que

    sejamos cada vez mais pobres de histórias realmente interessantes e

    surpreendentes; ele limita os acontecimentos quase ao total serviço da informação,

    não sobrando nada para ser utilizado pela narrativa.

    A notícia, porém, é completamente esgotada pelo presente, pelo agora. Só vale

    enquanto for nova; passado o tempo, ela deixa de ter seu valor e é a partir desse

    ponto que Walter Benjamin começa a definir o que é “a verdadeira narrativa”. Para o

    autor, a verdadeira narrativa é atemporal, ela atravessa o tempo sem perder sua

    importância, sua atualidade, sendo até mesmo capaz de continuar se

    desenvolvendo.

  • 30

    Já o ponto que difere a narrativa do romance é a facilidade de ser recontada.

    Benjamin afirma que, para despertar no ouvinte (ou leitor) a vontade de recontá-la, a

    narrativa deve se incorporar às suas próprias experiências e isso só ocorre se o

    narrador renunciar às sutilezas psicológicas (o que raramente ocorre no romance,

    segundo ele), tornando a narrativa mais fácil de ser gravada na memória do ouvinte.

    A relação entre o ouvinte e o narrador tradicional consiste na intenção de

    conservar o que foi narrado, fazendo da memória o mais importante dos elementos

    dessa relação. A memória não perde sua importância no romance, ela apenas é

    deslocada, deixa de ser um elemento da relação leitor e narrador e passa a

    incorporar a relação narrador e romance, estando presente em todas as etapas da

    elaboração do romance (personagens, enredo, ambientes etc).

    O entendimento de Benjamin (1987) sobre a ação interna do romance ser uma

    luta contra o tempo não é completamente dissonante com o pensamento pós-

    moderno, devido ao fato do romance ser composto, em sua essência, por memórias.

    O tempo das memórias é fluido e maleável como ela própria também o é e, por isso,

    o narrador pós-moderno consegue manuseá-lo de uma forma mais livre dentro da

    sua narrativa. O que caracterizaria não uma luta contra o tempo, mas sim um

    aprendizado, aprender a utilizar o tempo em favor do fato narrado.

    Assim como a relação narrador e tempo, Benjamin critica a mudança de foco

    do olhar do narrador. A seu entender a vida só pode fazer sentido através da morte.

    O homem moderno, no entanto, evita o “espetáculo da morte”, tirando dela o caráter

    de episódio público e privatizando-a. Porém, para Benjamin (1987, p. 207), “é no

    momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência

    vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira

    vez uma forma transmissível’, a morte confere autoridade a todos de forma

    democrática até mesmo a um “pobre-diabo”.

    O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrático.

    O olhar pós-moderno (em nada camuflado, apenas enigmático) olha nos olhos o sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas as variantes do hedonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no agora em mil possibilidades.

  • 31

    [...] No leito da morte, exuma-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo de morrer, porque ele já é. Reina única a imobilidade tranquila do homem no leito de morte [...] no campo da vida exposta no momento de viver o que conta para o olhar é movimento. Movimento de corpos que se deslocam com sensualidade e imaginação, inventando ações silenciosas

    dentro do precário. Inventando o agora. (SANTIAGO, 1989, p. 50)

    Enquanto Benjamin descreve o narrador sob uma perspectiva tradicionalista e

    oral e elabora uma previsão quase apocalíptica em que à arte de narrar não resta

    outro futuro senão a “morte”, Silviano Santiago (1989), diz que o narrador não vai se

    extinguir, ele continua transmitindo uma vivência, passando informações sobre

    outras pessoas, porém ele se adapta às novas experiências, olhares, encontrando

    novas formas de contar suas histórias.

    E para um novo momento literário nasce um novo tipo de narrador; o narrador

    pós-moderno que, segundo Santiago (1989), vai se extrair da história narrada,

    mantendo-se apenas como espectador dos fatos, assim como um repórter, passa a

    ser um narrador que observa para se informar e transmitir.

    Não diferente do narrador tradicional, como supunha Benjamin, as histórias

    contadas pelo narrador pós-moderno também são revestidas de “sabedoria”, porém

    a “sabedoria” propagada pelo narrador pós-moderno decorre da observação da

    vivência de terceiros, uma vez que suas experiências nunca decorrem de sua

    própria vida, e é por isso que Santiago (1989) afirma ser ele “puro ficcionista”. E é no

    âmbito da ficção que esse narrador se torna tão artista quanto o narrador tradicional

    de Benjamin, ele confere autenticidade “a uma ação que, por não ter respaldo da

    vivência, estaria desprovida” (Santiago, 1989, p. 40) da mesma, isso porque o

    narrador pós-moderno possui consciência de que as noções tanto de autenticidade

    quanto de realidade são construídas e estruturadas de forma lógica dentro do

    romance através das palavras.

    Assim como Benjamin (1987) já havia explorado em seu texto O Narrador ou à

    medida que a modernização avança, a capacidade narrativa do indivíduo vai

    atrofiando, até chegar a um ponto em que ele já não se acha mais capaz de narrar

    suas próprias experiências e é nesse momento que entra o narrador pós-moderno.

    Ele passa a narrar “a ação daquele que é observado e não consegue mais narrar”

    (SANTIAGO, 1989, p. 45). Junto com essa incapacidade de narrar, “desaparece a

    necessidade da narrativa. Existe, o silêncio. Para evitá-lo, o mais experiente deve

  • 32

    subtrair-se para fazer valer [...]. Por a experiência do mais experiente ser de menor

    valia nos tempos pós-modernos é que ele se subtrai” (SANTIAGO, 1989, p. 46). E é,

    segundo Santiago, essa quebra na comunicação entre gerações que impossibilitou o

    processo linear de aprimoramento do homem e da sociedade. Justamente por isso

    aconselhar deixou de ser uma continuação da história narrada, segundo

    entendimento de Benjamin.

    Já não existindo mais a imagem da história como continuidade entre a vivência

    do mais velho pelo mais novo, as narrativas atualmente são quebradas, presas em

    um eterno recomeçar. Porém, como “as ações do homem não são tão diferentes em

    si de uma geração para outra, muda-se o modo de encará-las, de olhá-las”

    (SANTIAGO, 1989, p. 47). O narrador pós-moderno não busca novas formas de agir,

    mas sim uma nova forma de expressão, ele está sempre se movimentando por todos

    os ângulos, em busca de novas perspectivas. As ações podem ser encaradas,

    segundo Santiago (1989, p. 47), “com a sabedoria da experiência, ou com a

    sabedoria da ingenuidade. Não há, pois, uma sabedoria vencedora [...]. Há um

    conflito de sabedorias na arena da vida, como há um conflito entre narrador e

    personagem na arena da narrativa. ”

    Em um tempo em que o visual prevalece, segundo Santiago (1989), o narrador

    observador se torna contraditório, pois ele transforma seu olhar em palavras para

    construir a narrativa e seus personagens saem do plano da observação, para

    tornarem-se atores das ações determinadas pelo narrador pós-moderno dentro do

    espaço e do tempo que lhes é permitido existir.

    Assim como Silviano Santiago, Saramago (1998) também não acredita na

    morte ou na dissolução do romance, pois, segundo ele, antes de existir o romance

    da forma como conhecemos atualmente, existiu a precisão de contar e o interesse

    em ouvir. Para Saramago, o que aconteceu com o romance foi

    uma transformação dele. [...] penso que há bastante coerência nessa definição do romance como lugar literário em vez de género. ... quando convoco o romance, no fundo entendo-o como uma tentativa de o transformar numa espécie de soma. Se afirmo que o que quero é dizer quem sou, que o que quero é que através do romance possa aparecer a pessoa que sou, a tal que não se repetirá mais, aquela que não acontecerá outra vez, ... não se trata apenas de escrever um romance para contar uma história: trata-se de escrever um romance para tentar dizer tudo.

    (SARAMAGO apud REIS, 1998, p.138)

  • 33

    A frase “nós o sabemos e vamos dizer” (Memorial do Convento apud BERRINI,

    1998, p. 53) revela, segundo Berrini, a natureza onisciente e onipresente dos

    narradores de Saramago. Eles se mantêm em posição favorecida, admirando o

    mundo que surge de suas palavras, mas isso não significa que Saramago prenda-os

    a uma única perspectiva. Seus narradores transitam entre olhar para a história de

    forma objetiva e clara como um observador; transferir a fala para uma de suas

    personagens por breves momentos; escolher determinada perspectiva, esquecendo,

    mesmo que momentaneamente, todas as demais possibilidades. E, mesmo que de

    uma forma sútil, o olhar e a presença do criador se mantêm sempre presentes, mas

    toda essa aparente liberdade, toda essa fluidez estabelecida por seus narradores,

    torna difícil delimitar com clareza e rigor as fronteiras entre narrador e personagem

    nos romances de Saramago.

    Parte da delicadeza da qual essas fronteiras se revestem advém do fato de que

    a construção da personagem está diretamente relacionada com o narrador. Beth

    Brait (1998) utiliza a seguinte classificação: narrador em terceira pessoa, aquele que

    não está envolvido na história, atuando como uma câmera externa; e “narrador em

    primeira pessoa que pode estar envolvido de forma direta ou indireta com os

    acontecimentos narrados” (BRAIT, 1998, p. 53) O tipo de narrador determina como a

    personagem será apresentada ao leitor.

    O narrador em terceira pessoa possui uma visão privilegiada da personagem,

    podendo observar não apenas seus movimentos, como também conhecer seus

    pensamentos, possibilitando ao leitor um conhecimento mais profundo sobre o que é

    essa personagem. Essa estratégia narrativa consiste, segundo Brait (1998), em um

    recurso bastante antigo e eficaz, porém sua eficácia está diretamente relacionada às

    habilidades do escritor que deve utilizar os elementos necessários para fazer da sua

    criação um ser, seja recorrendo “ao sonho ou à aparição maravilhosa como formas

    de dramatização que permitem representar a intensidade de um conflito interior”

    (BRAIT, 1998, p.56). Outro mecanismo eficaz é o discurso indireto livre, uma vez

    que este possibilita externalização de um diálogo interno da personagem,

    extinguindo os limites existentes entre a câmera e a personagem.

    Outra característica importante do narrador em terceira pessoa é sua

    capacidade de manipulação temporal. Segundo Brait (1998), esse narrador “simula

    um registro contínuo”, mas na verdade ele focaliza a personagem apenas nos

  • 34

    momentos que mais convém para o desenvolvimento da narrativa e para a

    concretização das personagens.

    Já o narrador em primeira pessoa participa ativamente da história como uma

    personagem secundária, ou principal; a condição primordial é que esse narrador

    esteja envolvido com as ações narradas. De acordo com Brait (1998), nesse tipo de

    narração, todas as impressões e definições utilizadas na construção dos seres

    fictícios devem ser postas ao leitor por uma personagem através da sua perspectiva,

    funcionando, assim, como uma lente privilegiada através da qual o leitor percebe e

    visualiza as demais personagens. “O narrador, de forma discreta, vai criando um

    clima de empatia, apresentando a personagem principal de maneira convincente e

    levando o leitor a enxergar, por um prisma ao mesmo tempo discreto e fascinado, a

    figura do protagonista” (BRAIT, 1998, p. 64).

    Apesar de normalmente funcionar como uma câmera externa, o narrador em

    primeira pessoa também pode exercer a função de câmera interna. Dentre os

    recursos de caracterização de personagem utilizados nesse tipo de narração, o

    monólogo interior é, de acordo com Brait (1998), aquele que vai mais longe ao tentar

    expressar o interior da personagem, instalando o leitor em seus pensamentos, no

    fluxo de sua consciência.

    2.2.2 Do que se constitui uma personagem

    Nos romances de Saramago, prevalece a narração em terceira pessoa, dessa

    forma suas personagens não possuem autonomia. Saramago (1998) afirma ainda

    que o conhecimento do autor sobre suas personagens limita-se ao seu passado, não

    sabendo nada a respeito de seu futuro.

    Posso repetir o tal exemplo da mulher do médico: naquele momento em que ela diz que cegou, não sei nada do seu futuro, e se interrompesse o livro naquela altura não saberia que destino aquela mulher iria ter. Nas linhas seguintes que vou escrevendo, não é que se me vá tornando claro, mas de repente há como uma espécie de necessidade da própria história que estou a contar: é a história que necessita que aquela personagem se determine desta ou daquela forma. Você dirá: Sim, sou eu, mas eu sou instrumento da narração e a narração é o meu instrumento; há uma espécie de compadrio, uma espécie de

  • 35

    interajuda entre o autor e aquilo que ele escreve, que leva, em cada momento, a aclarar aquilo que no momento anterior não estava ainda claro.

    (SARAMAGO apud REIS, 1998, p 133 e 134)

    Mesmo parecendo que a personagem é o que há de mais vivo no romance, e

    que sua leitura dependa basicamente da aceitação de sua verdade pelo leitor, assim

    como na fala de Saramago citada acima, Antônio Candido (1981) nos recorda que

    pensar na personagem como sendo a essência do romance é um erro, pois, mesmo

    sendo o elemento mais atuante, depende do contexto para adquirir pleno significado.

    De acordo com Candido (1981), é a construção estrutural o maior responsável pela

    força e eficácia de um romance.

    Um dos aspectos que envolvem a construção estrutural é a construção da

    personagem. A personagem é um paradoxo em si, por se tratar de um ser fictício e,

    segundo Candido (1987), é nesse paradoxo que repousa a criação literária, uma vez

    que a verossimilhança do romance depende que essa figura imaginária convença o

    leitor de que sua existência é uma possibilidade real. Devido a essa eterna busca

    por aproximar-se ao máximo da realidade, Candido (1987) afirma que há uma

    relação entre o ser vivo e o ser fictício e que essa relação é exposta através da

    personagem.

    O conjunto de percepções que apreendemos de outro indivíduo consiste em

    dois tipos, os referentes às configurações externas e os referentes às configurações

    internas.

    O primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domínio finito, que coincide a superfície do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige a um domínio infinito, pois sua natureza é oculta à exploração de qualquer sentido e não pode [...] ser aprendida numa integridade que essencialmente não possui. [...] a noção a respeito de um ser [...] é sempre incompleta [...] o

    conhecimento dos seres é sempre fragmentário. (CANDIDO, 1987, p. 56)

    Esse conhecimento fragmentado descrito por Candido (1987) refere-se à forma

    limitada e incompleta que o conhecimento a respeito do outro é formado. Enquanto

    na vida a visão fragmentária se faz condição indissociável à nossa própria

    existência, no romance essa característica é criada pelo autor que a dirige,

    racionalmente delimitando e encerrando dentro de uma estrutura elaborada (a

    narração) a ação de conhecer o outro. Essa delimitação exige do autor uma

    simplificação que ele alcança por meio de escolhas de gestos, frases, etc, marcando

  • 36

    dessa forma a personagem, para sua identificação pelo leitor, sem diminuir com isso

    sua complexidade.

    Devido à visão fragmentada, impressões soltas sobre o outro são apreendidas,

    dentro delas apenas determinadas impressões a respeito de cada pessoa são

    selecionadas objetivando a criação de uma unidade em meio ao caos das

    diferenças. Esses aspectos fazem com que a intepretação sobre o outro seja fluida e

    suscetível a variações como tempo ou conduta. Já para a personagem que é

    construída de forma mais coesa e menos variável, mesmo que nossa interpretação

    varie, já foi estabelecido pelo autor uma linha de coerência fixa e imutável que limita

    sua existência e seu “modo-de-ser”, tornando a personagem mais fixa, mais lógica

    que uma pessoa, porém não menos profunda.

    O romancista moderno, segundo Candido (1987), na busca por reduzir a noção

    de imutabilidade à qual a personagem estava vinculada, procurou aumentar cada

    vez mais esse sentido de dificuldade do ser fictício, meta que depende das escolhas

    e da habilidade do autor em combinar os elementos de caracterização, resultando

    no aumento do grau de complexidade da personagem. Uma eliminação completa

    dos limites seria, no entanto, impossível, uma vez que a natureza da personagem é

    a de uma estrutura limitada determinada através da escolha e organização de um

    número limitado de elementos, não é a quantidade de elementos escolhidos, mas

    sim a lógica com a qual eles serão organizados que irá criar a ilusão de ilimitado.

    Com a crescente complicação da psicologia das personagens, elas passam a

    ser distinguidas em dois grupos. Candido (1987) apresenta a distinção proposta por

    Foster que separa as personagens em planas e esféricas. Segundo o autor, as

    personagens planas podem ser chamadas de tipos ou caricaturas. Elas são

    comumente caracterizadas por uma só ideia ou qualidade, permanecendo imutáveis

    durante toda a narrativa. Se apresentarem mais de uma, isso significa que elas têm

    uma propensão à esférica. São fáceis de serem reconhecidas e fáceis de serem

    lembradas.

    Já as personagens esféricas são personagens mais complexas, dotadas de

    profundidade e capacidade de surpreender o leitor de maneira convincente. “Se

    nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela

    traz em si a imprevisibilidade da vida – traz a vida dentro das páginas de um livro”

    (FOSTER apud CÂNDIDO 1987, p. 63).

  • 37

    Conforme foi discorrido, o autor constrói sua personagem de forma que ela

    pareça viva, assemelhando ao máximo possível com um ser vivo. Passa-se, então, a

    discutir o processo de criação, idealização da personagem, podendo ser uma

    reprodução da realidade ou uma invenção. Porém, segundo Candido (1987, p. 65),

    essas “duas alternativas nunca existem em estado de pureza”. Elas nascem da

    memória do autor e por isso esse estado de ambiguidade “reproduz apenas

    elementos circunstanciais [...]; o essencial é sempre inventado” (CANDIDO, 1987,

    p.65). A cópia fiel do real seria, segundo Candido (1987), a negação do romance.

    Esse processo de concepção assemelha-se e clarifica o ponto de vista de Saramago

    a respeito do assunto.

    Penso que as minhas personagens saem todas da minha cabeça, neste sentido: não é que elas já cá estivessem antes, mas, no momento de escrever, as personagens de que eu necessito apresentam-se-me, sem que eu tenha um caderninho de notas [...] minhas personagens nascem em cada momento, são impelidas pela necessidade e não são cópias, não são versões. [...] eu posso dizer que não observo [...] o que acontece comigo é receber [...] sensações de toda a ordem, nenhuma delas com um propósito ou um fito, mas que depois quando necessito, quando preciso de pôr essa

    gente toda a funcionar, provavelmente uso tudo isso (SARAMAGO apud REIS, 1998 p 131 e 132)

    Tomando como ponto de partida o fato da personagem nascer do imaginário do

    autor, Candido (1987) apresenta, primeiramente, a classificação de personagens

    quanto ao seu grau de afastamento em relação à realidade proposta por Mauriac:

    disfarce leve do romancista, personagens baseadas nas memórias do autor,

    ocorrem em autores memorialistas; cópia fiel de pessoas reais, reproduções de

    pessoas reais, ocorrem em autores retratistas, e inventadas, a realidade serve

    apenas como uma referência inicial, nascendo basicamente da imaginação do autor.

    Candido, todavia, discorda da nomenclatura inventada, uma vez “que esta invenção

    mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual

    do romancista, seja a do mundo que o cerca” (CANDIDO, 1987, p 67).

    Baseando-se nos primeiros tipos de personagens (reproduzido e inventado),

    Candido apresenta várias possibilidades de invenção.

    Personagens que refletem com um certo grau de fidelidade modelos adquiridos

    pelo romancista através de experiências diretas, podendo ser interior ou exterior. No

    caso da experiência interior, o que ocorre é uma projeção das vivências do

    romancista em sua personagem, enquanto que nas experiências exteriores, ele

    retrata pessoas com as quais teve contato direto.

  • 38

    As personagens que refletem modelos anteriores são aquelas que o

    romancista retrata usando por base experiências indiretas, como documentos,

    testemunhos e sua imaginação passa a trabalhar na elaboração da personagem

    tomando essas informações como referências.

    Há também as personagens construídas através de um modelo real, conhecido

    diretamente do escritor. Nesse caso a pessoa real serve apenas como um ponto de

    partida, pois, durante o processo de criação, ela é desfigurada, mesmo assim,

    continua sendo possível identificá-la na personagem.

    Parecido com o processo anterior, tem a personagem concebida em volta de

    um modelo, conhecido pelo autor direta ou indiretamente. Nesse caso o modelo

    serve apenas como um estímulo à imaginação e à caracterização, sendo o resultado

    final nada semelhante ao modelo.

    Ainda na linha de modelos reais, existem as personagens que são construídas

    com um modelo base, mas no desenvolver do processo de invenção, o romancista

    junta à modelo base outros modelos secundários, construindo a personagem pela

    imaginação.

    As personagens arquitetadas através da junção de diversos fragmentos de

    diferentes modelos vivos, sem que um fragmento tenha maior importância que o

    outro. É dessa mistura que vai nascer a personalidade da personagem.

    Por último, Candido (1987) apresenta uma personagem que é estruturada de

    forma bastante diferente das anteriores, ou porque sua base se dissipou em sua

    personalidade fictícia, ou porque, em seu processo de elaboração, não foi utilizado

    um modelo de forma consciente pelo romancista, ou porque o romancista não

    consegue identificar seus elementos que retomam a realidade. Essas personagens

    são criadas por experiências muito mais interiores que exteriores, são personagens

    repletas de simbolismo, corporificações de estímulos do autor.

    Saramago mesmo afirma que não é o tipo de escritor que toma modelos vivos

    para a construção de suas personagens, mas há em seus livros personagens sólidas

    o suficiente para serem reconhecidas como personagens de ficção:

    se eu não as vou buscar lá fora, está claríssimo que só as posso ir buscar dentro de mim. Dentro de mim, mas não como cópias, que por sua vez seriam cópias dessas minhas diferentes personalidades, antes como hipóteses, ou nem sequer como hipóteses, porque em momento nenhum eu

  • 39

    me sinto representado numa personagem de romance. (SARAMAGO apud REIS, 1998, p 135).

    O que ocorre em cada um desses trabalhos de invenção é a combinação da

    memória, observação e imaginação nos mais variados graus, embebidos das

    concepções intelectuais e morais do autor. Esse, porém, é um trabalho que

    acontece, segundo Candido (2006), de maneira mais inconsciente que consciente, o

    que impossibilita que os autores determinem com exatidão como se deu a cada

    aspecto da concepção de suas personagens, dependendo a natureza de suas

    personagens não apenas de sua memória, observação ou imaginação, mas também

    das suas intenções ao escrever o romance.

    Sendo assim, a verossimilhança do romance “acaba dependendo da

    organização estética do material, que apenas graças a ela se torna plenamente

    verossímil” (CANDIDO, 1987, p. 75) Ou seja, a vida da personagem depende de

    toda a estrutura do romance, tornando o estudo de sua composição muito mais

    importante que a sua comparação com o mundo.

    2.3 IDEOLOGIA, IDENTIDADE E SUJEITO NO DISCURSO

    A definição de discurso é extremamente ampla e envolve todas as formas de

    comunicação desenvolvidas pelo homem. Se está passando uma mensagem, uma

    ideia, constitui discurso. O uso da linguagem pode contribuir tanto para a reprodução

    das estruturas sociais quanto para transformá-las.

    O termo discurso, segundo Fairclough (2001), relaciona o uso da linguagem

    como forma de prática social. O discurso é usado tanto para representar a sociedade

    quanto como o modo como as pessoas agem sobre o mundo e sobre as outras

    pessoas, e seu papel na sociedade é de grande relevância. Uma vez que ele é

    moldado e restringido pela estrutura social, ele é construído e seu uso determinado

    de acordo com a necessidade do momento, de acordo com a situação social em que

    o indivíduo se encontra, sendo, portanto, constitutivo. A importância do discurso é

    tamanha que ele

  • 40

    (...) contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades, e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e

    construindo o mundo em significados. (FAIRCLOUGH, 2001, p 91)

    Ainda explorando os efeitos constitutivos do discurso, Fairclough enumera

    três aspectos de grande importância: primeiro, o discurso contribui para a construção

    das chamadas “identidades sociais” que seriam as posições que o sujeito ocupa

    dentro da sociedade; segundo, “o discurso contribui para construir as relações

    sociais entre as pessoas e, terceiro, o discurso contribui para a construção de

    sistema de conhecimento e crenças” (FAIRCLOUGH, p 91). São esses três aspectos

    que, segundo o autor, correspondem tanto a três funções da linguagem quanto às

    dimensões de sentido que coexistem dentro de todo discurso e ele as denomina

    função “identitária”, “relacional” e “ideacional”.

    Rapidamente conceituando-as, a função “identitária” diz respeito à forma

    como as identidades sociais se estabelecem no discurso; a função “relacional” nos

    diz como as relações sociais, entre os sujeitos do discurso, são representadas e

    negociadas; por fim, a função “ideacional” vai tratar de como os textos significam o

    mundo, seus processos de produção e significação, entidades e relações nele

    evidenciadas. As funções “identitária” e “relacional” foram primeiramente abordadas

    por Halliday, que distingue uma função “textual” que também é incluída por

    Fairclough à sua lista como função do discurso. A função “textual” diz respeito a

    escolhas conscientes de como as informações serão apresentadas, se elas serão

    postas em primeiro plano ou relegadas ao segundo plano, se serão apresentadas

    como informações antigas, já dadas, ou se serão apresentadas como novas; se

    serão tratadas como tópico ou como tema e ainda a forma com a parte de um texto

    se liga com partes anteriores desse mesmo texto e às situações sociais localizadas

    “fora” do texto.

    Enquanto o discurso como texto vai enfatizar aspectos de análise textual e

    estrutural, a prática discursiva vai se ocupar dos processos de produção (os textos

    são produzidos de acordo com contextos sociais específicos), distribuição (a forma

    como o texto será transmitido) e consumo desse texto (que também é diversificado

    de acordo com o contexto social, mas depende, também, dos modos de

  • 41

    interpretações disponíveis). Já o discurso como prática social é a dimensão mais

    relevante para este trabalho.

    A ideologia, na visão de Fairclough (2006), nada mais é do que a construção

    da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), elas fazem

    parte da estrutura social, mas que também podem ser alteradas na medida em que

    não satisfazem mais as necessidades de determinada sociedade, pois são

    construídas nas convenções. As convenções sociais implicam pressupostos

    ideológicos sobre as relações sociais e as identidades sociais tornando práticas

    normais no dia-a-dia revestidas de ideologia e, por ser difícil de compreender, as

    pessoas não estão necessariamente conscientes dos detalhes da significação

    ideológica contida em seus atos, até mesmo naqueles revestidos de revolta e

    intenção de mudança.

    A partir da discussão sobre o nível de consciência do sujeito perante a

    ideologia, Fairclough apresenta a teoria althusseriana, na qual a ideologia é vista

    como naturalizada a tal ponto que qualquer autonomia possuída pelo sujeito é tida

    como meramente imaginária, porém, quando a sujeição se dá de forma contraditória,

    a naturalização se torna difícil de manter. Essa teoria, no entanto, é duramente

    criticada por Fairclough uma vez que ela praticamente ignora a capacidade do

    sujeito de agir de forma individual ou coletiva e o trata como incapaz de criticar ou se

    opor às práticas ideológicas. Mesmo os sujeitos sendo constituídos ideologicamente,

    Fairclough defende que eles são capazes de agir criativamente ao realizar suas

    próprias conexões entre as práticas discursivas e as ideologias, da mesma forma

    que são capazes de reestruturar as práticas e estruturas quando essas já não se

    adequam mais as suas necessidades. Para Fairclough (2001), “o equilíbrio entre o

    sujeito ‘efeito’ ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende das

    condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações de dominação”.

    Da contradição iniciada na constituição do sujeito decorre a problematização

    das convenções e é dessa problematização que surgem as origens e motivações

    mais imediatas das mudanças discursivas. E o que seriam essas contradições?

    Somos socializados de acordo com um pensamento tradicional quanto à forma como

    devemos nos posicionar diante de situações e eventos sociais, porém relações

    mudam e se renovam, entrando em conflito com o tradicional, gerando assim

  • 42

    contradições na forma de agir e pensar dos sujeitos e o problema é formado. Ao

    tentar resolver tais problemas, o sujeito o faz sendo inovador e criativo, adaptando-

    se assim às convenções existentes de novas maneiras e contribuindo para a

    mudança social, cultural e discursiva.

    2.4 IDENTIDADE FRAGMENTADA, O “EU” MODERNO

    Durante os anos que antecederam o momento atual, chamado por muitos

    estudiosos de pós-modernidade, ou modernidade tardia, as identidades que cada

    indivíduo assumia perante a sociedade eram bem definidas e ajudavam a manter

    estabilizado o mundo social. Porém, acredita-se que, hoje em dia, tais identidades

    entraram em declínio, fazendo assim surgir novas identidades que acabam por

    fragmentar o indivíduo moderno. Essa fragmentação é chamada “crise de

    identidade” por fazer parte de um processo de mudança maior, que, segundo Stuart

    Hall (p. 7, 2006), “está deslocando as estruturas e processos centrais das

    sociedades modernas e abalando os quadros de referência que” mantinham o

    indivíduo unificado, estável.

    Há uma vertente, com a qual Hall (2006) concorda, que diz que as identidades

    modernas estão sendo fragmentadas. Mas ele lembra ainda que esse é um assunto

    muito complicado de se debater devido ao fato do conceito de “identidade” ser pouco

    desenvolvido e, por isso, pouco compreendido pela ciência social contemporânea.

    No passado, as estruturas culturais (bem como seus conceitos) nas quais a

    sociedade se baseava como raça, sexualidade, nacionalidade, etc. eram muito bem

    definidas e, por isso, forneciam uma base sólida e estável para os indivíduos que a

    compunham. Mas, desde o final do século XX, tais estruturas têm passado por

    transformações e estas têm afetado, também, nossas identidades pessoais, as

    ideias que tínhamos de nós mesmos, segundo Hall (2006), como “sujeitos

    integrados”. Essa mudança, que ocasiona tanto um sentimento de perda do lugar

    social e cultural o qual esse indivíduo ocupava quanto um sentimento de perda de si

  • 43

    mesmo, pode ser chamada de “deslocamento ou descentração do sujeito” e é esse

    deslocamento que incita a dúvida e incerteza no indivíduo iniciando a crise de

    identidade.

    Para entender melhor como a identidade era vista antes e hoje, o autor

    trabalha com três concepções diferentes de identidade: sujeito do iluminismo, sujeito

    sociológico e sujeito pós-moderno.

    O sujeito do iluminismo é baseado no conceito de um indivíduo completamente

    centrado, dotado de razão, consciência e capacidade de ação. Sua identidade

    nascia com ele e se desenvolvia à medida que esse indivíduo crescia, mas sua

    essência continuava sempre a mesma, imutável, sólida. Nessa concepção, o centro

    do sujeito era sua identidade, coração da sua personalidade. Já o sujeito sociológico

    era visto de forma mais complexa, sua identidade não era considerada autônoma e

    autossuficiente, mas sim fruto da interação com o meio e com outros indivíduos, que

    mediava os valores, sentidos e símbolos para o sujeito. Apesar da identidade do

    sujeito sociológico ser formada das interações social e pessoal, ainda se acreditava

    haver um núcleo