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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UNICEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES
CURSO DE LETRA
Helena Ferreira Pimenta
FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a
cegueira: de mulher do médico a assassina
Brasília,06 de junho de 2014
II
HELENA FERREIRA PIMENTA
FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a
cegueira: de mulher do médico a assassina
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura no Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e da Saúde - FACES, do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.
Orientador: Prof. Da. Cinthya Costa
Santos
Brasília – DF, 06 de junho de 2014
III
PIMENTA, Helena Ferreira
FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a
cegueira: de mulher do médico a assassina
Brasília, 2014. 80 f.
Monografia apresentada ao Centro Universitário de Brasília
- UniCEUB, para a obtenção do título de Licenciatura do Curso de
Letras, da Faculdade de Ciências e da Saúde.
000000
IV
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UNICEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES
CURSO DE LETRAS
Helena Ferreira Pimenta
FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA em Ensaio sobre a Cegueira: de mulher do
médico a assassina
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como
requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura
no Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e da
Saúde - FACES, do Centro Universitário de Brasília –
UniCEUB
Aprovada em ____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
CINTYA COSTA SANTOS
Doutora
Instituição
_________________________________________________
ANDRÉ MOREIRA
Titulação
Instituição
_________________________________________________
SIMONE SILVEIRA DE ALCÂNTRA
Doutora
UnB
V
À minha querida e amada Helena Ferreira
Pimenta. Nunca se esqueça e nem duvide
do tamanho do seu potencial, porque a
única pessoa que pode te impedir lhe
alcançar seus objetivos é você mesma.
VI
AGRADECIMENTOS
No princípio eu era duas partes, que
se juntaram e fizeram de mim quem hoje
eu sou e por isso, Sr. Wellington e Sra. Mª
do Socorro, pai e mãe, não tem como não
agradecê-los. Obrigada, mãe, pelo
entusiasmo e fé que deposita em mim.
Obrigada, pai, pela ansiedade que
compartilhou comigo e, por que não, pela
pressão que tanto me enlouqueceu.
Agradeço à minha orientadora,
Cinthya Costa Santos, uma graça de
pessoa que, com muita calma e paciência,
me ajudou a colocar as minhas ideias no
lugar. Obrigada por não enlouquecer com a
minha verborragia velocidade cinco, por
não se desesperar pelas vinte vezes que
mudei de tema, por me amarrar ao chão
todas as vezes que as ideias saltavam da
minha cabeça como piabas alucinadas,
atrás de uma migalha de pão. Sem a sua
orientação, esse trabalho não teria
encontrado seu caminho a tempo.
Agradeço aos meus irmãos mais
novos, de quem eu me sinto um pouco mãe
e a quem eu amo tanto, Sarah Pimenta e
Matheus Pimenta. Seu apoio e torcida
silenciosa sempre me ajudam demais, sem
contar que sempre que preciso de colo e
de sorrir, vocês estão sempre por perto,
mesmo quando distantes.
Algumas pessoas merecem ser
citadas, porque me aguentaram quando eu
VII
surtei, me acalmaram quando achei que
não iria conseguir, que se preocuparam
com o andamento da minha pesquisa,
porque me deram colo e enxugaram
minhas lágrimas, ouviram minhas
reclamações e riram do meu drama, que
sentiram minha falta, que não me julgaram
pelo meu sumiço, amor é pouco perto do
que sinto por vocês, meus amigos: Marcelo
Bertoldo “Gordinho”, Marcelo Raro “Celo”,
Leika Saori “Tamagoshi”, Vitor Correa
“Marinheiro”, Caio Cestari “Barbicha”, o
Grupo das sete, as Verificats, os Linguiças
aplicadas e o Camarote. Desculpa pelo
meu mau humor, meu desespero, minha
ansiedade, meu sumiço, meu silêncio,
minhas loucuras, meus surtos. Obrigada
por acreditarem na minha capacidade, por
torcerem pelo meu sucesso.
Meu agradecimento mais que especial
guardei para o final. Às minhas mães, não
de sangue, mas de coração, por escolha,
mães que eu adotei, Idália, Márcia Beatriz
e Dona Eleonora. Amo cada uma de vocês
por serem quem são, por tudo que
representam em minha vida, por todo o
amor que me deram gratuitamente, por
puxarem minha orelha, por olharem por
mim e por me enlouquecerem de vez em
sempre.
Essa vitória é minha e um pouquinho
de cada um de vocês.
VIII
“era um escritor, e de um sujeito com
essa profissão espera-se tudo”
Rubens Fonseca
IX
RESUMO
A noção de identidade como uma unidade imutável e indivisível começou a cair com o início da globalização. O indivíduo continuou mantendo sua necessidade de sentir-se único, mas convivendo em grupo, grupos esses que, devido ao processo de globalização, já não possuem mais as barreiras de tempo e espaço para limitarem-se. A noção de identidade passou então a ser construída por práticas sociais de uma sociedade cada vez mais ampla em conceitos e ideologias, abrangendo sua visão de mundo e expandindo as possíveis situações a que este indivíduo poderia estar exposto. Da necessidade de adaptação é que deriva o que estudiosos, como Guiddens, denominam de fragmentação da identidade. Para cada situação, o indivíduo possui uma identidade que melhor se adequa, podendo, ainda, no caso de situações completamente novas, o indivíduo enfrentar uma crise de identidade, até que, com base em conhecimentos sociais acumulados, esse indivíduo torna-se capaz de adaptar-se construindo para si uma nova identidade. Com base na análise de um momento específico da personagem mulher do médico, presente no romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, a presente monografia pretende demonstrar o que ocasiona a fragmentação do indivíduo, como ela ocorre e de que forma a personagem a incorpora.
PALAVRAS-CHAVE: José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, identidade,
pós-modernidade.
X
ABSTRACT
The idea that a person’s identity is an unchangeable thing that is not affected by the society no longer is no longer existent now that globalization exists. People will continue to have the need for their individuality while living in a society with no boundaries in time and space because of globalization. With globalization, a person’s identity is more and more affected by the ideologies of the world as a whole and not just by the ideologies of the place, he lives. A famous writer called Giddens describes identity fragmentation as the necessity people have to adapt to their society. For every society a person finds himself, he creates an identity that is well adapted to that place. When he is in a new society he has an identity crises until he can better understand the rules of the new society and by so doing adapt to the new society by creating a new identity. Based on the analysis of the character of the doctor’s wife in the romance novel Blindness written by the Portuguese author José Saramago, this monograph intends to show the concept of identity fragmentation as it happens in the personality of the character showing how her personality evolves during the book.
KEYWORDS: José Saramago, Blindness, identity, post-modernism .
XI
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12
1 Saramaguiano ........................................................................................... 15
1.1 Quem foi Saramago.......................................................................... 15
1.2 Saramago enquanto escritor ........................................................... 17
1.2.1 Estilo Saramaguiano ...................................................................... 18
2 EMBASANDO SARAMAGO ..................................................................... 20
2.1 Literatura pós-moderna de Saramago: características ................. 20
2.2 O narrador e personagem ................................................................ 27
2.2.1 O antigo x o novo: a mudança no ponto de vista ............................ 27
2.2.2 Do que se constitui uma personagem ............................................ 34
2.3 Ideologia, identidade e sujeito no discurso ................................... 39
2.4 Identidade fragmentada, o “eu” moderno ...................................... 42
3 ANÁLISE ................................................................................................... 50
3.1 Simplificando a análise .................................................................... 51
3.2 Identidade fragmentada: A mulher do médico, assassina ........... 53
3.2.1 Síntese da obra: Ensaio sobre a cegueira ..................................... 54
3.2.2 Análise Estática: Quem é a mulher do médico .............................. 56
3.2.3 Análise Dinâmica: Fragmentando-se .............................................. 57
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 79
12
INTRODUÇÃO
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome,
essa coisa é o somos”.
(José Saramago, 2013)
A sociedade pós-moderna diz respeito ao que não se estabelece. O que
marca essa sociedade é o dinamismo, a agilidade, a flexibilidade. Tudo é variável,
problemático e paradoxal. Reconciliando-se com o passado, com a história, o pós-
modernismo se faz eclético na literatura podendo assumir qualquer forma e,
reunindo traços como indeterminação do sentido, questionamento da narração,
canal de diálogo narrador – leitor aberto, passa a exaltar a subjetividade do autor e o
prazer do leitor.
Todas essas características são observadas nas obras de José Saramago,
autor português que criou a personagem, objeto de análise desta pesquisa, em uma
de suas mais renomadas obras, Ensaio sobre a Cegueira. Ler Saramago é uma
experiência única que nos remete quase que instantaneamente a sensações como:
estranhamento, sedução, encanto, confusão, fascínio, revolta. Isso porque não se
trata de um escritor convencional. Ele subverte as regras a seu favor. Vírgulas,
pontos finais, pontos e vírgulas são manipulados pelo escritor de forma a aproximar
sua escrita à oralidade e aproximá-lo de seu leitor.
Não são apenas com as normas gramaticais que Saramago faz sua “mágica”.
Normas sociais, culturais, ele “brinca” com cada uma delas sem se deixar intimidar.
Ele instiga, provoca seus leitores, os faz pensar, os inclui como parte ativa da
narrativa, sem apagar o narrador e sua importância. Ele transgride até mesmo as
normas literárias ao assumir que, para ele, o narrador é mais que um personagem, o
narrador é a representação do próprio autor dentro da obra, sua voz, sua
materialização.
[...] a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. [...] O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal. Não o relato de sua vida, não a sua biografia, quantas vezes
13
anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente
ousaria ou saberia contar. (SARAMAGO, p. 26 e 27, 1998)
Entender quem foi Saramago, sua trajetória, seu estilo, sua forma de escrever
e de ver a literatura se faz essencial a esta pesquisa, uma vez que o objeto de sua
análise encontra-se dentro de um de seus romances, para ser mais específica, a
personagem chamada pelo autor de mulher do médico, em seu romance Ensaio
sobre a cegueira. Dentre todas as características que nos ajudam a definir um autor
como sendo pós-moderno, ou não, um conjunto delas é a que mais interessa a esta
pesquisa, uma vez que, juntas, nos auxilia a compreender o que é que forma a
identidade nesse período de contradições. E a partir de quais vozes podemos
perceber a identidade formando-se e transformando-se no decorrer do romance.
Como acontece a fragmentação de identidade na personagem “mulher do
médico” no livro Ensaio sobre a cegueira de José Saramago? Compreender como
se dá o processo de fragmentação na identidade da personagem mulher do médico
que, ao se ver em meio a uma situação caótica e a uma regressão forçada do
progresso, muda, sem ao menos se dar conta, de identidade de acordo com o que a
situação lhe exige, como papéis que ela se vê obrigada pela situação a interpretar. A
partir deste estudo é que se pretende analisar essa personagem central, fluindo
entre suas identidades variadas, fragmentadas e flutuantes que são ao mesmo
tempo tão contraditórias com o que ela acreditava conhecer de si mesma e tão
naturais que é possível identificar o sentimento de surpresa, mas nunca o de culpa,
ou de arrependimento.
A pesquisa realizada neste trabalho pode ser classificada como qualitativa,
pois visa reunir opiniões e informações a respeito do assunto que será analisado.
Tem caráter bibliográfico e teórico por buscar traduzir as opiniões, estruturar e
relacionar sistemas e modelos teóricos através de conhecimento científico
previamente acumulado sobre o problema aqui explorado.
Ainda quanto à metodologia, o trabalho opta pelo método indutivo. Essa
opção se justifica porque o método escolhido permite partir de dados particulares,
suficientemente constatados, inferindo-se, assim, uma verdade geral que pode ou
não estar contida no assunto proposto.
14
Enquanto procedimento, este trabalho realiza-se por meio de informações e
teorias contidas em livros que abordam a pós-modernidade, a formação da
identidade, a subjetividade, a identidade na pós-modernidade e a análise literária,
configurando-se, primeiramente, uma pesquisa documental, seguida de uma análise
da personagem mulher do médico.
No capítulo um, será apresentado aos leitores o escritor José Saramago, sua
trajetória pessoal marcada por dificuldades e amor à leitura; sua trajetória
profissional que perpassou da poesia ao teatro e o surgimento de seu estilo único,
denominado estilo saramaguiano.
No capítulo dois, a pesquisa será embasada teoricamente. Serão expostos:
os conceitos de modernidade e pós-modernidade nas artes e as características da
pós-modernidade; o ponto de vista sobre o narrador tradicional em contraponto ao
narrador pós-moderno; o papel da personagem e suas características de acordo
com sua classificação; o que é identidade e ideologia na análise do discurso e qual é
a sua percepção pelo sujeito; e, finalizando o capítulo, o conceito de identidade na
pós-modernidade e como ocorre sua fragmentação.
E, por final, no capítulo três poderá ser verificada a metodologia que será
utilizada nesta pesquisa; seguida de um rápido esclarecimento teórico a respeito do
que é uma análise literária e sua principal preocupação; uma resenha sobre a obra,
Ensaio sobre a cegueira, na intenção de contextualizar o leitor sobre o enredo que
cerca os trechos escolhidos para a análise; e, finalizando, análise de trechos
retirados da obra que tem por objetivo demonstrar um dos processos de
fragmentação pelo qual passa a identidade da personagem mulher do médico.
Espera-se que, ao final desta pesquisa, o leitor possa compreender a
personagem analisada como uma multiplicidade de personalidades flutuantes e
mutantes, que se alternam e transformam-se de acordo com a necessidade ou a
mudança social imposta.
15
1 SARAMAGUIANO
Estranhamento, sedução, encanto, confusão, fascínio, revolta, essas são
algumas das emoções que a leitura das obras de Saramago costuma causar em
seus leitores. Isso porque ele não se prende a normas, sejam elas gramaticais ou
sociais, não detém sua escrita perante valores morais, éticos ou religiosos; em
suma, Saramago é transgressor.
Ele é um escritor que afirmava não se preocupar em entrar para a posteridade,
mas sim com seus leitores e é por isso que a sensação de intimidade é tão familiar
em suas obras. Para Caio Yurgel (2013), em seu artigo Entre o excesso e a
concisão: os estilos de Saramago e Cardoso Pires, essa intimidade é resultado
da preocupação do escritor com seus leitores, criando um ambiente com abundância
em diálogos havendo a presença do leitor sem eliminar o escritor.
[...] José Saramago chega a uma fórmula: foram os leitores, e não os livros, que o transformaram em escritor. Em poucas palavras: ele só se convenceu de que era escritor quando descobriu que tinha leitores e uma corrente de afeto começou a se manifestar entre eles. Livros sem leitores não existem, são apenas um amontoado de papel. “Não sou desses que escrevem sem pensar no leitor”, afirma. Saramago diz não compreender o ponto de vista daqueles que escrevem pensando na posteridade, e não no presente, erro a seu ver muito perigoso, já que ninguém pode ter certeza de que a posteridade vai, de fato, se interessar por aquilo que hoje se faz. Se não tivesse a esperança de que seus contemporâneos se interessariam pelo que escreve, não conseguiria escrever, a ideia de posteridade, por si, não
lhe traria nenhum tipo de consolo. (CASTELLO apud YURGEL, 2013, p. 64)
1.1 QUEM FOI SARAMAGO
José Saramago, escritor português nascido em novembro de 1922, segundo
biografia disponível no site da Fundação José Saramago, teve uma vida simples,
nasceu em uma família pobre que, em busca de melhores oportunidades, mudou-se
para Lisboa. Seu nome deveria ter sido apenas “José de Sousa”, como seu pai, mas
16
o funcionário responsável pelo seu Registro Civil decidiu, por conta, acrescentar o
“Saramago”, nome pelo qual sua família era conhecida na região e que também
designa uma “planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em
épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres” (Fundação
Saramago, 2011). Somente aos sete anos, no momento em que foi matricular-se no
ensino primário, é que ele veio a descobrir que seu nome completo era José de
Sousa Saramago, e, juntando esse fato ao de que ele fora registrado dois dias
depois de seu verdadeiro nascimento, é que Saramago aponta como sendo seus
problemas de identidade, de acordo com sua autobiografia disponível no site da
Fundação José Saramago. Cursou a escola até o segundo ano do secundário,
sempre como muito bom aluno, já demonstrando aptidão para as letras, mas não
concluiu os estudos devido às condições financeiras de sua família, e, por isso, foi
transferido para o estudo profissionalizante, onde estudou cinco anos para formar-se
serralheiro mecânico, curso que, na época, além das matérias técnico-
profissionalizantes, possuía no currículo francês e uma matéria de literatura.
Em entrevista publicada na revista CULT (1998), Saramago afirma que, se
publicou seu primeiro romance com vinte e poucos anos, o fez porque, antes de ser
escritor, foi leitor. Como não tinha recursos financeiros para adquirir seus próprios
livros e passava o dia a trabalhar, sua única opção era frequentar bibliotecas
públicas à noite. Saramago (1998, p. 21) afirma: “lia tudo o que encontrava. Às
vezes, não entendia nada, ou quase nada, de alguns livros que lia; não tinha
ninguém que me dissesse: esse agora não convém, é melhor que você leia esse
outro.”
Teve muitos empregos durante sua vida, entre os quais: crítico literário, redator
de crônicas em um jornal e tradutor. Filiou-se ao partido comunista de Portugal em
1969 e em 1975, ao ficar novamente desempregado, dessa vez devido às mudanças
ocorridas por causa do golpe político-militar, Saramago decide se dedicar de vez à
arte de escrever. O estilo saramaguiano tem seu surgimento marcado na obra
Levantando do Chão. Porém, é somente em 1982 com Memorial do Convento que o
autor ganha reconhecimento internacional. O governo português vetou a
participação do Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu em
1992, alegando que a obra era ofensiva aos cristãos, por causa dessa censura
Saramago e sua esposa Pilar exilaram-se para a ilha de Lanzarotes. Em 1998 foi
17
premiado com o Nobel da literatura pelo conjunto da sua obra e faleceu em 2012 em
Lanzarote.
1.2 SARAMAGO ENQUANTO ESCRITOR
Apesar de ser conhecido por seus romances, a carreira literária abrange os
mais variados gêneros como: poesia, contos, crônicas e peças de teatro. Segundo
Maria Luiza Ritzel Remédios (2011), o escritor teve seus contos, poemas e peças de
teatro publicados em jornais entre os anos de 1947 e 1953.
O gênero literário que marcou o começo de sua carreira foi a poesia, marcada
por “uma estética neoclássica voltada para um vocabulário elaborado, uma certa
sobriedade e um ritmo equilibrado dentro de representações ancoradas no real”
(LOPES apud REMÉDIOS, 2011, p 163). Ainda segundo Remédios (2011), é a partir
de seu livro O ano de 1993 que o conhecido estilo saramaguiano começa a formar-
se. O livro em questão, apresenta uma coletânea de textos formados por uma
mescla de poesia e prosa e uma de suas características foi a dificuldade da crítica
em encaixá-lo dentro de um único gênero. Nesse ponto, segundo Remédios (2011),
seus textos já apresentam longas frases marcadas pela ausência de vírgulas e
pontos finais; já sua escrita revela-se sucinta, com muitas elipses e sugestões.
É trabalhando como jornalista que Saramago ganha notoriedade através de
suas crônicas, gênero em que o escritor, segundo Remédios (2011, p. 163), carrega
“de humor, autoironia e perplexidade”. Saramago narra em suas crônicas e contos a
história do homem fazendo uso de estratégias que oscilam “do humor sarcástico ao
lirismo romântico [...] destaca-se a linguagem que revela o ‘poder de crítica desses
escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o
poético, o político’ (CHINARELLI, 2010) ” (REMÉDIOS, 2011, p.164).
Mas é com o romance que Saramago se consagra como escritor e solidifica
seu estilo todo único de escrever, de criar.
18
1.2.1 Estilo Saramaguiano
Saramago foi um escritor de grande potencial inovador e criativo e conseguiu,
com maestria, escrever o homem como uma eterna dúvida, em eterna busca. Em
seus textos a crítica se faz sempre presente, assim como seu posicionamento
ideológico.
Nos romances, Saramago trabalha a relação mimética dialeticamente, sendo que a história que os perpassa, é o ‘outro tempo que vem ativar a consciência do presente’ (SEIXO, 1997, p.56). E ele recorre aos mecanismos da alteridade, da intertextualidade e da metaficção para desvelar a literalidade do texto, transformando-o em trabalho poético.
(REMÉDIOS, 2011, p. 164)
E foi sua busca por uma voz que lhe fosse própria que Saramago acabou por
encontrar um estilo único de escrever, onde o convencional não tem espaço, a
começar pela pontuação. O uso singular da pontuação, onde, segundo Camila
Rocha Muner (2010, p. 11), “à virgula e ao ponto final são atribuídos novos valores.”,
faz com que o processo de construção de sentido adquira “plasticidade” e
movimente-se “na perspectiva de sugerir outras leituras, mais criativas até”.
O recurso da pontuação contribui para a construção de um discurso direto
próximo à oralidade, mas, ao mesmo tempo em que a escrita de Saramago o
aproxima de seu leitor, pode também gerar confusão se seu leitor, segundo Muner
(2010, p.11), “não estiver habituado à quebra da previsibilidade da linguagem”.
O diálogo de suas personagens desenvolve-se de tal forma que mais se
assemelha com um fluxo de consciência, do que com a conversa entre duas ou mais
pessoas. Já seu narrador, figura polemizada por Saramago,
às vezes irônico, às vezes pesaroso, bem humorado ou crítico [...] parece querer incomodar a consciência daqueles que leem suas obras [...] é peculiar a Saramago fazer uso da invasão do pensamento das
personagens, a fim de revelar suas verdades mais recônditas. (MUNER, 2010, p. 12)
Por enxergar e explorar a escrita pelo que ela pode oferecer de diferente é que
Caio Yurgel (2013) define a literatura de Saramago como sendo uma literatura de
excesso. Seu interesse pelos detalhes, sua recusa em prender-se a estruturas pre-
definidas, sua maneira sutil de “contar” é que, de acordo com Yugel (2013, p. 63-64),
19
impedem “a narrativa de sucumbir à ditadura do desfecho” e permitem “ao escritor
abandonar a linha reta do enredo e conduzir o leitor por caminhos menos
pragmáticos e finalistas. ”
Desmistifica a literatura, reconhece seu leitor e o prazer existente na leitura,
sem sucumbir à indústria da massificação. O estilo saramaguiano é assim chamado
por ser revestido de marca autoral e, talvez, a principal marca em sua obra,
encontra-se no narrador. Para Saramago, o narrador carrega em si a figura do autor,
sendo assim sua personificação dentro da obra. É através do narrador que o autor
imprime à obra suas impressões, não podendo o autor se eximir de suas
responsabilidades quanto ao que escreve.
20
2 EMBASANDO SARAMAGO
Partindo de Antonie Compagnon (1999), que observa a diferença entre aqueles
que se intitulam modernos e aqueles que apenas o são, pode-se afirmar que
Saramago, mesmo que nunca tenha se autointitulado pós-moderno, o era. Não pela
pretensão, mas pelas diversas características presentes em suas criações. Seu
espírito transgressor, paradoxal e dialógico se faz presente em suas obras.
Saramago reescreve o passado adaptando-o ao presente, produzindo uma
linguagem em que, segundo Maria Alzira Seixo (apud REMÉDIOS, 2011, p. 164), “o
passado objetcual contamina-se pelo presente crítico e perspectivante”. Saramago
confronta o individual e o grupal, o ontem e o hoje, brinca com o espaço e com o
tempo e, quando necessário, tira de seus personagens suas identidades, roubando-
lhes seus nomes, buscando assim “o valor da literatura como meio expressivo, sua
atualidade mas não [...] sua eternidade. [...] reconhece o prazer da leitura e busca
sintetizá-lo em novas formas” (YURGEL, 2013, p.66).
2.1 LITERATURA PÓS-MODERNA DE SARAMAGO: CARACTERÍSTICAS
Com romances que, segundo Beatriz Berrini (1998), se utilizam de questões
espelhadas em nosso tempo e que se caracterizam como questões cruciais não
apenas no espaço de Portugal (sempre pano de fundo das histórias de Saramago),
mas no planeta, Saramago promove “um certo desenraizamento em favor de um
universalismo, de uma globalização” (BERRINI, 1998, p. 11). Para obter essa
globalização, Saramago escreve de forma a obscurecer o tempo e o espaço e, para
isso, focaliza a trama em torno de determinadas ideias e define o enredo através de
determinados problemas, o que cria no leitor a
21
consciência de que seria possível abstrair tal espaço ou transpor os conflitos para outras épocas, uma vez que ultrapassam tais contingências. [...] as ideias que se problematizam nas mentes das personagens constituem o fulcro central dessas narrativas. Tempo e espaço secundarizam-se: o que está em jogo é a consciência de que vivemos hoje num mundo terrível e que é urgente partir em busca de soluções para os problemas vitais que nos
perturbam (BERRINI, 1998, p. 11)
Saramago obscurece o tempo, mas não o apaga. Ele trabalha com esse
elemento de forma a torná-lo paradoxal, sendo definido por ele próprio como “linear
e labiríntico”, uma vez que na aparência ele avança linearmente, enquanto seu
interior é equivalente a um turbilhão. Sua essência turbulenta, no entanto, não
revoga a aparência linear percebida pelo leitor. O “romance permite [...] dar essa
sensação de linearidade, mas ao mesmo tempo encontra nela essa espécie de
turbilhão interno que é, pela sua própria definição, labiríntico. ” (SARAMAGO apud
REIS, 1998, p. 136)
Esse resultado caótico, ocasionado por esse paradoxo temporal do qual suas
narrativas são compostas, advém de organização e cuidado. Saramago preocupa-se
com a estrutura do romance, onde os fatos devem estar apoiados uns nos outros,
não podendo nunca ficar em suspenso, para não perder sua estabilidade. Essa
organização, todavia, altera-se à medida que o romance evolui,
Eu sei onde vou, ou sei onde vou chegar, mas não sei como lá chego. Há um exemplo recente claríssimo: quando, no Ensaio sobre a Cegueira, o médico é levado na ambulância e a mulher dele diz ao condutor ; e ela responde: É falso, claro está, como sabemos, mas o que é verdadeiro, o que é autêntico, é que o autor do livro, naquele exacto momento, não sabia nada sobre o destino daquela mulher; ela podia cegar no capítulo a seguir e é no ir escrevendo que me apercebo de que aquela
mulher não pode cegar. (SARAMAGO apud REIS, 1998, p. 128)
A sua memória constitui uma característica importante em seu estilo, pois tem
papel ativo na construção das suas narrativas e é de tal significância que Saramago
(apud REIS, 1998) chega a afirmar que, sem elas, seria incapaz de escrever,
havendo assim, uma arqueologia de sua própria pessoa junto às histórias por ele
contadas. Ele, no entanto, não alimenta seus livros com histórias da sua vida, pois
não se tratam de memórias sobre fatos ou coisas, e sim da memória que Saramago
tem dele mesmo enquanto o próprio sentido de sua vida e de sua experiência,
ajudando-o dessa forma a colocar sentido ao que está sendo narrado. Elas servem
22
ainda como a ponte através da qual Saramago transita constantemente entre o que
está a escrever e o seu tempo.
A pós-modernidade guarda em si o espírito da modernidade que se traduz na
contradição. Ao falar sobre a modernidade, Antonie Compagnon (1999) a trata como
uma tradição, mesmo assumindo que falar em tradição moderna seja algo
antinômico, porém não se trata de uma divergência, mas sim de um paradoxo, uma
vez que a tradição moderna configura-se em uma tradição voltada contra si mesma.
Já a modernidade estética, segundo o autor, essa, sim, é contraditória em si mesma,
ela afirma e nega, anuncia seu surgimento já decretando seu definhar.
Os paradoxos que ele discorre tratam cada um de um momento importante
dessa tradição moderna, e todos caracterizam crise, uma vez que a modernidade é
composta de contradições não-resolvidas.
O prestígio do novo, segundo Compagnon (1999), é o que marca o surgimento
da modernidade e o ponto crucial nesse primeiro momento é a ruptura, o progresso
e o tempo presente. Utilizando-se do pensamento de Nietzsche, ele separa os
modernos em dois tipos: o típico, que sabe e sente que é moderno; e os de má
consciência, que são modernos sem nunca saberem que o são.
E, como no começo o verbo se fez carne, não há melhor começo que a origem
da palavra. Tendo sua origem no latim, moderno significava agora, recentemente.
Não designava o novo, mas sim o presente, o atual, distinguindo-se então do velho,
daquilo que era passado acabado, concluído. Quando do surgimento da palavra, a
noção de tempo não se aplicava a ela, sendo um conflito entre o ideal e o atual.
Entretanto, hoje em dia aquilo que é moderno logo fica ultrapassado, o tempo não só
passou a fazer parte do conceito, como acelerou-se. E foi com a invenção do
progresso que incluímos à palavra moderno o sentido que tem para nós atualmente.
Com uma concepção positiva de tempo, de um desenvolvimento linear e cumulativo
e com ela abre-se um futuro infinito seguido por uma lei de aperfeiçoamento
constante.
Com a afirmação do progresso não apenas do conhecimento científico e
filosófico, mas também nas artes, os modernos passam a considerar-se superiores
aos antigos e começam a questionar o fundamento da estética clássica. Do ponto de
23
vista dos modernos, os antigos são primitivos e, portanto, inferiores e parte desse
ponto de vista a negação dos modelos anteriormente estabelecidos. A arte
contemporânea se torna o único valor, o que é atual hoje, no futuro será clássico,
sendo assim, a arte de ontem perde todo o seu valor.
A modernidade passa então a retratar seu tempo e suas respectivas
temáticas, e dessa combinação instante e totalidade, movimento e forma,
modernidade e memória emerge o prazer de representar o presente, não somente
pela beleza, mas pela transitoriedade, imediatismo. O presente para os modernos
consiste na negação do passado, do tempo, ele é constituído apenas de uma
sucessão de modernidades, sem passado ou futuro; sua única relação é construída
com a eternidade. Para a modernidade, o tempo que passou é esvaziado de
substância e por isso esvaziado de significado.
Alguns traços da modernidade, a partir da opinião de Baudelaire (apud
COMPAGNON, 1999), são: o não-acabado – evocação da velocidade do mundo
moderno. Estando esse sempre em mudança, exige também do artista igual
velocidade no traço para que sua execução possa acompanhar o presente; o
fragmentário – quanto mais o artista se debruça sobre os detalhes, mais caótica a
obra se torna. A pintura em detalhes, através de rápidas impressões; a
insignificância (ou perda de sentido) – há uma indeterminação de sentido na obra,
onde as ideias antigas são ridicularizadas e a autonomia – ela mesma, faz suas
regras, não reconhecendo nenhuma norma exterior a sua arte. Assim ele constrói
seu próprio manual de instrução. Com a finalidade de sempre renovar a arte e
purificá-la de convenções, a tradição moderna irá se voltar para a cultura popular
sempre que for necessário.
Segundo Compagnon (1999), os primeiros modernos não tinham preocupação
com o futuro, o presente era para eles algo eterno, infinito e, por isso, ficou como
característico deles a ruptura e começo absoluto. O novo, para esses modernos, não
era pensado em um presente que visava o futuro, mas sim no presente enquanto
presente, por isso mesmo eles não tinham essa noção negativa de
desaparecimento.
24
Eles não possuíam dogmas relacionados ao progresso, superação,
desenvolvimento; não consideravam o tempo ou a história, só o que importava era o
presente e, por isso, não pensavam na decadência da arte; e, ao mesmo tempo que
esqueciam a história, não a subestimavam ou a tinham como algo de pouca
importância ou inferior. E é com a mudança dessas concepções que nasce a
vanguarda.
Antoine Compagnon (1999) nos lembra ainda que, embora comumente
confundidas, a modernidade e a vanguarda são paradoxais, uma vez que seus
dilemas são diferentes. Enquanto a modernidade alimenta uma paixão pelo
presente, a vanguarda se utiliza de consciência histórica do futuro para ser
avançada no tempo. O surgimento da vanguarda veio com a decadência da
modernidade. Com a constante renovação, a passagem do novo para o velho
passou a ser instantânea e as vanguardas, então, ao tentarem conspirar contra essa
decadência se voltaram para a esquecida história, e mudaram o conceito de novo
para uma superação crítica, ignorando assim a verdadeira modernidade.
Do sentido militar ao estético, vanguarda é entendido como antecipação e,
nesse momento, a arte só poderia ser definida em termos históricos, agarrando-se
desesperadamente ao futuro, o presente deixa de ter valor, o importante agora é
antecipar. Rompendo com o passado e com o presente, as vanguardas passaram a
utilizar a arte a serviço do progresso social e isso era considerado arte esteticamente
à frente do seu tempo. O artista adota uma nova missão, a de guia para os
movimentos sociais. Baudelaire, no entanto, criticava arduamente essa postura,
definindo-os como espíritos feitos para a disciplina e conformidade.
A arte nesse segundo momento está indo em direção ao seu limite, buscando
sua origem. Trata-se sempre de imitação, mas da imitação do essencial, uma
imitação conceitual.
Na poesia, por exemplo, o “eu” lírico desaparece, ocasionando uma
desorientação no leitor. Essa destruição do mundo e do eu prevê a autodestruição
da obra e um inevitável desfecho no silêncio. Para as palavras a possibilidade de
terminarem silenciadas gera uma proximidade com o impossível, limite estabelecido
a toda obra. Permeando-se, assim, por uma negativa que mantém implícito o
25
sentimento de decadência, de fim próximo, mas, ao mesmo tempo, mostrando toda
a essência do modernismo que consiste em utilizar processos específicos de
determinada disciplina para criticá-la de forma a aprofundar seu domínio nessa
mesma disciplina.
O pós-modernismo nasce do cansaço gerado pelas “vanguardas e [...] suas
contradições” e da decepção “com a tradição de ruptura cada vez mais integrado ao
fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo” (COMPAGNON, 1999) e, por
isso, Compagnon o aborda como a exaustão. Trata-se de uma reação contra o
moderno, onde a polêmica se torna importante. A pós-modernidade é tão complexa
e paradoxal quanto a modernidade, porém o pós-moderno já nasce decadente,
irracional e anárquico, mas, antes de se tornar estético, ele é a ideologia da
sociedade de consumo.
Seu primeiro paradoxo é sua pretensão de acabar com o moderno, mas, ao
romper com o moderno, ele reproduz o modus operandi do modernismo. Afirmar
estar em um momento posterior à modernidade é aceitar a própria modernidade com
suas noções de progresso e superação. O pós-modernismo não tem desejo de ser
revolucionário ou inovador, não se fundamenta no futuro nem no presente, de modo
que o pós-moderno retoma o passado e o adequa às suas necessidades atuais,
simplifica e fragmenta, assume a pluralidade e a coexistência dos estilos. O pós-
moderno é uma retomada. Para Compagnon (1999), a pós-modernidade pode então
ser considerada mais moderna que o moderno, propondo uma nova maneira de
pensar as tradições e as inovações, a imitação e a originalidade, não havendo mais
a emoção da novidade.
Sendo o pós-modernismo “um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala
e depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991), ele não
se restringe a um único campo. Podemos percebê-lo na maioria das formas atuais
de pensar, sendo assim, o pós-modernismo se manifesta nos mais diversos campos
das ciências humanas. Um fenômeno propositalmente histórico, extremamente
inquisidor e inevitavelmente político, suas dúvidas e inquietações apoiam-se ao
passado para formular as críticas do presente e questionar o futuro. Sendo assim,
“não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o
passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON, 1991, p. 20).
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O pós-modernismo procura ensinar que, ao aceitar as diferenças, o consenso
público passa a ser questionado e que esse consenso passa a ser considerado
ilusório, seja ele formado com base na cultura das minorias, seja formado com base
na cultura de massa, pois ambas se manifestam dentro da mesma sociedade,
sociedade essa que tem sua realidade social estruturada por discursos. Em resumo,
a arte e a vida já não podem ser vistas como coisas diferentes. Elas se misturam, se
confundem. A arte questiona a vida e a vida passa a ser o motivo de ser da arte. E é
nessa reelaboração crítica do passado que repousa a ironia do pós-modernismo. Ele
repensa de forma irônica a função social, seja na arquitetura; na literatura; na
pintura, e sua história, nessa forma de repensar é que se pode perceber o caráter
provisório que o pensamento pós-moderno adota diante das contradições humanas.
Não há uma busca por conceitos e valores absolutos e imutáveis, e sim uma recusa
a qualquer estrutura fixa. Na literatura, por exemplo, não há uma narrativa-mestra,
pois, mesmo que esses sistemas sejam atraentes e até mesmo necessários, não
deixam de ser uma ilusão.
Uma vez que a fronteira entre vida e arte desaparecem, as fronteiras entre os
gêneros literários tornam-se fluidas e os gêneros passam a misturar-se dificultando
sua classificação. “Além de serem indagações ‘fronteiriças’, a maioria desses textos
pós-modernistas contraditórios também são especificamente paródicos em sua
relação intertextual com as tradições e as convenções dos gêneros envolvidos”
(HUTCHEON, 1991, p. 28). É através da paródia que a ansiedade pela continuidade
é contestada e, ironicamente, o que a continuidade acaba por revelar é a própria
descontinuidade. Considerada pela autora “uma forma pós-moderna perfeita”, a
paródia, ao mesmo tempo que incorpora, desafia aquilo a que parodia, levando
ainda a reconsideração do que pode ser considerado original.
Dentro das indagações realizadas pelos pós-modernistas, outro conceito que
passa por uma reformulação intensa é a subjetividade. O indivíduo preceptor já não
é mais considerado coerente ou gerador de significados. A exemplo disso, a autora
cita a literatura, onde “os narradores passam a ser perturbadoramente múltiplos e
difíceis de se localizar (...) ou deliberadamente provisórios e limitados – muitas vezes
enfraquecendo sua própria onisciência aparente” (HUTCHEON, 1991, p 29). Toda
essa mudança de conceitos, essa contestação do indivíduo, ocasiona uma
descentralização e abre espaço para o diferente, para todos que estavam à margem
27
da sociedade, essa abertura vem para solidificar o pensamento pós-moderno de que
a cultura não pode ser considerada unificada e homogênea, fazendo parte de uma
comunidade descentralizada, composta pelas diferenças e construída através da
consciência de que não existem hierarquias naturais, somente aquelas construídas
pelos homens.
A estética pós-moderna ou poética pós-moderna, segundo Hutcheon (1991),
não pode ser deduzida apenas da teoria, ou apenas da prática. Ela só existe através
de uma interação complexa de reações compartilhadas e provocações em comum.
Para Hutcheon (1991), “uma poética do pós-modernismo se limitaria a ser
autoconsciente para estabelecer a contradição metalinguística de estar dentro e
fora, de ser cúmplice e distante, de registrar e contestar suas próprias formulações
provisórias.” Não há uma verdade universal, pois, como tudo no pós-modernismo,
sua poética também é variável e, como primeiro passo para poder iniciar qualquer
estudo sobre as realizações em relação a nossa cultura e os sentidos por ela
produzidos, é necessário o abandono do desejo e das expectativas por um sentido
único; e a aceitação e reconhecimento dos valores das diferenças.
2.2 NARRADOR E PERSONAGEM
2.2.1 O antigo x o novo: a mudança no ponto de vista
Uma necessidade pessoal revelada pelo próprio Saramago em Diálogos com
Saramago (1998, p. 125) e que transparece em seus narradores baseia-se em sua
tentativa de explicar tudo: “andar a volta das coisas, para tentar chegar o mais
próximo possível delas [...] como se em cada momento eu me apercebesse de que
alguma coisa tinha ficado por esclarecer e insisto e mostro-a de outra maneira e
ilumino-a de outro modo”. Essa talvez seja a essência dos narradores de Saramago
que, em sua busca por esclarecer, utilizam-se de todas as vozes disponíveis
(narradores, leitor, personagens).
28
Por vezes é um eu que insensivelmente os remete ao próprio autor. Outras, esse eu é substituído por um nós, e na sua se adensam muitas vozes. O nós será então o narrador mais o leitor, ou mais esta ou aquela personagem. Ora se situa no passado da narrativa ora no presente da escrita. [...] O nós de Saramago é uma forma a mais a aproximá-lo da imagem do : está ao lado dos ouvintes e presentifica-os consigo na narrativa graças ao nós. Ou leva-os para junto
das personagens humildes e inclui-as no pronome (BERRINI, 1998, p. 57)
É nessa mistura de características clássicas e pós-modernas que os
narradores de Saramago se estruturam, contando histórias das quais somente eles
possuem conhecimento e ninguém mais, a não eles, sabem contá-las utilizando-se
dessas infinitas modulações de vozes que as compõem.
Em sua análise sobre a figura do narrador, Walter Benjamin (1987) faz
algumas considerações importantes e que definem o papel dessa figura essencial às
narrativas. O narrador, na concepção de Benjamin, é, antes de mais nada, um
observador e, por isso, se mantém a uma certa distância que lhe seja favorável na
hora de contar a história. Mesmo que participe de forma ativa da história, os papéis
de narrador e personagem se separam, pois o narrador, apesar de parecer, não
pode estar de fato entre nós; para assumir o papel de narrador, o distanciamento se
faz necessário.
No entanto, a narrativa a qual o autor se refere no texto se trata da narrativa
que nasceu junto com os narradores de uma tradição muito antiga e que vem se
extinguindo: a tradição oral. Os narradores, para Benjamin (1987), surgem da
necessidade de transmitir experiências de pessoas a pessoas. Sendo o narrador
uma figura autônoma, ele podia extrair as experiências a serem relatadas através de
viagens por ele realizadas e, portanto, por ele vividas; a essas narrações era
associado o saber do passado. Outra forma da qual o narrador poderia extrair seus
relatos era através das experiências que ganhavam honestamente sem precisar sair
de seu país de origem através do vasto conhecimento das histórias e tradições.
Outro aspecto importante do narrador, segundo Walter Benjamin (1987), seria
seu senso prático. A narrativa teria para o autor sua verdadeira natureza explicitada
pela praticidade, ou seja, ela precisa ser útil de alguma forma, fosse trazendo uma
moral ou mesmo ensinando uma norma de vida e, sendo assim, o narrador é a
pessoa apta a dar esses conselhos, o narrador é quem saberá transmitir esses
29
conselhos com sabedoria. Porém, a partir do momento em que as experiências vão
deixando de ter valor, a sabedoria vai se extinguindo e junto com ela a arte de
narrar. Além desse desinteresse crescente nos conselhos e experiências
transmitidas por terceiros, o autor chama a atenção de seu leitor para aquele que ele
considera o primeiro marco da “morte da narrativa” que é o surgimento do romance.
O que separa o romance da narrativa [...] é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. [...] O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa [...] é que ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. [...] O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.
(BENJAMIN, 1987, p. 201)
O autor critica os novos gêneros que nascem com a modernidade e os coloca
como uma ameaça ao modelo de narrativa que até então se conhecia. O gênero
mais ameaçador é a notícia. Por não possuir o caráter pedagógico que Walter
Benjamin atribui à narrativa, ela também se distancia da narrativa, mas é seu caráter
informativo que a transforma na maior das ameaças à narração. O aspecto principal
da informação é sua veracidade (que depende da verificação imediata) e esse
aspecto põe em xeque os saberes que “vêm de longe”. Antes da notícia, os saberes
que “vêm de longe”, mesmo não fazendo parte da vivência de seus ouvintes e,
portanto, não podendo ser verificados, tinham autoridade e eram válidos. A
facilidade com que recebemos notícias de todo o mundo faz com que as pessoas
percam seu interesse no longínquo e se apeguem cada vez mais ao próximo. Outro
ponto muito criticado pelo autor é que o excesso de informação faz com que
sejamos cada vez mais pobres de histórias realmente interessantes e
surpreendentes; ele limita os acontecimentos quase ao total serviço da informação,
não sobrando nada para ser utilizado pela narrativa.
A notícia, porém, é completamente esgotada pelo presente, pelo agora. Só vale
enquanto for nova; passado o tempo, ela deixa de ter seu valor e é a partir desse
ponto que Walter Benjamin começa a definir o que é “a verdadeira narrativa”. Para o
autor, a verdadeira narrativa é atemporal, ela atravessa o tempo sem perder sua
importância, sua atualidade, sendo até mesmo capaz de continuar se
desenvolvendo.
30
Já o ponto que difere a narrativa do romance é a facilidade de ser recontada.
Benjamin afirma que, para despertar no ouvinte (ou leitor) a vontade de recontá-la, a
narrativa deve se incorporar às suas próprias experiências e isso só ocorre se o
narrador renunciar às sutilezas psicológicas (o que raramente ocorre no romance,
segundo ele), tornando a narrativa mais fácil de ser gravada na memória do ouvinte.
A relação entre o ouvinte e o narrador tradicional consiste na intenção de
conservar o que foi narrado, fazendo da memória o mais importante dos elementos
dessa relação. A memória não perde sua importância no romance, ela apenas é
deslocada, deixa de ser um elemento da relação leitor e narrador e passa a
incorporar a relação narrador e romance, estando presente em todas as etapas da
elaboração do romance (personagens, enredo, ambientes etc).
O entendimento de Benjamin (1987) sobre a ação interna do romance ser uma
luta contra o tempo não é completamente dissonante com o pensamento pós-
moderno, devido ao fato do romance ser composto, em sua essência, por memórias.
O tempo das memórias é fluido e maleável como ela própria também o é e, por isso,
o narrador pós-moderno consegue manuseá-lo de uma forma mais livre dentro da
sua narrativa. O que caracterizaria não uma luta contra o tempo, mas sim um
aprendizado, aprender a utilizar o tempo em favor do fato narrado.
Assim como a relação narrador e tempo, Benjamin critica a mudança de foco
do olhar do narrador. A seu entender a vida só pode fazer sentido através da morte.
O homem moderno, no entanto, evita o “espetáculo da morte”, tirando dela o caráter
de episódio público e privatizando-a. Porém, para Benjamin (1987, p. 207), “é no
momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência
vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira
vez uma forma transmissível’, a morte confere autoridade a todos de forma
democrática até mesmo a um “pobre-diabo”.
O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrático.
O olhar pós-moderno (em nada camuflado, apenas enigmático) olha nos olhos o sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas as variantes do hedonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no agora em mil possibilidades.
31
[...] No leito da morte, exuma-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo de morrer, porque ele já é. Reina única a imobilidade tranquila do homem no leito de morte [...] no campo da vida exposta no momento de viver o que conta para o olhar é movimento. Movimento de corpos que se deslocam com sensualidade e imaginação, inventando ações silenciosas
dentro do precário. Inventando o agora. (SANTIAGO, 1989, p. 50)
Enquanto Benjamin descreve o narrador sob uma perspectiva tradicionalista e
oral e elabora uma previsão quase apocalíptica em que à arte de narrar não resta
outro futuro senão a “morte”, Silviano Santiago (1989), diz que o narrador não vai se
extinguir, ele continua transmitindo uma vivência, passando informações sobre
outras pessoas, porém ele se adapta às novas experiências, olhares, encontrando
novas formas de contar suas histórias.
E para um novo momento literário nasce um novo tipo de narrador; o narrador
pós-moderno que, segundo Santiago (1989), vai se extrair da história narrada,
mantendo-se apenas como espectador dos fatos, assim como um repórter, passa a
ser um narrador que observa para se informar e transmitir.
Não diferente do narrador tradicional, como supunha Benjamin, as histórias
contadas pelo narrador pós-moderno também são revestidas de “sabedoria”, porém
a “sabedoria” propagada pelo narrador pós-moderno decorre da observação da
vivência de terceiros, uma vez que suas experiências nunca decorrem de sua
própria vida, e é por isso que Santiago (1989) afirma ser ele “puro ficcionista”. E é no
âmbito da ficção que esse narrador se torna tão artista quanto o narrador tradicional
de Benjamin, ele confere autenticidade “a uma ação que, por não ter respaldo da
vivência, estaria desprovida” (Santiago, 1989, p. 40) da mesma, isso porque o
narrador pós-moderno possui consciência de que as noções tanto de autenticidade
quanto de realidade são construídas e estruturadas de forma lógica dentro do
romance através das palavras.
Assim como Benjamin (1987) já havia explorado em seu texto O Narrador ou à
medida que a modernização avança, a capacidade narrativa do indivíduo vai
atrofiando, até chegar a um ponto em que ele já não se acha mais capaz de narrar
suas próprias experiências e é nesse momento que entra o narrador pós-moderno.
Ele passa a narrar “a ação daquele que é observado e não consegue mais narrar”
(SANTIAGO, 1989, p. 45). Junto com essa incapacidade de narrar, “desaparece a
necessidade da narrativa. Existe, o silêncio. Para evitá-lo, o mais experiente deve
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subtrair-se para fazer valer [...]. Por a experiência do mais experiente ser de menor
valia nos tempos pós-modernos é que ele se subtrai” (SANTIAGO, 1989, p. 46). E é,
segundo Santiago, essa quebra na comunicação entre gerações que impossibilitou o
processo linear de aprimoramento do homem e da sociedade. Justamente por isso
aconselhar deixou de ser uma continuação da história narrada, segundo
entendimento de Benjamin.
Já não existindo mais a imagem da história como continuidade entre a vivência
do mais velho pelo mais novo, as narrativas atualmente são quebradas, presas em
um eterno recomeçar. Porém, como “as ações do homem não são tão diferentes em
si de uma geração para outra, muda-se o modo de encará-las, de olhá-las”
(SANTIAGO, 1989, p. 47). O narrador pós-moderno não busca novas formas de agir,
mas sim uma nova forma de expressão, ele está sempre se movimentando por todos
os ângulos, em busca de novas perspectivas. As ações podem ser encaradas,
segundo Santiago (1989, p. 47), “com a sabedoria da experiência, ou com a
sabedoria da ingenuidade. Não há, pois, uma sabedoria vencedora [...]. Há um
conflito de sabedorias na arena da vida, como há um conflito entre narrador e
personagem na arena da narrativa. ”
Em um tempo em que o visual prevalece, segundo Santiago (1989), o narrador
observador se torna contraditório, pois ele transforma seu olhar em palavras para
construir a narrativa e seus personagens saem do plano da observação, para
tornarem-se atores das ações determinadas pelo narrador pós-moderno dentro do
espaço e do tempo que lhes é permitido existir.
Assim como Silviano Santiago, Saramago (1998) também não acredita na
morte ou na dissolução do romance, pois, segundo ele, antes de existir o romance
da forma como conhecemos atualmente, existiu a precisão de contar e o interesse
em ouvir. Para Saramago, o que aconteceu com o romance foi
uma transformação dele. [...] penso que há bastante coerência nessa definição do romance como lugar literário em vez de género. ... quando convoco o romance, no fundo entendo-o como uma tentativa de o transformar numa espécie de soma. Se afirmo que o que quero é dizer quem sou, que o que quero é que através do romance possa aparecer a pessoa que sou, a tal que não se repetirá mais, aquela que não acontecerá outra vez, ... não se trata apenas de escrever um romance para contar uma história: trata-se de escrever um romance para tentar dizer tudo.
(SARAMAGO apud REIS, 1998, p.138)
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A frase “nós o sabemos e vamos dizer” (Memorial do Convento apud BERRINI,
1998, p. 53) revela, segundo Berrini, a natureza onisciente e onipresente dos
narradores de Saramago. Eles se mantêm em posição favorecida, admirando o
mundo que surge de suas palavras, mas isso não significa que Saramago prenda-os
a uma única perspectiva. Seus narradores transitam entre olhar para a história de
forma objetiva e clara como um observador; transferir a fala para uma de suas
personagens por breves momentos; escolher determinada perspectiva, esquecendo,
mesmo que momentaneamente, todas as demais possibilidades. E, mesmo que de
uma forma sútil, o olhar e a presença do criador se mantêm sempre presentes, mas
toda essa aparente liberdade, toda essa fluidez estabelecida por seus narradores,
torna difícil delimitar com clareza e rigor as fronteiras entre narrador e personagem
nos romances de Saramago.
Parte da delicadeza da qual essas fronteiras se revestem advém do fato de que
a construção da personagem está diretamente relacionada com o narrador. Beth
Brait (1998) utiliza a seguinte classificação: narrador em terceira pessoa, aquele que
não está envolvido na história, atuando como uma câmera externa; e “narrador em
primeira pessoa que pode estar envolvido de forma direta ou indireta com os
acontecimentos narrados” (BRAIT, 1998, p. 53) O tipo de narrador determina como a
personagem será apresentada ao leitor.
O narrador em terceira pessoa possui uma visão privilegiada da personagem,
podendo observar não apenas seus movimentos, como também conhecer seus
pensamentos, possibilitando ao leitor um conhecimento mais profundo sobre o que é
essa personagem. Essa estratégia narrativa consiste, segundo Brait (1998), em um
recurso bastante antigo e eficaz, porém sua eficácia está diretamente relacionada às
habilidades do escritor que deve utilizar os elementos necessários para fazer da sua
criação um ser, seja recorrendo “ao sonho ou à aparição maravilhosa como formas
de dramatização que permitem representar a intensidade de um conflito interior”
(BRAIT, 1998, p.56). Outro mecanismo eficaz é o discurso indireto livre, uma vez
que este possibilita externalização de um diálogo interno da personagem,
extinguindo os limites existentes entre a câmera e a personagem.
Outra característica importante do narrador em terceira pessoa é sua
capacidade de manipulação temporal. Segundo Brait (1998), esse narrador “simula
um registro contínuo”, mas na verdade ele focaliza a personagem apenas nos
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momentos que mais convém para o desenvolvimento da narrativa e para a
concretização das personagens.
Já o narrador em primeira pessoa participa ativamente da história como uma
personagem secundária, ou principal; a condição primordial é que esse narrador
esteja envolvido com as ações narradas. De acordo com Brait (1998), nesse tipo de
narração, todas as impressões e definições utilizadas na construção dos seres
fictícios devem ser postas ao leitor por uma personagem através da sua perspectiva,
funcionando, assim, como uma lente privilegiada através da qual o leitor percebe e
visualiza as demais personagens. “O narrador, de forma discreta, vai criando um
clima de empatia, apresentando a personagem principal de maneira convincente e
levando o leitor a enxergar, por um prisma ao mesmo tempo discreto e fascinado, a
figura do protagonista” (BRAIT, 1998, p. 64).
Apesar de normalmente funcionar como uma câmera externa, o narrador em
primeira pessoa também pode exercer a função de câmera interna. Dentre os
recursos de caracterização de personagem utilizados nesse tipo de narração, o
monólogo interior é, de acordo com Brait (1998), aquele que vai mais longe ao tentar
expressar o interior da personagem, instalando o leitor em seus pensamentos, no
fluxo de sua consciência.
2.2.2 Do que se constitui uma personagem
Nos romances de Saramago, prevalece a narração em terceira pessoa, dessa
forma suas personagens não possuem autonomia. Saramago (1998) afirma ainda
que o conhecimento do autor sobre suas personagens limita-se ao seu passado, não
sabendo nada a respeito de seu futuro.
Posso repetir o tal exemplo da mulher do médico: naquele momento em que ela diz que cegou, não sei nada do seu futuro, e se interrompesse o livro naquela altura não saberia que destino aquela mulher iria ter. Nas linhas seguintes que vou escrevendo, não é que se me vá tornando claro, mas de repente há como uma espécie de necessidade da própria história que estou a contar: é a história que necessita que aquela personagem se determine desta ou daquela forma. Você dirá: Sim, sou eu, mas eu sou instrumento da narração e a narração é o meu instrumento; há uma espécie de compadrio, uma espécie de
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interajuda entre o autor e aquilo que ele escreve, que leva, em cada momento, a aclarar aquilo que no momento anterior não estava ainda claro.
(SARAMAGO apud REIS, 1998, p 133 e 134)
Mesmo parecendo que a personagem é o que há de mais vivo no romance, e
que sua leitura dependa basicamente da aceitação de sua verdade pelo leitor, assim
como na fala de Saramago citada acima, Antônio Candido (1981) nos recorda que
pensar na personagem como sendo a essência do romance é um erro, pois, mesmo
sendo o elemento mais atuante, depende do contexto para adquirir pleno significado.
De acordo com Candido (1981), é a construção estrutural o maior responsável pela
força e eficácia de um romance.
Um dos aspectos que envolvem a construção estrutural é a construção da
personagem. A personagem é um paradoxo em si, por se tratar de um ser fictício e,
segundo Candido (1987), é nesse paradoxo que repousa a criação literária, uma vez
que a verossimilhança do romance depende que essa figura imaginária convença o
leitor de que sua existência é uma possibilidade real. Devido a essa eterna busca
por aproximar-se ao máximo da realidade, Candido (1987) afirma que há uma
relação entre o ser vivo e o ser fictício e que essa relação é exposta através da
personagem.
O conjunto de percepções que apreendemos de outro indivíduo consiste em
dois tipos, os referentes às configurações externas e os referentes às configurações
internas.
O primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domínio finito, que coincide a superfície do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige a um domínio infinito, pois sua natureza é oculta à exploração de qualquer sentido e não pode [...] ser aprendida numa integridade que essencialmente não possui. [...] a noção a respeito de um ser [...] é sempre incompleta [...] o
conhecimento dos seres é sempre fragmentário. (CANDIDO, 1987, p. 56)
Esse conhecimento fragmentado descrito por Candido (1987) refere-se à forma
limitada e incompleta que o conhecimento a respeito do outro é formado. Enquanto
na vida a visão fragmentária se faz condição indissociável à nossa própria
existência, no romance essa característica é criada pelo autor que a dirige,
racionalmente delimitando e encerrando dentro de uma estrutura elaborada (a
narração) a ação de conhecer o outro. Essa delimitação exige do autor uma
simplificação que ele alcança por meio de escolhas de gestos, frases, etc, marcando
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dessa forma a personagem, para sua identificação pelo leitor, sem diminuir com isso
sua complexidade.
Devido à visão fragmentada, impressões soltas sobre o outro são apreendidas,
dentro delas apenas determinadas impressões a respeito de cada pessoa são
selecionadas objetivando a criação de uma unidade em meio ao caos das
diferenças. Esses aspectos fazem com que a intepretação sobre o outro seja fluida e
suscetível a variações como tempo ou conduta. Já para a personagem que é
construída de forma mais coesa e menos variável, mesmo que nossa interpretação
varie, já foi estabelecido pelo autor uma linha de coerência fixa e imutável que limita
sua existência e seu “modo-de-ser”, tornando a personagem mais fixa, mais lógica
que uma pessoa, porém não menos profunda.
O romancista moderno, segundo Candido (1987), na busca por reduzir a noção
de imutabilidade à qual a personagem estava vinculada, procurou aumentar cada
vez mais esse sentido de dificuldade do ser fictício, meta que depende das escolhas
e da habilidade do autor em combinar os elementos de caracterização, resultando
no aumento do grau de complexidade da personagem. Uma eliminação completa
dos limites seria, no entanto, impossível, uma vez que a natureza da personagem é
a de uma estrutura limitada determinada através da escolha e organização de um
número limitado de elementos, não é a quantidade de elementos escolhidos, mas
sim a lógica com a qual eles serão organizados que irá criar a ilusão de ilimitado.
Com a crescente complicação da psicologia das personagens, elas passam a
ser distinguidas em dois grupos. Candido (1987) apresenta a distinção proposta por
Foster que separa as personagens em planas e esféricas. Segundo o autor, as
personagens planas podem ser chamadas de tipos ou caricaturas. Elas são
comumente caracterizadas por uma só ideia ou qualidade, permanecendo imutáveis
durante toda a narrativa. Se apresentarem mais de uma, isso significa que elas têm
uma propensão à esférica. São fáceis de serem reconhecidas e fáceis de serem
lembradas.
Já as personagens esféricas são personagens mais complexas, dotadas de
profundidade e capacidade de surpreender o leitor de maneira convincente. “Se
nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela
traz em si a imprevisibilidade da vida – traz a vida dentro das páginas de um livro”
(FOSTER apud CÂNDIDO 1987, p. 63).
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Conforme foi discorrido, o autor constrói sua personagem de forma que ela
pareça viva, assemelhando ao máximo possível com um ser vivo. Passa-se, então, a
discutir o processo de criação, idealização da personagem, podendo ser uma
reprodução da realidade ou uma invenção. Porém, segundo Candido (1987, p. 65),
essas “duas alternativas nunca existem em estado de pureza”. Elas nascem da
memória do autor e por isso esse estado de ambiguidade “reproduz apenas
elementos circunstanciais [...]; o essencial é sempre inventado” (CANDIDO, 1987,
p.65). A cópia fiel do real seria, segundo Candido (1987), a negação do romance.
Esse processo de concepção assemelha-se e clarifica o ponto de vista de Saramago
a respeito do assunto.
Penso que as minhas personagens saem todas da minha cabeça, neste sentido: não é que elas já cá estivessem antes, mas, no momento de escrever, as personagens de que eu necessito apresentam-se-me, sem que eu tenha um caderninho de notas [...] minhas personagens nascem em cada momento, são impelidas pela necessidade e não são cópias, não são versões. [...] eu posso dizer que não observo [...] o que acontece comigo é receber [...] sensações de toda a ordem, nenhuma delas com um propósito ou um fito, mas que depois quando necessito, quando preciso de pôr essa
gente toda a funcionar, provavelmente uso tudo isso (SARAMAGO apud REIS, 1998 p 131 e 132)
Tomando como ponto de partida o fato da personagem nascer do imaginário do
autor, Candido (1987) apresenta, primeiramente, a classificação de personagens
quanto ao seu grau de afastamento em relação à realidade proposta por Mauriac:
disfarce leve do romancista, personagens baseadas nas memórias do autor,
ocorrem em autores memorialistas; cópia fiel de pessoas reais, reproduções de
pessoas reais, ocorrem em autores retratistas, e inventadas, a realidade serve
apenas como uma referência inicial, nascendo basicamente da imaginação do autor.
Candido, todavia, discorda da nomenclatura inventada, uma vez “que esta invenção
mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual
do romancista, seja a do mundo que o cerca” (CANDIDO, 1987, p 67).
Baseando-se nos primeiros tipos de personagens (reproduzido e inventado),
Candido apresenta várias possibilidades de invenção.
Personagens que refletem com um certo grau de fidelidade modelos adquiridos
pelo romancista através de experiências diretas, podendo ser interior ou exterior. No
caso da experiência interior, o que ocorre é uma projeção das vivências do
romancista em sua personagem, enquanto que nas experiências exteriores, ele
retrata pessoas com as quais teve contato direto.
38
As personagens que refletem modelos anteriores são aquelas que o
romancista retrata usando por base experiências indiretas, como documentos,
testemunhos e sua imaginação passa a trabalhar na elaboração da personagem
tomando essas informações como referências.
Há também as personagens construídas através de um modelo real, conhecido
diretamente do escritor. Nesse caso a pessoa real serve apenas como um ponto de
partida, pois, durante o processo de criação, ela é desfigurada, mesmo assim,
continua sendo possível identificá-la na personagem.
Parecido com o processo anterior, tem a personagem concebida em volta de
um modelo, conhecido pelo autor direta ou indiretamente. Nesse caso o modelo
serve apenas como um estímulo à imaginação e à caracterização, sendo o resultado
final nada semelhante ao modelo.
Ainda na linha de modelos reais, existem as personagens que são construídas
com um modelo base, mas no desenvolver do processo de invenção, o romancista
junta à modelo base outros modelos secundários, construindo a personagem pela
imaginação.
As personagens arquitetadas através da junção de diversos fragmentos de
diferentes modelos vivos, sem que um fragmento tenha maior importância que o
outro. É dessa mistura que vai nascer a personalidade da personagem.
Por último, Candido (1987) apresenta uma personagem que é estruturada de
forma bastante diferente das anteriores, ou porque sua base se dissipou em sua
personalidade fictícia, ou porque, em seu processo de elaboração, não foi utilizado
um modelo de forma consciente pelo romancista, ou porque o romancista não
consegue identificar seus elementos que retomam a realidade. Essas personagens
são criadas por experiências muito mais interiores que exteriores, são personagens
repletas de simbolismo, corporificações de estímulos do autor.
Saramago mesmo afirma que não é o tipo de escritor que toma modelos vivos
para a construção de suas personagens, mas há em seus livros personagens sólidas
o suficiente para serem reconhecidas como personagens de ficção:
se eu não as vou buscar lá fora, está claríssimo que só as posso ir buscar dentro de mim. Dentro de mim, mas não como cópias, que por sua vez seriam cópias dessas minhas diferentes personalidades, antes como hipóteses, ou nem sequer como hipóteses, porque em momento nenhum eu
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me sinto representado numa personagem de romance. (SARAMAGO apud REIS, 1998, p 135).
O que ocorre em cada um desses trabalhos de invenção é a combinação da
memória, observação e imaginação nos mais variados graus, embebidos das
concepções intelectuais e morais do autor. Esse, porém, é um trabalho que
acontece, segundo Candido (2006), de maneira mais inconsciente que consciente, o
que impossibilita que os autores determinem com exatidão como se deu a cada
aspecto da concepção de suas personagens, dependendo a natureza de suas
personagens não apenas de sua memória, observação ou imaginação, mas também
das suas intenções ao escrever o romance.
Sendo assim, a verossimilhança do romance “acaba dependendo da
organização estética do material, que apenas graças a ela se torna plenamente
verossímil” (CANDIDO, 1987, p. 75) Ou seja, a vida da personagem depende de
toda a estrutura do romance, tornando o estudo de sua composição muito mais
importante que a sua comparação com o mundo.
2.3 IDEOLOGIA, IDENTIDADE E SUJEITO NO DISCURSO
A definição de discurso é extremamente ampla e envolve todas as formas de
comunicação desenvolvidas pelo homem. Se está passando uma mensagem, uma
ideia, constitui discurso. O uso da linguagem pode contribuir tanto para a reprodução
das estruturas sociais quanto para transformá-las.
O termo discurso, segundo Fairclough (2001), relaciona o uso da linguagem
como forma de prática social. O discurso é usado tanto para representar a sociedade
quanto como o modo como as pessoas agem sobre o mundo e sobre as outras
pessoas, e seu papel na sociedade é de grande relevância. Uma vez que ele é
moldado e restringido pela estrutura social, ele é construído e seu uso determinado
de acordo com a necessidade do momento, de acordo com a situação social em que
o indivíduo se encontra, sendo, portanto, constitutivo. A importância do discurso é
tamanha que ele
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(...) contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades, e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significados. (FAIRCLOUGH, 2001, p 91)
Ainda explorando os efeitos constitutivos do discurso, Fairclough enumera
três aspectos de grande importância: primeiro, o discurso contribui para a construção
das chamadas “identidades sociais” que seriam as posições que o sujeito ocupa
dentro da sociedade; segundo, “o discurso contribui para construir as relações
sociais entre as pessoas e, terceiro, o discurso contribui para a construção de
sistema de conhecimento e crenças” (FAIRCLOUGH, p 91). São esses três aspectos
que, segundo o autor, correspondem tanto a três funções da linguagem quanto às
dimensões de sentido que coexistem dentro de todo discurso e ele as denomina
função “identitária”, “relacional” e “ideacional”.
Rapidamente conceituando-as, a função “identitária” diz respeito à forma
como as identidades sociais se estabelecem no discurso; a função “relacional” nos
diz como as relações sociais, entre os sujeitos do discurso, são representadas e
negociadas; por fim, a função “ideacional” vai tratar de como os textos significam o
mundo, seus processos de produção e significação, entidades e relações nele
evidenciadas. As funções “identitária” e “relacional” foram primeiramente abordadas
por Halliday, que distingue uma função “textual” que também é incluída por
Fairclough à sua lista como função do discurso. A função “textual” diz respeito a
escolhas conscientes de como as informações serão apresentadas, se elas serão
postas em primeiro plano ou relegadas ao segundo plano, se serão apresentadas
como informações antigas, já dadas, ou se serão apresentadas como novas; se
serão tratadas como tópico ou como tema e ainda a forma com a parte de um texto
se liga com partes anteriores desse mesmo texto e às situações sociais localizadas
“fora” do texto.
Enquanto o discurso como texto vai enfatizar aspectos de análise textual e
estrutural, a prática discursiva vai se ocupar dos processos de produção (os textos
são produzidos de acordo com contextos sociais específicos), distribuição (a forma
como o texto será transmitido) e consumo desse texto (que também é diversificado
de acordo com o contexto social, mas depende, também, dos modos de
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interpretações disponíveis). Já o discurso como prática social é a dimensão mais
relevante para este trabalho.
A ideologia, na visão de Fairclough (2006), nada mais é do que a construção
da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), elas fazem
parte da estrutura social, mas que também podem ser alteradas na medida em que
não satisfazem mais as necessidades de determinada sociedade, pois são
construídas nas convenções. As convenções sociais implicam pressupostos
ideológicos sobre as relações sociais e as identidades sociais tornando práticas
normais no dia-a-dia revestidas de ideologia e, por ser difícil de compreender, as
pessoas não estão necessariamente conscientes dos detalhes da significação
ideológica contida em seus atos, até mesmo naqueles revestidos de revolta e
intenção de mudança.
A partir da discussão sobre o nível de consciência do sujeito perante a
ideologia, Fairclough apresenta a teoria althusseriana, na qual a ideologia é vista
como naturalizada a tal ponto que qualquer autonomia possuída pelo sujeito é tida
como meramente imaginária, porém, quando a sujeição se dá de forma contraditória,
a naturalização se torna difícil de manter. Essa teoria, no entanto, é duramente
criticada por Fairclough uma vez que ela praticamente ignora a capacidade do
sujeito de agir de forma individual ou coletiva e o trata como incapaz de criticar ou se
opor às práticas ideológicas. Mesmo os sujeitos sendo constituídos ideologicamente,
Fairclough defende que eles são capazes de agir criativamente ao realizar suas
próprias conexões entre as práticas discursivas e as ideologias, da mesma forma
que são capazes de reestruturar as práticas e estruturas quando essas já não se
adequam mais as suas necessidades. Para Fairclough (2001), “o equilíbrio entre o
sujeito ‘efeito’ ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende das
condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações de dominação”.
Da contradição iniciada na constituição do sujeito decorre a problematização
das convenções e é dessa problematização que surgem as origens e motivações
mais imediatas das mudanças discursivas. E o que seriam essas contradições?
Somos socializados de acordo com um pensamento tradicional quanto à forma como
devemos nos posicionar diante de situações e eventos sociais, porém relações
mudam e se renovam, entrando em conflito com o tradicional, gerando assim
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contradições na forma de agir e pensar dos sujeitos e o problema é formado. Ao
tentar resolver tais problemas, o sujeito o faz sendo inovador e criativo, adaptando-
se assim às convenções existentes de novas maneiras e contribuindo para a
mudança social, cultural e discursiva.
2.4 IDENTIDADE FRAGMENTADA, O “EU” MODERNO
Durante os anos que antecederam o momento atual, chamado por muitos
estudiosos de pós-modernidade, ou modernidade tardia, as identidades que cada
indivíduo assumia perante a sociedade eram bem definidas e ajudavam a manter
estabilizado o mundo social. Porém, acredita-se que, hoje em dia, tais identidades
entraram em declínio, fazendo assim surgir novas identidades que acabam por
fragmentar o indivíduo moderno. Essa fragmentação é chamada “crise de
identidade” por fazer parte de um processo de mudança maior, que, segundo Stuart
Hall (p. 7, 2006), “está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que” mantinham o
indivíduo unificado, estável.
Há uma vertente, com a qual Hall (2006) concorda, que diz que as identidades
modernas estão sendo fragmentadas. Mas ele lembra ainda que esse é um assunto
muito complicado de se debater devido ao fato do conceito de “identidade” ser pouco
desenvolvido e, por isso, pouco compreendido pela ciência social contemporânea.
No passado, as estruturas culturais (bem como seus conceitos) nas quais a
sociedade se baseava como raça, sexualidade, nacionalidade, etc. eram muito bem
definidas e, por isso, forneciam uma base sólida e estável para os indivíduos que a
compunham. Mas, desde o final do século XX, tais estruturas têm passado por
transformações e estas têm afetado, também, nossas identidades pessoais, as
ideias que tínhamos de nós mesmos, segundo Hall (2006), como “sujeitos
integrados”. Essa mudança, que ocasiona tanto um sentimento de perda do lugar
social e cultural o qual esse indivíduo ocupava quanto um sentimento de perda de si
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mesmo, pode ser chamada de “deslocamento ou descentração do sujeito” e é esse
deslocamento que incita a dúvida e incerteza no indivíduo iniciando a crise de
identidade.
Para entender melhor como a identidade era vista antes e hoje, o autor
trabalha com três concepções diferentes de identidade: sujeito do iluminismo, sujeito
sociológico e sujeito pós-moderno.
O sujeito do iluminismo é baseado no conceito de um indivíduo completamente
centrado, dotado de razão, consciência e capacidade de ação. Sua identidade
nascia com ele e se desenvolvia à medida que esse indivíduo crescia, mas sua
essência continuava sempre a mesma, imutável, sólida. Nessa concepção, o centro
do sujeito era sua identidade, coração da sua personalidade. Já o sujeito sociológico
era visto de forma mais complexa, sua identidade não era considerada autônoma e
autossuficiente, mas sim fruto da interação com o meio e com outros indivíduos, que
mediava os valores, sentidos e símbolos para o sujeito. Apesar da identidade do
sujeito sociológico ser formada das interações social e pessoal, ainda se acreditava
haver um núcleo