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Frank de Felitta -Terror Na Oktoberfest (LAVRo)

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  • Orelhas

    Em Munique, durante a Oktoberfest, o carnaval da cerveja e da

    libertinagem na Alemanha, ocorrem trs crimes de morte com todos os sinais

    de uma crueldade requintada: as vtimas so mortas a golpes de uma

    machadinha de aougueiro e os cadveres literalmente reduzidos a pedaos.

    As caractersticas comuns desses crimes fazem a polcia (o inspetor-chefe

    Bauer, de Munique) pensar que se trate de um manaco. E no s. As vtimas

    apresentam extraordinria semelhana fisionmica a conhecidas

    personalidades da era nazista: Goering, Tauber, Himmler. Seria um fantico

    judeu caador de nazistas? Seria um indivduo enlouquecido pela dor e pelo

    sofrimento nos campos de concentrao e que, muitos anos depois, resolvesse

    vingar-se? Com o decorrer dos dias, o inspetor Bauer se v s voltas com um

    passado seu que supunha sepultado para sempre, e as lembranas daqueles

    dias de insnia, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, vm martelar sua

    memria e a memria de uma moa israelense de origem alem, srta.

    Madeline Kress, que o ajuda na soluo do mistrio.

    Muito mais que leitura para entretenimento casual, este novo livro de

    Frank De Felitta, autor j bem conhecido pelos seus livros anteriores As

    Duas Vidas de Audrey Rose (1980), Por Amor a Audrey Rose (1983), A

    Entidade (1980) e Vingana em Alto-Mar (1981) , aponta para problemas

    de relacionamento e compreenso entre pessoas de raas diversas, separadas

    por um dio que se reflete nos seus menores gestos e atitudes. Toda uma

    estrutura moral e mental se assenta com base nesse dio, que as pessoas mais

    bem intencionadas procuram desesperadamente suavizar, se no extinguir de

    todo. Mas intil. O prprio dio o que mantm viva e atuante a srta.

    Madeline Kress, por mais que o inspetor-chefe Bauer busque a sua

    compreenso e at mesmo a sua amizade. So as paixes, violentas e

    irrefreveis, que conduzem os atos e o modo de pensar das criaturas, das

    quais o criminoso apenas um exemplo extremo, correspondente oposto

    barbrie que sobre sua raa se abatera.

    O livro de De Felitta merece ser lido e meditado. O problema do

    preconceito racial, que j produziu tantas guerras e homicdios em massa, no

    se esgota evidentemente em algumas palavras e boas intenes. Mas dever

    haver um meio para que as atrocidades ainda to recentes e traumatizantes

    no se repitam jamais. E o Terror na Oktoberfest de De Felitta pode, quando

    nada, manter os olhos abertos para tal problema.

    FERNANDO PY

  • COLEO MESTRES DO HORROR E DA FANTASIA

    O PAS DE OUTUBRO - Ray Bradbury

    O ENIGMA DO TREM PERDIDO - Sir Arthur Conan Doyle

    A LTIMA ESPERANA SOBRE A TERRA - Richard Matheson

    O RETRATO DE DORIAN GRAY - Oscar Wilde

    FOBIA - Thomas Luke

    SOMBRAS DA NOITE - Stephen King

    O PASSA-PAREDES - Marcel Aym

    A ASSOMBRAO DA CASA DA COLINA - Shirley Jackson

    A CASA DAS BRUXAS - H. P. Lovecraft

    AS MQUINAS DO PRAZER - Ray Bradbury

    POR AMOR A AUDREY ROSE - Frank De Felitta

    A ILHA DO DR. MOREAU - H. G. Wells

    CHRISTINE - Stephen King

    O ALIMENTO DOS DEUSES - H. G. Wells

  • Frank De Felitta

    TERROR NA OKTOBERFEST

    Traduo

    Luiz Horcio da Matta

    Francisco Alves

  • 1973 by Frank De Felitta

    Ttulo original: Oktoberfest

    Reviso tipogrfica: Umberto Figueiredo Pinto e

    Ana Maria Caldeira

    Impresso no Brasil

    Printed in Brazil

    1984

    Todos os direitos desta traduo reservados :

    Livraria FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

    Rua Sete de Setembro, 177 - Centro

    20050 - Rio de Janeiro - RJ

    ******************************************

    Digitalizao, Reviso, Formatao e restaurao capa(s)

    Luis Antonio Vergara Rojas

    ******************************************

  • minha esposa

  • Os personagens deste livro so inteiramente fictcios,

    inclusive os que desempenham funes pblicas, tais

    como: funcionrios da Prefeitura de Munique e membros

    de seu Departamento de Polcia, bem como todos os

    funcionrios mencionados tanto no Tombeau de Martyr

    Juif Inconnu, em Paris, e no Yad Vashem, em Israel. Toda

    e qualquer semelhana com pessoas reais, vivas ou

    mortas, mera coincidncia.

  • AGRADECIMENTOS

    Desejo expressar minha gratido ao Sr. Steven Weiner, ao

    Professor Irwin R. Blacker, ao Sr. e Sra. Ben Schanzer, ao Sr.

    Gene Lesser, ao Sr. Tini Seldes e minha editora, Srta.

    Diane Cleaver, pela confiana, estmulo e auxlio na

    elaborao deste livro.

  • "Raa maldita, fazendo das suas outra vez!

    Quantas vezes j provamos, fora de dvida,

    Que fantasma algum pode agir normalmente?

    Mesmo assim, vocs ousam danar como mortais!"

    GOETHE (Fausto/Noite de Walpurgis)

  • 11

    MUNIQUE:

    O Primeiro Dia da Oktoberfest

    Captulo 1

    No outono, os cus da Baviera se tornam de um azul

    profundo e as rvores que se debruam sobre as estradas

    ficam vermelhas e douradas. A nvoa cobre as encostas

    alpinas. Um vento frio sobe pelas colinas verdes e

    arredondadas, os campos amarelos de feno e as pequenas

    aldeias brancas, brilhantes e compactas. Em Munique, as

    torres de cobre brilham ao sol. a poca da Oktoberfest.

    Abaixo das fachadas renascentistas e torrees em estilo

    rococ, seis milhes de pessoas se acotovelam nas ruas,

    comprando, bebendo e danando. Durante dezesseis dias,

    perdem-se nos desfiles, no lcool e no rudo da comemorao,

    at tombarem exaustas, com os olhos vermelhos; os

    forasteiros comeam a partir e pequenos flocos de neve

    comeam a cair no alto das montanhas. Ento, os habitantes

    de Munique se levantam, limpam as ruas e voltam aos cafs

    bomios na Schwabing ou ao alumnio dos escritrios das

  • 12

    companhias de seguro ao longo da Maxburgerstrasse, e

    aguardam pacientes os feriados de Natal.

    Quando Ludwig da Baviera se casou com Therese von

    Saxe-Hildburghausen, os camponeses e habitantes da cidade

    comemoraram com uma corrida de cavalos e um piquenique.

    Depois disso, passou a existir uma festa anual em outubro.

    Vagasse Ludwig atualmente em esprito pela Campina Therese

    ao final das festividades, passando sob a roda-gigante e por

    entre os pavilhes de venda de cerveja, entrando nas tendas

    onde homens e mulheres dormem embriagados, incapazes de

    se lembrarem onde moram, talvez percebesse que os bvaros

    no mudaram tanto em cento e cinqenta anos. Todavia, se

    perambulasse pelo recinto da feira, veria edifcios de cromo

    que se erguem inexplicavelmente onde antes existiam os

    chafarizes e ptios que ele construiu e saberia que Munique

    mudou muito aps 150 Oktoberfests. Na verdade, a Alemanha

    inteira se alterou.

    A nvoa matinal levantava-se nas encostas das montanhas

    e se juntava nos vales. Dizem que as prprias montanhas

    exalam esse ar vaporoso e o sol, penetrando a nvoa com raios

    compridos, incide nas florestas e riachos que j existiam

    desde o incio do mundo. Das profundezas de seu abrigo de

    folhagens, a Virgem Maria, toscamente entalhada em madeira,

    pintada de vermelho e azul, olha desinteressadamente a cena

    campestre l embaixo. Equipamentos agrcolas verdes e

    vermelhos movimentam-se afanosamente sobre os campos

    frteis. Casas modernas, com paredes de chapas metlicas,

    dominam as colinas. E serpenteando atravs dos bosques, com

    os grandes portes de ferro enferrujados mas funcionando, a

    muralha cinzenta do Sanatrio Brautnacht vigia os vales

    adjacentes.

    O homem estava sentado numa cadeira de jardim de ferro

    batido. Os olhos escuros e profundos encaravam a brilhante

    nvoa de outono. Encontrava-se na mesma posio em que a

  • 13

    enfermeira o colocara. O sol mudara de posio, mas a cabea

    do homem no se movera. As mos, grandes e fortes, pendiam

    ao longo do corpo. Um lbum de fotografias desbotadas estava

    aberto em seu colo. Em volta, os belos pssaros cantavam nas

    rvores.

    Ali perto, no gramado, estava deitado um menino que se

    contorcia. Os punhos tinham sido atados com uma tira de

    couro, de modo a no poderem alcanar a boca. O menino

    desejava desesperadamente comer as prprias mos.

    Debatendo-se para se libertar, rolou para a terra sob as

    roseiras.

    Uma enfermeira saiu rapidamente de um prdio de

    concreto, o rosto plido, os lbios se contorcendo embora

    fechados. Abaixou-se e puxou o menino do cho, apertando-

    lhe a clavcula. Lentamente, a boca frentica se abriu e a

    enfermeira, custa de tapas, tirou a terra que nela havia. O

    menino s parou de balbuciar quando a enfermeira o largou.

    Abaixou-se outra vez at o nvel das roseiras. A enfermeira o

    observou severamente durante um prolongado tempo antes de

    partir. Sorrindo, com lgrimas nos olhos, o menino rastejou

    rapidamente pelo gramado, os braos estendidos frente,

    parando finalmente para explorar os fungos brancos na base

    de uma rvore.

    Nenhum som tocara o homem sentado na cadeira de ferro

    batido. Entretanto uma veia azul em seu dedo pulsava

    depressa. Ocasionalmente, os pssaros voavam ou saltitavam

    no gramado; os olhos do homem, muito abertos e vagos,

    registravam as idas e vindas das aves como uma cmera sem

    filme.

    Ento uma ave pousou em seu chinelo, beliscou o couro e,

    extravagantemente, puxou do forro um comprido fio de feltro.

    A sombra do p do homem, espiou com ateno para todos os

    lados antes de saltitar de volta para a luz do sol. De repente

    um vulto cinzento atravessou velozmente o gramado,

    golpeando com a pata. O gato ergueu a pata e examinou

  • 14

    meticulosamente a ave estonteada. O sangue comeou a

    aparecer nas penas e na pata. O pssaro piou

    desesperadamente. O gato olhou em volta, pegou a ave na

    boca e carregou-a depressa para baixo da cadeira do homem.

    A mo do homem tremia. Os pios da ave no cessavam,

    embora ela certamente estivesse sendo devorada. Pingos de

    perspirao brotaram na testa do homem. A veia em sua

    tmpora passou a pulsar em ritmo com os sons emitidos pelo

    pssaro moribundo embaixo da cadeira. De repente, sua mo

    agarrou o lbum num gesto espasmdico e ele se empertigou

    na cadeira, arrancando do lbum uma nica fotografia. Os

    pios da ave aumentaram e, ento, cessaram bruscamente. O

    homem ficou em p, trmulo, as veias intumescidas, os olhos

    ainda esbugalhados e fixos, mas agora alerta e cheios de um

    medo animalesco. Vagarosamente, ergueu a foto at o nvel

    dos olhos, fitando-a at que ela se tornou um borro diante

    dele. Ento, amarrotou-a nos dedos.

    A enfermeira espiou pela janela do prdio de concreto.

    Franzindo as plpebras por detrs dos culos, movimentou os

    lbios numa expresso de alarme e ficou imvel. A cadeira de

    ferro batido estava vazia, silhuetada contra o brilho do cu. O

    homem sumira. Ela saiu cautelosamente do prdio.

    O menino atado com a tira de couro rastejava na orla do

    gramado. Ningum mais estava vista. S os pssaros. Uma

    brisa ocasional fazia a grama ondular. A enfermeira olhou em

    volta, os olhos examinando a orla distante e escura do recinto

    murado. Ento ela voltou ao prdio principal.

    Por detrs dela, o rosto nervoso do Dr. Gunther

    Kaufmann, diretor do Sanatrio Brautnacht, surgiu no

    corredor, lanando um rpido olhar por cima do ombro da

    enfermeira.

    Ele sumiu murmurou ela.

    No sei. No pode ter ido longe. Vou procur-lo.

    Sim, v procur-lo ordenou o Dr. Kaufmann.

  • 15

    Procurando em vo um leno para enxugar a testa, o Dr.

    Kaufmann encostou-se pesadamente parede spera e

    comeou a pensar depressa em determinadas complicaes

    jurdicas.

    Bandas com bons e casacos pretos percorriam a cidade

    velha, atravessando Munique a caminho da Campina Therese.

    Carroas de cerveja puxadas por cavalos enfeitados de azul e

    prateado rodavam pelo recinto da feira. Mulheres idosas em

    trajes tiroleses jogavam flores nos cocheiros. Sob os toldos

    dos teatros e barracas de mgicos, famlias de japoneses,

    americanos e trabalhadores iugoslavos perambulavam tirando

    fotografias. Enormes bales com rtulos de cervejas pairavam

    sobre a multido. Entre as barracas de venda de cerveja,

    arqueiros armados com bestas atiravam no veado de papelo

    colocado na extremidade da alameda central. Mulheres de

    bustos volumosos corriam por entre as mesas dos pavilhes

    de cerveja, suando, tentando atender ao insistente clamor dos

    steins batidos nas mesas por alemes que gritavam. Novas

    bandas substituam as bandas exaustas e logo a multido, j

    no se sentindo estrangeira, estava de p sobre bancos e

    mesas, de braos dados, berrando canes dos beberres

    alemes.

    Parecendo surgir do ar brilhante, avanando com

    dificuldade pelas velhas estradas rurais, dois poderosos

    cavalos de tiro puxavam uma carroa de barris de cerveja

    vazios e cinco alemes embriagados. Os cavalos avanavam

    devagar pelo aclive, afastando-se das estranhas casas

    modernas que pontilhavam as colinas como plantas exticas

    ao sol, deixando para trs os jardins e o carnaval que

    fervilhava na Campina Therese.

    O cocheiro usava um traje de origem indecifrvel, de seda

    e botes de lato, o nariz pintado de vermelho. A tinta se

    derretera de ambos os lados, descendo-lhe at a boca. No

    peito da tnica, distintivos que significavam o nmero de

  • 16

    litros de cerveja de duplo teor alcolico que ele consumira

    tilintavam a cada sacolejo da carroa.

    Na carroa, apoiado nos barris de cerveja, nas tbuas e

    nas flores, um homem em traje negro da Baviera estava

    deitado no colo de duas mulheres. A cada sacudidela o brao

    de algum se apoiava no corpo de outra pessoa. Piscando para

    clarear a viso, o homem se ergueu gradativamente e afastou

    os cabelos da testa.

    Meu Deus! comentou ele, rindo. Vejam aquele

    idiota correr. Deve estar treinando.

    Um homem grandalho, de cala e camisa azuis, corria

    descalo pelo campo de feno, de cabea baixa, atravessando a

    estrada em direo ao bosque que cobria uma colina situada

    nos subrbios setentrionais de Munique.

    Ao penetrar no denso bosque, este lhe pareceu familiar,

    mas no acolhedor. Os ramos e folhagens batiam-lhe no rosto,

    rasgavam-lhe a roupa, feriam-lhe a pele das mos. Afinal, ele

    parou, ofegante. A cidade surgiu na orla do bosque,

    espalhando-se pela encosta abaixo, pardacenta, Confluindo no

    centro, onde os ngremes telhados verdes ajuntavam-se como

    dentes e as fachadas crists brilhavam elegantemente ao sol.

    Temeroso, confuso, o homem comeou a descer

    cuidadosamente pelas valas de escoamento de guas pluviais,

    atravessando depressa as linhas de trem e as pontes,

    avanando paulatinamente, sem ser visto, pelos subrbios de

    Munique.

    Brigavam por causa de comida. Dois meninos se

    esmurravam furiosamente, o sangue escorrendo de um dente

    lascado. Agarraram-se, e quando um deles conseguiu livrar-se,

    golpeou o outro com toda a sua fora.

    Karl! Karl! berrou uma mulher, debruando-se da

    janela de um apartamento no andar de cima, o busto suspenso

    sobre o peitoril de concreto. Pare com isso! Largue ele!

    Desapareceu da janela.

  • 17

    Um dos meninos, livrando-se, esmurrou com fora a

    cabea do outro. Ambos caram ao cho.

    Karl! Levante-se!

    A mulher veio correndo atravs do canteiro de obras do

    novo prdio. Separou os dois meninos.

    Largue ele! berrou.

    Ele me roubou gritou o outro menino.

    Roubou! Meu filho no ladro! Voc roubou! Seu

    prussiano! retrucou a mulher, pegando o brao do filho e

    puxando-o para um lado. V para casa! bradou para o

    outro menino. Suma daqui!

    Ele roubou insistiu o outro garoto. Duas mas e

    uma pra. Elas sumiram.

    A mulher passou por ele, empurrando-o.

    Voc as perdeu, estpido!

    Caminhou com o filho atravs do terreno escavado, em

    direo ao prdio de apartamentos.

    Nunca confie nessa gente advertiu.

    O homem observava tudo atravs de uma abertura de

    ventilao. Sem achar graa ou excitar-se, espiou por uma

    brecha na parede de um poro abandonado. A briga ocorrera

    em seu campo visual, de modo que fora registrada. Ele se

    recostou numa parede.

    Era um abrigo feito de tijolos desmantelados, de vigas

    que haviam cado diagonalmente e agora sustentavam um

    tosco teto de concreto quebrado e vergalhes. Escombros por

    todos os lados: tijolos, pedaos de fios e madeira, tiras de

    papel de parede. O homem esticou lentamente as pernas,

    tentando no perturbar o precrio equilbrio do teto. Caiu p

    sobre seus ombros.

    Da abertura de ventilao no havia local do terreno que

    no pudesse ser visto. Mas no existia sada rpida; s o lento

  • 18

    desembaraar-se do teto em runas. Era um perigo. Ele

    aguardaria o anoitecer. Ento, tudo ficaria escuro. Ningum o

    veria. Ele poderia sair. Em algum lugar, os pingos de um

    encanamento furado ecoavam entre os escombros.

    O homem estremeceu. Mordeu a pra. Engoliu avidamente

    e depois comeou a comer as duas mas que tinha na outra

    mo.

    A torre da catedral bateu quinze para as oito. Barulho de

    farra vinha dos pavilhes e barracas de diverses da Campina

    Therese; todavia a parte velha da cidade estava silenciosa. A

    escurido do velho mercado mal era penetrada pela luz dos

    postes da Munique moderna. Uma velha caminhava depressa

    pelas ruas caladas de pedra. Um gato permanecia sentado na

    soleira de uma porta, imvel, observando. A praa, limitada

    por macias paredes de pedra e pelas sombras que

    dominavam as transversais estreitas, estava deserta.

    Num pequeno aougue, Wolfgang Heder batia bifes com o

    olho de sua machadinha de aougueiro. Heder era um homem

    enorme, de bochechas rosadas, e mantinha seu queixo triplo

    escrupulosamente escanhoado. Faltavam sete minutos para a

    hora de fechar o aougue e ele trabalhava metodicamente,

    arrumando os bifes sobre um pano e os enfeitando com folhas

    de verdura e hortel. Heder franziu os pequenos lbios

    vermelhos num sorriso desprovido de humor. Era um aougue

    caro, s para os fregueses mais ricos.

    As luzes da rua penetravam palidamente pelas vidraas da

    loja. Heder trabalhou na geladeira de ao inoxidvel,

    brilhantemente iluminada, e a porta automtica se fechou

    silenciosamente. Heder pendurou as peas de carne nos

    ganchos e limpou-as com o avental. Escutou o som abafado da

    sineta da porta indicar que algum entrara na loja. Franziu a

    testa, arrependido de no haver trancado a porta da frente.

    Um fregus a essa hora significaria um atraso de pelo menos

    quinze minutos em sua chegada ao pavilho e daria a Olga,

    sua esposa, uma desculpa legitima para ficar irritada.

  • 19

    Resmungando baixinho, Heder contou as caixas de verdura

    arrumadas nas prateleiras inferiores. Ento acionou o fecho

    interno da porta da geladeira e a empurrou.

    Heder ficou imvel. Bem acima de sua cabea, refletindo a

    luz, estava sua machadinha de aougueiro, empunhada por

    duas mos com tanta fora que os ns dos dedos se

    mostravam esbranquiados. Antes que ele se movesse, as

    mos golpearam com a machadinha. A lmina o rachou,

    penetrando na orelha e maxilar, e sangue vermelho jorrou com

    abundncia entre pedaos de osso. Heder, os olhos dilatados,

    caiu para trs no estrado de madeira que forrava o piso da

    geladeira. A machadinha tornou a subir e a descer. Quando

    terminou, Heder jazia banhado em seu prprio sangue, com

    uma velha fotografia amarrotada enfiada na boca.

    Todas as lojas estavam fechadas. Um arlequim solitrio

    atravessava o velho mercado a caminho de casa. As luzes

    azuis e verdes do carro da polcia giravam em frente ao

    aougue. Um guarda uniformizado mantinha distncia um

    grupo de curiosos. L dentro, o cadver de Heder era

    meticulosa e cautelosamente examinado. Um fotgrafo da

    polcia, firmando os ps em frente porta da geladeira, tirava

    fotografias com uma mquina com flash. Todas as superfcies

    de metal, vidro e madeira eram examinadas em busca de

    impresses digitais. Num canto da loja, o Inspetor Paul

    Steinmann segurava um copo de gua mineral para uma

    mulher idosa sentada numa cadeira.

    Por que a senhora entrou na geladeira? indagou

    Steinmann.

    No sei.

    No um procedimento normal.

    No sei o que me fez entrar l a mulher comeou a

    chorar. Eu no o vi em lugar nenhum da loja.

  • 20

    De modo, que foi procur-lo na geladeira?

    Quisera Deus que eu no tivesse ido!

    A velha fez o sinal-da-cruz com mo trmula.

    O mdico-legista Karl-Heinz Fischer saiu da geladeira e

    pediu uma maca. Suando, parou porta e enxugou a testa com

    um leno branco. Plido, sacudiu negativamente a cabea para

    Steinmann. O motorista da ambulncia e o ajudante trouxeram

    a maca. Fischer tornou a entrar na geladeira.

    O Inspetor-Chefe Martin Bauer estava de p junto ao

    balco, estudando a fotografia sem toc-la. Magro, a linha dos

    cabelos apenas comeando a recuar para o alto da testa, as

    feies toscas contradas numa expresso intrigada. Parecia

    haver algo familiar na fotografia amarrotada e mida extrada

    da boca da vtima, embora ele no conseguisse definir o que

    era.

    Steinmann puxou delicadamente o casaco da velha.

    Responda-me, por favor, Frau Knoedler disse ele. A

    senhora comprava freqentemente aqui?

    Sim. Esta noite eu me atrasei. Ele costuma fechar s

    oito horas.

    Entendo. E a senhora chegou aqui depois das oito?

    Sim.

    Mora aqui perto, Frau Knoedler? No? Ento ser acom-

    panhada at sua casa.

    Steinmann fez sinal para um guarda uniformizado.

    Entretanto talvez desejemos conversar outra vez com a

    senhora amanh de manh. Muito obrigado. Cumpriu seu

    dever cvico.

    Steinmann fechou a caderneta de anotaes e foi juntar-se

    ao seu superior junto ao balco. Os olhos de Martin Bauer

    fitaram sua aproximao sem o ver, a mente ainda ocupada

    nos limites da recordao. Steinmann pigarreou.

  • 21

    Bem, creio que terminamos disse ele.

    Desculpe-me replicou Bauer, arrancado de seu

    devaneio, Sorriu. Ela culpada ou inocente?

    No fao a menor idia. Sabe, com os preos que ele

    cobrava, eu no a culparia se ela o matasse.

    Bauer riu. Voltou fotografia. Esquecendo-se de

    Steinmann, franziu os lbios ao examin-la detidamente.

    Fischer j terminou o exame?

    Bauer, distrado outra vez, respondeu:

    Creio que no.

    Steinmann olhou para a fotografia sobre o balco.

    isso a?

    Sim.

    Est vendo algum conhecido? perguntou Steinmann

    tom um sorriso.

    Bauer ergueu os olhos.

    Isso que engraado, Paul. Tenho a estranha

    sensao de que vejo. D uma olhada.

    J foi periciada?

    Sim. Tinha impresses digitais.

    Steinmann debruou-se para estudar a foto. Era uma

    estao ferroviria. Um grupo de homens e mulheres esperava

    em fila. Fazia frio, pois usavam casacos e luvas. No havia

    neve no cho. Nem letreiros visveis. Aparentemente, a foto

    era antiga, a julgar pelo estilo das roupas e pelo aspecto

    desbotado da imagem em preto e branco.

    E da? quis saber Steinmann.

    Ela no lhe diz nada?

    No disse Steinmann, tirando um fiapo da gola do

    casaco. No foi tirada ontem. Pessoas numa estao... o que

    significa para voc?

    Bauer sacudiu a cabea.

  • 22

    O Dr. Fischer saiu da geladeira. Ainda suando bastante,

    andou at Steinmann e Bauer perto do balco.

    Imaginem, suar numa geladeira. No vejo algo assim

    desde os tempos de faculdade. Importam-se se eu for respirar

    um pouco de ar fresco?

    Comearam a andar juntos em direo porta.

    Quem tinha raiva dele fez um servio completo disse

    o legista. Praticamente partiu-o em pedaos...

    provavelmente com um machado... e depois o pendurou num

    gancho como uma pea de carne.

    Est faltando uma machadinha de aougueiro infor-

    mou Steinmann.

    Fischer esfregou a nuca. Olharam para o ar frio da noite

    enquanto a multido de curiosos, ainda fantasiados e de

    rostos vermelhos, os encarava quase ansiosamente.

    Bem, ento foi a arma do crime. Acham que foi obra de

    um nico homem? perguntou Fischer.

    Voc tem uma opinio a respeito? retrucou

    Steinmann.

    Fischer recuperara a compostura no ar frio de outono.

    Ele tinha que ser muito forte. Heder pesava bem mais

    que cem quilos respondeu ele, voltando-se em seguida para

    Bauer. Farei o relatrio e o verei amanh de manh,

    Inspetor.

    Amanh de manh, voc ver Steinmann disse Bauer.

    Partirei para Kitzbuhel esta noite.

    Kitzbuhel repetiu Fischer. Eu no sabia que voc era

    alpinista.

    E no sou.

    Ainda cedo demais para esquiar.

    Eu sei.

    Steinmann riu.

  • 23

    Existem outras... atividades em Kitzbuhel. No

    mesmo, Martin?

    Bauer ficou vermelho e no fez comentrios. Elementos da

    multido de curiosos j se encaminhavam de volta s zonas

    mais iluminadas de Munique. Outros haviam ficado sbrios ao

    se darem conta do que ocorrera. As portas da ambulncia

    foram abertas.

    Bem disse Fischer , eu diria que seu senso de opor-

    tunidade perfeito. Oktoberfest e um assassinato macabro.

    Uma tima ocasio para ir a Kitzbuhel.

    Atrs deles, no interior do aougue, o auxiliar da

    ambulncia enfiou a cabea para fora da geladeira.

    Ei, voc a! chamou ele. Pode me arranjar algum

    para dar uma ajuda aqui? O cara mais gordo que Hermann

    Goering!

    Os olhos de Bauer Se apertaram repentinamente. Ele

    tentou mais uma vez agarrar-se idia que de sbito lhe

    voltava lembrana, quase ao alcance de sua percepo. E

    novamente a voz de Steinmann desfez a oportunidade.

    Koenig, v ajud-los ordenou Steinmann, pousando a

    mo no ombro de Bauer. Venha. Vamos buscar suas coisas e

    eu o levarei estao.

    Obrigado.

    Voc est pensando em algo disse Steinmann. O

    que , desta vez: Kitzbuhel ou a fotografia?

    Antes que Bauer pudesse responder, Steinmann virou-se

    para Koenig, que levantava uma extremidade da pesada maca

    com o cadver de Heder:

    Koenig, traga a fotografia para a Chefatura.

    importante para o Inspetor Bauer.

    Sim, senhor replicou Koenig.

  • 24

    Koenig, o motorista da ambulncia e o ajudante

    carregaram lentamente o volumoso cadver atravs da loja.

    Steinmann e Bauer fitaram o corpo.

    Cubra o rosto dele com um pano mandou Steinmann.

    Koenig abriu caminho por entre os curiosos, o enorme

    cadver foi colocado no interior da ambulncia e as portas se

    fecharam. A ambulncia forou uma passagem entre o povo e

    seguiu pela praa calada de lajes, tomando uma avenida larga

    e bem-iluminada. Os curiosos se dispersaram. Fischer tornou

    seu carro e foi para casa. Steinmann sorriu.

    Se nos apressarmos, teremos tempo para um copo de

    cerveja antes da partida do trem.

    Se eu me apressar, mal terei tempo de arrumar a mala

    replicou Bauer.

    O carro azul e branco da policia freou ruidosamente em

    frente ao prdio de apartamentos que dava para o escuro Isar.

    Vou subir para ajud-lo disse Steinmann.

    Venha.

    Bauer abriu a porta do carro e saltou.

    Ou devo esperar aqui?

    Espere.

    Prefiro subir.

    A mala meio arrumada estava aberta em cima da cama

    bem-feita.

    Passe-me isso, est bem? pediu Bauer, apontando

    para um isqueiro lindamente trabalhado que estava junto ao

    cotovelo de Steinmann.

    Steinmann examinou o objeto por um instante antes de

    entreg-lo a Bauer.

    O braso de Bismarck comentou, impressionado.

  • 25

    Ganhei-o na escola. H muitos anos disse Bauer,

    jogando o isqueiro dentro da mala cheia de suteres e calas,

    todas da melhor qualidade. Num concurso de tiro.

    Sim disse Steinmann. Voc acende o cigarro de

    uma garota com ele e ela percebe logo que se trata de um

    homem especial.

    As luzes noturnas l fora pareciam girar no interior do

    quarto. Ento Bauer se deu conta de que um automvel que

    passava na rua l embaixo estava dobrando a esquina. Por

    algum motivo, aquilo o desorientou. Mas a escurido voltou a

    reinar, dando a impresso de reconfort-lo.

    O que h de errado, Martin?

    Nada. Onde esto minhas meias?

    Bauer atravessou o quarto, abriu a gaveta da cmoda de

    madeira escura e remexeu o interior. Steinmann observou-o da

    sala de visitas. Bauer parecia desusadamente magro e

    cansado, uma silhueta no interior do quarto.

    Algo o preocupa, Martin disse Steinmann. o

    crime?

    Bauer sorriu ao regressar sala.

    Escassez de cerveja respondeu.

    Bem, nisso eu acredito.

    Bauer lanou um olhar passagem no bolso do peito.

    Steinmann seguiu-o at a porta, carregando a mala. Bauer deu

    uma rpida olhada pelo pequeno apartamento e apagou a luz.

    Por um instante, tudo foi vcuo. Ento seus olhos se

    adaptaram ao escuro e os mveis de metal e vidro nos

    aposentos, como em tantos aposentos idnticos em toda a

    Alemanha, deram a impresso de piscar para ele, simples,

    funcionais, estreis. Sob todos os aspectos, o apartamento era

    um reflexo da essncia de sua vida, refletiu Bauer; a soma e a

    substncia de seus quarenta e sete anos de existncia. Fechou

    a porta atrs de si e trancou as duas fechaduras.

  • 26

    Caras de palhaos surgiram instantaneamente luz dos

    faris e desapareceram com igual rapidez. O carro teve que

    desviar para no os atropelar. Um carnaval para o estmago,

    pensou Bauer com desagrado duas semanas de ataque ao

    crebro e aos intestinos, incompreensvel...

    O carro tornou a desviar-se, quase derrapando.

    Perdo, senhor disse Steinmann, olhando para Bauer

    de seu assento ao volante.

    Por qu? O que h de errado?

    Quase atropelei aquele msico.

    Nem percebi.

    Bauer olhou para trs. Um homem gordo, de colete e

    chapu pretos, segurava sua tuba numa atitude defensiva.

    Brandiu um punho em direo ao carro que se afastava

    velozmente, praguejando em altos brados contra eles.

    Isso o despertar riu-se Bauer.

    Steinmann soltou uma risadinha. O panorama passava

    depressa. As casas velhas, as paredes em mau estado,

    pintadas de novo, lanavam sombras negras como a morte nas

    ruas estreitas. Bauer, que nunca se casar, relembrou os

    tempos de juventude, quando todas as ruas daquele tipo o

    atraam como a cano de uma sereia distante, excitando

    estranhamente sua fantasia masculina...

    O carro passava velozmente pela multido barulhenta.

    Rostos Verdes e cor de carne surgiam brevemente s luzes

    noturnas do centro da cidade. Para Bauer, eram repulsivos. Ou

    ser que ele via neles algo de si mesmo que lhe causava

    repulsa? Bauer comeou a ansiar pelo abrigo alpino como por

    um retiro religioso. De algum modo, sentia-se necessitado de

    purificao. Pessoas se apinhavam nas praas, saiam correndo

    da Opera; carnavalescos riam e cantavam nas escadarias dos

    grandes prdios de pedra.

  • 27

    As multides aumentavam em toda parte; os botes,

    lantejoulas e bordados brilhavam nas fantasias. Steinmann

    freou com um gemido de pneus nos fundos da estao

    rodoviria. Ali, Bauer teve a desconfortvel sensao de

    afogar-se num oceano de rostos. Ento movimentou-se e

    saltou do carro. Algum atirou uma garrafa em meio

    algazarra infernal e o vidro se espatifou em cacos contra uma

    parede distante, brilhando no ar da noite. Steinmann cutucou

    Bauer e sorriu.

    Uma tima noite! comentou.

  • 28

    Captulo 2

    O barulho era espantoso. Todas as linhas da estao

    ferroviria de Munique descarregavam hordas de passageiros.

    Homens de negcios e estudantes, operrios, freiras e...

    turistas... estrangeiros atravessavam em bandos as enormes

    portas de vidro, formavam filas nos guichs de informaes. e

    cmbio, acotovelavam-se nos bares e entravam nas filas de

    espera de txis, passando s ruas feericamente iluminadas de

    Munique.

    Abrindo caminho contra a mar humana, Bauer e

    Steinmann avanaram lentamente, enfrentando cotovelos e

    carrinhos de bagagem, austracos e suos, em direo

    primeira plataforma da segunda linha. Ali, aguardaram

    pacientemente. sua frente estavam grupos de excursionistas

    idosos, munidos de mochilas e bastes, tambm esperando

    com pacincia. Era impossvel conversar naquele barulho.

    Bauer sentia uma excitao inebriante, como se mesmo ali

    milhares de indivduos se mesclassem numa nica massa

    festiva. Steinmann deu-lhe uma palmada no ombro. No alto, os

    letreiros brancos se alteraram. L na curva, bem devagar,

    surgiu o trem eltrico para a ustria, penetrando sob a imensa

    cpula de vidro.

    O trem parou diante deles. Steinmann abriu a porta e

    pegou a mala de Bauer. Seguiram pelo corredor at a primeira

    cabine iluminada e abriram a porta. L dentro, uma jovem

    bonita, de cabelos escuros, estava sentada no banco lendo

  • 29

    uma revista. Bauer cumprimentou-a com um aceno de cabea

    ao colocar a mala no cho e tornou a sair para o corredor.

    Nada m, Martin sussurrou Steinmann.

    Nada m, mesmo.

    Voc sabe o que dizem: durante a Oktoberfest no

    existe uma s garota que no...

    Sim, eu sei.

    Bem, divirta-se.

    Steinmann apertou a mo de Bauer, sorriu e piscou um

    olho. Com um aceno de mo, afastou-se pelo corredor e

    desceu do trem, misturando-se multido alvoroada. Bauer

    entrou na cabine e fechou a porta. A jovem ergueu a cabea

    com um olhar frio e desdenhoso.

    Bauer sentou-se em frente a ela, junto janela, ajeitando

    meticulosamente o vinco das calas pretas. Olhou pela janela

    e, pela primeira vez, sentiu-se isolado e seguro da multido

    tumultuada que se acotovelava ao longo da plataforma da

    estao. Suspirou com algo que se assemelhava a

    contentamento e virou-se para estudar a jovem.

    Era morena, com ar travesso, faces rosadas e um nariz

    petulante e arrebitado. Era bastante segura de si mesma,

    as pernas longas com meias pretas, cruzadas uma sobre a

    outra. Usava um casaco aberto de tweed, tendo por baixo

    um fino suter branco. O corpo esbelto parecia acariciar

    preguiosamente o assento. Era de origem bvara, uma

    linda mistura de raas. Bauer tirou do bolso a cigarreira de

    prata.

    Fraulein? ofereceu ele.

    Ela no deu sinal de ouvi-lo. Bauer pegou um cigarro,

    tornou a guardar a cigarreira e, pouco vontade, correu os

    olhos pela cabine. Era um vago antigo, datando da poca da

    guerra, com uma prateleira de bagagens de madeira em vez de

    alumnio, um aquecedor que no funcionava e antiquadas

  • 30

    almofadas de plstico verde. O trem deu um solavanco e

    comeou a sair lentamente da estao. Bauer recostou-se no

    assento e olhou pela janela.

    Os escuros prdios quadrados de tijolos passavam pela

    janela e Bauer pde ver, alm dos shoppingcenters, o brilho do

    recinto da feira na orla da cidade. Vrias igrejas passaram,

    depois uma zona escura da cidade. O trem diminuiu a

    velocidade. Parou num emaranhado de desvios e pontes. Bauer

    fechou os olhos. Tentou pensar nas folhas de outono, nas

    encostas e nos lagos nas cercanias de Kitzbuhel.

    Foi despertado por um rudo. Ainda estavam nos desvios.

    Levantou-se rigidamente para consultar o relgio. Havia uma

    atividade crescente no ptio de manobras. Bauer limpou a

    vidraa e olhou para a escurido.

    Vages de carga iluminados por holofotes montados em

    postes telefnicos estavam sendo abertos. O gado

    desembarcava em confuso para a plataforma e depois descia

    as rampas, sendo agrupado por homens munidos de aguilhes

    eltricos. Mugidos de protesto enchiam o ar, chegando at

    onde Bauer espiava pela janela do trem. Os olhos dele se

    apertaram. O gado era tangido pelas rampas, umas reses

    pisando nas outras, entrando em passagens de arame farpado

    ou cercas de madeira. Bauer arregalou os olhos e sentou-se

    atordoadamente no banco.

    Meu Deus disse ele.

    Tinha a testa coberta de gotas de suor. A jovem o

    observou detidamente, apreensiva. Ele agarrou a mala na

    prateleira e saiu correndo pela porta da cabine. No final do

    corredor, abriu a pesada porta de maaneta de bronze e jogou

    a mala para fora do trem. A composio comeava a avanar

    mais uma vez, devagar, saindo do espao iluminado. Ento,

    Bauer saltou.

    O relgio no alto da Odeonplatz marcava onze e quinze.

    Sob a luz dos postes arqueados, rapazes e velhas esquivavam-

  • 31

    se dos bondes, voltando para casa. Bandeiras e faixas azuis e

    brancas espalhavam-se pelo pavimento. Um soldado francs

    encostou-se num poste, com vmitos. E durante todo o tempo,

    policiais cansados mas solcitos guiavam a multido para fora

    da praa, em direo s ruas estreitas e aos hotis e bairros

    residenciais.

    Um carro da polcia parou diante do Palcio da Justia.

    Steinmann e o guarda Koenig saltaram rapidamente, galgaram

    a escadaria e entraram no enorme prdio ornamentado de

    esculturas.

    O comprido corredor estava escuro a no ser pela luz que

    jorrava de trs portas de vidro fosco, Steinmann e Koenig

    andaram depressa, seus passos ecoando com um som oco.

    Steinmann ergueu a mo em sinal de silncio e os dois

    pararam diante do primeiro escritrio, escutando.

    Mais uma vez, Frau Heder disse uma voz precisa e

    montona. A senhora no se dava bem com seu marido?

    Isso no significa que eu o matei respondeu Frau

    Heder numa voz aptica, quase agressiva.

    Ele estava a par de seu relacionamento com esse

    sujeito, Nagle?

    Claro que no. No sou estpida.

    Era sua inteno divorciar-se dele e se casar com

    Nagle?

    No.

    Steinmann abriu vagarosamente a porta. Frau Heder

    estava sentada sob uma nica lmpada pendente do teto. Olga

    Heder era uma mulher robusta, atraente, de meia-idade. Fora

    do crculo de luz, a silhueta do homem que a interrogava.

    Depois que a senhora e Nagle mataram seu marido, o

    que fizeram da machadinha?

    Eu no o matei.

    Quer dizer que seu amante, Nagle, o matou?

  • 32

    No fao idia. melhor perguntar a ele.

    Steinmann fechou silenciosamente a porta.

    Ela um osso duro de roer disse Steinmann. Refletiu

    por um momento. Oua, Koenig. Fique aqui, por enquanto.

    Se houver alguma novidade, avise-me. Estarei na outra sala de

    interrogatrio.

    Steinmann afastou-se tranqilamente pelo corredor. Parou

    na luz difusa que saa pela porta de vidro fosco. Tornou a

    escutar com ateno as duas vozes que vinham do outro lado

    da porta.

    ... eu no o matei.

    Voc era amante da mulher dele.

    Sim, mas... no mataria por isso... O que pensa que

    sou?

    Voc um homem lgico, Nagle disse Steinmann ao

    abrir a porta e entrar na sala.

    O gabinete era uma rplica exata do primeiro, s que

    Nagle, em vez de Frau Heder, estava sentado diante de uma

    mesa sob a lmpada suspensa. Nagle, um homem magro,

    retorcia nervosamente a gravata com os dedos e ergueu a

    cabea, amedrontado, para fitar Steinmann de p a seu lado.

    Eis o que voc : um homem lgico continuou

    Steinmann. Havia a mulher e o dinheiro de Heder. Voc

    precisava de ambos... e o nico meio de consegui-los era

    matar o marido. Voc fez o que tinha que fazer, simples e

    logicamente.

    Nagle sacudiu a cabea.

    No... no gaguejou ele.

    Sim, Nagle disse Steinmann suave, insistentemente.

    E, fez um bom servio, alis. Viu o resultado de seu

    trabalho?

    Nagle encarou Steinmann, calado.

  • 33

    D-me as fotografias de Heder disse Steinmann ao

    homem no outro lado da mesa.

    Esto com o Inspetor Bauer.

    Steinmann fez uma pausa.

    Bauer?

    Sim... Ele as levou para seu escritrio.

    O Inspetor Bauer est em seu escritrio?

    Sim, senhor. Neste minuto.

    Steinmann refletiu por um momento, mas no conseguiu

    entender.

    Prossiga disse ele.

    E se encaminhou para porta.

    Uma voz seca e montona recomeou:

    Mais uma vez, Nagle. Depois que matou Heder, o que

    fez da machadinha?

    Antes de poder escutar a resposta, Steinmann fechou a

    porta. Olhou ao longo do corredor. Na extremidade, a luz que

    saa por uma porta incidia sobre o cho de ladrilho. Steinmann

    se aproximou e ouviu atravs da porta de vidro fosco a voz de

    seu superior, Martin Bauer.

    de Ludwigsburg? Telefonista? O qu? Oh, timo. Sim.

    Al... Dr. Rucker... Sinto incomod-lo, Dr. Rucker, mas seu

    nome me foi indicado pelo Inspetor Roedecker, de Bonn... Sim,

    Roedecker.

    Steinmann abriu a porta suavemente. A fotografia da

    estao ferroviria, alisada e limpa, estava sobre um canto da

    mesa. Steinmann terminou de abrir a porta e observou Bauer

    ao telefone.

    No, Dr. Rucker. Meu nome Bauer. Sou da Policia de

    Munique.

    Bauer notou a presena de Steinmann e fez sinal com a

    mo para ele ficar em silncio.

  • 34

    Sinto muito, Dr. Rucker, mas no consigo escut-lo...

    Sim, um pouco mais alto, por favor.

    Steinmann se aproximou da mesa. Sobre ela estavam foto-

    grafias de Heder depois de morto e algumas tiradas antes de

    sua morte, a maioria do rosto.

    Est muito melhor, Dr. Rucker... Disseram-me que sua

    agncia possui arquivos referentes aos crimes nazistas.

    verdade? timo. Estou particularmente interessado em provas

    fotogrficas relacionadas com os campos de concentrao.

    Steinmann acomodou-se lentamente numa cadeira,

    olhando para Bauer.

    No. Fotos. Fotografias dos campos, tiradas no inicio

    da dcada de 40 disse Bauer, erguendo ligeiramente as

    sobrancelhas. Lacunas? Entendo. Onde eu poderia encontrar

    tais fotografias? Bauer anotou rapidamente o endereo.

    Sim... sim... Rue Geoffrey, 17... L'Asnier, Paris 4. Sim, j

    anotei... muito obrigado. Muito obrigado, Dr. Rucker.

    Bauer baixou vagarosamente o fone, o rosto toldado por

    reflexes. Aps um longo silncio, Steinmann pigarreou.

    Julguei que o tivesse deixado num trem para Kitzbuhel

    comentou baixinho.

    Saltei no ptio de manobras na periferia da cidade.

    Bauer levantou-se e pegou a fotografia que tinham tirado

    da boca de Heder.

    De repente, tudo se tornou claro para mim a respeito

    desta foto. Ainda no sei exatamente o que significa, mas...

    Os olhos de Bauer estavam excitados, apertados pelo

    esforo de raciocinar. Rodeou a mesa e entregou a fotografia a

    Steinmann.

    So judeus, Paul disse ele. Esto num campo de

    concentrao. Veja-as. Esto esperando. Confusos. A foto d

    essa sensao.

    Steinmann continuou sentado, imvel.

  • 35

    No compreende? prosseguiu Bauer. Lembro-me

    dessas cenas. Voc tem que acreditar em mim. A fotografia d

    essa sensao.

    Steinmann olhou para a foto durante longo tempo.

    Depois, largou-a em cima da mesa. Tirou um fiapo imaginrio

    da cala.

    E dai? indagou, afinal. Essa fotografia lhe lembra

    alguma coisa. Do passado, talvez. Isso motivo para saltar de

    um trem e voltar correndo para c?

    Ela no me lembra, Paul. A foto de um campo de con-

    centrao. Essas pessoas so judeus.

    No acredito.

    Bauer entregou a Steinmann uma antiga foto de Wolfgang

    Heder.

    Reconhece-o? perguntou Bauer.

    Claro. Wolfgang Heder, a vtima.

    Ele lhe lembra alguma outra pessoa?

    No. Deveria lembrar?

    Ele lembrou ao ajudante da ambulncia... Hermann

    Goering.

    Steinmann estudou detidamente a foto.

    E eu concordo disse Bauer.

    Uma certa exploso de riso escapou dos lbios de

    Steinmann.

    Ora francamente...

    Por que no? Uma fotografia de um campo de

    concentrao. Uma vtima parecida com Goering. Creio que

    isso resulta em alguma coisa.

    Martin, voc...

    A porta se abriu repentinamente e Koenig enfiou a para

    dentro da sala.

  • 36

    Inspetor disse ele, alvoroado. Nagle acusou Frau

    Heder do crime... e ela est pronta para confessar...!

    Steinmann largou a fotografia de Heder em cima da mesa.

    Martin disse ele sorrindo , v para Kitzbuhel.

    Escale uma montanha.

    Frau Heder ria e chorava histericamente, em acessos

    alternados. Bauer, Steinmann, Koenig, o interrogador e dois

    guardas uniformizados a rodeavam. O interrogador segurava

    diante dela um documento datilografado.

    O que diz ele?! riu Frau Heder. Eu matei meu marido

    e o levantei todos aqueles cento e trinta quilos num

    gancho? Um toque de pavor se insinuou em seu riso. Vo-

    cs acreditam? Acreditam realmente nas mentiras dele?

    No inteiramente disse Steinmann. Estamos

    dispostos a escutar sua verso do caso.

    Frau Heder atirou a confisso no cho, levantou-se e

    gritou:

    No existe verso!

    De repente, sua voz sumiu. Ela olhou em volta para os ho-

    mens que a encaravam e, numa splica, a compostura

    totalmente desfeita, sussurrou para eles num tom de urgncia:

    No existe verso! No entendem que ele diria qualquer

    coisa para salvar a prpria vida? Ele matou meu marido, foi

    ele... por causa do dinheiro... e agora tenta envolver-me...!

    Frau Heder explodiu em lgrimas e deixou-se cair

    lentamente na cadeira.

    No compreendem?

    E chorou.

    As sombras projetadas pela lmpada suspensa

    permaneceram imveis. Ento Steinmann movimentou a

    cabea quase imperceptivelmente na direo de Koenig.

  • 37

    V buscar caf murmurou.

    Era impossvel decifrar a expresso de Bauer. Seu olhar

    fixava a mulher que chorava diante da mesa. Steinmann

    pegou-o pelo brao.

    Pela manh, teremos a confisso dela disse em voz

    baixa.

    Steinmann abriu a porta e ambos saram para o corredor

    escuro e empoeirado.

    Venha disse Steinmann. Vou lev-lo de volta

    estao.

    No h outros trens para Kitzbuhel esta noite.

    Bem sorriu Steinmann , se estiver disposto, preciso

    de seu auxlio num projeto muito especial.

    Na sala, no interior do crculo de luz, Koenig segurou um

    copo de papel diante de Frau Heder, que soluava com a

    cabea nos braos enquanto os outros homens retornavam

    suas posies e esperavam pacientemente que ela recuperasse

    a compostura. Steinmann fechou a porta de mansinho.

  • 38

    MUNIQUE:

    O Segundo Dia da Oktoberfest

    Captulo 3

    A vizinhana estava s escuras. As folhas de outono eram

    sopradas lentamente ao longo das caladas. Uma sensao de

    nvoa iminente se insinuava por entre as rvores. Um

    Mercedes azul dobrou a esquina oposta. Martin Bauer estava

    sentado em seu apartamento, descortinando a cidade,

    margem do escuro Isar, imerso em pensamentos.

    A fotografia, a semelhana do aougueiro com Hermann

    Goering uma coincidncia de eventos. Por causa dela, Bauer

    pulara de um trem, correra de volta e fizera papel de tolo. Se

    tivesse tanta certeza, poderia ter passado um telegrama de

    Kitzbuhel. Bauer sabia que seu intelecto, um instrumento raro

    e delicado, falhara. O prprio instinto tambm falhara, aps

    anos de servio? Bauer precisava saber, mas agora estava

    cansado demais para continuar pensando.

    Shhh! sussurrou Steinmann. Martin est dormindo.

    E eu tambm respondeu uma voz de mulher.

    No, no est replicou Steinmann com uma

    risadnha. Voc est de porre.

  • 39

    Estou dormindo ela balbuciou.

    Bauer abriu os olhos. No sof em frente a ele uma mulher

    loura, com o rosto delicadamente marcado pela fadiga, estava

    deitada sobre o chapu e o casaco de Bauer. Suas pernas

    compridas, sem meias, pendiam do brao do sof. Ela roncava

    baixinho. A seus ps, no cho, copos de usque e pratos de

    sanduches.

    Steinmann estava parado porta, nu, recostado no alisar.

    Lampejos de luz refletida por uma estatueta de porcelana

    danavam no peito dele. Um brilho vago produzido por uma

    lmpada na travessa escura entrava pelas cortinas da janela,

    delineando-lhe o corpo magro e musculoso.

    Steinmann olhou para o sof.

    Ei, Marlene disse ele. Acorde.

    Mmmmm...

    Todos esto acordados, menos voc insistiu

    Steinmann.

    V dormir murmurou Marlene.

    Steinmann sorriu outra vez e piscou o olho para Bauer.

    Uma boa pequena comentou, erguendo a mo num

    gesto de apreciao.

    Sim. Uma criatura maravilhosa.

    Steinmann observou seu superior atravs da sala. Bauer

    escovava os cabelos ralos para trs. Depois, procurou os

    sapatos. Bauer pensava demais, refletiu Steinmann, tentando

    adivinhar se reflexo era resultado ou coisa do

    envelhecimento. Riu repentinamente.

    Um dia desses, convidaremos Koenig para um de

    nossos projetos.

    Bauer apertou o nariz com o polegar e o indicador,

    comprimindo a veia, tentando clarear o crebro. Marlene, a

    bebida e todos os acontecimentos da noite tinham-no

  • 40

    embotado e, depois, sensibilizado. Seus pensamentos corriam

    contra a vontade. Surgiam lembranas e imagens,

    apresentando-se diante dele sem nada significarem.

    No pense no assunto disse Steinmann, sentando-se

    no sof, cobrindo-se com o casaco de Bauer e acariciando a

    perna de Marlene. Voc cometeu um engano. O mundo

    inteiro no sabe disso.

    No costumo saltar de trens.

    Esquea.

    No ajo impulsivamente, no mesmo?

    No.

    Bauer sacudiu a cabea.

    No compreendo.

    Steinmann derramou um pouco de usque no gelo que

    restava num dos copos no cho.

    Tome disse ele. Usque americano. Deixe a cerveja

    para os camponeses.

    Est bem.

    Steinmann serviu-se da bebida. Beberam em silncio. Uma

    buzina soou na vizinhana silenciosa e, em seguida, vozes

    roucas gritaram na rua. Um automvel arrancou com um

    gemido de pneus.

    A Oktoberfest me amedronta disse Steinmann.

    Piora a cada ano.

    Sempre foi uma poca ruim.

    Eles matam, roubam, vo para a cama com a mulher

    dos outros. terrvel. So animais.

    J foi pior.

    As folhas roavam na janela e uma nvoa fria penetrou

    livremente na sala. Bauer segurava na mo uma meia preta.

    Steinmann ficou satisfeito por distrair o esprito de Bauer.

  • 41

    Se estiver frio para voc, posso fechar a janela

    sugeriu Steinmann.

    Bauer aquiesceu com a cabea e estremeceu. Lembrou-se

    de que no perodo antes do restabelecimento da Oktoberfest

    Os homens estremeciam ao seu redor. Fazia um frio fora de

    poca. Munique exalava um hlito gelado. Todas as rvores,

    com as folhas verdes cobertas de geada, estendiam-se em

    grandes arcos ao longo do centro e da periferia da cidade. Os

    grandes trens avanavam lentamente sobre trilhos

    escorregadios.

    porque os habitantes de Munique nunca foram civili-

    zados. No fundo, ainda esto na Idade Mdia ecoou a voz de

    Steinmann, fazendo fundo para os pensamentos de Bauer.

    Bauer lembrou-se de que, na ocasio, os soldados

    trmulos deitavam-se em caixas de madeira, envoltos em

    trapos e jornais. Bauer evitava olhar para o sofrimento nos

    olhos deles, preferindo observar a neve brilhante ao sol da

    manh. Com um grande sopro de vapor, um trem chegou

    vagarosamente ao ptio de manobras improvisado.

    Os americanos esto chegando? perguntou Bauer.

    Como vou saber? replicou o soldado a seu lado.

    Bauer o reconhecera de anos passados. Tinham cursado

    juntos a Academia de Polcia. Agora, o outro tentava limpar a

    geada do rosto. Enfiou mais jornais nas botas.

    Claro que esto chegando. O que pensou voc que

    eles no viriam?

    Na terra, os pinheiros de Natal sacudiam sua carga de

    neve. Os vages de carga entravam em desvios no outro lado

    do ptio de manobras. O hlito animal dos homens mais

    prximos transformava-se em vapor atravs do couro e dos

    cachecis de l. Homens e ces perambulavam por ali. Ento

    as bombas caram, destroando os vages de carga. Entulho,

    madeira, relgios e postes de sinalizao, todas as entranhas

    de Munique expostas pelas exploses. Os homens tombavam

  • 42

    sobre as pilhas de escombros, e a neve fina como p erguia-se

    alegremente por toda parte.

    Cabo disse Bauer.

    O que ?

    Veja.

    O cabo olhou com dificuldade para a poeira de neve que

    se levantava. Um brao cara da pilha de madeira e canos,

    rolando com a mo crispada, descendo lentamente at os

    trilhos. Civis e soldados afastavam-se vagarosamente dos

    destroos. Ningum parecia demonstrar qualquer emoo.

    Limitavam-se a andar, flexionando as mos para aquec-las e

    para se certificarem de que a vida ainda flua dentro delas.

    Bauer calou a outra meia.

    O qu? perguntou ele, dando-se conta de que

    Steinmann fizera alguma pergunta ou comentrio e ele no

    escutara.

    Steinmann sacudiu a cabea e se levantou. Espreguiou o

    corpo esguio, caminhou at a janela e olhou para a noite l

    fora. As folhas coloridas se tornavam midas medida que a

    vizinhana era coberta por uma densa nvoa. A gua gotejava

    irregularmente das rvores. Acima das silhuetas escuras das

    casas, os letreiros vermelhos dos cafs da Schwabing

    brilhavam na escurido. Steinmann refletiu quanto era linda a

    noite de outono, com Marlene e usque americano, margem

    do usar escuro em Munique.

    Bauer se levantou e foi juntar-se a Steinmann na janela.

    Sabe, Paul, houve um tempo em que eles atiravam uns

    contra os outros nas ruas. Depois da guerra, montei guarda

    nos trilhos da ferrovia. Atirvamos em vrios saqueadores

    todos os dias.

    Voc pensa demais disse Steinmann. um mau

    costume.

  • 43

    Bauer sorriu.

    Esquea disse Steinmann. Beba. Viva. Oktoberfest.

    Um leve ronco partiu do casaco no sof. Marlene virou-se

    desconfortavelmente, os braos procurando cobrir os olhos,

    tentando dormir luz irreal que vinha da Schwabing.

    Os dedos de nevoeiro apertaram-se sobre a vizinhana. A

    atividade amainou e logo as pedras do calamento brilhavam

    sozinhas sob as lmpadas de rua que pendiam dos fios

    estendidos entre as rvores. Comeou a cair uma chuva fina.

    Nos conjuntos habitacionais, os alemes orientais, trazidos

    aos milhares depois da guerra, tambm comemoravam a

    Oktoberfest, mas reservadamente. E agora, sendo

    predominantemente operrios, dormiam pesadamente por

    detrs das janelas sem cortinas. Um velho veio caminhando

    rapidamente pelas ruelas, com barba crescida, ombros

    encurvados. Os sinos da torre da Frauenkirche soaram a hora.

    O velho apertou o passo, cortando caminho por um canteiro

    de obras, passando pelos fundos da padaria e se

    encaminhando para os conjuntos habitacionais.

    Ernst Frisch estava atrasado. A coleta de lixo era de

    madrugada. Certa vez, haviam-no apanhado com uma garrafa

    de gim no bolso, dormindo no poro. Se o pegassem atrasado,

    ele teria que viver nas ruas, como um rato. Firsch sabia que os

    alemes orientais nasciam e morriam prussianos. Assumiam

    paulatinamente o controle dos vizinhos, a exemplo dos

    judeus. Frisch, natural da Baviera, j estava reduzido a

    manter-lhes as fornalhas em funcionamento. Sentiu-se melhor

    ao descer os degraus do poro e fechar a porta atrs de si.

    Aos 53 anos de idade, Frisch adquiria uma profunda des-

    confiana da maioria das coisas. S pedra e ao lhe davam

    qualquer sensao de confiana. Trabalhando com percia,

    rolou os barris de cinzas para a carrocinha de madeira e, de

    costas, tornou a sair para a noite. As rodas sacolejavam nos

  • 44

    degraus de pedra, ecoando ruidosamente. Um repentino

    movimento do vento revelou uma lmpada de rua que parecia

    observ-lo por detrs das folhagens. Ele no fazia idia da

    hora. Apressou-se em subir a escada.

    Frisch no tinha a inteno de comemorar a Oktoberfest

    nos pavilhes ou em qualquer outro lugar, pois as multides

    enchiam-no de estranha ansiedade. Ainda assim, notou que os

    alemes orientais que dormiam em fileiras acima de sua

    cabea tinham festejado. Agora, ele era o nico acordado e

    trabalhando. Barulhentamente, rolou os barris da carrocinha e

    os colocou junto grade de ferro.

    Frisch tornou a descer ao poro, pegou uma p e acendeu

    a luz. Fechou a porta.

    A fornalha era grande e escura, iluminada apenas por uma

    nica lmpada nua pendente do teto. As sombras se

    movimentavam na parede. A fornalha era feita de tijolos, com

    trs tubos de ventilao embaixo e grades nos lados e em

    cima. A cpula curva era recoberta com uma substncia

    alcatroada e telhas, alm de tijolos, e a boca formava uma

    espcie de lbio, dobrado para baixo de modo a facilitar a

    remoo das cinzas, com uma p, para um balde metlico.

    Frisch assoou ruidosamente o nariz e piscou os olhos ao fitar

    o brilho ainda quente no interior da fornalha.

    Pequenos montes e pilhas de cinzas brilhavam em tons

    iridescentes de vermelho e negro, sugerindo formas ainda

    conservadas. Frisch empunhou a p e escorregou-a por entre

    as cinzas macias e desprovidas de resistncia. As pilhas se

    desfizeram sobre a p. O metal raspou no cimento. Frisch

    depositou as cinzas no balde. No percebeu que a porta fora

    aberta. Continuou a transferir a cinza para os baldes.

    Ento um vulto saltou sobre ele. A princpio Frisch julgou

    que fossem os prussianos. Teve ento uma sensao terrvel e

    compreendeu que ia ser morto. Escorregou no prprio sangue

    e caiu no cho, emitindo um grito agudo, alto, feminino. Um

    lquido quente o sufocou. Ele tateou o cho. Alguma coisa

  • 45

    tornou a golpe-lo e Frisch se desintegrou numa escurido

    sinistra e horrvel.

    A fornalha se tornou fria e mida. Poas escuras e

    circulares de gua da chuva se formaram no cho do poro.

    Perto das vigas de madeira junto porta, tentculos de sangue

    se estenderam com a gua. O sangue permaneceu na

    superfcie, coagulado. O corpo queimado e mutilado de Ernst

    Frisch jazia sob um cobertor.

    Arranjem-me uma toalha disse Fischer.

    Bauer estava em p, desconfortvel, fitando os crculos de

    vermelho e preto que se infiltravam atravs do cobertor. O Dr.

    Fischer se ajoelhara ao lado do cadver encolhido, afastando o

    cobertor. A gua da chuva encharcara-lhe os ombros do casaco

    preto, manchando as lapelas.

    Foi um instrumento pesado disse Fischer. Muito

    afiado.

    L em cima, nos apartamentos, operrios ainda no

    vestidos e mulheres envelhecidas trajando roupes

    observavam a polcia trabalhar l embaixo. Tinham rostos

    plidos e inexpressivos como as janelas do prdio. O nevoeiro

    se infiltrava por entre as rvores, trazendo um estranho

    cheiro de carvo e alcatro. Um gato parou no asfalto

    brilhante da travessa, uma pata erguida.

    Foi uma machadinha de aougueiro, no foi? disse

    Bauer.

    Sim. Creio que sim.

    Portanto, foi o mesmo homem.

    Bauer nada mais disse. Ento estremeceu e ajeitou melhor

    o casaco nos ombros.

    Cortes mltiplos das artrias... fraturas completas...

    tecido cerebral... dizia o Dr. Fischer em voz baixa. Koenig,

    atrs de Bauer, anotava tudo numa caderneta de capa preta.

  • 46

    ... laceraes acima do olho direito... separao das

    vrtebras...

    Bauer saiu para a escada. Limpou o nariz com um leno,

    branco. O vento soprava gua da travessa para os degraus.

    Steinmann, com uma gravata que no combinava com a roupa

    por causa da pressa com que se vestira, observava Bauer.

    Bem disse Bauer , duvido muito que Nagle tenha

    fugido da cadeia durante a noite para fazer isto.

    Steinmann ficou vermelho.

    E duvido que Frau Heder tenha bandos de capangas

    solta para matar faxineiros idosos continuou Bauer raivosa-

    mente. Parece-me que conseguimos uma confisso intil.

    Os policiais estavam reunidos em semicrculo diante da

    porta do poro. S a gua da chuva fazia barulho, escorrendo

    depressa dos patamares superiores e correndo ao longo das

    grades de ferro. Os homens sentiam frio no interior das

    botas e seus hlitos se transformavam em leve vapor.

    Pareciam aguardar alguma coisa. Bauer olhou para o canteiro

    de obras no lado oposto da travessa, a imensa grua amarela

    imvel, fustigada pelo nevoeiro que agora se transformava

    em chuva.

    Quem o encontrou? quis saber ele em voz mais

    baixa.

    Os lixeiros disse Steinmann.

    Interrogue-os. Descubra tudo a respeito de Frisch.

    Vasculhe seu passado... suas tendncias polticas durante a

    Guerra. Entendeu?

    Sim, senhor disse Steinmann.

    Ajeitou o sobretudo em volta das pernas e, encolhendo-se

    contra a chuva, subiu depressa os degraus at o nvel da rua.

    Koenig.

    Senhor?

  • 47

    Interrogue os moradores do prdio. Descubra quem no

    quer falar com voc. Verifique onde morava o velho. E se ele

    trabalhava para a Prefeitura, deve haver uma fotografia sua

    em algum lugar. Eu a quero.

    Koenig colocou o bon fonado de plstico na grande

    cabea bovina e assentiu. Subiu os degraus em direo aos

    apartamentos. Bauer refletiu um momento. Fez sinal com a

    cabea para que o fotgrafo comeasse a trabalhar. Em

    seguida subiu para o nvel da rua.

    Martin.

    Sim?

    O Dr. Fischer juntou-se a Bauer, calando os dedos limpos

    em luvas de couro forradas de pele.

    Voc deve saber que o agressor era muito forte.

    O que quer dizer com isso?

    Tivemos que arrancar o cadver do interior da

    fornalha. Normalmente, ele no caberia l dentro.

    Bauer empalideceu.

    O que est acontecendo? Que tipo de animal esse?

    Fischer sacudiu a cabea.

    Algum sempre enlouquece nesta poca do ano

    replicou ele. Acontece.

    Era um pobre velho. Conheo o tipo. Vivia sozinho, sem

    amigos, sem dinheiro; jogava cartas uma vez por ms. No h

    motivos para matar um homem como ele.

    Duvido muito que o motivo tenha relao com o caso

    declarou Fischer.

    O chuvisco frio dava a impresso de cair em mil e um

    buracos e esconderijos escuros no canteiro de obras, bem

    como entre os arbustos e travessas. Atravs dos subrbios, a

    caminho do trabalho ou dos pavilhes de cerveja, uma dzia

  • 48

    de suspeitos andava circunspectamente fora do alcance da luz

    verde que girava na capota dos carros da polcia.

    Bauer ergueu a mo enluvada. No interior do grande

    veculo azul, o motorista da ambulncia acordou o ajudante e

    ambos desembarcaram, usando impermeveis amarelos e

    carregando uma maca dobrvel. Bauer observou-os descer a

    escada do poro.

    No gosto disso, Karl disse ele. No gosto da apa-

    rncia nem da sensao.

    Fischer e Bauer ajeitaram os sobretudos e embarcaram no

    carro da patrulha. Fecharam as porta. Um grupo de escolares

    portando colagens feitas com folhas de outonos se aproximou,

    pulando as poas d'gua. O carro da patrulha partiu ao longo

    da comprida rua de asfalto brilhante, em direo ao centro da

    cidade, as luzes verdes girando, impotentes, no dia cinzento e

    embaado.

  • 49

    PARIS:

    Terceiro Dia da Oktoberfest

    Captulo 4

    A chuva acompanhou Bauer at Paris.

    L, ele olhou pela janela de seu quarto de hotel e viu o

    trfego fluindo pelos bulevares. As velhas que vendiam flores

    nas esquinas escondiam-se em seus abrigos. A umidade

    enevoada parecia brotar das caladas.

    Nos quarteires de edifcios de pedra, homens de camisa

    branca olhavam desconsoladamente de suas bancas de frutas.

    Africanos atravessavam as ruas correndo, os casacos

    pendurados nos ombros. Todas as cores pareciam escuras e

    sem brilho. Por detrs de tudo, erguiam-se as paredes verdes

    da igreja em estilo franco.

    O crebro do Inspetor-Chefe, porm, estava ocupado com

    dois assassinatos brutais. Sentado na beirada da cama, ele

    acendeu a lmpada da mesinha-de-cabeceira. Trs fotografias

    estavam enfileiradas em cima da cama. Wolfgang Heder, a

    estao ferroviria com o grupo que aguardava, e agora uma

    velha foto de Ernst Frisch, o faxineiro morto.

    Bauer examinou-as pela ltima vez e guardou-as no bolso

    interno do palet. Levantou-se e vestiu o casaco.

  • 50

    Mirou-se no espelho. Escovou para trs os cabelos ralos.

    Tinha a aparncia de um homem de relevo pblico. Todavia os

    lbios carnudos e sensveis, bem como os olhos escuros e fun-

    dos, traam a existncia de um homem mais suave em seu

    interior. Recuou e examinou-se luz fraca do quarto de hotel.

    Tinha que tomar cuidado, muito cuidado, com o que estava

    fazendo. Ento, saiu de mansinho e desceu rapidamente a

    escada acarpetada.

    Vamos Rue Geoffrey, 17 disse ele ao motorista do

    txi.

    O txi percorreu velozmente a cidade, levantando gua do

    calamento das ruas. Colunas, cafs e gua que escorria nas

    sarjetas passavam com rapidez pelo campo de viso de Bauer,

    que observava as paredes frias e verdes das igrejas.

    Monsieur novo em Paris?

    Mas o Inspetor-Chefe nem escutou. No ouvia nada. Seus

    dedos tamborilavam nervosamente na perna da cala e ele

    apalpou cuidadosamente as fotos que trazia no bolso.

    Chegamos, Monsieur. o Velho Bairro Judeu.

    Bauer desembarcou. Era um mausolu. Uma edificao

    quadrada s margens do lamacento Sena engrossado pela

    chuva. Em Memria do Mrtir Judeu Desconhecido, dizia a

    inscrio em francs. Na parede da frente tambm havia

    inscries em ingls e hebraico.

    A chuva aumentou. Um cilindro de bronze no ptio uma

    urna funerria brilhava de gua, fustigada pela chuva. O

    vasto mausolu branco e acachapado estendia-se por quatro

    andares abaixo do solo. Um comprido corredor levava aos

    locais escuros do subsolo.

    Bauer hesitou. Ento, com o vento soprando suas costas,

    desceu cripta.

    Uma jovem ergueu a cabea.

    Bem-vindo ao Monumento da Lembrana disse ela.

  • 51

    Bauer meneou a cabea, pingando gua do rosto e das

    roupas. Seguiu a jovem, tencionando falar-lhe, mas ela o

    conduziu ao interior do edifcio.

    Existem seis arcas embutidas nas paredes disse ela

    em voz baixa. Dentro delas esto livros nos quais foram

    registrados milhares de nomes.

    A jovem parou e aguardou que Bauer refletisse sobre

    aquilo. Manteve-se nas sombras. Bauer observou-a por um

    instante. Quando ele estava prestes a falar, ela disse:

    A cripta no formato da Estrela de David contm as

    cinzas de vtimas dos principais campos de concentrao e da

    Rebelio do Gueto de Varsvia.

    Bauer parou um momento diante da enorme estrela negra

    no cho. Uma luz suave iluminava as paredes e o teto. O

    silncio era mortal.

    Olhe... veja se existe sofrimento como o meu leu a

    jovem.

    Bauer fitou-a vagarosamente, estudando os olhos escuros

    e os cabelos da jovem judia.

    isto que est escrito em hebraico disse ela

    baixinho, olhando a inscrio na parede.

    Os olhos de Bauer se dirigiram legenda hebraica gravada

    acima da estrela negra. Comeou a sentir-se decididamente

    pouco vontade. Aproximou-se da jovem e sua voz ecoou

    estranhamente no mausolu escuro ao indagar:

    Perdo. Onde fica o Centro de Documentao Judaica?

    A jovem fez uma pausa momentnea e virou-se devagar,

    dando as costas cripta que continha as cinzas.

    O senhor ter que subir disse ela ao chegar

    novamente porta. Sorriu, compreensiva. Pergunte por

    Isaac Schneer.

    Sim, eu sei disse Bauer. Muito obrigado.

  • 52

    s suas ordens replicou ela, pegando seu livro sobre

    a mesa. A paz esteja com o senhor.

    Bauer balanou desajeitadamente a cabea e subiu

    depressa a escada. L em cima, entrou em outro vasto salo,

    iluminado suavemente por luminrias fluorescentes

    quadradas embutidas no teto. Estava deserto. Bauer caminhou

    lentamente pelo salo, observando as paredes que pareciam

    observ-lo tambm.

    Ol.

    Bauer virou-se. Um homem idoso o fitava de uma pequena

    porta. Tinha uma testa saliente e uma pequena deformidade

    nas costas. Sorria para Bauer, que se aproximou dele.

    Dr. Schneer?

    Sim.

    Bauer tirou do bolso duas cartas de apresentao.

    Sou o Inspetor-Chefe Martin Bauer, do Departamento de

    Polcia de Munique.

    Deu ao Dr. Schneer tempo para examinar os documentos,

    mas o velho se limitou a fit-lo diretamente, com ar agradvel.

    Creio que poder ajudar-me disse Bauer.

    Certamente. De certo modo, posso. Sente-se, por favor.

    O Dr. Schneer foi at uma cafeteira escondida entre livros

    encadernados com anis metlicos e pastas amarradas com

    fitas marrom-escuro.

    Quer tomar caf? Recebemos to poucos visitantes. E

    quando eles aparecem, sempre est chovendo riu o Dr.

    Schneer. Por favor, coloque seu casaco em cima do

    aquecedor.

    Bauer sentou-se diante da mesa de trabalho.

  • 53

    Muito bem, ento disse Schneer. Antes de tudo,

    falemos alemo, est bem? Ser mais fcil para ambos.

    O alemo de Schneer era impecvel, embora com um leve

    sotaque, como se ele o tivesse aprendido numa universidade.

    O velho se sentou, limpando as manchas de caf no tampo da

    escrivaninha de madeira. Ergeu os olhos para Bauer.

    Preciso perguntar-lhe, Inspetor Bauer, se o senhor

    representa seu governo.

    No. Oficialmente, estou de licena.

    Oh?

    Um caso... me interessou pessoalmente.

    O olhar de Schneer atenuou-se ligeiramente por detrs das

    grossas lentes.

    O senhor procura algum? Um amigo, talvez?

    No. No se trata disso.

    Duvido que esteja tentando localizar um parente.

    Dr. Schneer, eu quis apenas dizer que estou

    profundamente envolvido no caso.

    Entendo.

    Bauer teve a impresso de que os olhos azuis assumiram

    uma expresso mais dura. No obstante, o Dr. Schneer

    continuou a fit-lo com a mesma cortesia amistosa e

    desinteressada. Bauer comeou a sentir-se pouco vontade.

    Seus dedos tremiam ao tirar do bolso interno do palet as trs

    fotografias.

    Preciso de certas informaes referentes a essas fotos

    disse ele. Creio que o senhor talvez as conhea, ou as

    possua em seus arquivos.

    Schneer pegou as fotos. Tirou os culos e ergueu a

    fotografia de Heder. O sorriso azedo do aougueiro refletiu a

    luz.

  • 54

    Uma fisionomia tipicamente germnica comentou

    Schneer.

    Teria alguma semelhana com alguma pessoa famosa

    do passado?

    Schneer olhou outra vez a foto.

    Alguma pessoa infame do passado? sugeriu Bauer.

    Hermann Goering?

    Precisamente. Hermann Goering.

    Sim, existe uma remota semelhana.

    Bauer empurrou para Schneer a segunda foto.

    E essa? indagou Bauer.

    Schneer pegou a fotografia da estao ferroviria.

    Parece-me um grupo de judeus numa estao de trem.

    Principalmente pela expresso dos rostos. Uma espcie de...

    espera. Descrena. Tpicas roupas alems de trinta anos

    atrs.

    Schneer tornou a erguer os olhos e prosseguiu:

    Mas no existem emblemas, armas, guardas, letreiros ou

    nomes em lugar nenhum. Poderia ser mera coincidncia

    fotogrfica.

    O sobretudo de Bauer, colocado sobre o aquecedor emitia

    vapor e aumentava a umidade ambiente. Bauer suava

    profusamente. Sentia que sua misso estava resultando em

    fracasso. Ampliaes fotogrficas de judeus moribundos

    afixadas s paredes amarelo-claro do salo pareciam

    confront-lo pessoalmente. Bauer passou as pontas dos dedos

    pela testa.

    Dr. Schneer, se isso fosse um campo de concentrao e

    os judeus tivessem acabado de desembarcar de um trem, que

    campo seria?

  • 55

    Schneer ergueu uma sobrancelha e tornou a estudar a

    estao ferroviria.

    Se fosse esse o caso respondeu ele, pensativo , a

    julgar por aquela torre ali... est vendo?... eu diria que uma

    torre como aquela aparece em muitas fotografias de

    Auschwitz.

    Poderia estender-se um pouco mais sobre o assunto,

    Dr. Schneer?

    Certamente. Est vendo essa rampa? Existia uma como

    ela na estao de Auschwitz, que foi modificada e ampliada

    em 1944 para acomodar um nmero maior de judeus. Aqui

    est uma tpica construo alem, est vendo?

    Sim disse Bauer com voz sumida.

    Mas talvez no seja nada disso. Ns pulamos para uma

    concluso.

    Sei disso, Dr. Schneer.

    Bauer indicou com um gesto de cabea a terceira foto.

    Poderia examinar aquela, por favor?

    Schneer estudou a velha fotografia de Ernst Frisch, que

    parecia fit-lo com ar arrogante. Frisch sorria, deixando

    mostra dentes pontudos e separados. Antes de ser

    assassinado, Frisch fora magro, com olhos estreitos e

    penetrantes. Schneer sacudiu negativamente a cabea.

    O senhor no faz idia?

    Nenhuma.

    Schneer continuou a examinar a foto de Frisch, mas sem

    resultado.

    Sinto muito disse ele afinal. Levantou-se, com as

    costas dobradas num ngulo, e esfregou os olhos, Sabe,

    Inspetor, minha memria se apagou um pouco com a idade. Os

    rostos ficam indistintos ou desaparecem por completo...

    algo que s vezes me proporciona muita paz.

  • 56

    Bauer tambm se levantou. Andaram juntos at a porta.

    Todavia, tenho um assistente que est escrevendo um

    livro e possui excelente memria.

    O Dr. Schneer fez sinal para que Bauer aguardasse onde

    estava. Enfiou a cabea pela esquina do corredor e chamou

    algum.

    Sr. Picard disse ele. Quer fazer o favor de vir aqui?

    Soaram passos no corredor. Um homenzinho bem-

    arrumado, sorrindo nervosamente, surgiu porta do salo.

    Bauer observou-o cuidadosamente. O sujeito parecia jovem,

    mas era morbidamente plido.

    Sr. Picard disse Schneer , este o Inspetor Bauer,

    da Polcia de Munique.

    A mo mida de Picard apertou a de Bauer e os olhos

    escuros se fixaram nos do Inspetor.

    Inspetor? repetiu Picard.

    Sim confirmou Bauer.

    De Munique? perguntou Picard. Algo no tom de sua

    voz deixou Bauer ainda menos vontade. A cidade da arte e

    da cultura, no mesmo?

    J foi chamada assim disse Bauer.

    S ento Picard soltou a mo de Bauer.

    O Inspetor Bauer precisa identificar uma fotografia

    disse o Dr. Schneer. Talvez voc conhea esse rosto, no?

    Schneer segurou diante de Picard a foto de Frisch. Um

    tanto embaraado, Picard forou a memria para descobrir

    alguma semelhana. Bauer viu os olhos midos se

    imobilizarem e, depois, se arregalarem ao reconhecerem a

    fisionomia. Mas Picard devolveu a foto.

    Nada? indagou Schneer.

    Nada respondeu Picard.

  • 57

    Tem certeza? insistiu Bauer.

    claro.

    O Dr. Schneer se voltou para Bauer.

    Sinto muito disse ele. Talvez nos lembremos mais

    tarde. Pelo menos o Sr. Picard pode verificar para o senhor

    nossos arquivos de Auschwitz em relao a fotografias da

    estao. Talvez alguma delas se parea muito com a sua.

    Muito obrigado disse Bauer, Eu ficaria devendo um

    grande favor.

    O Dr. Schneer vestiu um comprido sobretudo cinzento e

    pegou seu guarda-chuva.

    Agora, preciso ir disse ele. A idade cobra um

    preo alto e hoje em dia eu s trabalho meio expediente. O Sr.

    Picard cuidar do senhor.

    Agradeo-lhe mais uma vez, Dr. Schneer.

    Bauer fez uma breve e correta inclinao de cabea.

    Schneer observou-a e trocou um olhar com Picard. Depois,

    retribuiu o simulado cumprimento e preparou seu guarda-

    chuva.

    Bom-dia, Inspetor disse ele. E saiu.

    Picard foi at os arquivos de metal. Bauer observou os

    dedos finos manusearem as pastas. O Inspetor se aproximou,

    vendo de relance as fotografias: chamins, cercas de arame

    farpado. Picard lanou-lhe um olhar sombrio.

    A luz, senhor.

    Perdo disse Bauer, afastando-se.

    De onde estava, Bauer viu braos e pernas esquelticos

    passarem rapidamente sob os dedos de Picard no interior da

    gaveta metlica. O Inspetor tentou no olhar e, afinal, Picard

    fechou violentamente a gaveta, com um som que ecoou

    atravs do mausolu.

  • 58

    O senhor perceber a semelhana disse Picard, entre-

    gando a Bauer a fotografia de uma estao ferroviria.

    Sim, claro. Isso Auschwitz?

    Auschwitz.

    Pode me arranjar uma duplicata?

    Naturalmente. Picard foi a uma copiadora xerox com a

    marca 4000 Convenience Copier. O aparelho emitiu um

    zumbido.

    Quem aquele homem? quis saber Bauer.

    Que homem, senhor?

    O homem na foto.

    No sei, senhor.

    Sabe, sim.

    Picard permaneceu calado. Abriu bruscamente a gaveta do

    arquivo e tornou a guardar o original da foto da estao de

    Auschwitz, entregando a cpia a Bauer. Depois, seus olhos

    fitaram os do Inspetor com o dio mais violento que Bauer j

    vira.

    Eu disse que no, senhor.

    Bauer perdeu-se nas poas de escurido dos olhos do

    homenzinho. Uma espcie de magnetismo prendeu-o ali.

    Depois, Bauer se afastou para apanhar suas trs fotografias

    em cima da mesa e guard-las no bolso interno do palet.

    Ento, dobrou o sobretudo sobre o brao.

    O senhor poderia me ajudar muito...

    No o ajudarei, Inspetor.

    Finalmente, Bauer ficou calado. Encaminhou-se porta,

    sentindo que Picard o observava. Ento, virou-se.

    Seus arquivos esto abertos ao pblico?

    No existe duplicata daquele rosto em nossos arquivos.

  • 59

    Bauer olhou atravs do salo ladrilhado para o

    homenzinho parado porta do escritrio. Picard exibiu um

    sorriso estranho.

    Ter que ir a Israel, Inspetor.

    Israel?

    Sim respondeu Picard, de p meia-luz, a voz

    ecoando pelo mausolu e os reflexos das luzes vibrando

    sutilmente nas paredes. Os arquivos mundiais esto em Israel.

    Com todos os rostos.

    Bauer vestiu o sobretudo, vendo a luz do dia l fora.

    Sentiu a presena de Picard s suas costas, embora

    distncia. Ento, colocou o chapu, abotoou o sobretudo e

    tornou a sair energicamente para a luz cinzenta do dia. A

    chuva fustigava o trfego que passava por ele. O barulho da

    cidade o engolfou.

    Desesperanado, Bauer tentou lembrar-se do que fizera de

    errado. Abordara Picard de modo incorreto e agora os

    arquivos de Paris estavam fechados para ele. No obstante,

    Picard sabia algo a respeito de Frisch. Bauer tinha certeza

    disso.

    Monsieur?

    Bauer ergueu os olhos.

    Seu caf.

    Obrigado.

    Vrios parisienses estavam sentados sob o desbotado

    toldo vermelho do caf ao ar livre. A chuva caa

    desconsoladamente dos toldos, pingando nas caladas,

    avenidas e vasos de samambaias. A rua em frente ao caf era

    lavada por uma torrente de gua limpa. O garom parecia

    meditar sobre a cena.

    Est frio comentou o garom.

    Bauer concordou.

  • 60

    So os americanos. Trazem o frio com eles. Trazem

    com eles tudo de ruim disse o garom.

    Bauer tornou a concordar com a cabea.

    No quer bolo com o caf?

    No, obrigado.

    O garom se foi, tornando a entrar no caf em direo

    cozinha e s outras mesas forradas com toalhas vermelhas.

    Velhos sentados s mesas mais afastadas jogavam xadrez.

    Pareciam a Bauer os velhos judeus que freqentavam os cafs

    da Schwabing antes da guerra, entrando a intervalos para

    tomarem caf forte, com tabuleiros de xadrez e jornais sob o

    brao.

    O senhor deseja mais alguma coisa?

    No.

    Bauer pagou a conta e saiu.

    Caminhou sob a chuva que amainava, perambulando pela

    cidade cinzenta, pensando. As luzes das ruas tinham-se acen-

    dido cedo, criando pequenos focos luminosos no nevoeiro. As

    pessoas vultos sombrios andavam vagarosamente nas

    pontes. Bauer caminhou at sentir-se mais frio, de cabea

    fresca, controlado.

    Um trem passou vibrando sob seus ps. Olhando para

    baixo, avistou sob a ponte o trem de carga que demandava o

    ptio de manobra, rodando sobre os trilhos brilhantes e

    desaparecendo na cortina de nvoa. Bauer observou o pesado

    trem comprimir os trilhos contra a terra, bem como a gua

    que escorria pelas agulhas dos desvios das linhas. Sempre

    soubera por que motivo saltara do trem em Munique. E agora a

    cpia da fotografia em seu bolso vinha confirmar tudo.

    Ele fora soldado na frente russa. Estavam regressando, no

    final da desastrosa campanha. Os homens ocupavam a cabine

  • 61

    elo trem como sardinhas em lata, balanando e sacudindo

    como alquebrados fantoches a cada solavanco do trem.

    Bauer, sentado janela, olhava para fora, um jovem cujo

    rosto ainda no se acostumara lmina de barbear. De

    repente, um vago de carga com paredes de madeira e vapor

    escapando pelas laterais passou na mesma direo.

    Judeus disse algum. Judeus.

    Bauer no compreendeu. Ento os trens diminuram a

    velocidade e pararam. Os pinheiros pareciam sacudir a gua

    da chuva torrencial. Guardas e ferrovirios andavam entre as

    rampas, na lama. No lado oposto do ptio de manobras, o

    outro trem estava parado, entre vages de carga isolados e

    pilhas de carvo.

    Vejam! gritou algum.

    Os vages de carga se abriram. Em vez de gado, deles

    saram pessoas. Vinham em grupos compactos, com as mos

    na cabea. Esperaram, hesitantes. Os guardas ento as

    empurraram pelas rampas.

    Judeus repetiu algum.

    Bauer olhou em volta, para os homens que ocupavam a

    cabine. Eram prematuramente envelhecidos, com uma sombra

    da morte j em seus olhares. Alguns fitavam o cho, tossindo

    e cuspindo, outros fitavam o vcuo. Bauer virou-se outra vez

    para a janela. Os judeus j formavam um cortejo que passava

    silenciosamente pelos pesados vages de carga parados no

    ptio, a caminho dos acessos cercados e das torres distantes.

    O que isso? perguntou Bauer.

    Vo para Birkenau, o campo de extermnio disse uma

    voz rouca vinda de cima.

    O que est dizendo? Um campo de extermnio?

    retrucou Bauer. um campo de trabalho! Fbrica de

    munies!

  • 62

    O Capito soltou uma risada spera e amarga e todos os

    imitaram. O trem comeou a avanar mais uma vez. Ao passar

    pela estao, Bauer viu o letreiro: Auschwitz.

    Auschwitz, pensou Bauer, agora mais velho, parado na

    ponte em meio ao nevoeiro. Era noite. As luzes refletiam, nas

    caladas e no pavimento.

    Bauer se deu conta de que o caso o arrastava de volta a

    lembranas que ele h muito esperava que estivessem mortas.

    Agora, porm, constatou que estavam, muito vivas e

    desconcertantemente ntidas. Ele se lembrava de ter baixado a

    cortina da janela do trem. Baixara a cortina e a amarrara com o

    cordo parte inferior da esquadria. Que outra coisa poderia

    ter feito?

    Bauer caminhou de volta ao hotel. O desalento lhe pesava

    ao percorrer as ruas estreitas cheias de nvoa. Sentiu mais do

    que viu os gatos que remexiam nas latas de lixo e caixotes de

    verduras. O nevoeiro parecia dobrar as esquinas.

    J no havia dvida de que Frisei fora um nazista ou se

    parecia com algum deles. Mesmo a contragosto, Picard se

    trara. Parecia haver uma ligao, mas no existiam provas.

    Bauer precisava de provas.

    Abriu a porta do hotel. Subiu a escada e destrancou a

    porta do quarto.

    Tentou lembrar-se de quanto dinheiro ainda lhe restava.

    Sentou-se na beira da cama e examinou os canhotos do talo

    de cheques. No