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Fraturas da escápula* CLÁUDIO HENRIQUE BARBIERI, NILTON MAZZER, FÁBIO HENRIQUE MENDONÇA, LUIZ HENRIQUE FONSECA DAMASCENO INTRODUÇÃO A escápula é um osso plano recoberto por músculos, com a dupla função de estabilizar e permitir a mobilidade do ombro, movendo-se contra a parede torácica por um mecanismo de deslizamento entre diferentes planos musculares. Ela é a base do membro superior, cuja função depende em grande parte da sua livre movimentação sobre o gradeado costal; pode ser seriamente comprometida por processos patológicos, como as fraturas e suas seqüelas. Fraturas da escápula são relativamente raras, contando não mais que 5% das da cintura escapular e 1% de todas as fraturas(1). A relativa invulnerabilidade da escápula às fraturas é resultante de três fatores: 1) sua estrutura anatômica, com o centro tênue e as bordas espessas, que lhe conferem elasticidade e resistência; 2) sua grande mobilidade, que lhe permite “escapar” de traumatismos; e 3) seu envolvimento por um verdadeiro coxim muscular(2). Apesar disso, as fraturas da escápula podem ocorrer como resultado de um trauma direto de alta energia, sobre ela mesma ou sobre suas partes, de um trauma indireto, como a queda com apoio no membro superior ou as luxações do ombro(1). Lesões associadas às fraturas da escápula são freqüentes. Variam das rupturas musculares e formação de gran-des hematomas às fraturas das partes recobertas por músculos (o corpo), do colo e da espinha, seguidas dos traumas da parede torácica que resultam de mecanismo direto de alta energia. Estes são até mesmo mais graves que a própria fratura da escápula, podendo retardar o seu diagnóstico(1,3-6). Os sinais e sintomas iniciais das fraturas recentes da escápula são pouco característicos, com dor e diminuição da mobilidade do ombro como um todo, ou da articulação glenoumeral em particular. O diagnóstico radiográfico dessas fraturas implica a realização de incidências especiais, que constituem a chamada série-trauma e incluem as vistas ântero-posterior e perfil verdadeiras e axilar, capazes de mostrar o colo e o corpo da escápula e o acrômio. A tomografia computadorizada pode ser útil para melhor caracterização das fraturas envolvendo a superfície articular da glenóide, havendo o recurso de reconstrução tridimensional, que permite melhor interpretação da situação(1). As fraturas da escápula ocorrem segundo alguns padrões, sendo as mais freqüentes aquelas que envolvem o colo e o (1,4,6,7). Várias

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Fraturas da escápula*

CLÁUDIO HENRIQUE BARBIERI, NILTON MAZZER, FÁBIO HENRIQUE MENDONÇA, LUIZ HENRIQUE FONSECA DAMASCENO

 INTRODUÇÃO

A escápula é um osso plano recoberto por músculos, com a dupla função de estabilizar e permitir a mobilidade do ombro, movendo-se contra a parede torácica por um mecanismo de deslizamento entre diferentes planos musculares. Ela é a base do membro superior, cuja função depende em grande parte da sua livre movimentação sobre o gradeado costal; pode ser seriamente comprometida por processos patológicos, como as fraturas e suas seqüelas.

Fraturas da escápula são relativamente raras, contando não mais que 5% das da cintura escapular e 1% de todas as fraturas(1). A relativa invulnerabilidade da escápula às fraturas é resultante de três fatores: 1) sua estrutura anatômica, com o centro tênue e as bordas espessas, que lhe conferem elasticidade e resistência; 2) sua grande mobilidade, que lhe permite “escapar” de traumatismos; e 3) seu envolvimento por um verdadeiro coxim muscular(2). Apesar disso, as fraturas da escápula podem ocorrer como resultado de um trauma direto de alta energia, sobre ela mesma ou sobre suas partes, de um trauma indireto, como a queda com apoio no membro superior ou as luxações do ombro(1).

Lesões associadas às fraturas da escápula são freqüentes. Variam das rupturas musculares e formação de gran-des hematomas às fraturas das partes recobertas por músculos (o corpo), do colo e da espinha, seguidas dos traumas da parede torácica que resultam de mecanismo direto de alta energia. Estes são até mesmo mais graves que a própria fratura da escápula, podendo retardar o seu diagnóstico(1,3-6).

Os sinais e sintomas iniciais das fraturas recentes da escápula são pouco característicos, com dor e diminuição da mobilidade do ombro como um todo, ou da articulação glenoumeral em particular. O diagnóstico radiográfico dessas fraturas implica a realização de incidências especiais, que constituem a chamada série-trauma e incluem as vistas ântero-posterior e perfil verdadeiras e axilar, capazes de mostrar o colo e o corpo da escápula e o acrômio. A tomografia computadorizada pode ser útil para melhor caracterização das fraturas envolvendo a superfície articular da glenóide, havendo o recurso de reconstrução tridimensional, que permite melhor interpretação da situação(1).

As fraturas da escápula ocorrem segundo alguns padrões, sendo as mais freqüentes aquelas que envolvem o colo e o (1,4,6,7). Várias classificações das fraturas da escápula foram propostas, com base na sua localização anatômica e freqüência. Desaut, em 1805, identificou dois tipos de fraturas da escápula, quais sejam, as do acrômio e as do ângulo inferior, ambas com diferentes causas e tratamentos. Zdravkovic e Damholt(8) identificaram três tipos de fraturas: I) do corpo; II) das apófises; e III) do ângulo súperolateral, que inclui a glenóide e o colo. Thompson et al(6) reconheceram três classes de fraturas: I) coracóide, acrômio e pequenas fraturas do corpo; II) glenóide e colo; e III) grandes fraturas do corpo. Para as fraturas intra-articu-lares da glenóide, Ideberg(9) propôs uma classificação que reconhece cinco tipos: I) avulsão da margem anterior, comumente associada às luxações anteriores do ombro; II) fratura transversa da glenóide, com fragmento triangular inferior deslocado juntamente com a cabeça do úmero; III) fratura oblíqua da glenóide, dirigida para borda superior da escápula e freqüentemente associada à fratura ou luxação acromioclavicular; IV) fratura horizontal da glenóide, dirigida para a borda medial da escápula; e V) combinação do tipo IV com fratura da borda inferior da glenóide.

A maioria das fraturas da escápula é tratada conservadoramente, com base na imobilização temporária e início precoce de fisioterapia, para ganho de mobilidade. Entretanto, as fraturas intra-articulares da glenóide costumam ser de indicação cirúrgica(10), para redução anatômica e fixação rígida, assim como a fratura do colo associada à da clavícula ou à luxação acromioclavicular (ombro flutuante). Entretanto, com exceção das fraturas que envolvam uma grande área da superfície articular da glenóide, podendo causar instabilidade e incongruência, não se nota, na literatura, veemência na indicação do tratamento cirúrgico para os demais tipos. Essa postura comedida provavelmente se deve a que muitas das fraturas ficam autocontidas pelo envoltório muscular do subescapular e do supra e infra-espinhal, e a que a própria

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abordagem cirúrgica da fratura é difícil, envolvendo certo grau de lesão muscular, com conseqüente fibrose e aderências e prejuízo funcional.

No presente trabalho, foram estudados 120 casos de fraturas de escápula, sendo realizada avaliação funcional do ombro em 45 pacientes, portadores de fraturas da escápula de vários tipos, que foram submetidos a tratamento cirúrgico ou conservador. O objetivo foi cotejar o grau de recuperação funcional com o tipo de fratura e o tratamento realizado.

MATERIAL E MÉTODOS O trabalho, realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, desenvolveu-se em duas etapas. Inicialmente, foram estudados retrospectivamente os prontuários de 120 pacientes com fraturas da escápula, tratados num período de 18 anos (1982-1999). Os prontuários médicos foram revisados conforme protocolo previamente elaborado, para registro de todas as informações concernentes à fratura, ao tratamento realizado e ao seguimento do paciente. Em seguida, os exames radiográficos disponíveis do ombro, da data do trauma e do seguimento até a alta ambulatorial, foram estudados, com a finalidade de classificar a fratura.

Do total de 120 pacientes estudados, 96 eram homens e 24, mulheres, com idade média de 34,75 anos (variação: 8 a 77 anos). Apenas um paciente, de 65 anos de idade e vítima de atropelamento, faleceu logo após o trauma. No concernente à profissão, 54 exerciam atividades braçais, 60 tinham trabalhos leves e em seis casos a profissão era desconhecida. Quanto ao mecanismo de trauma, predominaram os de alta energia (tabela 1), como os acidentes automobilísticos, atropelamentos, acidentes motociclísticos e quedas de altura. Também foram encontrados casos de fratura da escápula por espancamento e crises convulsivas. O mecanismo de trauma permaneceu indeterminado em quatro pacientes.

No total, foram diagnosticadas 142 fraturas, acometendo 123 escápulas. O lado direito foi o mais acometido, com 66 casos. Em três pacientes a fratura foi bilateral. As fraturas foram classificadas de acordo com a posição anatômica do traço, como: fraturas do corpo e do colo da escápula, processo coracóide e acrômio(1). Já as fraturas intra-articu-lares da glenóide foram classificadas de acordo com Ide-berg(9). Foram excluídos do estudo todos os pacientes cujas radiografias não eram suficientes para permitir a classificação da fratura e em cujo prontuário não houvesse menção desta (15 casos).

Quanto ao tipo, predominaram as fraturas do corpo da escápula (53 casos), do colo (52 casos), do acrômio (14 casos) e do processo coracóide (sete casos). As fraturas intra-articulares somaram 16 casos, sendo três do tipo I, cinco do tipo II, quatro do tipo III e quatro do tipo IV de Ideberg(9). A associação de mais de um tipo de fratura na mesma escápula ocorreu em 19 casos (tabela 2).

Os pacientes foram divididos por faixas etárias, tendo havido maior incidência das fraturas entre os 21 e os 45 anos. O diagnóstico foi inicialmente feito por radiografia simples de tórax em 18 casos, quando da avaliação do paciente politraumatizado. Apenas três pacientes tinham como lesão única a fratura da escápula. Todos os outros apresentaram lesões associadas, que variaram com a gravidade do trauma (tabela 3), sendo as mais freqüentes as fraturas de costelas, pneumotórax, fraturas da clavícula e outras dos membros superiores e inferiores. Algumas vezes, várias dessas lesões associavam-se num mesmo paciente.

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O estado de consciência do paciente na admissão foi avaliado pela Escala de Coma de Glasgow, segundo a qual 82 pacientes receberam 15 pontos. Pontuações de 14 ou menos foram atribuídas a números significativamente menores de pacientes, tendo chegado a quatro pontos em apenas dois.

Doze dos 120 pacientes foram submetidos à tomografia computadorizada, para melhor interpretação dos traços de fratura, tendo o diagnostico de fratura intra-articular da glenóide dos tipos I e II de Ideberg em dois casos, fratura do colo em cinco e fratura do corpo noutros cinco casos.

No tocante ao tratamento realizado na época do atendimento, 106 pacientes foram tratados incruentamente, com imobilização do ombro em abdução neutra e rotação inter-na, utilizando enfaixamentos de tipo Velpeau ou tipóia vestida, por um período médio de quatro semanas. Os pacientes eram instruídos, nesse período inicial, a mobilizar ativamente o cotovelo várias vezes ao dia, para prevenir retrações dessa articulação. Na etapa seguinte, igualmente de quatro semanas, era iniciada a mobilização ativa leve do ombro, com base em movimentos pendulares, para ganho de amplitude. Aqui os pacientes eram encorajados a aumentar a amplitude e intensidade do exercício, conforme a dor e a estabilidade o permitissem. Os 14 pacientes restantes foram submetidos a tratamento cirúrgico, para fixação interna das fraturas, por meios que variaram de parafusos isolados de compressão interfragmentária até placas de reconstrução com vários parafusos (tabela 4).

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Na segunda etapa do estudo, os pacientes foram convocados para uma reavaliação clínica, funcional e radiográfica, tendo comparecido 45 dos 120 iniciais. No mesmo protocolo de revisão inicial dos prontuários e radiografias, eram registrados os dados referentes à reavaliação clínica e funcional dos pacientes que compareceram.

A avaliação clínico-funcional objetiva atual constou de: 1) medida goniométrica da mobilidade ativa e passiva; 2) avaliação da estabilidade da articulação glenoumeral pelos testes da gaveta anterior e posterior e do sinal do sulco; e 3) exame neurológico, pela avaliação da força muscular, dos reflexos e da sensibilidade. Em complementação, era feita uma avaliação subjetiva, com questões referentes a: 1) preservação da função após o acidente; 2) manutenção da atividade laborativa anterior ao acidente e, em caso negativo, se isso deveu-se ao trauma ou a outra causa; e 3) presença de dor e uso compulsório de analgésicos. O protocolo de avaliação foi aplicado aos 45 pacientes efetivamente reavaliados e cuja alta ambulatorial tivesse ocorrido há, no mínimo, um ano. Além da avaliação clínico-funcio-nal, todos os pacientes reavaliados foram submetidos também à avaliação radiográfica, nas incidências ântero-pos-terior e perfil verdadeiros e axilar.

RESULTADOS Dos 45 pacientes reavaliados, 36 eram homens e nove mulheres, com idade média de 35,39 anos (variação: 11 a 77 anos) e seguimento médio de 5,35 anos (variação: 13 meses a 13 anos). Vinte e dois pacientes eram trabalhadores braçais e os demais exerciam atividades leves. A Escala de Coma de

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Glasgow no atendimento inicial havia mostrado valor 15 em 31 pacientes, 14 em cinco pacientes, nove em dois, e sete e seis nos dois pacientes restantes, respectivamente. Foram detectadas 19 fraturas do corpo da escápula (sendo uma associada à fratura intra-articular tipo II e outra à fratura do acrômio), 19 fraturas do colo (sendo duas associadas à fratura do acrômio, uma à fratura do coracóide e outra à fratura do acrômio e coracóide), três fraturas intra-articulares tipo II, três fraturas intra-articula-res tipo III, duas fraturas do acrômio e quatro fraturas do processo coracóide. Quarenta pacientes haviam sido submetidos a tratamento incruento, como descrito anteriormente. Os cinco restantes foram submetidos a tratamento cirúrgico, como se segue: osteossíntese com placa de reconstrução AO de 3,5mm (fig. 1), para fratura do colo da escápula, por via posterior (um caso); parafuso de compressão interfragmentária, para fratura intra-articular tipo III da glenóide, por via anterior (um caso); osteossíntese com placa semitubular (1/3 de cana) de 3,5mm e parafuso de compressão interfragmentária (fig. 2), para fratura intra-articular tipo II da glenóide, por via posterior (um caso);

osteossíntese com placa semitubular (um terço de cana) de 3,5mm, para fratura do colo da escápula associada à fratura do acrômio (um caso); e artroplastia parcial tardia do ombro, para fratura do colo da escápula e acrômio, associada a fratura cominutiva da extremidade proximal do úmero (um caso).

Vinte e três desses pacientes foram vítimas de acidente automobilístico, oito de acidente motociclístico, seis de queda de altura, sete de atropelamento e um de crise convulsiva.

Avaliação subjetiva Na opinião dos próprios pacientes, 13 tiveram a função do ombro piorada, dentre eles, três submetidos a tratamento cirúrgico, sendo dois com fratura concomitante do colo da escápula e do acrômio (osteossíntese com placa semitubular e artroplastia, respectivamente) e um com fratura intra-articular tipo II da escápula (osteossíntese com parafuso de compressão interfragmentária) (fig. 2).

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Os dois outros pacientes de tratamento cirúrgico desse grupo, sendo um com fratura do colo da escápula (fixada com placa de reconstrução) (fig. 1), e o outro com fratura intra-articular tipo III (fixada com parafuso de compressão interfragmentária), não referiram qualquer prejuízo da função, o mesmo ocorrendo com os restantes 30 pacientes, todos de tratamento incruento (fig. 3).

Trinta e quatro pacientes mantiveram-se no mesmo tipo de trabalho após o trauma, tendo os demais mudado o tipo de atividade, três deles em conseqüência da fratura, dois dos quais haviam sido submetidos a tratamento cirúrgico. Os restantes mudaram de atividade por outros motivos que não a fratura.

Quanto à dor, 27 pacientes não apresentavam qualquer queixa. Cinco pacientes tinham dor mínima, 11 tinham dor aos esforços, sendo dois de tratamento cirúrgico, e dois tinham dor em repouso, inclusive aquele submetido à artroplastia. Sete pacientes, todos de tratamento incruento, faziam uso constante de analgésicos.

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Avaliação clínico-funcional

Diminuição da mobilidade do ombro foi observada em 13 pacientes, implicando limitação da abdução em quatro, da rotação interna em três e da rotação externa em outros três, e limitação concêntrica em três. Três dos pacientes desse grupo haviam sido tratados por método cirúrgico, inclusive aquele submetido à artroplastia, cuja mobilidade era a pior de todos (tabela 5).

Instabilidade do ombro foi diagnostica em três pacientes, dois dos quais haviam tido fratura do colo da escápula, um deles com fratura associada do acrômio. No terceiro, com fratura do corpo da escápula, a instabilidade era devi-da à lesão concomitante do plexo braquial, com o esperado desequilíbrio muscular (tabela 5).

O exame neurológico evidenciou diminuição da sensibilidade, nos territórios das raízes C5 e C6, em três pacientes. Diminuição da força muscular de abdução e rotação externa foi detectada em dois pacientes. Diminuição combinada da sensibilidade e da força muscular de abdução foi encontrada em outros dois, ambos com lesão do plexo braquial. Excetuando os pacientes com lesão do plexo braquial, não podemos afirmar com certeza que houve lesão neurológica específica, pois esta não foi confirmada por exame eletroneuromiográfico. Porém, a presença de alteração de sensibilidade é fortemente sugestiva. Os demais 38 pacientes não apresentavam qualquer prejuízo neurológico (tabela 5).

Quanto às lesões associadas, haviam sido diagnosticados no atendimento inicial pneumotórax (sete), fraturas de costelas ipsilaterais (12), contusão pulmonar (nove), fratura da clavícula ipsilateral (10), lesão

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do plexo braquial ipsilateral (duas), lesão arterial no membro superior ipsilateral (uma), traumatismo craniencefálico (13), outras lesões de membros superiores (10), fraturas dos membros inferiores (nove). Outras lesões (fraturas de coluna, traumas de face, trauma abdominal, fraturas de bacias, etc.) foram diagnosticadas em 27 casos.

DISCUSSÃO As fraturas da escápula são uma entidade relativamente rara no cômputo geral das fraturas, o que é confirmado pelo pequeno número de pacientes levantado (120) num período relativamente longo (18 anos), coincidindo com os achados de outros autores(1,5,7,9,11,12). Por outro lado, um número considerável de fraturas da escápula é diagnosticado quase fortuitamente, através da avaliação radiográfica de traumatismos do tórax(7), pois o paciente muitas vezes encontra-se clinicamente muito instável para ser avaliado adequadamente pela equipe ortopédica. Foi o que ocorreu com 18 dos casos da série inicial de 120 pacientes aqui analisada, fazendo com que a adequada avaliação ortopédica e radiográfica do ombro só pudesse ser realizada até duas semanas após o trauma. Esse fato aponta para a necessidade de levantar a suspeita sobre a fratura da escápula em todo paciente com história de trauma de alta energia na região do ombro e com achados clínicos de deformidade, equimose, dor à palpação e à movimentação, crepitação e diminuição da mobilidade ativa(1,7). A avaliação e o diagnóstico precoces dessas fraturas são muito importantes, pois o tratamento adequado deve ser rapidamente instituído, para que as seqüelas funcionais fiquem restritas ao mínimo possível.

Do mesmo modo que o diagnóstico de traumatismos torácicos altos deve levar à suspeita de fratura da escápula, que permanece, por assim dizer, escondida, o diagnóstico desta fratura deve levar à suspeita de lesão associada, que é freqüente e pode ser até de maior risco para a integridade do paciente, em vista do que este deve ser cuidadosamente (1,5,7,11,13). Nesse aspecto, os achados desta série fo-ram coincidentes com os da literatura(1), tendo sido observadas lesões comprometendo estruturas anatômicas vitais próximas, como contusão pulmonar, pneumotórax e fraturas de costelas, além de lesões mais distantes, como fraturas da clavícula, traumatismo craniencefálico e lesões dos demais membros. Essas lesões, obviamente, tendem a aumentar a morbidade e mortalidade dos pacientes, que não podem ser encarados como meros portadores de fraturas da escápula.

Um dado importante observado na presente série foi o envolvimento predominante de indivíduos jovens, do sexo masculino, na faixa etária dos 21 aos 45 anos (média: 34 anos), o que está de acordo com o mencionado na literatu-(3,5,6). Essa predominância é, de fato, esperada, pois esses indivíduos são os que mais se expõem aos traumatismos de alta energia, os quais acarretam também maior número de lesões associadas, fato igualmente confirmado nesta série, em que foram diagnosticadas mais de 150 lesões associadas, com apenas três pacientes apresentando fratura isolada da escápula. O valor dessa informação está ligado tanto ao aspecto médico da questão, dada a necessidade de maiores cuidados especializados, como ao aspecto econômico, visto o longo período de incapacidade do paciente para o trabalho.

Outro dado importante observado nesta série, e igualmente descrito na literatura(5,11), foi o grande número de fraturas causadas por traumatismos caracteristicamente de alta energia, mas envolvendo principalmente trabalhadores braçais. Estes estão tipicamente mais expostos aos traumatismos de maior energia na sua atividade profissional, mas sofreram em sua maioria traumatismos de natureza não profissional (como o atropelamento), o que permite concluir que as fraturas da escápula dificilmente resultam de acidentes do trabalho, exceto em casos como a queda de altura (comum em pedreiros).

Localmente, os problemas provenientes da fratura da escápula dependem da localização dos traços, presença de cominuição e desvios. Em algumas séries(3-6,11,12), as fraturas do corpo da escápula respondem por 65% a 90% dos casos, mas na presente série corresponderam a 37,3% dentre os 120 pacientes iniciais e a 40% (18 casos) dentre os 45 reavaliados. A maioria dos pacientes com fratura do corpo da escápula reavaliados apresentou diminuição parcial da mobilidade do ombro, embora sem dor na maioria deles (66%). A dor foi referida por 23 pacientes, sendo em repouso em três deles. Esse tipo de fratura responde satisfatoriamente à imobilização numa tipóia, seguida de fisioterapia para ganho de mobilidade(1,7), conforme observado nesta série. Nordqvist e Peterson(13) descrevem que, mesmo na presença de desvio considerável dos fragmentos, os pacientes não apresentam queixas importantes de perda da mobilidade ou de dor, sendo que cerca de 25% apresentam sintomas leves ou moderados no ombro afetado. Referem, também, haver relação entre a perda funcional e a deformidade radiográfica residual e a explicação para isso seria a perda da habilidade da escápula em deslizar livremente sobre a parede torácica, devido às irregularidades da superfície óssea e à fibrose que se segue à cicatrização dos

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músculos lesados. Sob essa visão, fraturas do corpo da escápula com desvios que produzam contato ou excessiva proximidade dos fragmentos com o gradeado costal, que possam resultar em atrito e conseqüente prejuízo funcional, deveriam ser reduzidas e fixadas. Contudo, existe a possibilidade de realizar a regularização da proeminência mais tarde, quando o problema aparecer. Dois dos pacientes com fratura do corpo da escápula apresentavam instabilidade do ombro (um deles por lesão do plexo braquial) e se queixavam também de dor, que foi, na realidade, a queixa mais freqüente nesse grupo (oito pacientes), com a característica de ser em repouso em dois deles.

Pacientes com fraturas desviadas do colo da escápula freqüentemente se queixam de fraqueza ao esforço envolvendo atividades com abdução do braço. O sítio mais co-mum de desconforto nesses pacientes é o espaço subacromial, visto que o colo se encurta e a cabeça umeral penetra por baixo do acrômio(7,13). Ada e Miller(7) descrevem que as queixas de fraqueza e dor no espaço subacromial são secundárias à lesão do manguito rotador. Com o desvio do fragmento colo-glenóide, o braço de alavanca normal do manguito rotador é perdido, devido à diminuição da capacidade mecânica dos músculos. Com o aumento da inclinação da face articular da glenóide, a força normalmente compressiva do manguito passa a ser de cisalhamento(7). Dentre os 20 pacientes portadores desse tipo de fratura reavaliados na nossa série, 15 não apresentavam redução da mobilidade, três mostravam redução parcial e dois, limitação acentuada.

Dentre os pacientes com fraturas do corpo da escápula, a redução na mobilidade do ombro ocorreu em quase to-dos os casos, levando à conclusão de que o comprometimento do manguito rotador nesses casos foi maior, talvez por aderência do invólucro muscular da escápula ou pelo desvio ocasionado pela fratura.

Fraturas da espinha da escápula são também associadas com aparente disfunção do manguito rotador(7), com fraqueza nas atividades em abdução por tempo prolongado, dor no espaço subacromial e dor noturna. Certo grau de lesão da musculatura do manguito rotador é suspeitada nessas fraturas, devido à cominuição e ao desvio dos fragmentos. Neviaser(10) chama a atenção para o problema imediato da pseudo-ruptura do manguito em pacientes com fraturas da escápula e atribui isso ao hematoma intramuscular, resultando em paralisia temporária. Na presente série, os casos de fraturas isoladas da espinha da escápula não foram considerados em separado, mas em conjunto com as fraturas do corpo ou do acrômio, dependendo do caso.

Fraturas intra-articulares da glenóide com desvio resultam em diminuição da mobilidade e dor aos movimentos. Como fator complicador, a maioria desses pacientes apresenta outras lesões importantes, que dificultam ou impedem o tratamento cirúrgico imediato. Por outro lado, eles tendem a melhorar gradualmente, com o uso de antiinflamatórios não-esteróides e fisioterapia, e recuperam, ao menos parcialmente, a mobilidade e a força muscular.

Fraturas do processo coracóide freqüentemente se associam com luxações da articulação acromioclavicular graus I e II(7). Nesta série houve três fraturas do tipo “ombro flutuante”, sendo que dois casos foram operados por osteossíntese da clavícula com placa de reconstrução de 3,5mm. As fraturas isoladas do processo coracóide foram poucas, não tendo sido observado prejuízo funcional motor ou sensitivo, nem instabilidade.

O tratamento cirúrgico das fraturas da escápula tem sido descrito por vários autores(2,7,14), que referem resultados bons a excelentes. Porém, nas maiores séries de pacientes relatadas, predominou o tratamento incruento(3,7,12,13). Certamente, a indicação de tratamento cirúrgico fica restrita a tipos muito específicos de fraturas, com a adição de outros fatores, como, por exemplo, os desvios e as falhas ósseas, principalmente nas fraturas intra-articulares. No caso das extra-articulares, Ada e Miller(7) propuseram o tratamento cirúrgico para fraturas do colo da escápula com desvio angular maior que 40o ou translação medial da superfície articular da glenóide maior que 1cm, complementando com fisioterapia precoce. Assim trataram oito pacientes, cujos resultados funcionais foram bons, visto terem alcançado 85° de abdução pura na articulação glenoumeral, com nenhum se queixando de dor noturna ou em repouso. Referiram, ainda, que os pacientes com fratura intra-articular da glenóide e da espinha da escápula associadas foram os que

apresentaram maiores problemas a curto e longo prazo, razão por que sugeriram que as indicações de tratamento cirúrgico devam ser estendidas a esses tipos de fraturas. No nosso grupo inicial de 120 pacientes, 13 haviam tido tratamento cirúrgico, por apresentar fraturas com desvio e ter condições clínicas para a cirurgia antes da consolidação. Porém, apenas cinco deles atenderam ao chamado para reavaliação

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e o resultado não parece ter sido satisfatório, pois, apesar de nenhum apresentar instabilidade, três se queixavam de dor, dois mostravam diminuição da mobilidade, sendo um caso de artroplastia do ombro, e dois tiveram que mudar de atividade profissional.

CONCLUSÃO Este estudo mostra que as fraturas de escápula decor-rem, em geral, de traumatismos de alta energia e associamse a várias lesões, mas tendem a evoluir bem. Os pacientes com sintomas persistentes são, em geral, os que sofreram traumatismos mais graves, casos em que o tratamento das lesões que levam a maior risco de vida deve ter prioridade. Em alguns casos, o tratamento cirúrgico pode levar à melhora dos resultados a longo prazo. Entretanto, a maioria dos casos tratados conservadoramente evoluiu com bom resultado. Uma classificação que considerasse as fraturas complexas da escápula, permitindo melhor comparação de resultados e determinação do prognóstico, seria interessante.

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