Freeman (1979)

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    IDEIAS FUNDADORAS

    Chris Freeman foi o primeiro professor que tive quando cheguei ao Science Policy

    Research Unit (SPRU), em agosto de 1981, para cursar o doutorado. Entretanto,

    a disciplina que eu fazia com ele, intitulada History, Philosophy and Perspectives of

    Science, no era em nvel de ps-graduao, mas sim oferecida aos estudantes de

    primeiro ano de graduao em cincias qumica, fsica e biologia da Universidade

    de Sussex, Inglaterra. Durante duas horas por semana, Chris Freeman falava a um

    auditrio com mais de 200 alunos sobre as relaes entre cincia e sociedade ao

    longo da histria e em como pensava que seria possvel construir essa relao no

    futuro, de modo que o mundo se tornasse mais justo e um lugar melhor para se viver.

    As aulas de graduao de Chris eram famosas na Universidade de Sussex, atraindo

    todos os estudantes de doutorado que chegavam ao SPRU. Logo entendi a razo

    para essa fama: a qualidade das suas aulas, a incrvel combinao de erudio com

    total ausncia de arrogncia e a capacidade de ilustrar argumentos cristalinos com

    casos do mundo real e corrente prendiam a ateno e o interesse de todos. Em

    meio a silncio absoluto e sem qualquer tipo de nota ou dispositivo, Chris expunha

    a narrativa que havia resultado de suas reflexes a respeito da extensa e variada

    literatura sobre os temas tratados, assim como de suas prprias pesquisas. Nesse

    processo, ficava clara sua posio antielitista no sentido estrito e amplo do termo,

    algo que certamente fazia parte de suas convices polticas.

    Mais tarde, identifiquei estas mesmas caractersticas nas aulas de ps-

    graduao que Chris ministrava, assim como nos inmeros seminrios e conferncias

    dele que tive o privilgio de presenciar. Entretanto, foi nas oportunidades em que no

    Apresentao

    La Velho

    Professora titular do Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica, da Universidade Estadual de Campinas

    Unicamp ([email protected])

    Revista Brasileira de Inovao, Rio de Janeiro (RJ), 9 (2), p. 215-230, julho/dezembro 2010

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    era o protagonista que ele mais me surpreendeu: Chris tinha essa incrvel capacidade

    de ser aberto e igual com todos, de destacar os pontos positivos da fala e do trabalho

    de todos, mas particularmente dos estudantes e dos pesquisadores jovens. Sempre

    me vem memria o dia em que ele se dirigiu a mim na hora do ch e perguntou,

    para meu desespero, sobre o que era minha tese. Essa total simplicidade no modo

    de comportamento e a ateno preferencial aos alunos marcaram profundamente a

    viso que tenho at hoje de Chris Freeman.

    Como algum que foi para o SPRU na tentativa de incorporar referenciais

    que pudessem ser aplicados no dia-a-dia de um Conselho de pesquisa como o

    CNPq, eu notava, com grande satisfao, que Chris defendia a noo de que a

    pesquisa uma forma de interveno, cujo objetivo no apenas compreender o

    mundo, mas tambm mud-lo, revelando sua aderncia ideia marxista de que

    possvel combinar teoria e prtica. Neste aspecto, como se sabe, ele foi grandemente

    influenciado pelo trabalho de JD Bernal sobre a natureza da cincia e das cincias

    sociais.

    O foco de Chris na interveno se revela tambm na sua deciso de criar

    uma unidade preocupada em gerar subsdio para a tomada de deciso em Poltica

    Cientfica e Tecnolgica, e no uma que apenas realizasse estudos sobre C&T. Chris

    instituiu, modelou e, por muitos anos de 1966 a 1982, tendo se aposentado

    formalmente em 1986 , dirigiu a Science Policy Research Unit, que, nas dcadas

    de 1970 e 1980, era a principal instituio neste campo no mundo. O SPRU serviu

    de referncia para vrias unidades nos mais diferentes pases, inclusive para o nosso

    Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica da Unicamp. Nesse processo

    de institucionalizar a rea de estudos sobre pesquisa e inovao e poltica, Chris

    tambm fundou e editou por 30 anos a revista Research Policy, estabelecendo-a como

    o principal peridico da rea.

    O final dos anos 1970 e a dcada de 1980 foram tempos difceis na

    Europa em geral, mas instigantes no SPRU em particular. Eram muitas as questes

    controvertidas naquele momento envolvendo as relaes entre cincia, tecnologia

    e sociedade. Uma delas dizia respeito s explicaes e medidas para reverter o

    desemprego crescente em todos os pases europeus e era importante entender as

    razes e origem do problema. A sabedoria convencional e um sem nmero de

    estudiosos atribuam uma culpabilidade pelo desemprego inovao tecnolgica,

    o que era ferozmente contestado por Freeman, que argumentava a ocorrncia de

    uma quebra estrutural no crescimento do pleno emprego.

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    Muitas ideias novas sobre produo de conhecimento e inovao

    tecnolgica estavam sendo desenvolvidas por Chris e outros pesquisadores que se

    encontravam no SPRU naquele perodo. Logo nas primeiras semanas de aula em

    1981, em um seminrio interno, o prof. Chris Freeman apresentou a teoria que

    estava desenvolvendo em parceria com Carlota Perez sobre ciclos de crescimento

    econmico que se iniciam a partir de inovaes radicais difundidas na economia, em

    que tomava emprestadas algumas ideias de Schumpeter e dos ciclos de Kondratiev.

    Outros pesquisadores que so hoje reconhecidos como pioneiros da moderna

    economia da tecnologia tambm estavam desenvolvendo seus trabalhos no SPRU

    naquela poca, tal como Giovanni Dosi, um doutorando considerado brilhante que

    havia aplicado o conceito de paradigma cientfico desenvolvido por Thomas Khun

    inovao tecnolgica na indstria. Dosi, na verdade, conseguiu publicar sua ideia

    central em 1982 (Dosi, G. Technological paradigms and technological trajectories:

    a suggested interpretation of the determinants and directions of technical change,

    Research Policy 11(3): 147-162), antes que Chris publicasse sua noo de sistema

    nacional de inovao (ainda que as ideias de ambos sejam complementares e no

    concorrentes, o fato de Dosi ter publicado e Freeman ainda no foi comentrio

    nos corredores do SPRU naquela poca e, de certa forma, revela caractersticas de

    cada um).

    O mais relevante aqui que o fato de que ideias novas e revolucionrias

    estavam em gestao na instituio no incio da dcada de 1980, quando l

    cheguei. Ainda que eu, na poca, no tivesse dimenso do que aquela atividade

    intelectual toda significaria para a rea de estudos da C&T, vivi e estudei neste

    ambiente efervescente e acompanhei os debates nos seminrios semanais, o que

    deixou marcas profundas na minha formao. Usando uma metalinguagem, pode-

    se dizer que testemunhei o surgimento de novos paradigmas tanto em economia

    da inovao quanto em sociologia da cincia, e talvez por isso, hoje, sou to adepta

    dos estudos de controvrsia em C&T. Mais que tudo, o que ficou claro para mim, e

    j desde os tempos de doutoranda, que concepes diferentes sobre como se d a

    produo de conhecimento cientfico e sua incorporao nas atividades de inovao

    tecnolgica informam polticas diferenciadas de C&T. E exatamente desta questo,

    ou controvrsia, que trata o artigo de Freeman publicado neste nmero da Revista

    Brasileira de Inovao.

    Chris apresenta a controvrsia sobre os determinantes da direo e escala

    da atividade cientfica e inventiva nas sociedades industriais contemporneas que,

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    em meados da dcada de 1970, enchia pginas das principais revistas acadmicas da

    rea. Os proponentes da viso at ento dominante e conhecida como science push

    ou teoria ofertista argumentavam que so os resultados da pesquisa bsica que

    permitem, em ltima instncia, mudanas nos processos de produo e geram novos

    produtos. J os oponentes defendiam a posio de que era o mercado a principal

    fonte de influncia para a atividade inventiva, razo pela qual essa viso referida

    como demand pull.

    Vrios autores escreveram sobre este debate, mas Chris Freeman foi

    provavelmente o nico que, j na dcada de 1970, percebeu e apontou duas

    importantes caractersticas das controvrsias tcnico-cientficas, em geral, e desta,

    em particular. A primeira diz respeito ao papel dos interesses dos grupos sociais

    relevantes no alinhamento destes aos diferentes lados do debate. Neste sentido,

    ele aponta que no de se surpreender que estudos coordenados pela National

    Science Foundation tenham encontrado resultados que reforam a ideia de science

    push, enquanto aqueles desenhados pelos departamentos de governo orientados para

    misso encontraram evidncias para a demanda de mercado. Mais significativa ainda

    a concluso de Chris de que no h manipulao de resultados de nenhum dos

    lados, mas sim a constatao de que interesses modelam as perguntas que so feitas,

    a maneira de buscar informaes para responder a elas, assim como a interpretao

    dos resultados encontrados. Tal percepo de Chris tpica dos estudos sociolgicos

    modernos da cincia e evidencia a abrangncia de sua anlise interdisciplinar.

    A segunda observao peculiar de Chris sobre a controvrsia em questo

    refere-se ao poder de persuaso dos dados quantitativos na nossa cultura cientfica.

    Ele argumenta que uma das razes pelas quais os defensores da viso demand pull

    estavam ganhando terreno no debate era porque os estudos que realizavam tinham

    uma base emprica quantitativa que lhes conferia uma aparncia de [...] apoio

    estatstico. E isto, segundo ele, a despeito de que poucos destes estudos apontavam,

    de maneira no ambgua para a concluso simples de que a demanda do mercado

    a nica ou mesmo a principal determinante da escala e da direo da atividade

    inventiva ou inovativa (p. 207). Assim, Chris antecipou uma crtica metodolgica

    hoje comum nos estudos sociais da C&T de que resultados quantitativos de pesquisas

    diferentes, produzidos por bases de dados diferentes e at mesmo incompatveis

    quanto s premissas conceituais, so frequentemente citados em conjunto, como se

    a somatria deles fornecesse evidncia slida e fosse estatisticamente vlida.

    Situada a controvrsia, Chris Freeman defende o argumento de que

    as coisas so muito mais complexas do que cada uma das proposies consegue

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    captar. Para dar conta desta complexidade, ele apresenta resultados empricos que

    combinam sries histricas de estatsticas de patentes, e sries paralelas de estatsticas

    de publicao de artigos cientficos em diferentes pases. A anlise revela a fragilidade

    explicativa de ambos os lados da controvrsia, levando-o a concluir que a interao

    entre cincia, tecnologia e economia varia na sua natureza e intensidade com o

    tempo e entre diferentes indstrias. [...] Isto torna mais difcil qualquer previso,

    j que no existe escapatria para a tarefa extremamente complexa de combinar

    previso social com tecnolgica e nem se pode evitar reconhecer as limitaes das

    tcnicas economtricas extrapolativas (p. 215). Chris Freeman, na dcada de 1970

    como os novos socilogos da cincia e da tecnologia hoje , reconhece que o acaso

    (ou as contingncias, como preferem os novos socilogos da cincia) tem um papel

    muito maior na sobrevivncia e no crescimento competitivo do que confortvel

    admitir (p. 206)

    Em suma, esto delineados no artigo que se apresenta os primrdios do que

    viria a se constituir em uma das mais influentes contribuies intelectuais de Chris

    Freeman a noo de sistemas de inovao. Na viso de Chris, novas tecnologias

    no so invenes isoladas elas envolvem um conjunto de inovaes tecnolgicas e

    organizacionais inter-relacionadas. J neste artigo, ele se refere a todos os elementos

    empresas, universidades e outros atores, juntamente com tradies, conhecimento

    (expertise) acumulado e contexto poltico que produzem mudana tcnica em

    cada economia nacional. Esta concluso de Chris Freeman alentadora para os

    tomadores de deciso, j que permite um amplo espao para interveno, que

    exatamente a razo pela qual ele estudava as atividades cientficas e inventivas.

    O melhor tributo que podemos prestar a Chris Freeman , parafraseando o

    que diz neste artigo com respeito a Schmookler, dedicar-nos a ampliar as fronteiras

    dos estudos de inovao com o mesmo nvel de honestidade intelectual, humildade

    e senso de justia que ele incorporava.

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