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FREITAS, Paulo Springer. Agenda Legislativa Para o Desenvolvimento Nacional. Salário Mínimo e Mercado de Trabalho No Brasil

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  • AGENDALegislativa

    para o Desenvolvimento Nacional

    C. Alexandre A. RochaCarlos Henrique Tom

    Clarita Costa MaiaFernando B. Meneguin

    Fernando Lagares TvoraFlvia Santinoni Vera

    Gabrielle Tatith PereiraGilberto Guerzoni Filho

    Gustavo TaglialegnaJarbas Barbosa

    Joanisval Brito GonalvesJoo Monlevade

    Joo Bosco B. BonfimLus Otvio B. GraaLusa CardosoLuiz Renato VieiraMarcos MendesMarcus PeixotoPaulo R. A. ViegasPaulo Springer FreitasRafael Silveira e SilvaRoberta AssisTarciso Dal Maso JardimTatiana BrittoVictor Carvalho Pinto

    Organizador: Fernando B. MeneguinCapa: Ana Marusia P. Lima Meneguin

  • SENADO FEDERAL

    CONSULTORIA LEGISLATIVABruno Dantas Consultor-Geral

    CONSULTORIA DE ORAMENTOSOrlando de S Cavalcante Neto Consultor-Geral

    CENTRO DE ESTUDOS DA CONSULTORIAFernando B. Meneguin Diretor

    Criado pelo Ato da Comisso Diretora no 09, de 2007, o Centro de Estudosda Consultoria do Senado Federal tem por objetivo aprofundar o entendimento de temas relevantes para a ao parlamentar.

    Contato: [email protected]

    URL: http://www.senado.gov.br/conleg/centroaltosestudos1.html

    O contedo deste trabalho de responsabilidade dos autores e no representa posicionamento oficial do Senado Federal.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    ISBN: 978-85-7018-353-8

    Agenda legislativa para o desenvolvimento nacional / C. Alexandre A. Rocha [et al.] ; organizador, Fernando B. Meneguin ; capa, Ana Marusia Pinheiro Lima Meneguin. Braslia : Senado Federal, Subsecretaria de Edies Tcnicas, 2011.

    524 p.

    1. Poltica pblica, Brasil. 2. Poltica agrria, Brasil. 3. Poltica econmica, Brasil. 4. Poltica social, Brasil. I. Rocha, C. Alexandre A. II. Ttulo.

    CDD 320

  • AGENDA LEGISLATIVA PARA O DESENVOLVIMENTO NACIONAL

    A Consultoria Legislativa do Senado Federal promove a publicao de uma coleo de 26 artigos sobre polticas pblicas, escritas por consul-tores legislativos, consultores de oramento e advogados do Senado. uma contribuio valiosa para quem queira compreender estes temas to variados, que se dividem em seis reas: Agricultura e Meio Ambiente, Infraestrutura, Marcos Legais, Oramento e Setor Pblico, Polticas Sociais e Trabalho e Previdncia. O comeo de uma nova legislatura torna ainda mais oportuno o debate sobre estes temas, tratados com originalidade e forte embasamento no funcionamento do Senado Federal, que os autores conhecem em profundidade pelas prprias circunstncias funcionais.

    Os assuntos fazem parte da pauta legislativa, mas alguns tratam de mat-ria urgente e polmica, como o trabalho de Gustavo Taglialegna sobre a reforma do Cdigo Florestal e o de Gilberto Guerzoni sobre a reforma da Previdncia Social. Todos os leitores, mas sobretudo os legisladores, tm nesta coletnea uma oportunidade de conhecer reflexes abalizadas e aprofundar seu conhecimento.

    Cumprimento os autores pela contribuio e aos editores pela concepo; e agradeo a todos pelo trabalho.

    Senador Jos SarneyPresidente do Senado Federal

  • Sumrio

    PARTE I AGRICULTURA E MEIO AMBIENTE

    Mudana do clima: desafios ao desenvolvimentoCarlos Henrique Rubens Tom Silva 11

    tica e pragmatismo: o dielma dos organismos geneticamente modificados (OGM) e o papel do ParlamentoFernando Lagares Tvora 35

    Reforma do Cdigo Florestal: busca do equilbrio entre a agricultura sustentvel e a preservao do meio ambienteGustavo Henrique Fideles Taglialegna 53

    Extenso rural no mundo e no Brasil: descentralizao, privatizao e financiamentoMarcus Peixoto 65

    PARTE II INFRAESTRUTURA

    Agenda legislativa para o setor de transportesVictor Carvalho Pinto 93

    Infraestrutura de transportes em grandes eventos esportivos: Copa do Mundo e Olimpadas no BrasilPaulo Roberto Alonso Viegas 119

    Do Estatuto da Cidade ao Cdigo de UrbanismoVictor Carvalho Pinto 145

    PARTE III MARCOS LEGAIS

    O controle das parcerias pblico-privadasC. Alexandre A. Rocha 163

    O poder-dever de reviso das questes de poltica externa pelo ParlamentoClarita Costa Maia 177

    Consequncias do Direito brasileiro para o empreendedorismoFlvia Santinoni Vera 213

    Financiamento de campanhas eleitorais: reflexes e alternativas possveis para a reforma polticaGabrielle Tatith Pereira 237

    O que fazer com nossos espies? Consideraes sobre a atividade de inteligncia no BrasilJoanisval Brito Gonalves 259

  • Condicionantes impostas pelo Congresso Nacional ao Executivo federal em matria de celebrao de tratadosTarciso Dal Maso Jardim 281

    PARTE IV ORAMENTO E SETOR PBLICO

    Rateio do FPE: problemas passados e riscos futurosC. Alexandre A. Rocha 299

    Controle jurisdicional do processo legislativo oramentrioLus Otvio Barroso da Graa 323

    Oramento da Unio: instrumento para a igualdade de gnero e para o desenvolvimentoLusa Cardoso Guedes de SouzaFlvia Santinoni Vera 343

    Poltica de pessoal do Governo Federal: diretrizes para maior produtividade, qualidade, economicidade e igualdadeMarcos Mendes 359

    Conselho Monetrio Nacional como condicionante da independncia do Banco Central Rafael Silveira e Silva 387

    PARTE V POLTICAS SOCIAIS

    Desafios para a consolidao do Sistema nico de SadeJarbas Barbosa da Silva Jnior 411

    Plano Nacional de Educao 2011-2020: um esboo Joo Antnio Cabral de Monlevade 423

    Agenda legislativa para a culturaJoo Bosco Bezerra BonfimLuiz Renato Vieira 437

    O programa Bolsa Famlia caminhos futurosTatiana Britto 449

    PARTE VI TRABALHO E PREVIDNCIA

    O funcionamento do mercado de trabalho e as polticas pblicas para a criao de empregoFernando B. Meneguin 469

    Entre dficits, injustias e perdas: a Reforma da Previdncia Social no Brasil e seus mitosGilberto Guerzoni Filho 483

    Salrio mnimo e mercado de trabalho no BrasilPaulo Springer de Freitas 499

    Reforma trabalhista: caminhos e descaminhosRoberta Maria Corra de Assis 519

  • PARTE IAGRICULTURA EMEIO AMBIENTE

  • MUDANA DO CLIMADESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO

    CARLOS HENRIQUE RUBENS TOM SILVA

    Consultor Legislativo do Senado Federal para as reas de Meio Ambiente e Cincia e Tecnologia. Engenheiro Civil (UnB, 1995). Bacharel em Direito

    (UnB, 2007). Especialista em Geotecnia (UnB, 1997). Especialista em Relaes Internacionais (UnB, 2009). Mestrando em Relaes Internacionais (UnB).

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    1. IntroduoO Relatrio Stern classifica a mudana global do clima como a maior e mais abrangente falha de mercado jamais vista1 2. O Relatrio de Desenvolvimento Humano 2007/2008, elaborado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), afirma que essa a questo central do desenvolvimento humano para a nossa gerao3. A complexidade do problema, a abrangncia temtica das suas causas e consequncias, o horizonte temporal das suas implicaes e a natureza verdadeiramente global da mudana do clima sugerem que o tema permanecer nas agendas internacional e domstica por muitos e muitos anos.

    O objetivo deste trabalho apresentar alguns dos desafios ao desenvolvimento impos-tos pela mudana global do clima. Mas, o que se deve entender por desenvolvimento? Podemos insistir em um modelo de crescimento que explora de forma predatria os recursos naturais e promove a excluso social? possvel continuar a considerar a na-tureza como um obstculo a ser removido na busca pelo crescimento econmico? E o que mudana do clima? Quais suas causas e suas consequncias? O que tem sido feito e o que necessrio fazer para combat-la? Quais os custos envolvidos nesse combate e, mais importante, quais os custos da inao?

    Segundo a concepo adotada neste artigo, o desenvolvimento consiste numa transfor-mao qualitativa das condies de vida de um povo, que alia viabilidade econmica, sustentabilidade ambiental e justia social. O simples crescimento econmico induz mudanas meramente quantitativas, normalmente associadas a desigualdades sociais e degradao ambiental. A mudana do clima amplifica a vulnerabilidade de populaes carentes e de ecossistemas frgeis. Nesse contexto, as alteraes climticas ameaam corroer a liberdade e limitar o poder de escolha das pessoas, aspectos fundamentais do conceito de desenvolvimento adotado pelas Naes Unidas4.

    Este trabalho composto de quatro itens, alm desta breve introduo. No item 2 apresentamos o conceito de desenvolvimento, com base, fundamentalmente, nas concepes de Ignacy Sachs e Jos Eli da Veiga, alm daquelas esboadas no Relatrio Brundtland, da Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e no Re-latrio de Desenvolvimento Humano 2007/2008, do PNUD.

    No item 3, buscamos reunir algumas informaes bsicas a respeito da mudana global do clima. Para identificar suas causas e consequncias, nos valemos dos Sumrios para Formuladores de Polticas que integram o Quarto Relatrio de Avaliao (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudana do Clima (IPCC). Embora publicado em 2007 e alvo de recentes crticas, o AR4/IPCC continua a ser a mais confivel fonte de dados a respeito das alteraes climticas. Nossas consideraes sobre os aspectos econmicos da mu-dana do clima tomam por base o Relatrio Stern, publicado em 2006 e que constitui o estudo mais abrangente sobre os custos associados ao fenmeno. Ainda no item 3, apresentamos as linhas gerais dos principais documentos destinados a instituir um regime internacional de mudana do clima: a Conveno-Quadro das Naes Unidas

    1 STERN, 2006a, p. 1.2 Cabe lembrar que a expresso falha de mercado utilizada em situaes em que a economia de

    mercado, por si s, fracassa em alocar os recursos escassos com eficincia e, portanto, no suficiente para fazer frente a determinado problema. Ou seja, para enfrentar esse desafio, o mundo ter de adotar medidas que, em algum grau, desafiam o paradigma econmico liberal, a economia de mercado.

    3 PNUD, 2007, p. 1.4 Idem.

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    TE I sobre Mudana Global do Clima (CQNUMC) e o Protocolo de Quioto. Alm disso, des-

    crevemos brevemente o atual estgio das negociaes internacionais para o segundo perodo de compromisso do Protocolo.

    Os principais desafios ao desenvolvimento impostos pelas alteraes climticas so descritos no item 4. Para tanto, utilizamos como fonte bsica o Relatrio de Desenvol-vimento Humano 2007/2008, publicado pelo PNUD sob o ttulo Combater as Alteraes Climticas: Solidariedade Humana num Mundo Dividido. Finalmente, o item 5 traz algumas consideraes finais, na tentativa de ressaltar aspectos que consideramos fundamentais para o enfrentamento da mudana do clima tanto no mbito da mitigao como no da adaptao, nas esferas internacional e domstica.

    2. Desenvolvimento: viabilidade econmica, sustentabilidade ambiental e justia socialNa busca por uma definio aceitvel do que seja desenvolvimento, alguns extremos devem ser evitados. Em primeiro lugar, ele no pode ser considerado uma reles iluso, crena, mito ou manipulao ideolgica5. Tambm no deve ser amesquinhado como [sinnimo de] crescimento econmico6. Alm disso, preciso encontrar um caminho intermedirio entre o fundamentalismo ecolgico e o economicismo arrogante7. Esse caminho do meio, o desenvolvimento sustentvel, fundamenta-se em trs pilares igual-mente importantes: relevncia social, prudncia ecolgica e viabilidade econmica8.

    H quem defenda o carter ilusrio do desenvolvimento. Alguns dos partidrios dessa ideia argumentam que existe pouca virtualmente nenhuma mobilidade ascendente na rgida hierarquia da economia capitalista mundial. Poucos pases perifricos teriam condies de se tornar emergentes e poucos destes poderiam alcanar o ncleo org-nico do sistema, formado pelos pases centrais do capitalismo mundial. Desse modo, considerado o acmulo de riqueza como critrio nico para o avano econmico de um nmero significativo de pases rumo ao centro do sistema, o desenvolvimento seria uma iluso9. Entretanto, por mais convincentes que possam ser alguns desses esforos de desconstruo da ideia de desenvolvimento, nunca chegam a apontar para uma verdadeira alternativa ao desejo coletivo de evoluo e progresso10.

    Por outro lado, reduzir o conceito de desenvolvimento a mero crescimento econmico, normalmente medido apenas em termos de renda per capita ou Produto Interno Bruto (PIB), significa ignorar diversas variveis importantes, como, por exemplo, aquelas re-lacionadas ao acesso da populao a educao e sade. Forte debate internacional a esse respeito surgiu a partir da constatao de que o intenso crescimento econmico ocorrido durante a dcada de 1950 em diversos pases semi-industrializados (entre os quais o Brasil) no se traduziu necessariamente em maior acesso de populaes pobres a bens materiais e culturais, como ocorrera nos pases considerados desenvolvidos11.

    A expresso desenvolvimento sustentvel, por seu turno, foi cunhada, em 1987, como um conceito poltico e um conceito amplo para o progresso econmico e social12

    5 VEIGA, 2008, p. 17.6 Idem, p. 18.7 SACHS, 2002, p. 52.8 Idem, p. 35.9 VEIGA, 2008, pp. 21-22.10 Idem, p. 27.11 Idem, p. 19.12 Idem, p. 113.

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    pelo Relatrio da Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tambm conhecido como Relatrio Brundtland. O que fez surgir essa expresso foi o debate principalmente americano, na dcada de 1960 que polarizou crescimento econmico versus preservao ambiental, temperado pelo temor da exploso demogrfica e pelo perigo de guerra nuclear13.

    Segundo o Relatrio Brundtland, desenvolvimento sustentvel aquele que atenda s necessidades do presente sem comprometer a capacidade das geraes futuras atende-rem tambm s suas14. Para a Comisso, [n]o mnimo, o desenvolvimento sustentvel no deve por em risco os sistemas naturais que sustentam a vida na Terra: a atmosfera, as guas, os solos e os seres vivos15. Alm disso, afirma o relatrio, o desenvolvimento sustentvel , em essncia, um processo de transformao no qual a explorao dos recursos, a direo dos investimentos, a orientao do desenvolvimento tecnolgico e a mudana institucional se harmonizam e reforam o potencial presente e futuro, a fim de atender s necessidades e aspiraes humanas16.

    Desse modo, tica imperativa da solidariedade com a gerao atual (solidariedade sincrnica) somou-se a solidariedade com as geraes futuras (solidariedade diacrnica) e, para alguns, o postulado tico de responsabilidade para com o futuro de todas as espcies17. O contrato social no qual se baseia a governabilidade de nossa sociedade deve ser complementado por um contrato natural18.

    O desenvolvimento sustentvel impe a explicitao de critrios de sustentabilidades social e ambiental e de viabilidade econmica. Esse trip define e sustenta o imperativo tico da solidariedade com as geraes presentes e futuras. Apenas as solues que considerem esses trs elementos, isto , que promovam o crescimento econmico com impactos positivos em termos sociais e ambientais, merecem a denominao de desenvolvimento19.

    O Quadro 1 indica qualitativamente os tipos de impactos se positivos (+) ou negativos () associados s diversas formas de crescimento.

    Embora a expresso desenvolvimento sustentvel tenha sido cunhada somente em 1987, a abordagem fundamentada na harmonizao de objetivos sociais, ambientais e econmicos foi forjada com a primeira grande conferncia internacional sobre meio ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972. Desde ento, permanece inalterada e ainda vlida na recomendao da utilizao de oito critrios distintos de sustentabilidade parcial: social, cultural, ecolgico, ambiental, territorial, econmico, poltico nacional e poltico internacional. No que se refere s dimenses ecolgica e ambiental, os objetivos de sustentabilidade so: i) preservao do potencial da natureza para a produo de

    13 Idem, p. 114.14 CMMAD, 1991, p. 9.15 Idem, p. 48.16 Idem, p. 49.17 SACHS, 2002, p. 49.18 Volta natureza! Isto significa: ao contrato exclusivamente social juntar o estabelecimento de um

    contrato natural de simbiose e de reciprocidade onde a nossa relao com as coisas deixaria domnio e posse pela escuta admirativa, pela reciprocidade, pela contemplao e pelo respeito, onde o conhecimento no mais suporia a propriedade nem a ao a dominao, nem estas os seus resultados ou condies estercorrias. Contrato de armistcio na guerra objetiva, contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita nosso estatuto atual condena morte aquele que pilha e que habita, sem tomar conscincia de que no final condena-se a desaparecer (SERRES, 1991, p. 51).

    19 SACHS, 2008, p. 36.

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    recursos renovveis; ii) limitao do uso de recursos no renovveis; iii) respeito e realce para a capacidade de autodepurao dos ecossistemas naturais20.

    A partir da publicao do Relatrio Brundtland, afirmou-se um intenso processo de legi-timao e institucionalizao normativa do desenvolvimento sustentvel como, simul-taneamente, maior desafio e principal objetivo das sociedades contemporneas21.

    A vagueza com que foi formulado o conceito parece ser o principal fator para a acei-tao do desenvolvimento sustentvel como objetivo virtualmente universal. A ideia de conciliar crescimento econmico com sustentabilidade ambiental e justia social passou, assim, a servir a interesses diversos. De nova tica do comportamento huma-no, passando pela proposio de uma revoluo ambiental at ser considerado um mecanismo de ajuste da sociedade capitalista (capitalismo soft), o desenvolvimento sustentvel tornou-se um discurso poderoso promovido por organizaes internacio-nais, empresrios e polticos, repercutindo na sociedade civil internacional e na ordem ambiental internacional22.

    A concepo de desenvolvimento sustentvel foi em parte encampada pelo PNUD. Em 1990, quando o Programa elaborou o primeiro Relatrio do Desenvolvimento Humano, o crescimento da economia j passara a ser entendido por muitos analistas como ape-nas um dos elementos de um processo maior, j que seus resultados no se traduzem automaticamente em benefcios para a populao. Percebera-se a importncia de refletir sobre a natureza do desenvolvimento a que se almejava23.

    De acordo com o PNUD, desenvolvimento refere-se especialmente possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolheram, e com a proviso dos instrumentos e das oportunidades para fazerem suas escolhas24. Para aprimorar a medio do desen-volvimento segundo esse critrio, o Programa instituiu o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH).

    O IDH um ndice composto que afere a mdia de metas alcanadas por um pas em trs dimenses bsicas do desenvolvimento humano: uma vida longa e saudvel, acesso educao e condies de vida condignas. Estas dimenses bsicas so medidas pela esperana de vida ao nascer, pela alfabetizao entre os adultos e pela escolarizao combinada nos nveis primrio, secundrio e superior, bem como pelo PIB per capita

    20 Idem, pp. 54 e 85-88.21 VEIGA, 2008, p. 113.22 RIBEIRO, 2008, p. 113.23 VEIGA, 2008, p. 32.24 Idem, p. 81.

    Impactos

    Econmicos Sociais Ecolgicos

    Crescimento desordenado +

    Crescimento socialmente benigno + +

    Crescimento ambientalmente sustentvel + +

    Desenvolvimento sustentvel + + +

    Quadro 1 Impactos associados s formas de crescimento*

    * SACHS, 2002, p. 36.

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    Paridade de Poder de Compra (PIB/PPC). O ndice construdo com base em indicadores disponveis globalmente, usando metodologia simples e transparente, constituindo um importante instrumento para monitorar tendncias de longo prazo no desenvolvimento humano. Trata-se de uma alternativa poderosa ao PIB per capita, frequentemente utili-zado como medida sumria do bem-estar humano25.

    Obviamente, o crescimento econmico um fator de suma importncia para o desenvol-vimento. Contudo, no crescimento a mudana quantitativa, enquanto no desenvolvi-mento ela qualitativa. Os dois conceitos so intimamente ligados, mas no podem ser considerados sinnimos. As polticas de desenvolvimento devem ser estruturadas por valores que no apenas os da dinmica econmica26. Embora necessrio, o crescimento econmico deve ser socialmente receptivo e implementado por mtodos favorveis ao meio ambiente, em vez de favorecer a explorao predatria do capital natural27.

    Historicamente, o desenvolvimento tem sido uma exceo e no a regra. Ele no re-sultado espontneo da livre interao das foras de mercado. Os fundamentalistas do mercado consideram implicitamente o desenvolvimento como algo redundante. Ele seria uma decorrncia natural do crescimento econmico, graas ao efeito cascata (trickle-down-effect). Essa teoria, contudo, seria totalmente inaceitvel do ponto de vista tico, at mesmo se funcionasse na prtica, o que no o caso. Num mundo de enormes desigualdades, absurdo pretender que os ricos precisem acumular ainda mais riqueza, para que os pobres se tornem um pouco menos necessitados. Sob essa tica, os mercados so apenas mais uma entre as vrias instituies que participam do processo de desenvolvimento28.

    A conquista do desenvolvimento sustentvel um objetivo que desafia tanto pases do Norte como do Sul. Ele requer estratgias complementares entre pases ricos e pobres. Evidentemente, os padres de consumo no Norte abastado no insustentveis. O enverdecimento do Norte implica uma mudana no estilo de vida, lado a lado com a revitalizao dos sistemas tecnolgicos. No Sul, a reproduo dos padres de consumo do Norte em benefcio de uma pequena minoria resultou em uma apartao social. Na perspectiva de democratizao do desenvolvimento, o paradigma necessita ser completamente mudado29.

    3. Mudana do clima: diagnstico, perspectivas e solues3.1. Mudana climtica ou mudana do clima?

    Preliminarmente, parece-nos til distinguir as expresses mudanas climticas e mudanas do clima, frequentemente utilizadas como sinnimas. Segundo a CQNUMC, mudana do clima significa uma alterao do clima que possa ser direta ou indiretamente atribuda atividade humana, que altere a composio da atmosfera mundial e que se some quela provocada pela variabilidade climtica natural observada ao longo de perodos comparveis30. Para o IPCC, a expresso mudanas climticas refere-se a

    25 PNUD, 2007, pp. 227-229.26 VEIGA, 2008, p. 56.27 SACHS, 2002, p. 52.28 VEIGA, 2008, p. 80.29 SACHS, 2002, p. 58.30 ONU, 1992, p. 5.

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    TE I qualquer mudana no clima ocorrida ao longo do tempo, quer se deva variabilidade

    natural, quer seja decorrente da atividade humana31.

    A distino fundamental reside, portanto, na natureza das causas da alterao das con-dies do clima: mudanas climticas referem-se a alteraes naturais e s provocadas pela ao humana, ao passo que mudanas do clima dizem respeito apenas quelas determinadas, direta ou indiretamente, pelo homem, desconsiderada, portanto, a variabilidade natural.

    Basicamente, a variao na radiao solar a causa natural que interfere no equilbrio do sistema climtico. Entre as causas antrpicas (geradas pelo homem) para essa alterao figuram as mudanas nas concentraes de gases de efeito estufa e de aerossis na atmosfera e as modificaes das propriedades da superfcie terrestre32.

    3.2. Causas e consequncias da mudana do clima

    No perodo de doze anos entre 1995 e 2006, onze deles esto entre os mais quentes des-de 1850, quando se iniciou o registro da temperatura da superfcie global. A tendncia linear de aquecimento ao longo dos ltimos 50 anos quase o dobro da dos ltimos 100 anos; ou seja, o aquecimento global inequvoco e vem ocorrendo segundo um ritmo cada vez mais acelerado. Alm do aumento das temperaturas mdias globais do ar e dos oceanos, verifica-se o derretimento generalizado de neve e gelo e a elevao do nvel mdio global do mar33.

    Segundo o Quarto Relatrio de Avaliao do IPCC, o efeito estufa constitui um fen-meno natural pelo qual parcela da energia solar que incide sobre o Planeta retida pela atmosfera, o que possibilita a manuteno das condies necessrias vida. Esse processo, no entanto, vem se intensificando perigosamente, devido a modificaes na composio da atmosfera causadas por atividades humanas34. As modificaes advm do acmulo de gases de efeito estufa (GEE)35 desde o incio da era industrial, decorrente da queima de combustveis fsseis, da remoo da cobertura vegetal, da decomposio do lixo e de prticas inadequadas na agricultura e na indstria36.

    O Painel avalia que a temperatura mdia global aumentar entre 1,1oC (limite inferior do cenrio mais otimista) e 6,4oC (limite superior do cenrio mais pessimista). Em decor-rncia do aquecimento, o nvel dos oceanos poder subir de 0,18m (limite inferior do cenrio mais otimista) a 0,59m (limite superior do cenrio mais pessimista). Estima-se que, devido s emisses j realizadas at hoje, ocorreria ainda um aquecimento adicional de 0,6oC ao longo do sculo XXI37.

    O aquecimento global ter reflexos em setores e sistemas diversos, como, por exemplo, os recursos hdricos inclusive gerao de energia , os ecossistemas, as florestas, a

    31 IPCC, 2007a, p. 3.32 Idem, p. 6.33 Idem, p. 8.34 Idem, p. 15.35 Alm do Dixido de Carbono (CO2), o Protocolo de Quioto relaciona como gases de efeito estufa o

    metano (CH4), o xido Nitroso (N2O), os Hidrofluorcarbonos (HFC), os Perfluorcarbonos (PFC) e o Hexafluoreto de Enxofre (SF6) (ONU, 1997, p. 23).

    36 De acordo com o documento Mudana do Clima 2007: a Base das Cincias Fsicas, publicado em fevereiro de 2007 pelo IPCC, os aumentos globais da concentrao de dixido de carbono se devem princi-palmente ao uso de combustveis fsseis e mudana no uso da terra. J os aumentos da concentrao de metano e xido nitroso so devidos principalmente agricultura (IPCC, 2007a, p. 3).

    37 IPCC, 2007a, p. 19.

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    produo de alimentos, os sistemas costeiros, a indstria, as populaes humanas e a sade. Para a Amrica Latina, projeta-se a savanizao da Amaznia e o aumento da aridez das regies semiridas. Esse processo traz o risco de perda significativa de biodiversidade, em funo da extino de espcies. Nas reas mais secas [da Amrica Latina], prev-se que a mudana do clima acarrete a salinizao e a desertificao de terras agrcolas38.

    Nesse cenrio, os pases em desenvolvimento so mais vulnerveis mudana do clima, em funo de que (i) os efeitos das mudanas climticas sero mais intensos no hemisfrio sul, onde se concentram as naes menos desenvolvidas e (ii) eles tm menor capacidade tecnolgica, financeira e institucional de adaptao39.

    Mudanas nos padres de consumo e a adoo de boas prticas gerenciais podem contribuir para a mitigao40 das mudanas climticas em diversos setores. As emisses de GEE podem, no curto e no mdio prazos at 2030, ser estabilizadas ou mesmo reduzidas, mediante melhorias na matriz energtica tanto de pases desenvolvidos como em desenvolvimento; aumento da eficincia energtica; adoo de boas prticas na agropecuria e no setor florestal; gerenciamento adequado dos resduos slidos, entre outras aes41.

    3.3. Aspectos econmicos relacionados mudana do clima

    medida que aumenta do grau de certeza das pesquisas cientficas a respeito das consequncias das mudanas climticas, melhora a preciso das anlises econmicas nelas baseadas. Aplicando um complexo modelo integrado de avaliao, pesquisadores britnicos concluram que o custo total nos prximos dois sculos das mudanas clim-ticas associadas s emisses com o cenrio BAU [business-as-usual] implica impactos e riscos que so equivalentes a uma reduo mdia do consumo per capita global de, no mnimo, 5%, agora e para sempre42.

    O modelo, no entanto, no considera importantes aspectos, como os impactos indiretos das mudanas climticas no meio ambiente e na sade, a incidncia de cadeias ampli-ficadoras dos efeitos das alteraes do clima e a maior intensidade desses efeitos nos pases menos desenvolvidos. A conjugao desses fatores adicionais aumentaria o custo total das mudanas climticas do cenrio de inao BAU para um valor equivalente a uma reduo da ordem de 20% no consumo per capita, atualmente e no futuro43.

    A simulao indica que os custos de mitigao so significativamente menores que os custos de adaptao. Alm disso, quanto mais cedo forem implementadas aes de mitigao das emisses de GEE, menores sero os custos, tanto dessas medidas, como das de adaptao. Nesse sentido, a mitigao um investimento altamente produtivo44. Para os pesquisadores, crescimento econmico e reduo de emisses no constituem

    38 IPCC, 2007b, p. 14.39 Entende-se por adaptao as iniciativas e medidas para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais

    e humanos frente aos efeitos atuais e esperados da mudana do clima (Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009, art. 2o, I).

    40 Entende-se por mitigao as mudanas e substituies tecnolgicas que reduzam o uso de recursos e as emisses por unidade de produo, bem como a implementao de medidas que reduzam as emisses de gases de efeito estufa e aumentem os sumidouros (Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009, art. 2o, VII).

    41 IPCC, 2007c.42 STERN, 2006a, p. 10.43 Idem, p. 11.44 Idem, p. 11.

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    TE I alternativas excludentes. Esse falso tradeoff pode ser superado por meio da progressi-

    va embora urgente descarbonizao das economias dos pases desenvolvidos e da promoo do crescimento dos pases menos desenvolvidos com base em atividades pouco intensivas em carbono45.

    O aumento de temperatura na Terra tende a gerar modificaes na geografia fsica, induzindo mudanas na geografia humana do planeta, ou seja, em onde e como as pessoas vivem. A estabilizao da concentrao de GEE entre 500 e 550 ppm46 em 2050, o que significaria um aumento suportvel de 2oC em relao aos nveis pr-industriais, custar, em mdia, at 2050, cerca de 1% do PIB anual global. Isso significativo, mas totalmente compatvel com o crescimento e desenvolvimento continuados, ao contrrio das mudanas climticas incontroladas, que acabaro por ameaar significativamente o crescimento47.

    Os pesquisadores britnicos concluem que: ainda h tempo para se evitar os piores efeitos da mudana do clima, mas preciso adotar medidas firmes hoje; a mudana do clima pode ter impactos muito severos sobre o crescimento e o desenvolvimento; os custos da estabilizao climtica so significativos, mas gerenciveis; atrasos seriam pe-rigosos e elevariam sobremaneira os custos associados; todos os pases devem enfrentar a mudana do clima, e isso no limitar, necessariamente, as aspiraes de crescimento tanto dos pases ricos, como dos menos desenvolvidos; h vrias alternativas disponveis para reduzir as emisses de GEE, mas so necessrias polticas fortes para que elas sejam adotadas; a mudana do clima demanda ao internacional, baseada no entendimento compartilhado de metas de longo prazo e acordos sobre estruturas normativas para a ao, que devero contemplar: (i) comrcio de emisses, (ii) cooperao tecnolgica, (iii) reduo do desmatamento e (iv) adaptao48.

    O Relatrio Stern constitui a tentativa mais bem-sucedida de avaliar os efeitos econ-micos da mudana do clima. Suas concluses tiveram forte impacto na comunidade internacional a partir de 2006. A publicao do Quarto Relatrio de Avaliao do IPCC, em 2007, reforou as preocupaes de governos e da sociedade civil organizada em relao necessidade de aprofundamento dos instrumentos que conformam o regime internacional de mudana global do clima: a CQNUMC e o Protocolo de Quioto.

    3.4. Conveno-Quadro das Naes Unidas sobre mudana global do clima e Protocolo de Quioto

    As mudanas do clima so alvo de preocupao da comunidade internacional desde a dcada de 1980. Na poca, a Organizao das Naes Unidas (ONU) apoiou a criao do IPCC, painel de cientistas de vrias especialidades e nacionalidades para procurar definir, em escala mundial, o estado da arte das pesquisas sobre o fenmeno.

    O regime internacional de mudana do clima, assim como os regimes internacionais sobre o meio ambiente, tende a ser construdo com forte embasamento cientfico, seguindo a lgica de que a cincia poderia oferecer solues tcnicas necessrias para esses problemas, tanto no que se refere aos danos j causados, quanto ao que concerne

    45 Idem, pp. 11-12.46 Partes por milho (ppm) uma unidade de medida para a razo entre o nmero de molculas de GEE

    e o nmero total de molculas de ar seco. Uma concentrao de 300 ppm, por exemplo, significa que h 300 molculas de um GEE por milho de molculas de ar seco.

    47 STERN, 2006a, p. 14.48 STERN, 2006b.

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    a questes de ordem econmica e financeira, uma vez que grande parte dos processos industriais est diretamente ligada degradao do meio ambiente e ao crescimento econmico49.

    A CQNUMC e o Protocolo de Quioto so os dois principais tratados que disciplinam as iniciativas para conter a mudana do clima. Alm desses dois textos principais, a Agenda 21, documento internacional de recomendaes e metas adotado durante a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), a Rio92, embora no-vinculativo, traou importante plano de ao para a promoo do desenvolvimento sustentvel.

    3.4.1. Conveno-Quadro das Naes Unidas sobre mudana global do clima

    A CQNUMC provavelmente o documento internacional mais debatido nos ltimos anos, no s pela polmica que se verificou, desde o incio das negociaes, por moti-vos de profundas divergncias Norte-Sul e, tambm, entre os pases desenvolvidos , mas, sobretudo, pelo impasse a respeito da entrada em vigor do Protocolo adotado na 3a Reunio das Partes da Conveno, em Quioto, em 1997, que persistiu at novembro de 2004, quando a Rssia ratificou o Protocolo e permitiu sua entrada em vigor (em fevereiro de 2005)50.

    Entre outras questes, as incertezas cientficas introduziram significativas complicaes no processo negociador da Conveno. O fator que provocou mais dificuldades foi o custo das medidas que permitiriam desacelerar as mudanas do clima, dividindo os pa-ses em trs grupos: os pases em desenvolvimento, que esperavam recursos financeiros novos e adicionais e transferncia de tecnologia para tomar as medidas que exigem maiores recursos; os pases ricos, principalmente da Comunidade Europeia, que j haviam progredido na diminuio de emisses e cujos gastos para atingir as primeiras metas sugeridas no pareciam proibitivos; e outros pases ricos, em especial os Estados Unidos da Amrica (EUA) e pases produtores de petrleo, que no viam como possvel atingir as metas sugeridas sem sacrifcios econmicos excessivos. A soluo possvel foi no mencionar qualquer meta especfica de reduo de emisses de GEE no texto da CQNUMC. Isso possibilitou que os EUA assinassem a Conveno, mas gerou um impasse que ressurgiu com toda fora durante as negociaes do Protocolo de Quioto51.

    A CQNUMC consubstancia o acordo poltico possvel na ocasio em que foi debatida. As intensas dificuldades de negociao se refletiram em um texto impreciso e super-ficial. A Conveno tem como objetivo alcanar a estabilizao das concentraes de gases de efeito estufa na atmosfera num nvel que impea uma interferncia antrpica perigosa no sistema climtico52. A estabilizao dever ser alcanada, de acordo com a Conveno, em prazo que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente mudana do clima, que assegure que a produo de alimentos no seja ameaada e que permita a continuidade de desenvolvimento econmico sustentvel.

    J nos consideranda, a Conveno reconhece que a maior parcela das emisses globais, histricas e atuais, de GEE originria dos pases desenvolvidos, que as emisses per capita dos pases em desenvolvimento ainda so relativamente baixas e que a parcela

    49 SIMES et. al., 2006, pp. 321-322.50 LAGO, 2007, p. 73.51 Idem, pp. 73-74.52 ONU, 1992, p. 6.

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    TE I de emisses globais originrias dos pases em desenvolvimento crescer para que eles

    possam satisfazer suas necessidades sociais e de desenvolvimento53.

    Com base nessa constatao, ficou estabelecido o fundamental princpio das responsabili-dades comuns, porm diferenciadas. Em decorrncia dele, todas as Partes tm a responsa-bilidade de proteger o sistema climtico em benefcio das geraes presentes e futuras, e, com base na equidade, as Partes pases desenvolvidos devem tomar a iniciativa no combate mudana do clima e dos seus efeitos54. Posteriormente, a densificao desse princpio permitiu a atribuio, somente aos pases desenvolvidos do Anexo I, de metas especficas de reduo de emisses de GEE no mbito do Protocolo de Quioto.

    Alm dos princpios do direito ao desenvolvimento sustentvel e da cooperao inter-nacional, a Conveno tambm reconhece o princpio da precauo, ao estipular que quando surgirem ameaas de danos srios ou irreversveis, a falta de plena certeza cientfica no deve ser usada como razo para postergar essas medidas, levando em conta que as polticas e medidas adotadas para enfrentar a mudana do clima devem ser eficazes em funo dos custos, de modo a assegurar benefcios mundiais ao menor custo possvel55.

    A Conveno estabeleceu um compromisso geral de reduo da emisso de GEE pelos pases desenvolvidos e demais integrantes do Anexo I. Esses pases comprometeram-se a adotar polticas nacionais e medidas correspondentes para mitigar a mudana do clima, limitando suas emisses antrpicas de GEE e protegendo e aumentando seus su-midouros e reservatrios desses gases. Isso seria suficiente, segundo o texto do tratado, para demonstrar que os pases desenvolvidos estariam tomando a iniciativa no que se refere a modificar as tendncias de mais longo prazo das emisses antrpicas56.

    3.4.2. Protocolo de Quioto

    Em 1995, em Berlim, foi realizada a 1a Conferncia das Partes (COP-1), encarregada de efetuar a reviso dos compromissos dos pases desenvolvidos. As Partes concluram que o compromisso estipulado, de as suas emisses de GEE voltarem aos nveis de 1990 at o ano 2000, era insuficiente para se atingir o objetivo de longo prazo da Conveno. Adotou-se, ento, o Mandato de Berlim, para a elaborao do esboo de um acordo mais taxativo57.

    Em dezembro de 1997, a COP-3 aprovou o Protocolo de Quioto, tratado que estabelece compromissos e metas concretas obrigatrias de reduo das emisses de GEE para os pases desenvolvidos. O Protocolo estabelece que eles tm a obrigao de reduzir suas emisses em pelo menos 5% em relao aos nveis de 1990, para o primeiro perodo de compromisso, entre 2008 e 201258. As metas estabelecidas constituem, mais uma vez, o acordo possvel naquela ocasio, embora sejam tmidas e claramente insuficientes para a soluo do problema. Apesar disso, representou um importante passo na direo da reduo das emisses de GEE.

    O Protocolo estabeleceu trs mecanismos de flexibilizao para implementao das obrigaes pelos pases com metas de reduo, que lhes permitem patrocinar parte

    53 Idem, p. 3.54 Idem, pp. 6-7.55 Idem, p. 7.56 Idem, p. 9.57 Idem, p. 2.58 ONU, 1997, p. 6.

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    da obrigao de diminuio das emisses fora de seu territrio: Mecanismo de Desen-volvimento Limpo (MDL), Implementao Conjunta (JI) e Comrcio de Emisses (ET)59. Tais instrumentos foram criticados por atenderem majoritariamente aos interesses dos pases desenvolvidos e de alguns pases em desenvolvimento, principalmente emer-gentes, como Brasil, China e ndia.

    O Protocolo de Quioto no rendeu muitos frutos, pois seus fundamentos tm carter mais poltico que tcnico ou econmico. Desde 1997, avanaram os conhecimentos cien-tficos, aprofundaram-se as preocupaes da sociedade civil com as mudanas climticas, retrocedeu o impulso idealista verificado no incio da dcada de 1990, recrudesceu a abordagem realista das questes internacionais a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA e, em 2008, o mundo mergulhou na mais profunda crise econmica em 80 anos. nesse cenrio que transcorrem as negociaes para o segundo perodo de compromisso do Protocolo, com vigncia para o perodo ps-2012.

    3.5. Negociaes para o Segundo Perodo de Compromisso do Protocolo de Quioto o Ps-2012

    Est em curso o processo de negociao para o segundo perodo de compromisso do Protocolo de Quioto, ps-2012. Na COP-11, em Montreal, em 2005, as tratativas foram definidas, por iniciativa brasileira, segundo dois eixos principais: o trilho da CQNUMC, para os pases em desenvolvimento e os pases desenvolvidos que no tenham ratifi-cado o Protocolo de Quioto (ou seja, os EUA), e o trilho do Protocolo de Quioto, para os pases desenvolvidos do Anexo I da Conveno.

    A COP-13, em Bali, em 2007, destinou-se elaborao do que se convencionou deno-minar mapa do caminho (roadmap) a ser percorrido at que os novos compromissos sejam firmados. A ideia era alcanar um acordo at a realizao da COP-15, em Cope-nhague, em 2009, a fim de que houvesse tempo suficiente para os pases ratificarem o seu comprometimento com os novos objetivos.

    No que se refere ao trilho da CQNUMC, o principal elemento do mapa do caminho o Plano de Ao de Bali, que transforma o dilogo sobre cooperao de longo prazo para a plena implementao da Conveno, criado na COP-11, em Montreal, numa negociao que abarca os pases em desenvolvimento e os EUA. Seu primeiro desafio, conforme reza o documento aprovado, o de lograr uma viso comum da ao cooperativa em longo prazo, incluindo uma meta global de redues de emisso de longo prazo60. Uma vez que os norte-americanos resistem fortemente a assumir metas no mbito do Protocolo de Quioto, constituiu um importante progresso da COP-13 aproximar aquele pas das negociaes internacionais pelo trilho da Conveno.

    Tendo em vista que, segundo o discurso dos pases em desenvolvimento, seu principal objetivo e deve continuar a ser a erradicao da fome e da pobreza, definiu-se que eles no devem assumir metas numricas especficas e obrigatrias de reduo das emisses de GEE, mas conduzir aes de mitigao nacionalmente apropriadas no contexto do desenvolvimento sustentvel, apoiadas e possibilitadas por transferncia de tecnologia, financiamento e capacitao, de maneira mensurvel, reportvel e verificvel. Alm disso, devem ser aprofundados embora jamais tenham se efetivado satisfatoriamente os

    59 ONU, 1997.60 RICUPERO, 2008, p. 55.

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    TE I mecanismos previstos na CQNUMC, em especial a cooperao tcnica internacional, o

    aporte de recursos financeiros e a transferncia de tecnologia.

    J no trilho do Protocolo de Quioto, iniciaram-se negociaes para o estabelecimento de novas metas mais ambiciosas de emisses dos pases do Anexo I. Como resultado de Bali, as emisses globais tero de atingir seu pico dentro de dez a 15 anos e, a partir de ento, declinar at chegar, em 2050, a patamar bem abaixo da metade dos nveis de 2000. Para isso, os desenvolvidos devem, at 2020, diminuir as emisses entre 25% e 40% abaixo dos nveis de 199061. O grande desafio que se coloca para a comunidade internacional fazer valer essas metas mais ambiciosas, uma vez que, mesmo tmidos e insuficientes, os objetivos do Protocolo de Quioto jamais se concretizaram.

    Para o Brasil, o Plano de Ao de Bali foi uma dupla vitria: trouxe os Estados Unidos formalmente s negociaes sobre o futuro do regime e consolidou politicamente o compromisso dos pases em desenvolvimento com atividades de mitigao. Alm disso, o Brasil atuou para fortalecer o regime sob a Conveno-Quadro e o Protocolo de Quioto, diante de tentativas de solapar os instrumentos legais e abrir processos negociadores novos e/ou paralelos. Ao incio da Conferncia, alguns aventaram at estabelecer um mandato amplo para a reviso total do arcabouo jurdico existen-te retrocesso institucional e jurdico incompatvel com a urgncia do problema da mudana do clima e inaceitvel para o Brasil. Delegaes dos pases desenvolvidos adotaram atitudes restritivas que contriburam para impasses negociadores em reas sensveis como desmatamento, tecnologia e obrigaes de informao de pases em desenvolvimento, os quais foram, entretanto, superados62.

    A COP-15, realizada em Copenhague, entre 7 e 19 de dezembro de 2009, avanou pouco em relao aos objetivos estabelecidos no Plano de Ao de Bali. O impasse a que se chegou nas negociaes no permitiu um novo acordo vinculante para os pases em desenvolvimento, pelo trilho da Conveno, tampouco para os desenvolvidos, pelo trilho do Protocolo. Entretanto, os pases emergentes Brasil, frica do Sul, ndia e China, grupo que se convencionou denominar BASIC e os EUA elaboraram o texto de um Acordo que tinha a pretenso de nortear as negociaes sobre o regime internacional do clima. O texto, chamado Acordo de Copenhague, no logrou atingir ampla aceitao durante a Conferncia. A COP-15 apenas tomou nota do Acordo, razo pela qual ele no constitui um documento oficial da Conferncia das Partes e, portanto, no vincula os pases membros, embora vrios outros Estados j tenham declarado sua adeso.

    O Acordo reconhece que a mudana global do clima um dos maiores desafios da humanidade e reafirma a forte vontade poltica dos signatrios para combater urgen-temente o problema, de acordo com o princpio das responsabilidades comuns porm diferenciadas e conforme as respectivas capacidades dos Estados. Assumindo o com-promisso de buscar limitar o aumento da temperatura mdia global a 2oC, as partes reafirmam sua disposio para a cooperao de longo prazo63.

    Evitando citar metas especficas de reduo de emisses, o Acordo refere-se apenas a cortes profundos nas emisses globais de GEE, de acordo com a cincia e conforme disposto no Quarto Relatrio de Avaliao do IPCC, no intuito de limitar o aquecimento a 2oC. O Acordo tambm refere-se vagamente necessidade de atingir o pico dessas

    61 Idem, p. 55.62 VARGAS, 2008.63 COP-15, p. 5.

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    emisses o mais cedo possvel, no determinando nenhuma data para que isso ocorra64. As aes de mitigao nacionalmente apropriadas tm base voluntria e devero ser mensurveis, reportveis e verificveis em mbito internacional, em conformidade com padres adotados pela Conferncia das Partes.

    Alm disso, o Acordo reconhece a importncia da cooperao para implementar aes de adaptao, voltadas para reduzir a vulnerabilidade e aprimorar a resilincia nos pases em desenvolvimento, especialmente naqueles particularmente vulnerveis, como pases menos desenvolvidos, pequenos Estados insulares e os pases da frica65.

    H uma diferena marcante a ser notada entre as lgicas do Protocolo de Quioto e do Acordo de Copenhague. O primeiro est fundado em uma abordagem top-down (de cima para baixo), segundo a qual os compromissos assumidos pelos pases no plano internacional devem ser internalizados nacionalmente. J o Acordo de Copanhegue privilegia uma abordagem bottom-up (de baixo para cima), pela qual as iniciativas nacionais voluntrias (sustentadas por mecanismos de mercado e adotadas de modo mensurvel, verificvel e reportvel) devem servir de base para a avaliao dos esforos nacionais de mitigao das emisses de GEE.

    Embora o Brasil tenha participado ativamente da formulao do Acordo de Copenhague, continua a defender e a acreditar na atualizao do Protocolo de Quioto, como forma mais eficaz de combate s mudanas climticas, em conformidade com o princpio das responsabilidades comuns, porm diferenciadas.

    Alm da questo da mitigao, a conformao do regime de mudana do clima ps-2012 deve enfrentar tambm a necessidade de adaptao aos efeitos das alteraes do clima. Se as solues para a mitigao so necessariamente globais, as aes de adaptao so, por natureza, locais. Entretanto, ainda no foi equacionada a forma como ocorrer a ajuda dos pases desenvolvidos historicamente responsveis pela grande maioria das emisses de GEE aos pases em desenvolvimento mais afetados pelos impactos das mudanas climticas.

    O atual impasse nas discusses se deve polarizao que se verifica entre pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento, com acusaes de parte a parte: pases desenvolvidos so acusados de quererem criar as condies para perpetuar e mesmo aumentar a distncia entre ricos e pobres; pases em desenvolvimento so acusados de fazerem reivindicaes abusivas e no quererem assumir sua parcela de respon-sabilidade no combate s mudanas climticas. No meio do caminho ficam os pases ditos emergentes, historicamente pouco responsveis pelas emisses de GEE, mas que aparecem como alguns dos maiores emissores da atualidade.

    4. Desafios para o desenvolvimentoDe acordo com o Relatrio de Desenvolvimento Humano 2007/2008, elaborado pelo PNUD, a mudana global do clima a questo central do desenvolvimento humano para a nossa gerao. O fenmeno ameaa corroer a liberdade e limitar o poder de escolha das pessoas, aspectos fundamentais do conceito de desenvolvimento adota-do pelas Naes Unidas. Os primeiros sinais de alerta j so perceptveis, mas passam despercebidos nos mercados financeiros e nos valores do PIB das naes. O perigo que, no futuro, o mundo fique estagnado e, depois, sofra um retrocesso no progresso

    64 Idem.65 Idem, p. 6.

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    TE I alcanado ao longo de dcadas, no s na reduo da pobreza extrema, mas tambm

    na sade, na nutrio, na educao e em vrias outras reas66.

    Os pobres sofrem e continuaro a sofrer as consequncias mais graves da mudana do clima. O combate pobreza e desigualdade hoje, bem como aos riscos catastrficos no futuro, constituem um forte fundamento racional para uma ao urgente. Infelizmente, os pobres e as geraes futuras constituem dois grupos de eleitores com pouca voz poltica. Embora o desafio seja significativo, h meios financeiros e tecnolgicos dispo-nveis para evitar o pior. Se falharmos na soluo deste problema ser porque fomos incapazes de fomentar a vontade poltica de cooperar. Tal resultado representaria no apenas falta de criatividade e liderana polticas, mas seria tambm uma falha moral em escala sem paralelo na histria da humanidade67.

    O debate pblico nas naes ricas enfatiza cada vez mais a ameaa do aumento de emisses de GEE em pases em desenvolvimento em especial nos emergentes, como Brasil, China e ndia. A ameaa existe, mas isso no pode obscurecer a questo principal. As naes ricas e seus cidados so os responsveis pela maior parcela do volume de GEE acumulados na atmosfera desde o incio da revoluo industrial. Os padres de produo e consumo em especial de energia nessas naes so insustentveis e, caso reproduzidos para a maioria da populao mundial, excederiam em vrias vezes a quantidade de recursos disponveis no planeta. Entretanto, os pases pobres e seus cidados pagaro o preo mais alto da mudana do clima68.

    As questes impostas pela mudana do clima so altamente complexas. O ponto de partida para enfrent-las distinguir trs dimenses inerentes ao problema: (i) a inr-cia do sistema climtico e o efeito cumulativo das emisses de GEE; (ii) a necessidade urgente de ao; e (iii) a escala global da mudana do clima.

    Aps emitidos, os GEE permanecem por vrios alguns por centenas de anos na atmosfera, agravando o efeito estufa e contribuindo para o aquecimento global. Os aumentos de temperatura experimentados hoje so fruto das emisses passadas e as emisses de hoje afetaro o clima por dcadas. Mesmo medidas rigorosas de controle e reduo de emisses hoje no induziro mudanas significativas nas temperaturas pelos prximos vinte anos ou mais. Em razo disso, o principal problema associado inrcia do sistema climtico refere-se ao estmulo ao poltica. A atual gerao de lderes polticos no tem condies de resolver o problema climtico, pois necessrio seguir uma via sustentvel de emisses durante dcadas, no apenas anos69.

    Tem-se, no entanto, a possibilidade de iniciar esse processo. Essa uma necessidade urgente e que deve ser mantida de modo contnuo ao longo do tempo. Ao contrrio do que pode ocorrer em outros temas, deixar de agir hoje no constitui uma omisso inofensiva ou uma opo estratgica inteligente; implica permitir que os GEE continuem a se acumular na atmosfera, agravando cada vez mais a mudana do clima70.

    Alm disso, trata-se de um problema eminentemente global. O efeito das emisses de GEE independe do pas de onde elas se originam. Por outro lado, nenhum pas pode, por mais rico e poderoso que seja, solucionar sozinho o problema da mudana do clima.

    66 PNUD, 2007, p. 1.67 Idem, p. 2.68 Idem, p. 3.69 Idem, p. 4.70 Idem, pp. 4-5.

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    A cooperao internacional , portanto, imprescindvel para lidar com a reduo das emisses de GEE71. Embora a adaptao aos efeitos da mudana do clima requeira aes eminentemente locais, a cooperao internacional tambm se impe nesse campo. Na grande maioria dos casos, os pases em desenvolvimento em especial os mais vulne-rveis no tm condies financeiras e tecnolgicas para fazer frente aos impactos da mudana do clima e, portanto, dependem da cooperao internacional para enfrentar as consequncias de um problema para o qual pouco contriburam.

    Um dos desafios fundamentais para o enfrentamento da mudana do clima , portanto, compatibilizar o ciclo poltico com o ciclo do carbono. Ou seja, incorporar ao poltica atual a preocupao com os efeitos centenrios da acumulao de GEE na atmosfera terrestre. Isso precisa ocorrer tanto em escala internacional como no mbito domstico. Nesses dois nveis sero necessrias lideranas corajosas, com capacidade de harmonizar os vrios interesses em conflito na sociedade e na comunidade internacional, a fim de conduzir a economia para um caminho sustentvel em termos de emisses de GEE72.

    Na esfera internacional, o PNUD estima que, para evitar alteraes climticas perigosas, ser necessrio que as naes ricas reduzam as suas emisses em pelo menos 80%, com redues de 30% em 2020. As emisses dos pases em desenvolvimento devero ter um mximo prximo de 2020, com redues de 20% at 2050. Isso permitiria a estabilizao da concentrao de GEE na atmosfera em nveis que dariam 50% de chance de limitar o aquecimento global a 2oC. A meta severa, mas possvel. Entre o momento da publicao do Relatrio de Desenvolvimento Humano 2007/2008 e o ano de 2030, o custo mdio anual das medidas necessrias chegaria a 1,6% do PIB. No se trata, obviamente, de um investimento insignificante, mas representa menos de 2/3 dos gastos militares globais. preciso lembrar, tambm, que segundo o Relatrio Stern, de 2006, o custo da inao pode chegar a 20% do PIB mundial73. Desse modo, enfrentar as mudanas climticas pode sair caro, mas no fazer nada traria prejuzos imensamente superiores.

    A vulnerabilidade mudana do clima est distribuda desigualmente. As alteraes climticas aumentam ainda mais os riscos a que esto submetidas as populaes mais pobres. O aumento da intensidade e da frequncia de eventos climticos extremos como secas, inundaes e tempestades tropicais mina a produtividade e desgasta as capacidades humanas. Alm disso, as estratgias para lidar com os riscos climticos podem reforar a privao de vrias maneiras. Por exemplo, para minimizar os riscos, os produtores que vivem em reas sujeitas a secas renunciam, muitas vezes, a cultivos agrcolas mais rentveis, preferindo variedades com retornos econmicos mais baixos, porm mais resistentes baixa umidade74.

    De acordo com o PNUD, h cinco mecanismos pelos quais as mudanas do clima podero prejudicar sensivelmente o desenvolvimento humano: (i) perdas na produo agrcola e insegurana alimentar; (ii) reduo da disponibilidade de gua e estresse hdrico; (iii) aumento da frequncia e da intensidade de inundaes inclusive pelo aumento do nvel dos oceanos e outros eventos climticos extremos, como secas e tempestades tropicais; (iv) danos a ecossistemas e perda de biodiversidade; e (v) perigos para a sade humana, tanto pelo recrudescimento de doenas tropicais como pela limitada capacidade de resposta dos sistemas de sade nos pases pobres, justamente os mais

    71 Idem, p. 5.72 Idem.73 Idem, pp. 7-8.74 Idem, p. 8.

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    TE I vulnerveis. Certamente, nenhum desses cinco fatores avanar de modo isolado. Eles

    iro interagir com processos sociais, econmicos e ecolgicos mais amplos, que moldam as oportunidades para o desenvolvimento humano75.

    5. Consideraes finais e recomendaesNo mbito internacional, as negociaes pouco avanaram no estabelecimento de com-promissos obrigatrios de reduo de emisses de GEE. Aps o entusiasmo geral com as solues multilaterais para os problemas globais, desencadeado na dcada de 1990 com o fim da Guerra Fria, o mundo se viu novamente afogado em questes geopolticas e de segurana internacional a partir de setembro de 2001, com os ataques terroristas aos EUA. A formao do regime internacional de mudana do clima est historicamente inserida nessa lgica. A CQNUMC e o Protocolo de Quioto, duas importantes iniciativas multilaterais, foram lanados em 1992 e 1997, respectivamente. Adotando uma postura unilateral e temendo que as metas de reduo das emisses de GEE prejudicassem a competitividade da economia norte-americana, o governo do Presidente George W. Bush se retirou do Protocolo de Quioto, enfraquecendo sobremaneira o regime. Atu-almente, as negociaes enfrentam um impasse, com a polarizao do debate entre pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento. Enquanto isso, GEE se acumulam na atmosfera, agravando gradativamente a mudana do clima.

    No mbito domstico, a questo ainda mais grave. Praticamente todos os pases desenvolvidos, emergentes e em desenvolvimento aumentaram drasticamente suas emisses de GEE. Apenas o Reino Unido, a Alemanha e os pases que enfrentaram o colapso da antiga Unio Sovitica (estes em virtude do forte desaquecimento de suas economias) reduziram suas emisses em relao a 1990, ano-base do Protocolo de Quioto. Uma via de emisses globais sustentvel s ter significado se se traduzir em estratgias nacionais prticas, ou seja, quando forem estabelecidos objetivos nacionais realistas, coordenados com os objetivos globais de mitigao. Definir objetivos am-biciosos de reduo de emisses um primeiro passo importante; transformar esses objetivos em aes efetivas, entretanto, politicamente mais desafiador76.

    H diversas formas de estimular os esforos de mitigao. As causas antrpicas da mu-dana do clima esto relacionadas produo e ao consumo de energia, s mudanas de uso do solo (desmatamento e queimadas), ao gerenciamento inadequado de resduos slidos (lixo) e a prticas insustentveis na indstria e na agropecuria.

    O estmulo econmico reduo das emisses de GEE passa, necessariamente, pela incorporao do preo do carbono aos custos de produo. Com efeito, o impacto do processo produtivo sobre o meio ambiente no levado em conta no clculo do custo dos bens e servios produzidos. Em jargo econmico, esse custo indireto constitui uma externalidade ambiental. A emisso de GEE e outros poluentes por uma usina termel-trica, por exemplo, considerada uma externalidade ambiental e, como tal, no compe o preo da energia eltrica produzida por essa usina. O dano ambiental provocado pelo agente privado que opera a usina ser pago por toda a sociedade.

    Ignorar esses custos ambientais mantm artificialmente a competitividade da energia produzida com a queima de combustveis fsseis, em detrimento da produzida a partir de fontes renovveis. A integrao dos custos ambientais ao custo de produo da

    75 Idem, pp. 9-10.76 Idem, p. 10.

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    energia eltrica melhoraria muito a competitividade da energia elica e da energia solar. Entretanto, praticamente inexistente o debate nacional a respeito desse assunto, em especial aps a euforia provocada pela descoberta de enormes reservas de petrleo na camada pr-sal.

    H basicamente dois modos de atribuir um preo ao carbono. O primeiro tributar diretamente as emisses de GEE. Para evitar o aumento da carga tributria, isso deveria ocorrer por meio de uma reforma tributria que sobretaxasse as atividades poluido-ras e desonerasse aquelas que no emitam ou emitam poucos GEE. Alm disso, essa transferncia de carga tributria para as atividades mais poluidoras deveria dar-se gra-dualmente, de modo a fornecer aos investidores e aos mercados uma estrutura clara e previsvel para o planejamento dos investimentos futuros. A segunda opo limitar e negociar (cap and trade). Nesse caso, o governo define um limite geral de emisses e distribui quotas de emisso negociveis. Aqueles que conseguirem emitir menos que o permitido, podero negociar no mercado as quotas excedentes, que sero adquiridas por aqueles que ultrapassarem o limite para as suas emisses77.

    Os mercados de carbono so importantes na transio para uma economia de baixo carbono, mas no so suficientes. O papel regulador do Estado e o seu apoio ao de-senvolvimento de tecnologias pouco intensivas em carbono tambm so decisivos. Vrios so os campos em que o Estado pode e deve assumir as suas responsabilidades: estmulo ao uso de energias renovveis; incentivos a programas de eficincia energtica; investimento em transporte pblico de qualidade; desenvolvimento de tecnologias especficas, como Captura e Armazenamento de Carbono (Carbon Capture and Stora-ge CCS); e controle do desmatamento (mais importante fonte de emisses no caso brasileiro); entre outras78.

    Na esfera internacional, o Estado deve defender a remoo de subsdios a indstrias ineficientes do ponto de vista de emisses de GEE e a eliminao de taxas de importao incidentes sobre bens e servios pouco intensivos em carbono. O caso da taxao das importaes de etanol brasileiro emblemtico. A remoo das taxas de importao sobre esse combustvel renovvel no apenas beneficiaria o Brasil, mas contribuiria sobremaneira para a mitigao da mudana do clima. Alm disso, a cooperao internacional para a transferncia de tecnologias limpas e de recursos financeiros novos e adicionais contribuiria para aumentar os nveis de eficincia nos pases em desenvolvimento, a fim de evitar que estes sigam o mesmo padro insustentvel de desenvolvimento trilhado pelos pases atualmente desenvolvidos79.

    Em virtude da inrcia dos sistemas climticos80, mesmo os mais diligentes e eficazes esforos de mitigao no seriam capazes de evitar as consequncias da mudana do clima. Ainda que as emisses de GEE cessassem imediatamente e por completo, o que obviamente no ocorrer, as temperaturas mdias do planeta subiriam 0,6oC at 210081. Assim, mostra-se imprescindvel estabelecer e implementar estratgias de adaptao aos efeitos das alteraes climticas. Vale lembrar a dupla injustia da mudana global do clima: os pases pobres, justamente aqueles que tm menor capacidade institucional e menos recursos financeiros e tecnolgicos para fazer frente mudana do clima, sero os mais afetados pelas consequncias desse fenmeno, para o qual pouco contriburam.

    77 Idem, p. 11.78 Idem, pp. 11-13.79 Idem, p. 12.80 Conforme visto no Item 4.81 IPCC, 2007a, p. 19

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    TE I Mais uma vez, assume especial importncia a cooperao internacional para a constru-

    o de capacidades nos pases em desenvolvimento e para a transferncia de recursos fi-nanceiros novos e adicionais e de tecnologias limpas dos pases ricos para os pobres.

    Essa desigualdade se reproduz em mbito nacional. As regies que sofreram os efeitos mais intensos da mudana do clima so a Nordeste e a Norte. O aumento da aridez agravar processos de desertificao no Nordeste e provocar a savanizao de parte da floresta amaznica, justamente onde moram os brasileiros mais necessitados. Assim como na escala global, tambm no Brasil a mudana do clima intensificar processos migratrios das regies mais pobres e mais afetadas pelas alteraes climticas para o sul do pas, provocando inchao ainda maior das periferias das grandes cidades, com todos os efeitos negativos associados.

    Assim como as estratgias de mitigao, as de adaptao precisam ser consideradas em todos os aspectos do planejamento nacional e incorporadas a todas as polticas pblicas pertinentes, a fim de reduzir o impacto da mudana do clima sobre as popu-laes mais vulnerveis. Dentre os aspectos pertinentes para a adaptao, destacam-se, entre outros:

    Produo agrcola e segurana alimentar: desenvolver tecnologias adequadas e variedades vegetais e animais resistentes s novas condies climticas;

    Abastecimento de gua e segurana hdrica: gerenciar a oferta e a demanda de gua e reduzir o desperdcio;

    Infraestrutura: levar em considerao as novas condies climticas quando da implantao de obras de infraestrutura, como portos e usinas hidreltricas, por exemplo, e avaliar a necessidade de construo de estruturas de conteno do oceano nas zonas costeiras;

    Sade: melhorar a capacidade de atendimento dos sistemas de sade ante o agra-vamento de doenas tropicais, como malria e dengue;

    Fortalecimento institucional: melhorar a capacidade de resposta do Estado em especial a Defesa Civil em caso de eventos climticos extremos, como secas e inundaes, que sero cada vez mais intensos e frequentes.

    No intuito de articular as aes necessrias para a mitigao e a adaptao mudana do clima, foi editada a Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que Institui a Poltica Nacional sobre Mudana do Clima PNMC e d outras providncias. A Lei apresenta de-finies, princpios, objetivos, diretrizes, instrumentos e instrumentos institucionais da Poltica. Entre os instrumentos mais importantes, figuram o Plano Nacional de Mudana do Clima82 e o Fundo Nacional sobre Mudana do Clima, institudo pela Lei no 12.114, de 9 de dezembro de 200983.

    A PNMC muito recente e ainda no se pode verificar seus resultados prticos. Embora o art. 11 determine que os princpios, objetivos, diretrizes e instrumentos das polticas pblicas e programas governamentais devero compatibilizar-se com os princpios, objetivos, diretrizes e instrumentos desta Poltica Nacional sobre Mudana do Clima, a Lei parece carecer de mecanismos que imponham a sua aplicao.

    82 Disponvel em http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=141&idConteudo=7466 (Acesso em 14/9/2010).

    83 Disponvel em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12114.htm (Acesso em 14/9/2010).

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    A PNMC foi apreciada pelo Congresso com extrema agilidade, em virtude da iminente participao brasileira na COP-15. Preocupado com as presses internacionais para que pases emergentes assumissem metas obrigatrias de reduo de emisses de GEE, o Governo articulou a votao urgente da Poltica, a fim de demonstrar seu empenho na luta contra a mudana do clima naquela Conferncia das Partes. A maior inovao da Lei foi introduzida no Senado Federal e est consubstanciada no art. 12. Segundo o dispositivo, o Pas adotar o compromisso nacional voluntrio de conduzir aes de mitigao das emisses de GEE, com vistas em reduzir entre 36,1% e 38,9% suas emisses projetadas at 2020. Por emisses projetadas, entenda-se as decorrentes da trajetria de desenvolvimento caso nenhuma medida adicional fosse tomada em rela-o s emisses de GEE. De acordo com o pargrafo nico do mesmo artigo, a projeo das emisses para 2020 e o detalhamento das aes para alcanar esse objetivo sero dispostos por decreto, tendo por base o segundo Inventrio Brasileiro de Emisses e Remoes Antrpicas de Gases de Efeito Estufa no Controlados pelo Protocolo de Montreal, a ser concludo em 2010.

    Um ltimo aspecto a salientar refere-se reforma do Cdigo Florestal (Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965), em pauta no Congresso Nacional. Um das principais propostas dessa reforma consiste na reduo das reas de preservao permanente (APP) e reserva legal. As APP possuem a funo ambiental de preservar os recursos hdricos, a paisagem, a estabilidade geolgica, a biodiversidade, o fluxo gnico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populaes humanas84. Tais atributos justificam a sua proteo integral, ou seja, a vedao de toda e qualquer supresso vegetal, exceto em caso de utilidade pblica ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo prprio, quando inexistir alternativa tcnica e locacio-nal ao empreendimento proposto85. J a reserva legal destina-se ao uso sustentvel dos recursos naturais, conservao e reabilitao dos processos ecolgicos, conservao da biodiversidade e ao abrigo e proteo de fauna e flora nativas86. Sua vegetao no pode ser suprimida, apenas utilizada sob regime de manejo florestal sustentvel87.

    Acreditamos que a reduo das referidas reas induzir um forte movimento de remo-o da vegetao principalmente na Amaznia, o que aumentar muito as emisses nacionais de GEE. Considerando que as principais fontes de emisses, no caso brasileiro, so o desmatamento e as queimadas, estimular a supresso vegetal na Amaznia con-tradiz os objetivos declarados na PNMC e vai na contramo dos esforos mundiais de conteno da mudana do clima. Alm disso, a reforma da legislao nos termos em que est proposta produzir perda de biodiversidade e poder prejudicar sobremanei-ra as condies de vida dos habitantes da floresta. Nenhum crescimento econmico resultante dessa medida poderia, portanto, ser classificado como desenvolvimento, segundo a concepo adotada neste trabalho.

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    84 Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, art. 1o, 2o, II.85 Idem, art. 4o.86 Idem, art. 1o, 2o, III.87 Idem, art. 16, 2o.

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  • TICA E PRAGMATISMOO DILEMA DOS ORGANISMOS

    GENETICAMENTE MODIFICADOS (OGM) E O PAPEL DO PARLAMENTO*

    FERNANDO LAGARES TVORA

    Engenheiro Civil e Mestre em Economia do Setor Pblico, pela Universidade de Braslia, Brasil. Ingenieur (Ir.), MSc in Management,

    Economics and Consumer Studies, pela Wageningen University, Holanda. Consultor Legislativo do Senado Federal. E-mail: [email protected]

    * Verso revisada do trabalho The adoption of Genetically Modified Organism (GMO) on crops: ethics versus pragmatism, elaborado pelo autor no curso Food Ethics do Programa MSc Programme Mangement, Economics

    and Consumer Studies, promovido pela Universidade de Wageningen, na Holanda.

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    1. Introduo88

    O presente trabalho estuda a possibilidade de criao de um tributo a incidir sobre organismos geneticamente modificados (OGM) ou, alternativamente/complementar-mente, de alocao oramentria para constituio de um fundo. Os recursos finan-ceiros obtidos seriam usados em caso de perdas inesperadas decorrentes de plantio de organismos transgnicos ou, ainda, para o fomento da preservao ambiental (por exemplo, combate perda de diversidade de espcies).

    Para enfrentar a controvrsia que envolve a utilizao de OGM, o presente trabalho, na seo 2, faz a caracterizao do dilema tico que circunda o plantio de OGM. A seo 3 expe, sinteticamente, o arcabouo terico para lidar com dilemas ticos. A seo 4 examina possveis tratamentos para o dilema envolvido no plantio de transgnicos e, em seguida, a seo 5 discute o monitoramento da possvel escolha a ser adotada e algumas questes jurdicas relacionadas ao tema. A seo 6 apresenta ponderaes adicionais sobre a criao de mecanismo de compensao ambiental.

    Por fim, a seo 7 encerra as concluses e comentrios finais do trabalho.

    2. Caracterizao do dilema tico

    Nos ltimos anos, muitos pases tm enfrentado o desafio da aplicao de novas tecno-logias, questo que se revela ainda mais sensvel na rea de alimentos. No por outra razo, o uso de organismos geneticamente modificados (OGM) tem se apresentado como sendo um dos mais controversos temas.

    Existem prs e contras envolvendo esse debate. ntido que os OGM propiciam mais lucros e so de mais fcil aplicao na maioria das culturas agrcolas. Por outro lado, como os seus efeitos ainda no foram completamente testados, os riscos eventualmente decorrentes de sua utilizao no so integralmente conhecidos.

    Realmente, no h, at o presente momento, nem pesquisas provando que os OGM podem causar danos ao ecossistema (incluindo o ser humano, obviamente) nem estudos demonstrando que a sua aplicao inteiramente segura.

    McGloughlin (2002) afirma que a biotecnologia possivelmente a nica forma de atender demanda crescente por alimentos de um mundo em franca expanso. Por outro lado, Altieri & Rosset (2002) discordam desse pensamento, afirmando que as causas reais da fome so pobreza, desigualdade social e falta de acesso comida e terra. Em adio, pensam que a maioria das inovaes em biotecnologia agrcola tem por fundamento a busca de lucro, em vez da necessidade humana.

    McGloughlin (2002), por sua vez, argi tambm que o slogan de que h riscos de se comer alimento da bioengenharia alarmista. Altieri & Rosset (2002) entendem que ningum pode prever corretamente os efeitos do uso de OGM e que a rotulagem inapropriada pode eximir corporaes de responsabilidade.

    88 Pelas sugestes apresentadas a uma verso preliminar deste texto, agradecimentos aos Consultores Legislativos Caetano Ernesto Pereira, Raphael Borges Leal de Souza, Marcos Mendes, Gustavo Taglialegna e Rogrio de Melo Gonalves, que esto isentos de qualquer impreciso remanescente.

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    TE I Do ponto de vista prtico, alguns pases podem se valer da tecnologia de produo

    de organismos geneticamente modificados no s para aumentar a competitividade comercial, mas tambm para reduzir a fome e a pobreza. Em certa extenso, o Brasil utiliza essa estratgia.

    Essa polmica de fato complexa, mas se um pas no tiver condies de expandir sua produo em condies de restrio, a tarefa de combater a pobreza e a fome ficar mais difcil. Ademais, no se pode negligenciar que pases pioneiros na aplicao dessa tecnologia podem desenvolver vantagens comparativas que no poderiam ser de fcil obteno no futuro.

    O Estado brasileiro adotou uma posio no sentido de se autorizar o plantio de trans-gnicos por meio da aprovao da Lei no 11.105, de 2005 (Lei de Biossegurana)89, que regulamenta o art. 225 da Constituio Federal (CF) de forma mais ampla, considerando os novos avanos na tecnologia aplicada para a produo agrcola.

    Com essa deciso, juntamente com os Estados Unidos da Amrica (EUA), Argentina, Canad, o Brasil passou a ser um dos grandes produtores de cultura biotecnolgica e tambm a ter amparo legal para exportar produtos transgnicos para todo o mundo (vide os principais produtores mundiais de OGM na Tabela 1). Por outro lado, o Pas passou a ser alvo de maior controle para garantia da segurana dos cidados dos pases importadores.

    Com efeito, passou tambm a enfrentar, por alguns mercados, rejeio soja transg-nica que muitos argumentam se assemelha a barreiras no-tarifrias. Na Europa, h um sentimento de restrio a produtos OGM. Muitas vezes sob o argumento de que os pases no realizam boas prticas e, tambm, de que os Estados no esto preparados para recompor os danos ambientais ou obrigar o responsvel a tomar tal providncia.

    3. Anlise tica simplificada90

    Uma anlise de custo-benefcio simples indica que o uso da tecnologia transgnica apresenta vantagens. Os lucros so relativamente altos quando comparados com o sistema tradicional (vide Tabela 2 para uma noo da reduo de custo e impacto na renda das fazendas para o caso da soja transgnica). De acordo com Brookes & Barfoot (2006), a diminuio de custo por hectare se deve reduo combinada da aplicao de herbicida, do nmero de pulverizaes, do uso de trabalho e de maquinaria. Caso a tecnologia no tivesse sido utilizada, argumenta-se que a renda total da agricultura brasileira, sem o uso dos OGM, em 2005, seria US$ 538,4 milhes menor.

    Mas pode existir um custo oculto, que incerto e no computado e envolve a possi-bilidade de algum dano srio vir a ser produzido para a natureza ou a sade humana. Portanto, qualquer anlise dessa ordem (custo-benefcio) pode ser considerada limi-tada. Os ambientalistas no a aceitariam.

    89 Lei no 11.105, de 24 de maro de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do 1o do art. 225 da Constituio Federal, estabelece normas de segurana e mecanismos de fiscalizao de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurana CNBS, reestrutura a Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana CTNBio, dispe sobre a Poltica Nacional de Biossegurana PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisria no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e d outras providncias.

    90 Para um aprofundamento sobre tica alimentar, sugere-se consultar Korthals (2004), e sobre teoria da sociedade do risco, a leitura de Beck (2008).

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    Uma anlise utilitarista poderia tambm indicar um benefcio positivo. A ideia do maior bem-estar possvel para o maior nmero de pessoas coerente para pases em desenvolvimento, que precisam produzir mais para reduzir a fome e criar excedentes para a exportao. Essa concepo tica entende que o valor moral de uma ao deter-minado por sua contribuio para a utilidade global. A ao e distribuio dos benefcios sempre so calculadas. No entanto, essa concluso, com muito menos clareza do que a resultante da anlise anterior, encerra dificuldades, na medida em que um profundo debate sobre a valorao do benefcio para os diversos grupos interessados no se re-vela de fcil encaminhamento. Vrios setores da sociedade no aceitariam o argumento utilitarista (por exemplo, algumas classes de trabalhadores familiares rurais, que teriam sua renda deteriorada por impossibilidade de acesso tecnologia de OGM).

    Posio Pas rea(milhes hectares) Plantio biotecnolgico

    1 EUA 57,7 Soja, milho, algodo, canola, abobrinha, mamo, alfafa

    2 Argentina 19,1 Soja, milho, algodo

    3 Brasil 15,0 Soja, algodo

    4 Canad 7,0 Canola, milho, soja

    5 ndia 6,2 Algodo

    6 China 3,8 Algodo, tomate, lamo, petnia, mamo, pimenta

    7 Paraguai 2,6 Soja

    8 frica do Sul 1,8 Milho, soja, algodo

    9 Uruguai 0,5 Soja, milho

    10 Filipinas 0,3 Milho

    11 Austrlia 0,1 Algodo

    12 Espanha 0,1 Milho

    13 Mxico 0,1 Algodo, soja

    14 Colmbia

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    Numa anlise deontolgica, entendemos que os OGM tambm no seriam aceitos. Essa uma concepo tica que tem o foco na correo ou falha das aes em oposi-o correo ou erro das consequncias. O imperativo categrico (cada deciso seria tomada como se fosse se tornar uma regra geral) no admite que seja posto em risco o meio ambiente ou os seres humanos, em hiptese alguma. As decises morais so decises livres de acordo com essa anlise. Seria a aplicao do princpio da precauo stricto sensu. Fazendeiros, parcela do governo e de setores da indstria poderiam no aceitar o argumento deontolgico como justificador.

    A anlise deliberativa poderia trazer novas ideias e solues para esse debate. Sob o ponto de vista tico, Korthals (2004), citando Mephan (1996), entende que quatro princpios devem ser seguidos para a implementao dessa estratgia:

    1) o direito de escolha e informao deve ser respeitado;

    2) a diviso de risco deve ser auspiciosa;

    3) no devem ser infligidos danos aos seres humanos e ao meio-ambiente;

    4) a deciso deve contribuir para o bem estar de todos.

    Na prtica, esse tipo de debate muito difcil de ser feito no seio da sociedade. Com mais de 180 milhes de habitantes e com regies de caractersticas completamente diferentes, h uma tendncia de se reproduzir o antagonismo entre ambientalistas e agricultores, tornando a formao do consenso, em consequncia, muito difcil.

    Beck (2008) argumenta, em linhas gerais, que quanto mais a sociedade amplia seu co-nhecimento, mais toma cincia dos riscos que enfrenta e mais dificuldade enfrenta para adotar decises sobre questes polmicas como a que se apresenta. Em sua teoria da so-ciedade do risco, Beck (2008) caracteriza as percepes do risco global como segue:

    1. Des-localizao: suas causas e consequncias no so limitadas a uma posio ou a um espao geogrfico elas so, em princpio, onipresentes;

    2. Incalculabilidade: suas consequncias so, em princpio, incalculveis; no fundo, uma questo de riscos hipotticos, que, no obstante, so baseados na falta de conhecimento induzida pela cincia e dissidncia normativa;

    Ano Reduo de custos (US$/ha)Impacto na renda das

    fazendas (US$ milhes)

    1997 38.80 3.8

    1998 42.12 20.5

    1999 38.76 43.5

    2000 65.32 43.7

    2001 46.32 58.7

    2002 40.00 66.7

    2003 77.00 214.7

    2004 88.00 377.6

    2005 74.00 538.4Fonte: Brookes & Barfoot (2006). Elaborao pelo autor.

    Tabela 2 Impacto do Uso de Soja Transgnica no Brasil, 1997-2005

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    3. No-compensabilidade: o sonho de segurana da primeira modernidade foi baseado na utopia cientfica de tornar as consequncias inseguras e os perigos das decises sempre mais controlveis; acidentes poderiam ocorrer, contanto que, e porque, fossem considerados compensveis...91

    Entre os muitos argumentos defendidos pelo autor, o fato de se precaver continua consistente com a funo estatal e vem ao encontro da ideia que ser defendida nas sees seguintes, de que a sociedade, por seus melhores instrumentos, deve minorar sua exposio ao nvel de perigo: face produo de incertezas manufaturadas insu-perveis, a sociedade, mais do que nunca, confia e insiste na segurana e no controle (Beck, 2008).

    Por certo, o controle das decises se mostra, por um lado, fator preponderante para correes de desvios, e, por outro, mecanismo de evoluo das polticas pblicas desen-volvidas por uma sociedade. Num contexto em que se procura defender os produtos agropecurios de barreiras consideradas injustas e, ao mesmo tempo, garantir a sade e o bem-estar da populao, alm da integridade do meio ambiente, a tese de que os custos polticos da omisso so muito mais elevados do que os custos do exagero, defendida por Beck (2008), se mostra atual.

    Aliando as teorias tico-filosficas com as consideraes de Beck (2008), procuraremos argumentar, a seguir, que o Estado deve atuar segundo o melhor conhecimento e levando em conta os riscos envolvidos, valendo-se da racionalidade e considerando o princpio da precauo na medida correta de sua ponderao.

    4. Processo de tomada de decisoEm obra publicada em 2001, Fresco afirmou que os OGM tinham aumentado a produo em algumas culturas, mas que as evidncias (existentes naquele momento) sugeriam que a tecnologia tinha poucos desafios para uso em pases em desenvolvimento. Ela disse tambm (em 2001) que a falta de percepo de benefcios para consumidores e incerteza quanto segurana tinham limitado a aplicao da biotecnologia em pases desenvolvidos.

    Somente alguns anos depois, a realidade j completamente diferente. Os EUA tm plantado maciamente transgnicos. No Brasil, o Presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA) afirmou que, em trs anos, 90% da soja brasileira seria constituda de OGM (Gazeta Mercatil, 2007-A). O impacto para o mundo enorme, porque o Brasil responde por 60% da exportao mundial dessa commodity (Gazeta Mercatil, 2007-B).

    As anlises de custo-benefcio e utilitria no so apropriadas para lidar com esse dilema. Por outro lado, as anlises deontolgica e deliberativa poderiam ser utilizadas para no aceitar o uso de OGM. Mas essa fcil soluo poderia esconder um enorme custo de oportunidade, que significa possvel perda de crescimento econmico e cientfico.

    Korthals (2004) destaca que dilemas nunca podem ser realmente resolvidos e que, sob certo ponto de vista, as decises sero sempre erradas. Esse pensamento aplica-se perfeitamente ao caso dos OGM.

    91 Baseado em traduo livre. O item 3 foi coletado parcialmente.

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    PAR

    TE I McGoughlin (2002) apresenta algumas razes pelas quais a produo de OGM sofreu

    expanso: entre outros benefcios, essa tecnologia i) reduz a necessidade de aplicao de produtos qumicos, ii) aumenta rendimentos e iii) reduz a necessidade de trabalho.

    O princpio da precauo poderia pr a sociedade confortvel do ponto de vista tico-filosfico, banindo os OGM. No entanto, o atraso tecnolgico se instalaria, perdendo-se, ao mesmo tempo, um instrumento para ampliar a produo e reduzir a m-nutrio e pobreza.

    Ademais, novas formas de diminuir o uso de fertilizantes e pesticidas poderiam no ser desenvolvidas, caso os OGM estivessem proibidos. Importante destacar que a melhoria nutricional e projetos para criao de futuras vacinas a partir da manipulao de genes de alimentos (por exemplo, de banana92) ficariam inviabilizados.

    A FAO (2003) reconhece que a deciso tica responsvel demanda a utilizao do melhor conhecimento disponvel e de cincia das incertezas