FREUD, A PSICANALISE E A FELICIDADE Raymundo de Lima.pdf

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    A Felicidade existe?

    Freud, a psicanlise e a felicidade

    "Esse homem encontrou a felicidade ao descobrir o

    tesouro de Pramo, o que prova que a realizao de um

    desejo infantil o nico capaz de proporcionar a

    felicidade" S. Freud. 1[1]

    "no escapa a Freud que a felicidade () o que deve

    ser proposto como termo a toda a busca, por mais tica

    que seja". J. Lacan

    Ningum pode me obrigar a ser feliz a sua maneira. I.

    Kant

    Das clssicas proposies filosficas aos atuais

    manuais de auto-ajuda, passando pelos

    trabalhos cientficos e as construes utpico-

    ideolgicas predominantes no sculo 20, a verdade que

    o ser humano ainda no conseguiu dar uma resposta

    definitiva e satisfatria sobre o que ser feliz e como

    conseguir s-lo.

    Seguindo o caminho das certezas, as "religies prometem

    felicidade eterna, tendo como condio a f, observa o

    1_____________

    1[1] Citado por L. Flem, (1986, p. 163). (Tb. citado por L. Binswanger, em Analyse Esitentielle et Psychanalyse Freudienne, op. cit. 313).

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    socilogo Pedro Demo, professor da Universidade de

    Braslia e autor de trs volumes A Dialtica da

    Felicidade (Ed. Vozes, 2001).

    A psicanlise que, junto com Freud, reconhecida como

    um saber terico, uma tcnica de interpretao e uma

    clnica psicanaltica, voltada para diminuir o sofrimento

    humano, ctica quanto ao sujeito2[2] humano ser feliz.

    O prprio Freud teria dito que a psicanlise at pode

    resolver os problemas da misria neurtica, mas ela nada

    pode fazer contra as misrias da vida como ela .

    Ainda, segundo Freud (1974), no sendo a psicanlise

    uma Weltanschauung, isto , no sendo uma

    cosmoviso, uma construo intelectual que visa

    solucionar todos os problemas de nossa conturbada

    existncia, com base em uma hiptese filosfica ou

    supostamente cientfica universal, praticamente

    impossvel conceber um ser humano plenamente feliz.

    Herdeira do estilo socrtico porque ousa buscar mas nada

    conclui, a psicanlise sustenta o compromisso de, por um

    lado, no deixar nenhuma pergunta sem resposta e, por

    outro, avessa as Weltanschauungs de todo o tipo, que

    2[2] A psicanlise se refere ao sujeito e no do indivduo (da sociologia, por exemplo). Ou seja, o sujeito, na sua condio de sujeito dividido, pode ser feliz, o que no acontece ao indivduo. Quando Lacan diz que o sujeito feliz, percebe-se facilmente que no se trata do indivduo. A tal ponto que, servindo-me outra vez das palavras de Jean-Pierre Klotz, poderamos dizer que "a felicidade do sujeito a infelicidade do indivduo". Eis uma possvel formulao do que significa o to apregoado sujeito dividido em Lacan. No ponto mesmo em que o indivduo sofre, o sujeito feliz. Como acentua Jacques-Alain Miller, "quaisquer que sejam os seus infortnios, ao nvel do inconsciente ele sempre feliz". Por conseguinte, o sujeito do inconsciente feliz. (PEREIRINHA, 1997).

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    acreditam terem encontrado a chave para explicar e

    resolver todos os males da humanidade, por meio do

    indivduo, do grupo ou da coletividade3[3].

    3[3] A felicidade individual ofertada pelos livros de auto-ajuda. A felicidade grupal patrocinada pelos clubes de sado-masoquismo, prometida atravs das comunidades alternativas (Eu quero uma casa no campo...), dos diversos grupos religiosos, etc. A felicidade coletiva, talvez o melhor exemplo, criticado por Freud, seja a teoria marxista com seu projeto de uma sociedade comunista.

    A seguir, extramos alguns fragmentos de Freud onde critica o aspecto religioso e a concepo de felicidade do marxismo, notadamente do chamado socialismo real da ex-Unio Sovitica. Freud escreve: o marxismo terico, a exemplo do bolchevismo russo, adquiriu a energia e o carter autosuficiente de uma Weltanschauung,: contudo, adquiriu, ao mesmo tempo, uma sinistra semelhana com aquilo contra o que est lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da cincia, e construdo, em sua implementao, sobre a cincia e a tecnologia, criou uma proibio para o pensamento que exatamente to intolerante como o era a religio, no passado. Qualquer exame crtico do marxismo est proibido, dvidas referentes sua correo so punidas, do mesmo modo que uma heresia, em outras pocas, era punida pela Igreja Catlica. Os escritos de Marx assumiram o lugar da Bblia e do Alcoro, como fonte de revelao, embora no parecessem estar mais isentos de contradies e obscuridades do que esses antigos livros sagrados.

    Embora o marxismo prtico tenha varrido impiedosamente todos os sistemas idealsticos e as iluses, ele prprio desenvolveu iluses que no so menos questionveis e merecedoras de desaprovao do que as anteriores. Ele espera, no curso de algumas geraes, de tal modo alterar a natureza humana, que as pessoas vivero juntas quase sem atrito na nova ordem da sociedade [comunista] e que elas assumiro as tarefas do trabalho sem qualquer coero. Nesse meio-tempo, ele muda para algum outro setor as restries instintuais [pulsionais] que so essenciais na sociedade; desvia para o exterior as tendncias agressivas que ameaam todas as comunidades humanas e apia-se na hostilidade do pobre contra o rico e na hostilidade daquele que at ento esteve impotente contra os governantes anteriores. Mas uma transformao da natureza humana, como esta que pretende, altamente improvvel.(...) Exatamente da mesma forma como a religio, o bolchevismo deve tambm oferecer aos seus crentes determinadas compensaes pelos sofrimentos e privaes de sua vida atual, mediante promessas de um futuro melhor, em que no haver mais qualquer necessidade insatisfeita. Esse paraso, no entanto, tem de ser nesta vida, ser institudo sobre a terra a ser descerrado num tempo previsvel. Convm lembrar, contudo, que tambm os judeus, cuja religio nada sabe de uma vida aps a morte, esperavam a chegada de um Messias sobre a terra, e que a Idade Mdia crist, muitas vezes, acreditava que o Reino de Deus estava prximo (...). [Portanto,] a fora do marxismo est, evidentemente, no na sua viso [cientfica] da histria ou nas profecias do futuro [da sociedade feliz](...), mas sim na arguta indicao da influncia decisiva que as circunstncias econmicas dos homens tm sobre as suas atitudes

    (Freud, op. cit., p. 218-216 grifo nosso).

    Ainda, a propsito da felicidade coletiva, preciso acrescentar que tanto os revolucionrios utpicos como os cientficos concebiam a felicidade no passado e no futuro. O presente existe apenas para relembrar ou para projetar a revoluo socialista-comunista. A crena na felicidade estaria no passado, supostamente dominado pelo matriarcado ou pelo comunismo primitivo. Para o psicanalista, a nsia de retorno fuso com a me seria o fundamento psicolgico, fundado um sistema igualitrio, justo, feliz. Posta no futuro, a felicidade aparece em forma de realizao do projeto de uma sociedade comunista onde, curiosamente, a dialtica da histria se estagnaria, o jogo da poltica se extinguiria fazendo reinar entre os homens da terra a felicidade proletria, nunca antes conseguida na histria da humanidade.

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    A teoria psicanaltica e a felicidade

    Para entender a relao psicanlise e felicidade,

    precisamos resgatar alguns de seus conceitos e

    categorias. O primeiro deles o desejo. O desejo

    humano, demasiadamente humano. O desejo (D.:

    Wunsch), tal como entendido pela psicanlise, no a

    mesma coisa que a necessidade. Enquanto a necessidade

    um conceito biolgico, natural, implica uma tenso

    interna que impele o organismo numa determinada

    direo no sentido de busca de reduo dessa tenso ou

    satisfao, logo, a autoconservao (ex.; necessidade de

    fome, ento buscamos comida), o desejo, sendo de

    ordem puramente psquica, desnaturado e como tal

    pertence ordem simblica. Enquanto a necessidade

    biolgica, instintiva e busca objetos especficos (comida,

    gua, etc) para reduzir a tenso interna do organismo, o

    desejo no implica uma relao com esses objetos

    concretos, mas sim, com o fantasma ou fantasia. Ou seja,

    o fantasma , ao mesmo tempo, efeito do desejo arcaico

    inconsciente e matriz dos desejos atuais, conscientes e

    inconscientes 4[4] (CHEMAMA, 1995: 71).

    No fundo, os revolucionrios se acham no direito de obrigar todos a serem felizes de acordo com uma suposta felicidade proletria. Para Freud, trata-se de uma viso mtico-religiosa, que influenciada pela concepo de um paraso perdido, como cr as religies. A abstrao de uma felicidade conduzida pelo proletariado no poder estaria na contramo de I. Kant quando diz que ningum pode me obrigar a ser feliz a sua maneira". Porque, somente o proletariado concebido como sem diviso de classe forneceria o modelo nico, a forma definitiva, para todos serem felizes na simplicidade, fraternidade, igualdade e justia.

    4[4] Por exemplo, o olhar do pai, presente no fantasma, seria muito mais importante [para a constituio do sujeito] do que o prprio pai. O mesmo ocorre com o seio da me que amamenta o filho, o chicote manejado pelo professor que pune a criana ou o tato com o

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    Diferente dos animais, no mundo demasiadamente

    humano, as necessidades so atravessadas pelo

    fenmeno da linguagem, porta-voz das demandas. A

    criana demanda [pede, solicita] me que lhe fornea o

    objeto de sua necessidade para ela eliminar sua falta-

    para ter. S que a demanda sempre demanda por

    outra coisa, funcionando como pretexto para conseguir

    "algo" de que o sujeito sente falta e que pressupe que o

    outro disponha a fornec-lo reconhecimento e amor.

    Portanto, no somente existe nela (criana ou adulto) a

    necessidade do objeto "alimento x", mas sobretudo

    sempre existe uma "demanda para ser reconhecida e

    amada". No fundo, queremos ser preenchidos, plenos, ou

    seja, almejamos uma impossibilidade. Porque, a demanda

    a solicitao de uma presena ou de uma ausncia, e

    sempre dirigida ao Outro, como um pedido de amor e

    uma expectativa de preenchimento absoluto, de fuso

    das almas, de plenitude.

    A demanda e o desejo fazem aparecer outro registro da

    falta - "a falta-a-ser". Acontece que, a satisfao do

    desejo sempre adiada e nunca atingida, portanto, no

    fundo, o desejo busca o impossvel. Seria o incesto?

    Restando-lhe sempre insatisfao, o desejo se v

    obrigado a buscar outro caminho, a realizao. Atravs

    qual tortura a vtima (...). Ou seja, esses objetos do fantasma funcionam no apenas como objetos, mas tambm enquanto significantes. O prprio Freud, alis, tinha destacado a grande sensibilidade de seu paciente [O homem dos ratos] a toda uma srie de palavras, inclusive o fonema rato (CHEMAMA, op. cit.: 71-2).

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    de meios-objetos como a fantasia do seio, o sintoma, um

    beijo, o gozo da droga, o gozo do poder poltico, o gozo

    do discurso terico da f, o gozo do rico que priva o outro

    de tambm ter, o gozo de quem imputa sofrimento a

    outrem etc. Todas essas formas de realizao so

    marcadas por insatisfaes primitivas que se atualizam. O

    sujeito vive em estado de excitao contnua: prazer e

    desprazer ao mesmo tempo. A pulso e o desejo nos

    diferenciam dos animais estes so seres de puro instinto,

    seres de necessidade. Os seres humanos por serem

    desejantes, seres de linguagem so condenados a sentir,

    primeiro mal-estar e angstia, depois por serem

    impulsionados para algo que se supe trazer a felicidade,

    um estado de completude de no falta.

    O que nos sustenta uma fico construda e dependente

    da memria de que um dia fomos para o desejo do Outro

    primordial (me), que nos acolheu em nosso desamparo

    de recm nato. E neste ncleo de nada, de ter sido o

    desejo do Outro que nos sustentamos, buscando

    incessantemente o reconhecimento nos olhares dos

    outros nossos semelhantes.

    Por vezes isso se faz s custas de fazermo-nos sofrer em

    demasia. O sofrimento dos neurticos provm da

    angstia de no desejar em conformidade com o super-

    eu (Nasio, 1993); pois para advir como sujeito, a que

    renunciar a essa plenitude (de ter sido o tudo para o

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    outro) se adequando em conformidade com as exigncias

    do social.

    Continuando. O desejo, no fundo, sempre procura

    realizar a nostalgia do objeto perdido, que habita no

    inconsciente, isto , no lugar do "no-sabido". (Em

    alemo, a lngua de Freud, Unbewusste quer dizer: no-

    sabido). Ento, o objeto no-sabido e recalcado do desejo

    est condenado a repetir na atualidade o que no passado

    remoto possivelmente foi prazer e depois virou gozo5[5].

    Portanto, tal como entende a psicanlise, o desejo

    implica num desvio ou perverso da ordem natural ou

    biolgica. Deixando de ser instintivos, os humanos se

    orientam pela ordem pulsional e desejante, ou seja, no

    somos mais movidos pela fora instintiva, que apenas

    matriz do comportamento dos animais ditos irracionais.

    Somos seres simblicos, marcados pela desnaturalizao

    empreendida pela cultura. Somo movidos sempre por

    outra coisa. Se fssemos somente instinto e

    necessidade, seramos como os animais, que parecem

    felizes quando cumprem com seu ciclo biolgico de fome

    e sexo. O animal satisfeito deve ser feliz. Mas, o mesmo

    5[5] Gozo no prazer, mas o estado que fica alm do prazer; ou, para retomarmos os termos de Freud, ele uma tenso, uma tenso excessiva, um mximo de tenso, ao passo que, inversamente, o prazer um rebaixamento das tenses (...); o gozo ... alinha-se do lado da perda e do dispndio, do esgotamento do corpo levado ao paroxismo de seu esforo. O termo mais-gozar proposto por Lacan, inspirado na mais-valia de Marx. Por exemplo, a economia libidinal do neurtico o faz mais-gozaratravs do sonho, j que ele supe o gozo do Outro como um gozo impossvel, ao passo que o perverso o toma com realizvel. Assim, para o neurtico impossvel imaginar a morte, a loucura, a felicidade suprema. J o perverso no imagina o gozo, mas busca-o, persegue-o e julga ser possvel capt-lo. Nasio, observa que quando [o perverso] espreita atrs de uma rvore, o voyer quer captar o xtase dos amantes, sem, no entanto, ter nenhuma imagem prvia na cabea (p.135).

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    no acontece com os seres humanos. Podemos ter tudo

    e ao mesmo tempo sentir vazio existencial; podemos

    sentir prazer6[6] e ao mesmo tempo colher desprazer em

    nossos atos demasiadamente humanos. Se estivssemos

    presos ao instinto, ainda teramos cio, faramos sexo

    somente em determinada poca do ano apenas para

    procriar; comeramos apenas para matar a fome e no

    para degustar para comida de um famoso restaurante e

    beber um vinho de uma safra x, servido em um copo

    especial, etc, etc. Entretanto, a condio humana de ser

    desnaturalizado, desejante, cultural, complica a sua

    conquista para ser feliz, embora possamos

    eventualmente experimentar alguns momentos de

    felicidade7[7], como o gozo sexual, o recebimento de

    uma promoo no trabalho, ganhar um prmio, ver

    nascer um filho, etc.

    Essa distino importante porque, alm de distinguir a

    categorias da satisfao e da realizao, tem

    importantes conseqncias na conduo da clnica

    psicanaltica, na poltica e na concepo sobre a

    construo da civilizao. Uma psicoterapia baseada na

    satisfao das necessidades dos pacientes constitui um

    6[6] Na Carta a Meneceu, Epicuro baseia no prazer os alicerces da felicidade. Ele "o princpio e o fim da vida bem aventurada". No um prazer desbragado, evidentemente, mas comedido. "Quando falamos do prazer como um fim avisa Epicuro no falamos dos prazeres dos dissolutos ou daqueles que tm o gozo por residncia como o imaginam algumas pessoas que ignoram a doutrina, no concordam com ela, ou so vtimas de uma falsa interpretao mas de alcanar o estdio em que no se sofre do corpo e no se est perturbado da alma." (apud Pereirinha, 1997).

    7[7] Felicidade no existe... o que existe so os momentos felizes, parece no ser uma frase original do cantor brega, Odair Jos, mas de um obscuro pensador, Terrier (?).

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    grave equvoco, enganao, e pode abrir caminho para

    a perverso da relao profissional, chamada por Freud

    (1974: v. XI) de psicanlise selvagem. No centro da

    teoria e da prtica psicanalticas est o desejo, diz Freud.

    No a necessidade, mas o desejo. E, no final de um

    processo de psicanlise onde estava o isso *id+ o eu

    [ego] deve advir. Esse princpio tem correspondncia no

    campo poltico. Uma ideologia poltica movida apenas

    para proporcionar a satisfao da necessidade coletiva

    comea por confundir o que necessidade, desejo e

    demanda. Ela poderia proporcionar bem-estar coletivo,

    sade fsica, boa educao, mas poderia ser um fracasso

    quanto realizao das potencialidades subjetivas. As

    experincias do socialismo real demonstram o quanto s

    pessoas podem ser gratas ao sistema sustentar uma boa

    sade e boa educao, mas, com medo, reclamam sobre

    a falta de liberdade para ser.

    certo que a necessidade quando preenchida leva o

    sujeito a obter a sensao de satisfao. Mas, no o leva

    o leva sentir-se feliz. Isto acontece porque o desejo,

    jamais satisfeito" (GARCIA-ROZA: 144). Por que, ento,

    o desejo humano jamais satisfeito?

    Sujeito x felicidade

    Para Freud, o desejo o que pe em movimento o

    aparelho psquico e o orienta segundo a percepo do

    agradvel e do desagradvel. O desejo nasce da zona

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    ergena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma)

    somente pode se satisfazer apenas parcialmente. Como

    j foi dito, ele realiza-se no movimento de querer-mais-e-

    mais. Como formula Lacan, "O desejo sempre o desejo

    de um outro desejo. O desejo humano algo sempre

    adiado, intervalar. O desejo vive de sua insatisfao,

    resguardada esta estranha funo: a funo de

    insatisfao (MASOTTA, 193: 83-4 grifo nosso).

    O desejo jamais satisfeito porque tem origem e

    sustentao da falta essencial que habita o ser humano,

    daquilo que jamais ser preenchido e, por isso mesmo o

    faz sofrer, mas tambm o impulsiona para buscar

    realizao ou satisfao parcial no mundo objetivo ou

    na sua prpria subjetividade (sonhos, artes, projetos

    utpicos, f no absoluto, etc). O que entendemos por

    sujeito construdo desse circuito onde a libido sempre

    tem um excesso que sustenta o movimento desejante. O

    sujeito em psicanlise dividido; o sujeito no o in-

    divduo (ver nota de rodap n. 2). Com o sujeito, faz surgir

    uma histria com seus atos de melhoria e transformao.

    " pela ao de assimilar o objeto que o homem se v

    como oposto ao mundo exterior. O primeiro desejo um

    desejo sensual: o desejo de comer, por exemplo, atravs

    do qual o homem procura suprimir ou transformar o

    objeto assimilando-o(GARCIA-ROZA,1983: 141).

    A afirmao freudiana que diz que o mundo movido

    pela fome e pelo amor tambm traz srias

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    conseqncias prticas, para alm da biologia, da

    psicologia, da poltica, etc. Somente um pensamento

    complexo que est por ser inventado poder dar conta

    dessa questo. Evidentemente, o sujeito humano sempre

    buscou, para si e para todos, primeiro, a sobrevivncia

    fsica e, depois, a realizao de alguns projetos para alm

    da necessidade, representados pelos sonhos, a arte e os

    projetos polticos utpicos8[8]. Entretanto, preciso

    reconhecer que na dimenso onrica que o desejo se

    realiza, por meio do disfarce. S assim ele pode ser feliz.

    Porque, na dimenso concreta da realidade, jamais o

    sujeito poder conquistar a felicidade. A realidade do

    mundo, dos acontecimentos e dos fatos, sempre frustra

    nossa capacidade desejante de preenchimento ou a

    sensao de ser feliz.

    Portanto, no podemos associar a satisfao das

    necessidades com a felicidade. A arte, a poltica, a f

    religiosa ou laica, prometem, mas no cumprem a

    aspirao de proporcionar felicidade realistaao ser

    humano, porque ele est a priori condenado a

    insatisfao, a angstia e deve se contentar apenas com

    os momentos de satisfao parcial ou realizao ilusria.

    8[8] O homem se sustenta na existncia porque cultiva utopias, diz E. Bloch. No nos livramos do desejo, a no ser nos enganando. Para este autor, esta seria uma funo utpica, que se encarregaria de afixar em cada realizao crtica do melhor, do mais, em nome do possvel. O homem no um ser feliz, absolutamente; sua felicidade est na busca diria da felicidade. Este aguilho o faz andar. At morte buscar a felicidade, certo de que foi apenas relativamente feliz e de que poderia ter sido muito mais feliz, guardando em si um desejo absoluto de felicidade. Ou seja, enquanto brilhar no ser humano a esperana a felicidade possvel, no como algo posto no futuro mas como algo que acontece no dia a dia, embora nem sempre consigamos aperceber ... (Demo, 1981: 188).

  • 12

    Talvez, o sujeito humano pudesse estar mais prximo da

    felicidade quando sonha ou elabora projetos de uma vida

    feliz. Desde Agostinho, passando por Leibniz, e Spinoza, a

    falta essencial est associada ao mal radical do ser

    humano9[9]. No porque ele um ser diablico, mas

    porque um ser eternamente propenso a buscar, buscar,

    buscar. Este estado de mal-estar do ser humano fundou

    a cultura ou civilizao. Imperfeita em todos os aspectos,

    esta civilizao faz surgir movimentos diversos visando

    melhor-la ou destru-la, para reconstru-la em outras

    bases. O mal-estar de nossa civilizao nada mais ,

    segundo Freud, que o reconhecimento de que estamos

    condenados a uma economia libidinal baseada no mais-

    gozar. Enquanto a mais-valia sustenta a economia

    capitalista, em Marx, o mais-gozar sustenta a economia

    libidinal do sujeito, em Lacan. na repetio que o sujeito

    goza. E, enquanto goza, feliz. feliz tanto na

    felicidade passe a expresso como na infelicidade,

    no bem como no mal, no prazer e na dor (PEREIRINHA,

    1997).

    O desenvolvimento biotecnolgico parece prometer uma

    felicidade que no se cumpre (vide o alto ndice de

    depressivos, apesar do Prozac).

    A psicanlise no ensina o sentido da vida, mas ao

    questionar sua histria e suas escolhas, permite ao

    9[9] Um belo estudo sobre esse assunto de L.A. Garcia-Roza. O mal radical em Freud. Rio: Jorge Zahar, 1990.

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    sujeito encontrar um sentido para sua vida, do que possa

    ser as felicidades possveis, sendo ele o autor de sua

    prpria histria.

    Embora parea pessimista essa afirmao psicanaltica,

    no impede que continuamos tendo como meta de vida

    ser-feliz, no a maneira do desejo dos outros (Kant), que

    sempre esto prontos para nos empurrar sua filosofia,

    cincia, f, ou ideologia poltica totalitria, fazendo de

    nossa vida um inferno.

    A felicidade no pode ser produto de uma alienao,

    enganao ou delrio. Os recentes estudos sobre a

    felicidade apontam que ela ser inventada por um sujeito

    que aprendeu a conhecer melhor a si prprio e o mundo

    em que vive. Conhecer-se a si mesmo uma grande

    valia para a felicidade, tanto para termos noo mais

    concreta de nossas potencialidades quanto para

    sabermos dos nossos defeitos (DEMO, 2001).

    O procedimento da auto-anlise, sem dvida, pode

    conduzir o sujeito para desenvolver a coragem de

    construir um estilo de vida com autocrtica e

    compromisso de melhorar alguns aspectos da prpria

    vida e dos outros, tambm. Alguns estudos confirmam

    antigas sentenas filosficas que j apontavam sobre o

    melhor caminho para a felicidade: o altrusmo e a

    manuteno das amizades. (Ningum pode ser feliz sem

    amigos, dizia o velho Aristteles. As pessoas felizes de

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    nossa poca so aquelas que ajudam o prximo, conclui

    a pesquisa de A. Maslow). Em vez de ficar

    obsessivamente buscando a felicidade, deveramos

    sustentar uma certa alegria de viver10[10] no nosso

    prprio eu, e que pudesse ser irradiada para tambm

    animar o prximo. Seria uma alegria que nasce da

    verdade ou sabedoria11[11].

    Esta concepo sobre a alegria de viver aparece numa

    rara entrevista de Freud, no auge de usa trajetria como

    pensador e clnico. Diz ele:

    Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena

    humildade (...) No, eu no sou pessimista, no enquanto

    tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! No sou

    infeliz ao menos no mais infeliz que os outros.

    10[10] Lacan, numa entrevista a rdio francesa, assim teria respondido.

    11[11] Comte-Sponville, A. 2001.