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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
I SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP
26 A 30 DE NOVEMBRO DE 2012 – SÃO PAULO/SP
DOIS MUNDOS, DOIS PROJETOS DE HISTÓRIA:
Ambiguidades na epopeia de Euclides da Cunha
José Edilson Teles
RESUMO
Este ensaio tem como objetivo explorar a construção de valores de dois mundos em tensão,
a saber, os ideais republicanos e seu modelo europeu de progresso em contraste com a
cosmologia dos sertanejos de Canudos e seu modelo escatológico de história, tendo como
eixo da reflexão a noção de ambiguidade em Os sertões (1902) de Euclides da Cunha.
Pretende-se fazer breves apontamentos que possibilitem a compreensão de dois projetos de
história em oposição, operado pela lógica interna de ambos os mundos. Trata-se de um
exercício antropológico na tentativa de compreender o contexto vivencial dos atores sociais.
Palavras-chave: Euclides da Cunha, ambiguidade, República, Canudos.
Uma versão preliminar desse ensaio foi apresentado como trabalho à disciplina “Política VII: Formação e o
desenvolvimento político do Brasil”, no primeiro semestre de 2012, ministrado pelo prof. Ms. Rodrigo Estramanho de Almeida, a quem agradeço pelos comentários e sugestões ao texto. Graduando em Sociologia e Política (8º semestre) pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP.
1
“Espaço dos possíveis”: a propósito das ambiguidades em Euclides da Cunha
Tido por especialistas como precursor de uma tradição histórico-literária e uma das
mais importantes interpretações do chamado “Brasil profundo”, Os sertões (1902) de
Euclides da Cunha (1866-1909), guarda na mesma proporção de seu estilo e maestria uma
complexidade que o torna sempre alvo de renovadas objeções. Trata-se, especialmente, de
suas variadas facetas – ora pela descrição jornalística e sensibilidade literária e ora pela
observação sociológica e alteridade antropológica – caracterizadas por ambiguidades na
interpretação do conflito entre dois mundos, a saber, os ideais republicanos e a cosmologia
dos sertanejos de Canudos.
Este ensaio pretende ser um exercício antropológico cujo objetivo é compreender a
construção dos valores de dois mundos, tendo como eixo da reflexão a posição discursiva
ocupada por Euclides da Cunha em Os sertões (1902), comumente acionada pela literatura
como ambiguidade (VENEU, 1986; VENTURA, 1997, POMPA, 2004; WEFFORT, 2006).
Tal exercício, embora não tenha pretensão de “originalidade”, deve esforçar-se por
fornecer um “novo” modo de colocar as questões, ainda que possua um caráter ensaístico e
fragmentário, como é o presente caso. De acordo com Louis Dumond (1992, p. 50), deve
tratar-se de um exercício de perspectivação ou relativização dos valores sob os quais as
leituras teóricas são produzidas. Nada mais interessante para a reflexão antropológica do
que o reconhecimento da “posição” sempre móvel e ambígua ocupado pelo próprio
pesquisador.
Sem pretensão de esgotar a questão, debruço-me de modo específico num problema
em torno da noção de ambiguidade a fim de compreender a posição discursiva da
interpretação euclidiana dos valores de dois mundos em oposição. Em que consiste tal
problema?
Preciso esclarecer que a noção de ambiguidade é pensada aqui como uma posição,
um lugar “de onde” e “para onde” os atores sociais falam, de modo que pode ser uma
categoria útil na compreensão de um determinado contexto histórico e social. Pensar desse
modo possibilita escapar da armadilha etnocêntrica que coloca a ambiguidade num jogo de
2
acusações. Parece-me um exercício fundamental para compreender uma obra literária com
tantas facetas e estilos como Os sertões.
O problema em torno da noção de ambiguidade é que por vezes é sempre acionada
como uma categoria de acusação nos resultados de uma dada interpretação, sem levar em
conta o contexto vivencial dos atores sociais. Essa desvantagem impossibilita pensar na
ambiguidade como um recurso de contextualização, ou seja, o “situar” os atores envolvidos
nas relações, bem como situar-se (GEERTZ, 1989) em relação à leitura que fazemos desse
contexto.
É o caso, por exemplo, de trabalhos como o de Roberto Ventura, para quem “Euclides
projetou sobre o Conselheiro muitas de suas obsessões pessoais, como o temor da
irracionalidade, da sexualidade, do caos, da anarquia” (1997, p. 166), sugerindo que “sua
observação foi prejudicada” por sua formação intelectual (p. 168). Outro exemplo pode ser
observado em Francisco Weffort ao argumentar que Os sertões, “permanece ainda como
exemplo de como eram lamentavelmente míopes as oligarquias fundadoras da República”
(2006, p. 228). Sob tais condições históricas, haveria outra possibilidade? Não seria mais
proveitoso compreender pelo que “foi” e não pressupor como “deveria” ser? Aliás, um olhar
sobre o que “foi” também não implica em ambiguidades?
Em contraposição, sustento a hipótese de que Euclides da Cunha ocupa diferentes
posições na descrição que faz destes episódios: ora denuncia os exageros da civilização em
relação aos pobres sertanejos, ora se simpatiza com aqueles a quem descreve como
“fanáticos” e “supersticiosos”. Sua denúncia à República implica em atribuir às suas ações, as
mesmas atitudes que os civilizados costumavam atribuir aos bárbaros.
A noção de posição discursiva aqui empregada é inspirada no conceito de “espaço
dos possíveis” de Pierre Bourdieu (1996). Trata-se de um contexto vivencial, lugar onde
podemos situar as posições dos atores sociais. Sendo assim, destaco pelo menos dois modos
de encarar o problema: o primeiro diz respeito à posição dos atores sociais e o segundo
posição que ocupamos na interpretação desse contexto.
A partir daí, elaboro a primeira questão: considerando a multiplicidade das posições
ocupadas pelos atores sociais, não há dimensão da vida social que não seja “ambígua”. Fruto
das condições históricas de seu tempo, as ambiguidades em Euclides da Cunha – como em
3
qualquer outro autor – devem ser contextualizadas e relativizadas a fim de evitar
anacronismos.
Para Bourdieu, a posição dos atores sociais só pode ser apreendida por meio da
trajetória, cujo modelamento do habitus é construído no “espaço dos possíveis”.
A relação entre as posições e as tomadas de posição não tem nada de uma relação de determinação mecânica. Entre umas e outras se interpõe, de alguma maneira, o espaço dos possíveis, ou seja, o espaço de tomadas de posição realmente efetuadas tal como ele aparece quando é percebido através das categorias de percepção constitutivas de certo habitus, isto é, como um espaço orientado e prenhe das tomadas de posição que aí se anunciam como potencialidades objetivadas, coisas a ‘fazer’, ‘movimentos’ a lançar, revistas a criar, adversários a combater, tomadas de posições estabelecidas a ‘superar’, etc. (BOURDIEU, 1996, p. 265).
Portanto, busco pensar a noção de ambiguidade como uma posição discursiva
ocupada por Euclides da Cunha e buscar compreender a dinâmica da vida social neste
contexto vivencial.
Em contrapartida, a posição que ocupamos como pesquisador deve ser colocado em
suspeição, uma vez que, como diria Roberto Cardoso de Oliveira, “a partir do momento que
nos sentimos preparados para investigação empírica, o objeto sobre o qual dirigimos nosso
olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo” (OLIVEIRA, 1996, p. 15).
Chego então âmago da segunda questão, aparentemente simples: não se trata de verificar
como Euclides da Cunha “deveria” ter interpretado pressupondo o estado atual do modo
como vemos, mas quais as condições que possibilitou a dada interpretação. Isso abre
caminhos para considerar a ambiguidade como posições discursivas dos atores sociais, sem
pressupor um estado “puro” de fatos sobre a qual as “interpretações” deveriam convergir.
No que diz respeito à antropologia, Clifford Geertz (1989) – na linha de hermeneutas
como Paul Ricouer (2008), para quem a noção de “interpretação” implica na ideia de
“tradução” de um conjunto de códigos para outro – definiu a principal ferramenta da
disciplina – a etnografia – como uma “tentativa de leitura”, como a “construção” de uma
leitura por meio de outra. Para Geertz, a cientificidade do texto antropológico não consiste
na descrição “da” realidade objetiva, mas num “situar-se” (1989, p. 10), ou seja, o
4
antropólogo precisa imaginar o lugar que ocupa frente às diversas posições ocupadas pelos
nativos. Desse modo, “os texto antropológicos são eles mesmos interpretações e, na
verdade, de segunda e terceira mão” (1989, p. 11).
Assim, uma “interpretação” ou mesmo uma “teoria” para os casos de ciências sociais,
não são concebidas como correspondentes diretas do mundo objetivo – como pretendia o
positivismo – mas como uma “ficção”, não no sentido de algo “falso”, mas no sentido
geertziano de “algo construído” (GEERTZ, 1989, p. 11).1
Roy Wagner (2010), por exemplo, chamou-nos atenção para o fato de que a
descrição do outro implica sempre numa extensão que o observador faz de seu próprio
entendimento, isto é, implica num processo de “invenção” marcado por ambiguidades. O
outro inventado e projetado é colocado nas categorias dadas pelos elementos culturais do
observador. De acordo com Roy Wagner, para quem a “cultura é ambígua”, a “antropologia
em grande medida existe por explorar essa ambiguidade” (2010, p. 106).
Em suma, ao pensar a posição discursiva dos atores sociais, e neste caso específico,
mapear estas posições por meio de uma obra literária como Os sertões, este ensaio
pretende explorar a construção de valores de dois projetos de historia em tensão.
Perguntar-nos pelo “lugar” e pelas condições que moldam este lugar, isto é, as posições
discursivas ocupadas pelos atores sociais, nos possibilita superar uma leitura unilinear, onde
a noção de ambiguidade aparece sempre como um “desvio” narrativo ou descritivo. Embora
a questão seja colocada em termos dualísticos, o mesmo não deve ser visto como um
procedimento rígido, mas como um recurso analítico de contextualização histórico-literária
das variadas posições ocupada pelos atores sociais. Em outras palavras, trata-se de colocar
em contrastes as variadas ambiguidades.
Dois mundos, dois projetos de história: a propósito de uma contextualização.
1 A “interpretação” é tão móvel quanto às posições ocupadas por seus interpretes. Portanto, não faz sentido pensar numa
dimensão da vida social que não seja ambígua e móvel. Os trabalhos de Roy Wagner (2010) e James Clifford (2011) constituem uma fonte interessante para o aprofundamento desta questão, especialmente à teoria antropológica.
5
A partir da leitura de Os sertões de Euclides da Cunha pode-se observar a disparidade
entre os valores de dois mundos moldados por constantes transformações sociais e tensões
históricas. A complexidade desse contexto vivencial consiste na posição discursiva ocupada
por Euclides na descrição, por um lado, de um projeto de história gestado pela noção de
ordem e progresso partilhado pelos republicanos (inclusive por Euclides) e por outro, um
projeto de história escatológica construída e partilhada pelos sertanejos de Canudos.
A literatura antropológica dedicada à interpretação dos episódios que envolveram os
ideais republicanos e canudenses entre os anos de 1840 e 1900, embora sejam orientadas
por perspectivas teóricas diferentes, são unanimes quanto à complexidade de compreensão
que os partidários da República tiveram em relação aos sertanejos de Canudos (MONTEIRO,
1985; VENEU, 1986, GIUMBELLI, 1997; POMPA, 2004).
Esta estrutura dualística, tão explorada pela literatura, aparece na interpretação de
Euclides da Cunha por meio da clássica oposição entre “litoral”, cujos valores e projetos de
história estariam relacionados às ideias de “progresso” e “civilização” em contraste com o
“sertão”, cujos valores e projetos de história estariam associados ao “atraso” e “barbárie”. É
nesse sentido que, de acordo com Cristina Pompa, “Euclides da Cunha inaugura aquela
tradição histórico-literária que identifica o sertanejo em seu fanatismo. De fato, Os sertões
constitui um protótipo da atitude contraditória com que a consciência urbana e civilizada se
debruçava sobre o homem do sertão com fim de estudá-lo” (POMPA, 2004, p. 73). De
acordo com a autora:
Desde Euclides da Cunha, enquanto o Estado nacional se preocupou as manifestações tão “desviantes” de uma parte significativa da população, a cultura letrada brasileira se aproximou dessas manifestações populares de uma forma ambígua, entre a estranheza piedosa em face do incompreensível “fanatismo” e o esforço de sua definição “científica” (POMPA, 2004, p. 72).
Retomando a terminologia de Bourdieu, como compreender o “espaço dos possíveis”
do contexto vivencial de Euclides da Cunha? Roberto Ventura chama-nos atenção para as
condições históricas moldadas pelas ideias positivistas e evolucionistas, bases da formação
intelectual do século XIX, sob a qual Euclides da Cunha havia sido educado (1997, p. 168).
6
Nascido em 1866 no Rio de Janeiro, Euclides cursou engenharia numa instituição de
formação civil, recebendo uma educação na Escola Militar da Praia Vermelha, instituição
influenciada pelas ideias filosóficas que circulavam pela Europa do século XIX.
A formação intelectual do século XIX, bem como as interpretações que se faziam da
vida social de então devia, sobretudo, aos modelos importados das ciências naturais e suas
leis universais, tal como ficou sistematizado pela exposição de Auguste Comte (1798-1857),
acerca da lei dos “três estados”. Segundo Comte, a humanidade teria necessariamente
passado por sucessivos estágios de evolução, conforme leis fixas e universais, sendo o
primeiro definido como estado teológico, entendido como uma “infância” da humanidade,
caracterizada pela explicação mitológica da realidade; o segundo estágio foi classificado
como metafísico-abstrato, fase em que a realidade passa a ser conceituada, identificada com
a fase “filosófica”; e, por fim, o terceiro estágio, classificado como positivo-científico, que
corresponderia à fase “adulta” da humanidade, segundo a qual a realidade seria
interpretada pela razão cientifica e técnica (COMTE, 1978, p. 3-4). Seria por meio desta
forma de pensar que a humanidade poderia ser levada ao “progresso”, destino inevitável de
sua evolução social.2
É neste contexto que os valores republicanos, base da formação de Euclides da
Cunha, haviam sido moldados. Embora a República não tenha se constituído como uma
revolução no sentido clássico que é atribuído às grandes transformações sociais e políticas,
sendo mais vista como um “ato caracteristicamente conservador, um capítulo de
acomodação” (NETTO, 1990, p. 165), e ainda que não tenha produzido “correntes
ideológicas próprias”, conforme aponta José Murilo de Carvalho, pode-se afirmar de acordo
com o mesmo autor, que seu ideal foi gestado por diferentes vertentes do pensamento
europeu (1987, p. 24), especialmente pelo positivismo comtiano com a ideia de evolução 2 Na tradição antropológica do século XVIII e XIX, este modelo ficou conhecido como “evolucionismo social ou cultural” e
relacionado à Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941) (CASTRO, 2005). Influenciados pelo evolucionismo darwiniano e pelo positivismo comtiano, estes autores, pressupunham que a humanidade havia também passado por estágios sucessivos de evolução social até chegarem ao estado “civilizado”. Tendo obedecido a uma evolução unilinear, a humanidade teria necessariamente passado pelo estado de “selvageria”, sucedido por um estado de “barbárie”, e, consequentemente rumo à “civilização”. As crenças e ritos dos mais variados povos eram colocados numa escala hierárquica, a fim de medir o desenvolvimento intelectual do homem. Neste contexto, práticas religiosas consideradas “primitivas” e encontradas no mundo civilizado, eram tidas como “sobrevivências” de estágios anteriores que ainda resistiam como “superstições” e “crendices”, devendo ser superadas. Tendiam a ver a religião como um sistema “falso” no modo de conceber o mundo, portanto, um problema para desenvolvimento social do homem moderno. Além disso, acreditavam num progresso moral da humanidade, pressupondo os valores da civilização europeia como o topo desta evolução.
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natural das fases da história, ápice do pensamento do século XIX, que em solo nacional,
Roberto Schwarz (1987) chamou de “ideias fora do lugar”.
Desse modo, pode-se perceber que o projeto de civilização empreendido pela
República ao partilhar da concepção positivista de história, segundo a qual o progresso seria
alcançado graças ao exercício da razão, justificava classificar seus opositores como
“monarquistas bárbaros”, vistos como obstáculos do progresso histórico. Para Euclides, estes
modelos europeus apresentavam-se como uma força inevitável às aspirações republicanas,
de modo que dizia: “estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.”
(CUNHA, 1982, p. 60).
Assim, a noção de projeto histórico elaborado pelos valores republicanos toma como
base a convicção de superação do “atraso” em que se encontravam. Nos termos de Marcos
Guedes Veneu, “os jovens oficiais assim formados consideravam-se cidadãos-soldados e
buscavam, através da intervenção na política, promover reformas sociais, defendendo a ideia
de uma ‘ditadura republicana’ para eliminar o atraso do país” (VENEU, 1986, p. 41). Nesse
sentido, a noção de civilização e seus opostos correlatos são fundamentais para compreender
a ambiguidade da interpretação do conflito entre os militares da República e os sertanejos de
canudos. Relacionada à ideia de “progresso”, lema da marcha da razão na transição do século
XIX para o século XX, a noção de civilização é um dos marcos na trajetória intelectual de
Euclides da Cunha: “a civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o
mundo *...+ o seu curso, como está, é fatal, inexorável” (CUNHA, 1995, p. 587). Portanto, a
noção de civilização era entendida como uma lei necessária da fase da história humana.
Por outro lado, na leitura desse processo, grande parte da literatura sociológica
tendeu a minimizar a natureza da participação popular. Conforme Evaristo Giovannetti
Netto, “a República foi obra de militares, com discreta participação civil e participação
popular nenhuma” (1990, p. 165-166). Sem participação nesse novo cenário político, o povo
teria assistido tudo “bestializados” conforme descrição de Aristides Lobo (apud WEFFORT, p.
226). Sua presença nesse cenário político só seria percebida “por meio de algumas rebeliões
notáveis” (WEFFORT, 2006, p. 225). Quanto a isso, Veneu destaca que movimentos sociais
rurais como Canudos, apenas “existiam” na medida em que eram “considerados obstáculos
à consolidação da República” (1986, p. 40), sendo, portanto, definidos pela negatividade, tais
8
como “atraso”, “bárbaros”, etc. Esta negatividade baseava-se numa lógica política que
definia seus opositores como “anti-republicanos”, reprimindo rebeliões e supostas
tentativas de restauração da monarquia (WEFFORT, 2006, p. 226).
Entretanto, cabe-nos perguntar se estas “rebeliões” não poderiam ser concebidas
como um modo de participação popular neste contexto social. Considerando a ideia de
“espaço dos possíveis”, não seriam estas “revoltas” construídas por outro projeto de história
em questão, cuja natureza escapa de uma leitura linear?
A República e os Sertanejos: dois mundos, dois projetos de história.
A literatura antropológica se esforçou por fornecer uma interpretação dos valores
desses dois mundos em tensão. Na tentativa de explicar as diferentes noções de tempo e
história construída pelos dois mundos, Veneu, por exemplo, propôs articular os pares
antinômicos “progresso/atraso” operado pelos valores republicanos e “santidade/pecado”
operado pela dimensão mítica dos sertanejos (VENEU, 1986, p. 41). A noção de tempo e
história dos valores republicanos diz respeito à temporalidade linear, “cronológica”, numa
“escala ascendente em direção à realização do ideal do progresso” (VENEU, 1986, p. 42), ao
passo que para a cosmologia dos sertanejos de canudos, estaria relacionada a uma
temporalidade cíclica, uma espécie de “retorno ao ponto inicial de equilíbrio através da
reconciliação com Deus” (VENEU, 1986, p. 49), ou seja, orientada por uma “história da
salvação”.
A única objeção que faço a este procedimento – o que não significa demérito ao
trabalho de Veneu – deve-se ao fato de que este dualismo depende excessivamente das
atribuições que Euclides (de novo o problema da ambiguidade) faz do beato Antônio
Conselheiro, não levando em conta, que “Euclides não teve acesso, quando escreveu Os
sertões, aos dois volumes manuscritos, que o Conselheiro redigiu do próprio punho, ou ditou
a um assistente” (VENTURA, 1997, p. 175). Ou seja, o Conselheiro descrito por Euclides, é de
9
fato, uma “construção” da posição ocupada por Euclides.3 Aliás, o seria uma “construção”
em qualquer situação.
Já o trabalho de Cristina Pompa é interessante por propor uma leitura da lógica
interna, especialmente por enfatizar o plano simbólico da religião sertaneja como um modo
de compreender o plano das práticas (POMPA, 2004). Seguindo o modelo de abordagens de
Duglas Teixeira Monteiro (1974), para quem a “ideologia religiosa” constitui um universo
semântico que dá sentido ao mundo material e Alba Zaluar (1979), para quem a análise das
devoções religiosas permite compreender a dinâmica da vida social, Pompa busca
compreender as transformações sociais a partir da lógica simbólica da religião rústica do
sertão, a “cultura do fim do mundo”.
Se no caso de Veneu o dualismo é construído por uma tensão entre um projeto de
história linear empreendida pelos ideais republicanos em oposição à história cíclica-mítica
elaborada pelos valores sertanejos, no caso de Pompa, temos a inversão dos papéis
operados pela lógica simbólica. A “cultura do fim do mundo”, isto é, a dimensão da história
escatológica, é concebida como transformadora de relações do presente, de modo que os
sujeitos se tornam, a seu modo, protagonista da história. Em outras palavras, segundo
Pompa, na lógica simbólica dos sertanejos, “a relação entre mito e história se inverte, pois é
o tempo presente que pode fundar o tempo futuro, o único vivível” (POMPA, 2004, p. 77).
Nesse sentido, categorias como “beatos” e “penitentes”, possibilitariam compreender a
dinâmica social em torno do que a autora chama de “cultura do fim do mundo”, muitas
vezes manifesta como construção dos sentidos de uma “rebelião”, como é o caso de
Canudos.
Ainda a fim de contribuir para estas leituras, proponho diálogo com outro recurso de
contextualização. Ao analisar alguns aspectos das lutas dos camponeses no Brasil, Otávio
Velho (1987) sugeriu que a categoria “cativeiro”, por vezes acionada pelos cientistas sociais
de modo anacrônico, isto é, de uma teorização moderna para outro contexto, só seria bem
compreendida caso se levasse em conta o reconhecimento de uma “cultura bíblica”, de
onde esta categoria teria surgido. De acordo com Velho, categorias como essas,
3 Trabalhos mais recentes chamam atenção para o fato de que o “gnóstico bronco” do sertão, termo atribuído a Antônio
Conselheiro por Euclides, é mais uma “construção” deste (Cf. VENTURA, 1997; DOBRORUKA, s/d).
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provenientes de um contexto distintamente religioso, seriam ignoradas por pesquisadores,
que insistiriam em atribuir-lhes significados tendo em vista outras dimensões politicas e
culturais. Para Velho, o reconhecimento desta cultura bíblica como recurso metodológico
“serviria de referência para se pensar as experiências vividas”. A utilização deste recurso nas
ciências sociais, conforme Velho, lhe permitiria “atingir o nível das crenças e atitudes
profundas” (1987, p. 8).4
Categorias tais como “profecia”, “fim do mundo”, “anticristo”, entre outras,
aparecem nas atribuições que Euclides da Cunha faz dos sertanejos, especialmente dos
sermões de Antônio Conselheiro. Estas categorias ajudam a compreender a natureza das
resistências e “rebeliões” e a construção do projeto de história escatológica, entendido
como um projeto “milenarista”.5 Conforme Antônio Gouvêa Mendonça, “a junção das
crenças indígenas sobre a ‘terra sem males’ com as crenças sebastianas formou na
‘civilização rústica’ brasileira uma mentalidade messiânica” (2008, p. 351).
Estava claro para Euclides que o projeto de história escatológica dos canundenses
trava-se de uma “sobrevivência” de crenças religiosas e estava relacionado à versão do mito
lusitano que ritualizava o retorno do rei Dom Sebastião, que havia sido morto aos 24 anos na
batalha de Alcácer-Quibir, no ano de 1578, na tentativa de expansão do domínio sobre no
Marrocos.6
Expandida por meio de pregações itinerantes, como era o caso do beato Antônio
Conselheiro, no final do século XIX, esperava-se pelo retorno no rei Dom Sebastião. Em
contraposição ao projeto de história dos republicanos, que exigia o esforço humano no
desenvolvimento de seus estágios, o projeto histórico escatológico, exigia do homem uma
4 Ao considerar o que denomina de “cultura bíblica” e utilizá-la como recurso metodológico para compreensão de um
universo de valores, Velho aproxima-se de um método que os teólogos chamam de sitz im leben, isto é, um recurso que se pergunta pelo “contexto vivencial” a fim de reconstruí-lo, tendo em vista seus termos (Cf. THEISSEN, 1987). Por outro lado, com devidas ressalvas, isso não me parece tão distante do que do Bourdieu (1996) chamou de “espaço dos possíveis”, visto que a construção do habitus se dá num contexto social; também não me parece distante da proposta de “situar-se” de Geertz (1989). 5 Embora seja variado os modos de milenarismo, esta consistiria basicamente numa interpretação derivada do “Milênio”
descrito no livro de bíblico do Apocalipse, segundo o qual, deveria ser precedido por inevitáveis catástrofes, por isso, a ideia de “fim do mundo”. 6 Cabe ainda destacar o problema levantado por Roberto Ventura de que “ao contrário dos poemas e profecias citados por
Euclides, os sermões de Antônio Conselheiro não contém referencias a D. Sebastião, nem revelam expectativas da vinda de um Messias, capaz de trazer a vitória do Bem contra o Mal, ou esperanças milenaristas na criação do paraíso na terra” (VENTURA, 1997, p. 177). Isso reforça a tese de que se trata de uma construção de Euclides da Cunha.
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penitência frente ao evento que se irrompe como “juízo”, do qual nada pode fazer, a não se
“esperar”.
Aqui reside um dos esforços de Euclides para compreender os valores dos sertanejos.
Ao aproximar-se do mundo dos sertanejos, Euclides descreve o principal líder religioso de
Canudos, o beato Antônio Conselheiro e seus seguidores. Embora tenha criticado os
excessos dos ideais republicanos, também nutria certa simpatia pelos sertanejos, embora
lhes tenham permanecido “estranhos”.
Para Euclides, o beato Conselheiro representava em seu fanatismo a religiosidade de
seus seguidores. Como bem observa Weffort ao interpretar as atribuições que Euclides fazia
do Conselheiro:
A biografia de Conselheiro resume a existência da sociedade sertaneja. É por isso que, diz Euclides, o Conselheiro “arrastava o povo”. Não o arrastava porque o dominasse, “mas porque dominavam as aberrações daquele”. Também por isso, Conselheiro foi como que “impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício” (WEFFORT, 2006, p. 243-244).
Nos sermões atribuídos por Euclides a Antônio Conselheiro é possível observar o
modo como tentava compreender este “outro” mundo, isto é, de como o projeto
republicano era visto na perspectiva dos canudenses.
Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fora deste aprisco e é preciso que se reúnam porque há um só pastor e um só rebanho!... Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército... E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ela foi até os copos e ele disse: Adeus mundo! Até mil e tantos a dois mil não chegarás! (CUNHA, 1954, p. 150-151).
Na descrição de Euclides, a expectativa escatológica é observada em relação aos
sertanejos:
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Dentro da igreja, missionários recém-vindos haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus o dissera – em mau português, em mau italiano e em mau latim – estava farto dos desmandos da terra. E os desvairados foram pelos sertões a fora, esmolando, chorando, rezando, numa mandria deprimente, e como a caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram roubando (CUNHA, 1954, p. 130).
Assim, para a lógica do projeto histórico-escatológico elaborado pelos sertanejos, a
República era vista como inimiga desta realização meta-histórica, materializada
temporalmente na ideia de “monarquia” (muito embora não tenham sido monarquistas),
pois afinal, o sebastianismo continha essa base mitológica do monarca Dom Sebastião que
retornaria.
Outro sermão atribuído a Antônio Conselheiro por ocasião de uma das tentativas de
tomada sem êxito pela forma policial em Masseté (em 1893) deixa claro a interpretação que
estes faziam da República e explicaria os motivos de suas resistências:
Meus irmãos, o anti-Cristo é chegado. [...] O ataque de Masseté constituiu uma prova para nós. O meu povo é valente. O satanás trouxe a república, porém em nosso socorro vem o infante rei D. Sebastião. Virá depois o Bom Jesus separar o joio do trigo, as cabras das ovelhas. E, ai daquele que não se arrepender antes, porque tarde não adiantará. Jejuai que estamos no fim dos tempos. Belos Montes será o campo de Jesus, a face de Jeová. Os republicanos não devem ser poupados pois são todos do anti-Cristo. De hoje em diante, será ‘dente por dente e olho por olho’ (ARAS apud DOBRORUKA, p. 7. s/d).
Tal lógica escapava à compreensão dos republicanos positivistas, sendo interpretada
como “fanatismo” e “superstição”. Aliás, não faltaria a possibilidade de justificar o massacre
dos sertanejos ao identificá-los como monarquistas, embora tal postura tenha sido criticada
por Euclides.
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Considerações finais: a propósito de uma reflexão
Cabe ressaltar que o projeto histórico de civilização, altamente racionalizado como
etapas necessárias do progresso, concebe seus opositores como responsáveis pelo “atraso”
e sua ação para eliminá-los produz a figura do “herói” republicano, que em nome do
patriotismo efetiva justamente o que pretendia eliminar. É nesse sentido que Francisco
Weffort coloca a questão: “em nome de uma luta da civilização contra a barbárie, o exército
da República esmagou os pobres fanáticos do interior” (2006, p. 227).
Por outro lado, o projeto histórico escatológico, cuja temporalidade seria mítica, teria
como caraterística suspende o tempo profano, isto é, o tempo linear, e nesta ação produziria
as figuras dos “santos” e dos “mártires”, personagens que se colocam no limiar deste tempo
escatológico ou sagrado. É neste sentido que as resistências e os rituais de penitencias
frente à um juízo iminente podem ser compreendidas.
Em suma, a proposta desse ensaio foi tentar compreender as múltiplas posições
ocupadas pelos atores sociais, tomando como eixo da reflexão Os sertões de Euclides da
Cunha. Diante dos contrastes apresentados pelos dois mundos é que a noção de
ambiguidade pode tornar-se um instrumento de leitura de um determinado contexto social.
Cabe ainda ressaltar, que este ensaio – apresentado de forma rudimentar – não teve
a pretensão de esgotar tal questão, mas apenas apontar novos caminhos de reflexão,
podendo mesmo ser desenvolvido um projeto de pesquisa mais amplo com objetivo de
explorar tais questões.
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