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Fundamentos de Filosofia - Lições Preliminares. Manuel Garcia Morente. Editora MESTRE JOU. Lição I - O CONJUNTO DA FILOSOFIA 1. A FILOSOFIA E SUA VIVÊNCIA. — 2. DEFINIÇÕES FILOSÓFICAS E VIVÊNCIAS FILOSÓFICAS. — 3. SENTIDO DA PALAVRA «FILOSOFIA». — 4. A FILOSOFIA ANTIGA. — 5. A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA. — 6. A FILOSOFIA NA IDADE MODERNA. — 7. AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS. — 8. AS CIÊNCIAS E A FILOSOFIA. 9. AS PARTES DA FILOSOFIA. 1. A filosofia e sua vivência. Vamos iniciar o curso de Fundamentos da Filosofia propondo e tentando resolver algumas das questões principais desta disciplina. A filosofia é, de imediato, algo que o homem faz, que o homem tem feito, o que primeiro devemos tentar, pois, é definir esse "fazer" que chamamos filosofia. Deveremos, pelo menos, dar um conceito geral da filosofia, e talvez fosse a incumbência desta primeira lição explicar e expor o que é a filosofia. Mas isto é impossível. É absolutamente impossível dizer de antemão o que é filosofia. Não se pode definir a filosofia antes de fazê-la; como não se pode definir em gerai nenhuma ciência, nenhuma disciplina, antes de entrar diretamente no trabalho de fazê-la. Uma ciência, uma disciplina, um "fazer" humano qualquer, recebe seu conceito claro, sua noção precisa, quando já o homem domina este fazer. Só se sabe o que é filosofia quando se é realmente filósofo. Que quer dizer isto? Isto quer dizer que a filosofia, mais do que qualquer outra disciplina, necessita ser vivida. Necessitamos ter dela uma "vivência". A palavra "vivência" foi introduzida no vocabulário espanhol pelos colaboradores da Revista de Ocidente, como tradução da palavra alemã Erlebnis. Vivência significa o que temos realmente em nosso ser psíquico; o que real e verdadeiramente estamos sentindo, tendo, na plenitude da palavra "ter". Vou dar um exemplo para que se compreenda bem o que é "vivência". O exemplo não é meu, é de Bergson. Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo muito bem; observar um por um os diferentes nomes das ruas; estudar suas direções; depois pode estudar os monumentos que há em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode revistar as séries das fotografias do Museu do Louvre, uma por uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos pode este homem procurar

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Fundamentos de Filosofia - Lies Preliminares. Manuel Garcia Morente. Editora MESTRE JOU.

Lio I - O CONJUNTO DA FILOSOFIA

1. A FILOSOFIA E SUA VIVNCIA. 2. DEFINIES FILOSFICAS E VIVNCIAS FILOSFICAS. 3. SENTIDO DA PALAVRA FILOSOFIA. 4. A FILOSOFIA ANTIGA. 5. A FILOSOFIA NA IDADE MDIA. 6. A FILOSOFIA NA IDADE MODERNA. 7. AS DISCIPLINAS FILOSFICAS. 8. AS CINCIAS E A FILOSOFIA. 9. AS PARTES DA FILOSOFIA.

1. A filosofia e sua vivncia.Vamos iniciar o curso de Fundamentos da Filosofia propondo e tentando resolver algumas das questes principais desta disciplina.A filosofia , de imediato, algo que o homem faz, que o homem tem feito, o que primeiro devemos tentar, pois, definir esse "fazer" que chamamos filosofia. Deveremos, pelo menos, dar um conceito geral da filosofia, e talvez fosse a incumbncia desta primeira lio explicar e expor o que a filosofia. Mas isto impossvel. absolutamente impossvel dizer de antemo o que filosofia. No se pode definir a filosofia antes de faz-la; como no se pode definir em gerai nenhuma cincia, nenhuma disciplina, antes de entrar diretamente no trabalho de faz-la.Uma cincia, uma disciplina, um "fazer" humano qualquer, recebe seu conceito claro, sua noo precisa, quando j o homem domina este fazer. S se sabe o que filosofia quando se realmente filsofo. Que quer dizer isto? Isto quer dizer que a filosofia, mais do que qualquer outra disciplina, necessita ser vivida. Necessitamos ter dela uma "vivncia". A palavra "vivncia" foi introduzida no vocabulrio espanhol pelos colaboradores da Revista de Ocidente, como traduo da palavra alem Erlebnis. Vivncia significa o que temos realmente em nosso ser psquico; o que real e verdadeiramente estamos sentindo, tendo, na plenitude da palavra "ter".Vou dar um exemplo para que se compreenda bem o que "vivncia". O exemplo no meu, de Bergson.Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estud-lo muito bem; observar um por um os diferentes nomes das ruas; estudar suas direes; depois pode estudar os monumentos que h em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode revistar as sries das fotografias do Museu do Louvre, uma por uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos pode este homem procurar para si uma viso das perspectivas de Paris mediante uma srie de fotografias tomadas de mltiplos pontos. Pode chegar dessa maneira a ter uma idia bastante clara, muito clara, clarssima, pormenorizadssima, de Paris. Semelhante idia poder ir aperfeioando-se cada vez mais, medida que os estudos deste homem forem cada vez mais minuciosos; mas sempre ser uma simples idia. Ao contrrio, vinte minutos de passeio a p por Paris so uma vivncia.Entre vinte minutos de passeio a p por uma rua de Paris e a mais vasta e minuciosa coleo de fotografias, h um abismo. Isto uma simples idia, uma representao, um conceito, uma elaborao intelectual; enquanto que aquilo colocar-se realmente em presena do objeto, isto , viv-lo, viver com ele; t-lo prpria e realmente na vida; no o conceito, que o substitua; no a fotografia, que o substitua; no o mapa, no o esquema, que o substitua, mas ele prprio. Pois o que-ns vamos fazer viver a filosofia.Para viv-la indispensvel entrar nela como se entra numa selva, entrar nela para explor-la.Nesta primeira explorao, evidentemente, no viveremos a totalidade deste territrio que se chama filosofia, passearemos por algumas de suas avenidas; penetraremos em alguns de seus jardins e de suas matas; viveremos realmente algumas de suas questes; porm outras talvez nem sequer saberemos que existem. Poderemos dessas outras ou da totalidade do territrio filosfico ter alguma idia, algum esquema, como quando preparamos uma viagem temos de antemo uma idia ou um esquema lendo previamente o guia Baedeker. Porm, viver, viver a realidade filosfica, algo que no poderemos fazer seno em certo nmero de questes e de certos pontos de vista.De vez em quando, nestas nossas viagens, nessa nossa peregrinao pelo territrio da filosofia, poderemos deter-nos a fazer balano, fazer levantamento do conjunto das experincias, das vivncias que tenhamos tido; e ento poderemos formular alguma definio geral da filosofia, baseada nessas autnticas vivncias que tenhamos tido at ento.Esta definio ter ento sentido, estar cheia de sentido, porque haver dentro dela vivncias nossas, pessoais. Pelo contrrio, uma definio de filosofia, que se d antes de t-la vivido, no pode ter sentido, resultar ininteligvel. Parecer talvez inteligvel nos seus termos; ser composta de palavras que oferecem sentido; mas este sentido no estar cheio da vivncia real. No ter para ns essas amplas ressonncias de algo que por longo tempo estivemos vivendo.

2. Definies filosficas e vivncias filosficas.Assim, por exemplo, possvel reduzir os sistemas filosficos de alguns grandes filsofos a uma ou duas frmulas muito densas, muito bem elaboradas. Mas, que dizem essas frmulas para quem no caminhou ao longo das pginas dos livros desses filsofos? Assim dizemos, por exemplo, que o sistema de Hegel pode ser resumido na frmula de que "todo o racional real e todo o real racional", e est certo que o sistema de Hegel pode resumir-se nessa frmula. Est certo tambm que essa frmula apresenta um sentido imediato, inteligvel, que a identificao do racional com o real, tanto colocando como sujeito o racional e como objeto o real, como invertendo os termos da proposio e colocando o real por sujeito e o racional por predicado.Mas, apesar desse sentido aparente e imediato que tem esta frmula, e apesar de ser realmente uma frmula que expressa em conjunto bastante bem o contedo do sistema hegeliano, que nos diz? No nos diz nada. No nos diz nem mais nem menos que o nome de uma cidade que no vimos, o nome de uma rua pela qual no passamos nunca. Se eu digo que a Avenida dos Campos Elseos est entre a praa da Concrdia e a praa da Estrela, fao uma frase com sentido; mas dentro desse sentido pode-se colocar uma realidade autenticamente vivida.Pelo contrrio, se nos pomos a ler, a meditar, os difceis livros de Hegel; se mergulhamos e bracejamos no mar sem fundo da Lgica, da Fenomenologia do Esprito ou da Filosofia da Histria Universal, no cabo de algum tempo de conviver, pela leitura, com estes livros de Hegel, viveremos essa filosofia; estes secretos caminhos nos sero conhecidos, familiares; as diferentes dedues, os raciocnios por onde Hegel vai passando duma afirmao a outra, duma tese a outra, os teremos percorrido guiados pelo grande filsofo. E ento, depois de viv-los durante algum tempo, ao ouvirmos enunciar a frmula de "todo o racional real e todo o real racional", encheremos esta frmula de um contedo vital, de algo que vivemos realmente, e adquirir esta frmula uma quantidade de sentidos e de ressonncias infinitas que antes no tinha.Pois bem: se eu agora desse alguma definio da filosofia, ou se me pusesse a discutir vrias definies da filosofia, seria exatamente o mesmo que oferecer a frmula do sistema hegeliano. No poria o leitor dentro dessa definio nenhuma vivncia pessoal. Por isso me abstenho de dar uma definio da filosofia. Somente, repito, quando tivermos percorrido algum caminho, por pequeno que seja, dentro da prpria filosofia, ento poderemos, de vez em quando, fazer alto, voltar atrs, recapitular as vivncias tidas e tentar alguma frmula geral que recolha, palpitante de vida, essas representaes experimentadas realmente por ns mesmos.Assim, pois, estas lies de FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA vo ser como umas viagens de explorao dentro do continente filosfico. Cada uma dessas viagens seguir uma senda e ir explorar uma provncia. As demais sero objeto de outras viagens, de outras exploraes, e pouco a pouco iremos sentindo como o crculo de problemas, o crculo de reflexes e meditaes, umas de grande vo, outras minuciosas e, por assim dizer, como que microscpicas, constituem o corpo palpitante disso que chamamos a filosofia. a primeira viagem que vamos fazer, por assim dizer, em aeroplano: uma explorao panormica. Vamos perguntar-nos, desde j, que designa a palavra "filosofia".

3. Sentido da palavra "filosofia".A palavra "filosofia" tem que designar algo. No vamos ver o que esse algo que a palavra designa, mas simplesmente assinal-lo, dizer: est a.Evidentemente, todos sabemos o que a palavra "filosofia", na sua estrutura verbal, significa. formada pelas palavras gregas philos e sophia, que significam "amor sabedoria". Filsofo o amante da sabedoria. Porm este significado dura na histria pouco tempo. Em Herdoto, em Tucdides, talvez nos pr-socrticos, uma ou outra vez, durante pouco tempo, tem este significado primitivo de amor sabedoria. Imediatamente passa a ter outro significado: significa .a prpria sabedoria. De modo que, j nos primeiros tempos da autntica cultura grega, filosofia significa, no o simples af ou o simples amor sabedoria, mas a prpria sabedoria.E aqui nos encontramos j com o primeiro problema: se a filosofia o saber. Que classe de saber o saber filosfico? Porque h muitas classes de saber: h o saber que todos temos sem ter aprendido nem refletido sobre nada; e h outro saber, que o que adquirimos quando o procuramos. H um saber, pois, que temos sem t-lo procurado, que encontramos sem t-lo procurado, como Pascal encontrava a Deus sem procur-lo; mas h outro saber que no temos seno quando o procuramos, e que, se no o procuramos, no o temos.

4. A filosofia antiga.Esta duplicidade na palavra "saber" corresponde distino entre a simples opinio e o conhecimento racionalmente bem fundado, com esta distino entre a opinio e o conhecimento fundamentado inicia Plato a sua filosofia. Distingue o que ele chama doxa, opinio (a palavra doxa encontramo-la na bem conhecida paradoxa, paradoxo, que a opinio que se afasta da opinio corrente), e frente opinio, que o saber que temos sem t-lo procurado, coloca Plato a episteme, a cincia, que o saber que temos porque o procuramos. E ento, a filosofia j no significa "amor sabedoria", nem tampouco significa o saber em geral, qualquer saber; seno que significa esse saber especial que temos, que adquirimos depois de t-lo procurado e de t-lo procurado metdicamente, por meio de um mtodo, ou seja, seguindo determinados caminhos, aplicando determinadas funes mentais pesquisa. Para Plato o mtodo da filosofia, no sentido do saber reflexivo que encontramos depois de t-lo procurado propositalmente, a dialtica. Quer dizer, que quando no sabemos nada, ou o que sabemos, o sabemos sem t-lo procurado, como a opinio, um saber que no vale nada; quando nada sabemos mas queremos saber; quando queremos aproximar-nos ou chegar a essa episteme, a este saber racional e reflexivo, temos que aplicar um mtodo para encontr-lo, e esse mtodo Plato o chama dialtica. A dialtica consiste em supor que o que queremos averiguar tal coisa ou tal outra; isto , antecipar o saber que procuramos, mas logo depois negar e discutir essa tese ou essa afirmao que fizemos e depur-la em discusso.Ele chama, pois, dialtica a esse mtodo da autodiscusso, porque uma espcie de dilogo consigo mesmo. E assim, supondo que as coisas so isto ou aquilo, e logo discutindo essa suposio para substitu-la por outra melhor, acabamos pouco a pouco chegando ao conhecimento que resiste a todas as crticas e a todas as discusses; e quando chegamos a uma conhecimento que resiste s discusses dialogadas ou dialticas, ento temos o saber filosfico, a sabedoria autntica, a epistme, como a chama Plato, a cincia.Com Plato, pois, a palavra "filosofia" adquire o sentido de saber racional, saber reflexivo, saber adquirido mediante o mtodo dialtico.Esse mesmo sentido tem a palavra "filosofia" no sucessor de Plato, Aristteles. O que acontece que Aristteles um grande esprito que faz avanar extraordinariamente o cabedal dos conhecimentos adquiridos reflexivamente. E ento a palavra "filosofia" tem ja em Aristteles o volume enorme de compreender dentro do seu seio e de designar a totalidade dos conhecimentos humanos. O homem conhece reflexivamente certas coisas depois de t-las estudado e pesquisado. Todas as coisas que o homem conhece e o conhecimento dessas coisas, todo esse conjunto do saber humano, designa-o Aristteles com a palavra "filosofia". E desde Aristteles continua empre-gando-se a palavra "filosofia" na histria da cultura humana com o sentido da totalidade do conhecimento humano. .Na filosofia, ento, distinguem-se diferentes partes. Na| poca de Aristteles a distino ou distribuio corrente das partes d filosofia era: lgica, fsica, metafsica e tica.A lgica, na poca de Aristteles, era a parte da filosofia que estudava os meios de adquirir o conhecimento, os mtodos do pensamento humano para chegar a conhecer ou as diversas maneiras de que se vale para alcanar conhecimento do ser das coisas.A palavra "fsica" designava a segunda parte da filosofia. A fsica era o conjunto de nosso saber acerca de todas as coisas, fossem quais fossem. Todas as coisas, e a alma humana entre elas, estavam dentro da fsica, por isso a psicologia, para Aristteles, formava parte da fsica, e a fsica, por sua vez, era a segunda parte da filosofia.A tica era o nome geral com que se designava na Grcia, na poca de Aristteles, todos os nossos conhecimentos acerca das atividades do homem; o que o homem ; o que o homem produz, que no est na natureza, que no forma parte da fsica, mas antes feito pelo homem. O homem, por exemplo, faz o Estado, vai guerra, tem famlia, msico, poeta, pintor, escultor; sobretudo escultor para os gregos. Pois tudo isto compreendia Aristteles sob o nome de tica, uma de cujas subpartes era a poltica.Todavia a palavra "filosofia" abrangia, repito, todo o conjunto dos conhecimentos que o homem podia alcanar. Valia tanto como saber racional.

5. A filosofia da Idade Mdia,Este sentido da palavra "filosofia" continua atravs da Idade Mdia; mas j no comeo desta desprende-se desse totum revolutum, que a filosofia de ento, uma srie de pesquisas, de questes, de pensamentos, que ao separar-se do tronco da filosofia, constituem uma disciplina parte. So todos os pensamentos, todos os conhecimentos que temos acerca de Deus, j os obtidos pela luz natural, j os recebidos por divina revelao. Os nossos conhecimentos acerca de Deus, e sobretudo os de origem revelada, se separam do resto dos conhecimentos e constituem ento a teologia.Pode-se dizer assim que o saber humano durante a Idade Mdia dividiu-se em doi| grandes setores: teologia e filosofia. A teologia so os conhecimentos acerca de Deus, e a filosofia os conhecimentos humanos acerca das coisas da Natureza e at mesmo de Deus por via racional.Nesta situao a palavra "filosofia" continua designando todo conhecimento, menos o de Deus. E assim adentrou muito o sculo XVII. E ainda existem no mundo moderno alguns resduos desse sentido totalitrio da palavra "filosofia". Por exemplo, no sculo XVII, o livro em que Isaac Newton expe a teoria da gravitao universal, que um livro de fsica, diramos hoje, leva por ttulo Philosophiae, Naturalis Principia Mathematica, ou seja "Princpios matemticos da filosofia natural". Quer dizer, que na poca de Newton a palavra "filosofia" significava ainda o mesmo que na Idade Mdia ou na poca de Aristteles: a cincia total das coisas.Mas ainda hoje em dia h um pas, que a Alemanha, onde as Faculdades universitrias so as seguintes: a Faculdade de Direito, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Teologia e a Faculdade de Filosofia. Que se estuda, ento, s com o nome de Faculdade de Filosofia? Tudo o que no nem direito, nem medicina, nem teologia, ou seja, todo o saber humano em geral. Numa mesma Faculdade se estuda, pois, na Alemanha, a qumica, a fsica, as matemticas, a tica, a psicologia, a metafsica, a ontologia. De sorte que aqui fica ainda um resduo do velho sentido da palavra "filosofia" na distribuio das Faculdades alems.

6. A filosofia na Idade Moderna.Mas na realidade, a partir do sculo XVII, o campo imenso da filosofia comea a partir-se. Comeam a sair do seio da filosofia as cincias particulares, no somente porque essas cincias vo se constituindo com seu objeto prprio, seus mtodos prprios e seus progressos prprios, como tambm porque pouco a pouco os cultivadores vo igualmente se especializando.Ainda Descartes ao mesmo tempo filsofo, matemtico e fsico. Ainda Leibniz ao mesmo tempo matemtico, filsofo e fsico. Ainda so espritos enciclopdicos. Ainda pode-se dizer de Descartes e de Leibniz, como se diz de Aristteles, "o filsofo", no sentido de que abrange a cincia toda de tudo quanto pode ser conhecido. Talvez ainda de Kant possa se dizer algo parecido, embora Kant j no soubesse toda a matemtica que havia em seu tempo; Kant j no sabia toda a fsica que havia em seu tempo; no sabia toda a biologia que havia em seu tempo. Kant j no descobre nada em matemtica, nem em fsica, nem em biologia, enquanto que Descartes e Leibniz ainda descobrem teoremas novos em fsica e em matemtica.Mas a partir do sculo XVIII no resta nenhum esprito humano capaz de conter numa s unidade a enciclopdia do saber humano; e ento a palavra "filosofia" no designa a enciclopdia do saber; desse total foram desprendendo-se as matemticas por um lado, a fsica por outro, a qumica, a astronomia etc.E ento que a filosofia? Pois ento a filosofia vem circunscrevendo-se ao que resta depois de se ter tirado tudo isto. Se a todo o saber humano lhe tiram as matemticas, a astronomia, a fsica, a qumica etc. o que resta, isso a filosofia.

7. As disciplinas filosficas.De modo que h um processo de desprendimento. As cincias particulares vo se constituindo com autonomia prpria e diminuindo a extenso designada pela palavra "filosofia". Vo outras cincias saindo, e ento, que resta? Atualmente, de modo provisrio e muito flutuante, poderemos enumerar do seguinte modo. as disciplinas compreendidas dentro da palavra "filosofia". Diremos que a filosofia compreende a ontologia, ou seja a reflexo sobre os objetos em geral; e como uma das partes da ontologia, a metafsica. Compreende tambm a lgica, a teoria do conhecimento, a tica, a esttica, a filosofia da religio, e compreende ou no compreende no sabemos a psicologia e sociologia; porque justamente a psicologia e a sociologia esto neste momento na alternativa de se separarem ou no da filosofia. Ainda h psiclogos que querem conservar a psicologia dentro da filosofia; mas j h muitos outros, e no dos piores, que querem constitu-la em cincia parte, independente. Pois o mesmo acontece com a sociologia. Augusto Comte, que foi quem deu nome a esta cincia (e ao faz-lo, como diz Fausto, deu-lhe vida), ainda considera a sociologia como o contedo mais importante e seleto da filosofia positiva. Mas outros socilogos a constituem j em cincia parte. H discusso. No vamos ns resolver por enquanto esta discusso o assim diremos que em geral todas as disciplinas e estudos que enumerei: a ontologia, a metafsica, a lgica, a teoria do conhecimento, a tica, a esttica, a filosofia da religio, a psicologia e a sociologia, formam parte e constituem as diversas provncias do territrio filosfico.Podemos perguntar-nos o que h de comum nessas disciplinas que acabo de enumerar; que o comum nelas que as faz incluir dentro do mbito designado pela palavra "filosofia"; que tm de comum para ser todas parte da filosofia. O primeiro e muito importante que tm de comum que todas so o resduo desse processo histrico de desintegrao.A Histria pulverizou o velho sentido da palavra "filosofia". A Histria eliminou do continente filosfico as cincias particulares. O que restou a filosofia. Esse fato histrico, apesar de ser somente um fato, muito importante. j uma afinidade extraordinria a que mantm entre si essas disciplinas, s pelo fato de serem os resduos desse processo de desintegrao do velho sentido da palavra "filosofia".Mas aprofundemos-nos mais no problema. Por que ficaram dentro da filosofia essas disciplinas? Vou responder a esta pergunta de uma maneira muito filosfica, que consiste em inverter a pergunta. Como disse muitas vezes Bergson, uma das tcnicas para definir o carter de uma pessoa consiste no somente em enumerar o que prefere, mas tambm, e sobretudo, em enumerar o que no prefere; do mesmo modo, em vez de perguntarmos por que sobreviveram filosoficamente estas disciplinas, vamos perguntar-nos por que foram embora as matemticas, a fsica, a qumica e as demais. E se nos perguntarmos por que se desprenderam, encontramos o seguinte: que uma cincia se desprendeu do velho tronco da filosofia quando conseguiu circunscrever um pedao no imenso mbito da realidade, defini-lo perfeitamente e dedicar exclusivamente sua ateno a essa parte, a esse aspecto da realidade.

8. As cincias e a filosofia.Assim, por exemplo, pertencem realidade o nmero e a figura. As coisas so duas, trs, quatro, cinco, seis, mil ou duas mil; coisas so tringulos, quadrados, esferas. Mas desde o momento em que se separa o "ser nmero", ou o "ser figura", dos objetos que o so, e se convertem a numerosidade e a figura (independentemente do objeto em questo) em termos do pensamento; quando se circunscreve este pedao de realidade e se consagra ateno especial a ela, ficam constitudas as matemticas como uma cincia independente e se separam da filosofia.Se depois outro pedao da realidade, como so, por exemplo, todos os corpos materiais em suas relaes recprocas, se destacam como um objeto preciso de pesquisa, ento se constitui a cincia fsica.Quando os corpos, em sua constituio ntima, em sua sntese de elementos, se destacam tambm como objetos de pesquisa, constitui-se a qumica.Quando a vida dos seres viventes, animais e plantas, se circunscreve e se separa do resto das coisas que so, e sobre ela se lana o estudo e o olhar, ento se constitui a biologia.O que aconteceu? Pois aconteceu que grandes setores do ser em geral, grandes setores da realidade, constituram-se em provncias. E por que se constituram em provncias? Pois precisamente porque prescindiram do resto; porque deliberadamente se especializaram; porque deliberadamente renunciaram a ter o carter de objetos totais, isto , que uma cincia deixa a filosofia quando renuncia a considerar seu objeto de um ponto de vista universal e totalitrio.A ontologia no recorta na realidade um pedao para estud-lo, ela sozinha, esquecendo o demais, mas antes tem por objeto a totalidade do ser. A metafsica forma tambm parte da ontologia. A teoria do conhecimento refere-se a todo conhecimento de todo ser.Assim, pois se agora fazemos uma pequena pausa, nos detemos em nosso caminho e realizamos o que dizia no comeo, ou seja uma tentativa de definio, embora rpida, da filosofia, poderamos dizer o seguinte, (e agora o diremos com plena vivncia): a filosofia a cincia dos objetos do ponto de vista da totalidade, enquanto que as cincias particulares so os setores parciais do ser, provncias recortadas dentro do continente total do ser. A filosofia ser, pois, nesse primeiro esboo de definio seguramente falso, seguramente esquemtico, mas que para ns agora tem sentido a disciplina que considera o seu objeto sempre do ponto de vista universal e totalitrio. Enquanto que qualquer outra disciplina, que no seja a filosofia, o considera de um ponto de vista parcial e derivado.

9. As partes da filosofia.Ento poderemos tirar desta pequena verificao, a que chegamos na nossa primeira explorao panormica, uma diviso da filosofia que nos sirva de guia para nossas viagens sucessivas.Desde j dizemos que a filosofia o estudo de tudo aquilo que objeto de conhecimento universal e totalitrio. Pois bem: de conformidade com isto, a filosofia poder dividir-se em dois grandes captulos, em duas grandes cincias: um primeiro captulo ou zona que chamaremos ontologia, na qual a filosofia ser o estudo dos objetos, todos os objetos, qualquer objeto, seja qual for; e outro segundo captulo no qual a filosofia ser o estudo do conhecimento dos objetos. De que conhecimento? De todo o conhecimento, de qualquer conhecimento.Teremos assim uma diviso da filosofia em duas partes: primeiro, ontologia ou teoria dos objetos conhecidos e cognoscveis; segundo, a gnosiologia (palavra grega que vem de gnsis, que significa sapincia, saber), que ser o estudo do conhecimento dos objetos. Distinguindo entre o objeto e o conhecimento dele, teremos estes dois grandes captulos da filosofia.Dir-se-me-: vimos antes algo sobre disciplinas filosficas que agora de repente esto silenciadas. Falamos de tica, de esttica, de filosofia da religio, de psicologia, de sociologia. Ser que essas disciplinas saram j do tronco da filosofia? Por que no as mencionamos? Com efeito, dentro do tronco da filosofia ocupam-se ainda os filsofos atuais dessas disciplinas; mas comparadas com as duas fundamentais que acabo de indicar ontologia e gnosiologia advertimos j que nessas disciplinas existe uma certa tendncia a particularizar o objeto.A tica no trata de todo o objeto cogitvel em geral, mas somente da ao humana ou dos valores ticos.A esttica no trata de todo o objeto cogitvel em geral. Trata da atividade produtora da arte, da beleza e dos valores estticos.A filosofia da religio tambm circunscreve o seu objeto. A psicologia e a sociologia, mais ainda.Por isso que estas cincias esto j saindo da filosofia. Por que no saram ainda da filosofia? Porque os objetos a que se referem so objetos que no so fceis de recortar dentro do mbito da realidade. No so fceis de recortar porque esto intimamente enlaados com o que os objetos so em geral e totalitriamente; e estando enlaados com esses objetos, as solues que se apresentam aos problemas propriamente filosficos da ontologia e da gnosiologia repercutem nessa lucubraes que chamamos tica, esttica, filosofia da religio, psicologia e sociologia. E como repercutem nelas, a estrutura dessas disciplinas depende intimamente da posio que adotemos com respeito aos grandes problemas fundamentais da totalidade do ser. Por isso esto ainda includas na filosofia; mas j esto na periferia.J se discute, repito, se a psicologia ou no uma disciplina filosfica. J se discute se o a sociologia; em pouco se discutir se a tica o , e amanh ou melhor, j hoje, h estetas que discutem se a esttica filosofia, e pretendem convert-la numa teoria da arte independente da filosofia.Como se v, com essa primeira explorao pelo continente filosfico, conseguimos uma viso histrica geral. "Vimos como a filosofia comea designando a totalidade do saber humano e como dela se separam e desprendem cincias particulares que saem do tronco comum porque aspiram particularidade, especialidade, a recortar um pedao de ser dentro do mbito da realidade. Ento restam no tronco da filosofia essa disciplina do ser em geral que chamamos ontologia e a do conhecimento em geral que chamamos gnosiologia.Nosso curso, assim, vai ter um caminho muito natural. Nossas viagens vo constar duma excurso pela ontologia, para ver o que isso, em que consiste isso, como pode falar-se do ser em geral; uma excurso pela gnosiologia, para ver que isso de teoria do conhecimento em geral; e depois algumas pequenas excurses por essas cincias que se vo distanciando de ns: a tica, a esttica, a psicologia e a sociologia.Antes, porm, de entrar no primeiro estudo que vamos fazer da ontologia ou metafsica, trataremos, logo a seguir de como nos orientar para filosofar, ou seja, do mtodo da filosofia.

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente - Lies Preliminares

Lio II - O MTODO DA FILOSOFIA

10. PRVIA DISPOSIO DE NIMO: ADMIRAO, RIGOR. 11. SCRATES: & MAIUTICA. 12. PLATO: A DIALTICA; O MITO DA REMINISCNCIA. 13. ARISTTELES: A LGICA. 14. IDADE MDIA: A DISPUTA. 15. O MTODO DE DESCARTES. 18. TRANSCENDNCIA E IMANNCIA. 17. A INTUIO INTELECTUAL.

10. Prvia disposio de nimo: admirao, rigor.Acontece com o mtodo algo muito semelhante ao que nos aconteceu com o conceito ou definio da filosofia.O mtodo da filosofia, com efeito, pode definir-se, descrever-se; mas a definio que dele se der, a descrio que dele se fizer, ser sempre externa, ser sempre formularia; no ter contedo vivo, no estar cheia de vivncia, se ns mesmos no praticamos esse mtodo.Pelo contrrio, essa mesma definio, essa mesma descrio dos mtodos filosficos adquire uma feio, um aspecto real, profundo, vivente, quando de verdade j nos familiarizamos com ele.Assim, ter de descrever o mtodo filosfico antes de ter feito filosofia uma empresa possvel, tanto que vamos tent-la; mas muito menos til que as reflexes sobre o mtodo que pudermos fazer mais tarde, quando j nossa experincia vital estiver cumulada de intuies filosficas, quando ns mesmos tivermos exercitado l repetidamente nosso esprito no preparo desse mel que a abelha humana destila e que chamamos filosofia.De todas as maneiras, do mesmo modo que na lio anterior tentei uma descrio geral do territrio filosfico, vou tentar nesta tambm uma descrio dos principais mtodos que se usam na filosofia, avisando, desde j, que somente mais adiante que essas determinaes conceituais, que hoje enumeramos, encontraro a plenitude do seu verdadeiro sentido.Para abordar a filosofia, para entrar no territrio da filosofia, absolutamente indispensvel uma primeira disposio de nimo. absolutamente indispensvel que o aspirante a filsofo sinta a necessidade de levar a seu estudo uma disposio infantil. Quem quiser ser filsofo necessitar puerilizar-se, infantilizar-se, transformar-se em menino.Em que sentido fao esta paradoxal afirmao de que convm que o filsofo se puerilize? Fao-a no sentido de que a disposio de nimo para filosofar deve consistir essencialmente em perceber e sentir por toda a parte, tanto no mundo da realidade sensvel, como no mundo dos objetos ideais, problemas, mistrios; admirar-se de tudo. sentir o profundamente arcano e misterioso de tudo isso; colocar-se ante o universo e o prprio ser humano com um sentimento de estupefao, de admirao, de curiosidade insacivel, como a criana que no entende nada e para quem tudo problema.Esta a disposio primria que deve levar ao estudo da filosofia o principiante. Diz Plato que a primeira virtude do filsofo admirar-se; Thaumtzein diz em grego donde vem a palavra "taumaturgo". Admirar-se, sentir essa divina inquietao que faz com que, l onde os1outros passam tranqilos, sem. vislumbrar sequer que existem problemas, aquele que tem uma disposio filosfica esteja sempre inquieto, intranqilo, percebendo na mais pequenina coisa problemas, arcanos, mistrios, incgnitas que os demais no vem.Aquele para quem tudo resulta muito natural, para quem tudo resulta muito fcil de entender, para quem tudo resulta muito bvio, nunca poder ser filsofo.O filsofo necessita, pois, uma primeira dose de infantilidade; uma capacidade de admirao, que o homem j feito, que o homem j enrijecido, encanecido, no costuma possuir. Por isso Plato preferia tratar com jovens a tratar com velhos. Scrates, o mestre de Plato, andava entre a mocidade de Atenas, entre as crianas e as mulheres. Realmente, para Scrates os grandes atores do drama filosfico so os jovens e as mulheres.Essa admirao, pois, uma disposio fundamental para a filosofia. E resumindo esta exposio, poderemos defini-la, agora j de um modo conceitual, como a capacidade de tudo problematizar, de converter tudo em problemas.Outra segunda disposio que convm muitssimo ao trabalho filosfico a que poderamos chamar o esprito de rigor no pensamento, a exigncia de rigor, a exigncia de exatido. Nesse sentido, tambm se poderia dizer que a idade melhor para comear a filosofar a mocidade. O jovem no admite passos em falso nas coisas do esprito. O jovem tem uma exigncia de rigor, uma exigncia de racionalidade, de intelectualidade, que o homem j idoso, com o cepticismo que traz a idade, no costuma nunca possuir.Esta exigncia de rigor h de ter para ns que vamos fazer filosofia, dois aspectos fundamentais. De uma parte, a de levar-nos a eliminar o mais possvel de nossas consideraes as cmodas, mas perfeitamente inteis, tradies da sabedoria popular. Existe uma sabedoria popular que se condensa em ditados, em tradies, em idias, que a massa do povo traz e leva. A filosofia no isto. A filosofia, pelo contrrio, h de reagir contra essa suposta sabedoria popular.A filosofia tem que levar soluo dos seus problemas um rigor metdico que incompatvel com a excessiva facilidade com que essas concepes da sabedoria popular passam de mente em mente e enrazam na maior parte dos espritos.Mas, de outro lado, haveremos de reagir com no menos violncia contra o defeito contrrio que o de imaginar que a filosofia deve ser feita como as cincias; que a filosofia no pode ser seno a sntese dos resultados obtidos pelas cincias positivas. No existe nada mais desanimador que o espetculo oferecido pelos cientistas mais ilustres nas disciplinas positivas, sobretudo no transcurso destes ltimos trinta ou quarenta anos, quando se puseram a filosofar sem saber filosofia. O fato de ter descoberto uma nova estrela no firmamento ou de ter exposto uma nova lei da gravitao universal, no autoriza e muito menos justifica, ou legitima, que um fsico de toda a vida, um matemtico de sempre, ponha-se de repente, sem preparao alguma, sem exercitao prvia, a fazer filosofia. Lamentavelmente, costuma acontecer que grandes figuras da cincia, merecedoras de toda nossa venerao, toda nossa admirao, expem-se s vezes ao ridculo, porque se metem a filosofar de maneira absolutamente pueril e quase selvagem.Teremos, pois, de fugir das generalizaes apressadas da cincia, quando estas ultrapassam os limites estreitos a que est reduzida cada disciplina e que constituem o mbito das chamadas especialidades. O fato, por exemplo, de ter descoberto o neurnio, o elemento mnimo do sistema nervoso, no pode autorizar o neurlogo, por Ilustre e sbio que seja, a escrever vulgaridades e trivialidades sobre os problemas elementares da filosofia. preciso convencer-se, de outra parte e sobre isto voltaremos repetidas vezes de que a filosofia no cincia. A filosofia uma disciplina to rigorosa, to estritamente rigorosa e difcil como a cincia; porm no cincia, porque entre ambas h muita diferena de propsito e de mtodo, e entre outras diferenas existe esta: que cada cincia tem um objeto delimitado, enquanto que, conforme vimos na lio anterior, a filosofia se ocupa de qualquer objeto em geral.Feitas estas advertncias, tendo explicitamente descrito as duas disposies de nimo que me parecem necessrias para abordar os problemas filosficos, daremos um passo mais alm e entraremos na descrio propriamente dita dos que podero ser chamados mtodos da filosofia.

11. Scrates: a maiutica.Para fazer esta descrio dos mtodos filosficos vamos recorrer a histria do pensamento filosfico, histria da filosofia.Se seguirmos atenta, embora rapidamente, a srie dos mtodos aplicados pelos grandes filsofos da Antigidade, da Idade, Mdia e da Idade Moderna, poderemos ir respigando em todos eles alguns elementos fundamentais do mtodo filosfico, que resumiremos ao final desta lio.Propriamente falando, foi a partir de Scrates, ou seja, no sculo IV antes de Jesus Cristo, em Atenas, que comeou a haver uma filosofia consciente de si mesma e sabedora dos mtodos que empregava. Scrates , na realidade, o primeiro filsofo que nos fala do seu mtodo. Scrates nos conta como filosofa.Qual o mtodo que Scrates emprega? Ele prprio o denominou a maiutica. Isto no significa mais do que a interrogao. Scrates pergunta. O mtodo da filosofia consiste em perguntar.Quando se trata, para Scrates, de definir, de chegar essncia de algum conceito, sai de sua casa, vai praa pblica de Atenas, e a toda pessoa que passa por diante dele chama e pergunta: "Que isto?" Assim, por exemplo, um dia Scrates sai de sua casa preocupado em averiguar o que a coragem, que ser corajoso. Chega praa pblica e se encontra com um general ateniense. Ento diz para si: "Aqui est; este quem sabe o que ser corajoso, visto que o general, o chefe." E se aproxima e lhe diz: "Que a coragem? Voc, que um general do exrcito ateniense, tem que saber o que a coragem," Ento o outro lhe diz: "Pois claro! Como no vou saber eu o que a coragem? A coragem consiste em atacar o inimigo e nunca fugir." Scrates coca a cabea e lhe diz: "Essa sua resposta no totalmente satisfatria"; e lhe faz ver que muitas vezes nas batalhas os generais ordenam ao exrcito retroceder para atrair o inimigo a uma determinada posio e nessa posio lhe cair em cima e destru-lo. Ento o general retifica e diz: "Bem, voc tom razo." E d outra definio; e sobre esta segunda definio Scrates exerce outra vez sua crtica interrogativa. Continua no ficando satisfeito e pedindo outra nova definio; e assim, fora de interrogaes, faz com que a definio primeiramente dada v passando por sucessivos aperfeioamentos, por extenses, por redues, at ficar o mais exata possvel. Nunca at chegar a ser perfeita.Nenhum dos dilogos de Scrates que nos conservou Plato onde reproduz com bastante exatido os espetculos ou cenas que ele presenciara consegue chegar a uma soluo satisfatria; todos se interrompem, como dando a entender que o trabalho de continuar perguntando e continuar encontrando dificuldades, interrogaes e mistrios na ltima definio dada, no pode nunca acabar.

12. Plato; a dialtica, o mito da reminiscncia.Este mtodo socrtico da interrogao, da pergunta e da resposta, o que Plato, discpulo de Scrates, aperfeioa. Plato aperfeioa a maiutica de Scrates e a transforma no que ele chama dialtica.A dialtica platnica conserva os elementos fundamentais da maiutica socrtica. A dialtica platnica conserva a idia de que o mtodo filosfico uma contraposio., no de opinies distintas, mas de uma opinio e a crtica da mesma. Conserva, pois, a idia de que preciso partir de uma hiptese primeira e depois ir melhorando-a fora das crticas que se lhe fizerem, e essas crticas onde melhor se fazem no dilogo, no intercmbio de afirmaes e negaes; e por isso a denomina de dialtica.Vamos ver quais so os princpios, as essncias filosficas, que esto na base deste procedimento dialtico.A dialtica se decompe, para Plato, em dois momentos. Um primeiro momento consiste na intuio da idia; um segundo momento consiste no esforo crtico para esclarecer esta intuio da idia. De modo que, primeiramente, quando nos situamos ante a necessidade de resolver um problema, quando sentimos essa admirao que Plato elogia tanto, essa admirao diante do mistrio, quando estamos diante do mistrio, diante da interrogao, diante do problema, a primeira coisa que o esprito faz jogar-se como uma flecha, como uma intuio que dispara em direo idia da coisa, em direo idia do mistrio que se tem diante. Mas essa primeira intuio da idia uma intuio grosseira, insuficiente. Mais que a prpria intuio, a designao do caminho por onde iremos em direo conquista dessa idia. E ento constitui-se a dialtica propriamente dita em seu segundo momento, que consiste em que os esforos sucessivos do esprito para intuir, para ver, para contemplar, ou, como se diz em grego, theorin (da provm a palavra "teoria") as idias, vo-se depurando cada vez mais, aproximando-se cada vez mais da meta, at chegar a uma aproximao, a maior possvel, nunca coincidncia absoluta com a idia, porque esta algo que se encontra num mundo do ser to diferente do mundo de nossa realidade vivente que os esforos do homem para atingir esta realidade vivente, para chegar ao mundo dessas essncias eternas, imveis e puramente inteligveis que so as idias, nunca podem ser perfeitamente bem sucedidos.Tudo isto expe Plato de uma maneira viva, interessante, por meio dessas fices do que tanto gosta. Ele gosta muito de expor seus pensamentos filosficos sob a forma do que ele mesmo denomina "contos", como os contos que os velhos contam s crianas; denomina-os com a palavra grega mito.Pois Plato gosta muito dos mitos, e para expressar seu pensamento filosfico apela a eles muitas vezes. Assim, para expressar seu pensamento da intuio, da idia e da dialtica, que nos conduz a depurar essa intuio, emprega o mito da "reminiscncia". Narra o conto seguinte: As almas humanas, antes de viver neste mundo e de alojar-se cada uma delas num corpo de homem, viveram em outro mundo, viveram no mundo onde no h homens, nem coisas slidas, nem cores, nem odores, nem nada que passe e mude, nem nada que flua no tempo e no espao. Viveram num mundo de puras essncias intelectuais, no mundo das idias. Esse mundo est num lugar que Plato metaforicamente denomina lugar celeste, topos uranos. L vivem as almas em perptua contemplao das belezas imperecveis das idias, conhecendo a verdade sem nenhum esforo porque a tm intuitivamente pela frente, sem nascer nem morrer, em absoluta eternidade.Mas essas almas, de vez em quando, vm terra e se alojam num corpo humano dando-lhe vida. Estando na terra e alojando-se num corpo humano, naturalmente tm que submeter-se s condies em que se desenvolve a vida na terra, s condies da espacialidade, da temporalidade, do nascer e do morrer, da dor e do sofrimento, da insuficincia dos esforos, da brevidade da vida, das desiluses, da ignorncia e do esquecimento. Estas almas esquecem, esquecem as idias que conheceram quando viviam ou estavam no topos uranos, no lugar celeste onde moram as idias. Esquecidas de suas idias, esto e vivem no mundo. Mas como estiveram antes nesse topos uranos, onde esto as idias, bastar algum esforo bem dirigido, bastaro algumas perguntas bem feitas para que, do fundo do esquecimento, por meio da reminiscncia vislumbrem alguma vaga lembrana dessas idias.Logo que Plato narra este conto (porque um conto, no vamos crer que Plato acredita em tudo isto) a uns amigos seus em Atenas, estes ficam um pouco receosos; pensam: Parece que este senhor est caoando. Ento Plato lhes diz: "Vou demonstr-lo a vocs." Nesse momento passa por l um rapaz de quinze anos, escravo de um dos participantes da reunio. Plato lhe diz: "Mnon, seu escravo sabe matemtica?" "No, homem; que h de saber! um criado, um escravo de minha casa." "Pois, que venha aqui; voc vai ver."Ento Scrates (que nos dilogos de Plato sempre o porta-voz) comea a perguntar. Diz-lhe: "Vamos ver, rapaz: imagina trs linhas retas", e o rapaz as imagina. E assim, fora de perguntas bem feitas, vai tirando dele toda a geometria. E diz Scrates: "Vem? No a sabia? Pois a sabe! est recordando-a dos tempos em que vivia no lugar celeste das idias."As perguntas bem feitas, o esforo por dirigir a intuio para a essncia do objeto proposto, pouco a pouco e no de chfre, com uma srie de flechadas sucessivas, encaminhando o esforo do esprito para onde deve ir, conduziro reminiscncia, recordao daquelas idias intelectuais que as almas conheceram e que logo, ao se encarnar em corpos humanos, esqueceram.A dialtica consiste, para Plato, numa contraposio de intuies sucessivas, cada uma das quais aspira a ser a intuio plena da idia, do conceito, da essncia; mas como no pode s-lo, a intuio seguinte, contraposta anterior, retifica e aperfeioa essa anterior. E assim sucessivamente, em dilogo ou contraposio de uma intuio outra, chega-se a purificar, a depurar o mais possvel esta vista intelectual, esta vista dos olhos do esprito, at aproximar-se o mais possvel dessas essncias ideais que constituem a verdade absoluta.

13. Aristteles: a lgica.Aristteles, amigo de Plato, mas, como ele mesmo diz, mais amigo da verdade, desenvolve por sua vez o mtodo da dialtica de uma forma que o faz mudar de aspecto. Aristteles atenta principalmente para esse movimento da razo intuitiva que passa, por meio da contraposio de opinies, de uma afirmao seguinte e desta seguinte. Esfora-se para reduzir a leis esse trnsito de uma afirmao seguinte. Esfora-se para encontrar a lei em virtude da qual de uma afirmao passamos seguinte.Esta concepo de Aristteles verdadeiramente genial porque a origem daquilo que chamamos a lgica. No se pode dizer que seja Aristteles o inventor da lgica, visto que j Plato, na sua dialtica, possui uma lgica implcita; porm Aristteles que lhe d estrutura de forma definitiva, a mesma forma que tem hoje. No mudou durante todos estes sculos. D uma forma e estrutura definitivas a isto que denominamos a lgica, ou seja a teoria da inferncia, de uma proposio que sai de outra proposio.As leis do silogismo, suas formas, suas figuras, so pois, o desenvolvimento que Aristteles faz da dialtica. Para Aristteles, o mtodo da filosofia a lgica, ou seja a aplicao das leis do pensamento racional que nos permite passar de uma posio a outra posio por meio das ligaes que os conceitos mais gerais tm com outros menos gerais at chegar ao particular. Essas leis do pensamento racional so, para Aristteles, o mtodo da filosofia.A filosofia h de consistir, por conseguinte, na demonstrao da prova. A prova das afirmaes que se antecipam que tornam verdadeiras estas afirmaes. Uma afirmao que no est provada no 6 verdadeira, ou pelo menos, como ainda no sei se ou no verdadeira, no pode ter atestado de legitimidade no campo do saber, no campo da cincia.

14. Idade Mdia: a disputa.Esta concepo da lgica como mtodo da filosofia herdada de Aristteles pelos filsofos da Idade Mdia, os quais a aplicam com um rigor extraordinrio. curioso observar como os escolsticos, e dentre eles, principalmente S. Toms de Aquino, completam o mtodo da prova, o mtodo do silogismo, com uma espcie de revivescncia da dialtica platnica. O mtodo que seguem os filsofos da Idade Mdia no somente, como em Aristteles, a deduo, a Intuio racional, mas tambm a contraposio de opinies divergentes. S. Toms, quando examina uma questo, no semente deduz de princpios gerais os princpios particulares aplicveis a ela, mas tambm coloca em colunas separadas as opinies dos vrios filsofos, que so umas pr e outras contra; coloca-se frente a frente, Crtica umas com outras, extrai delas o que pode haver de verdadeiro o o que pode haver de falso. So como dois exrcitos em batalha; so realmente uma revivescncia da dialtica platnica. E ento o resultado desta comparao de opinies diversas, complementado com o exerccio da deduo e da prova, d ensejo s concluses firmes do pensamento filosfico.Se resumimos o essencial no mtodo filosfico, que, partindo de Scrates, passando por Plato e Aristteles, chega at a plena Idade Mdia na escolstica, encontramos que o mais importante deste mtodo sua segunda parte. No a intuio primria de que se parte, pela qual se comea, mas a discusso dialtica com que a intuio deve ler confirmada ou negada. O importante, pois, nesse mtodo dos filsofos anteriores Renascena, consiste principalmente no exerccio passional, discursivo; na dialtica, no discurso, na contraposio de opinies; na discusso dos filsofos entre si ou do filsofo consigo mesmo.

15. O mtodo de Descartes.Pelo contrrio, a partir da Renascena, e muito especialmente a partir de Descartes, o mtodo muda completamente de aspecto, e o acento vai recair agora, no tanto sobre a discusso posterior intuio, quando sobre a prpria intuio e os mtodos de consegui-la. Quer dizer que se o mtodo filosfico, na Antigidade e na Idade Mdia se exercita principalmente depois de obtida a intuio, o mtodo filosfico na Idade Moderna passa a exercitar-se principalmente antes de obter a intuio e como meio para obt-la.Tomemos o Discurso doMtodo, de Descartes, e as idias filosficas deste, e veremos que o que o preocupava era como chegar a uma evidncia clara e distinta; quer dizer, como chegar a uma intuio indubitvel da verdade. Os caminhos que conduzem a esta intuio (no os que depois da intuio a garantem, a provam, a retificam ou a depuram, mas os que conduzem a ela) so os que principalmente Interessam a Descartes. O mtodo , pois, agora pr-intuitivo, e tem como propsito essencial conseguir a intuio. Como se pode conseguir a intuio? No se pode consegui-la ruiis que de um modo, que procurando-a; quer dizer, dividindo em partes todo objeto que se nos oferea confuso, obscuro, no evidente, at que algumas dessas partes se tornem para ns um objeto claro, intuitivo e evidente. Ento j temos a intuio.

16. Transcendncia e imanncia.Operou-se aqui uma mudana radical com respeito concepo que tinha Plato do mundo e da verdade. Plato tinha do mundo e da verdade a concepo de que este mundo em que vivemos o reflexo plido do mundo em que no vivemos e que a morada da verdade absoluta. So, pois, dois mundos. Tinha-se que ir deste para aquele. Tinha-se que estar seguro, o mais possvel, de que a intuio que daquele temos a exata e verdadeira. Pelo contrrio, para Descartes este mundo em que vivemos e o mundo da verdade so um s e mesmo mundo. O que acontece que, quando o olhamos pela primeira vez, o mundo em que vivemos nos aparece revolto, confuso, como um caixo onde h uma multido de coisas. Porm, se nessa multido de coisas, se nessa multido de conceitos caticos, se nesse caixo nos preocupamos vagarosamente por colocar uma coisa aqui e outra l e pr ordem nesse totum revolutum, nesse caixo, ento esse mundo torna-se-nos de repente inteligvel, compreendemo-lo, para ns evidente. Em que consistiu aqui a consecuo dessa evidncia? No consistiu numa fuga mstica deste mundo ao outro mundo, mas antes consistiu numa anlise metdica deste mundo, no fundo do qual est o mundo inteligvel das idias. No so dois mundos distintos, mas um dentro do outro, os dois constituindo um todo.Se se permite j o uso de uma palavra tcnica filosfica, direi queo mundo de Plato distinto do mundo em que vivemos; o mundo tas_ idias, diferente do mundo real em que vivemos em nossa sensao, um mundo transcendente, porque outro mundo distinto daquele que temos na sensao. A verdade, para Plato, transcendente s coisas. A idia, para Plato, pois, transcendente ao objeto que vemos e tocamos. Quando queremos definir um dentre os objetos que vemos e tocamos, temos que destac-lo, e escapar para o mundo transcendente das idias, completamente distinto, e por isso chamado por Plato "transcendente". Mas em Descartes, quando queremos partilhar de um conceito, no escapamos para fora desse conceito a outro mundo, mas antes, por meio da anlise, introduzimos clareza nesse mesmo conceito. o mesmo conceito que nos era obscuro e que agora se torna para ns claro. Portanto, o mundo inteligvel em Descartes imanente, forma parte do mesmo mundo da sensao e da percepo sensvel e no outro mundo distinto. De modo que o mtodo cartesiano, e a partir de Descartes o de todos os filsofos, postula a imanncia do objeto filosfico. A intuio tem que discernir, atravs da catica confuso do mundo, todas essas idias claras e distintas que constituem sua essncia e seu miolo. A anlise , pois, o mtodo que conduz Descartes intuio, e a partir deste momento, em toda a filosofia posterior a Descartes, acentua-se constantemente este instrumento da intuio. Depois de Descartes, a intuio continua sendo de uma ou de outra forma, segundo os sistemas filosficos de que se trate, o mtodo por excelncia da filosofia.

17. A intuio intelectual.H um momento, nos princpios do sculo XIX, em que os filsofos alemes que formaram essas formidveis escolas filosficas chamadas filosofia romntica alem (refiro-me a Fichte, Schelling, Hegel), consideram que o mtodo essencial da filosofia aquilo que eles chamam a intuio intelectual. H aparentemente nestes termos uma contradio, porque a intuio no intelectual. Parece que intuio e intelectual so termos que se excluem um ao outro, que se repelem, visto que a intuio um ato simples, por meio do qual captamos a realidade ideal de algo; e, pelo contrrio, intelectual refere-se ao trnsito ou passagem de uma idia a outra, a aquilo que Aristteles desenvolve sob a forma da lgica.Pois bem; o essencial no pensamento destes filsofos considerar a intuio intelectual como o mtodo da filosofia. Por que consideram a intuio intelectual como o mtodo da filosofia? Porque do a razo humana uma dupla misso. De uma parte, a de penetrar intuitivamente no corao, na essncia mesma das coisas, na forma antes exposta ao falar de Descartes, descobrindo o mundo imanente das essncias rncionais sob o invlucro do mundo aparente das percepes sensveis. Mas, alm disso, consideram que a segunda misso da razo , partindo dessa intuio intelectual, construir a priori, sem se valer da experincia para nada, de um modo puramente apriorstico, mediante conceitos e formas lgicas, toda a armao, toda a estrutura do universo e do homem dentro do universo.So, pois, dois momentos no mtodo filosfico, e deles um primeiro de intuio fundamental, intelectual. O filsofo alemo da poca romntica (Fichte, Schelling, Hegel, Krause, Hartmann, Schopenhauer tem na sua vida uma espcie de iluminao mstica, uma intuio intelectual, que lhe permite penetrar na essncia mesma da verdade; e depois, essa intuio a que se desenvolve pouco a pouco em forma variadssima, na filosofia da natureza, na filosofia do esprito, na filosofia da histria, em mltiplos livros, como um acorde musical que informa e d unidade a todas as construes filosficas. o que eles chamavam ento "construo do sistema".Como chega aos filsofos alemes de comeos do sculo XIX esta concepo do mtodo da filosofia? Que foi aquilo que lhes fez perceber que o mtodo da filosofia tinha que consistir numa primria intuio, numa radical intuio, e logo no desenvolvimento dessa intuio nas mltiplas formas da natureza, do esprito, da histria, do homem etc? Perceberam essa maneira de ver, essa concepo do mtodo, porque todos eles estavam alimentados, imbudos da filosofia de Kant. Pois bem; a filosofia de Kant complexa; um sistema complicado, difcil; porm um dos seus elementos essenciais, primordiais, fundamentais, consiste na distino que Kant faz entre o mundo sensvel fenomnico (fenomnico significa o mesmo que sensvel, para o caso, na filosofia de Kant) e o mundo das coisas em si mesmas independentemente de que apaream como fenmenos para ns.Essa distino que faz Kant entre o mundo da realidade independente de mim e o mundo da realidade tal como aparece em mim, leva-o a considerar que cada uma das coisas de nosso mundo sensvel e todas elas em conjunto no so mais do que a explicitao no espao e no tempo de algo incgnito, profundo e misterioso, que est debaixo do espao e do tempo.Esse algo incgnito, profundo e misterioso, que, estando debaixo do espao e do tempo, se expande e floresce em mltiplas diversificaes que chamamos as coisas, os homens, o cu, a terra e o mundo em geral, o que proporciona a todos estes filsofos do romantismo alemo a seguinte idia: Pois bem; se isso assim, o maravilhoso ser chegar, com uma viso intuitiva do esprito, a esse quid, a esse algo profundo, incgnito e misterioso que contm a essncia e a definio de tudo o mais; e quando tivermos chegado a captar, por meio de uma viso do esprito, essa coisa em si mesma, ou, como eles chamam tambm, o absoluto, ento, com uma mirada do esprito, teremos a totalidade do absoluto e iremos tirando sem dificuldade, desse absoluto que teremos captado intuitivamente, uma por uma, todas as coisas concretas do mundo.Por isso sua filosofia implicava sempre dois movimentos. Um movimento, por assim dizer, mstico, de penetrao do absoluto, e logo, outro movimento de eflorescnca e de explicitao do absoluto nas suas mltiplas formas da arte, da natureza, do esprito, da histria, do homem etc.Essa maneira ou mtodo de filosofar domina, de uma ou outra forma, na Alemanha, desde 1800 at 2870 aproximadamente. Quando esta maneira de filosofar decai, substituda por outro estilo que implica naturalmente, outro mtodo de filosofia. Na prxima lio prosseguiremos do nosso ponto de parada e ento veremos que, apesar de que os filsofos contemporneos, desde o ano 1870, mudam completamente sua idia sobre o mtodo, no deixam de conservar o essencial mtodo filosfico, tanto dos antigos como dos modernos a partir da Renascena.

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente - Lies Preliminares

Lio III - A INTUIO COMO MTODO DA FILOSOFIA

18. MTODO DISCURSIVO E MTODO INTUITIVO. 19. A INTUIO SENSVEL. 20. A INTUIO ESPIRITUAL. 21. A INTUIO INTELECTUAL, EMOTIVA E VOLITIVA. 22. REPRESENTANTES FILOSFICOS DE CADA UMA. 23. A INTUIO EM BERGSON. 24. A INTUIO EM DILTHEY. 25. A INTUIO EM HUSSERL. 26. CONCLUSO.

18. Mtodo discursivo e mtodo intuitivo.Em nossa lio anterior havamos tomado como tema o mtodo da filosofia, e havamos chegado ao ponto em que a intuio se nos apresentava insistentemente na histria do pensamento filosfico como o mtodo fundamental, principal, da filosofia moderna.Descartes foi, na filosofia moderna, o primeiro que, decompondo em seus elementos as atitudes com que nos situamos ante o mundo exterior e ante as opinies transmitidas dos filsofos, chega a lima Intuio primordial, primria, da qual logo parte para reconstruir todo o sistema da filosofia. Descartes faz, pois, da intuio o mtodo primordial da filosofia.Mais tarde, depois de Descartes, o mtodo da intuio continua a florescer entre os filsofos modernos. Empregam-no principalmente os filsofos idealistas alemes (Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer), e na atualidade o mtodo da intuio tambm geralmente aplicado nas disciplinas filosficas.Assim, pois, pensei que seria conveniente dedicar toda uma lio ao estudo demorado daquilo que a intuio, de quais so suas frmulas principais, de como atualmente, na filosofia do presente, s distintas formas de intuio esto representadas por diferentes filsofos e diversas escolas e tirar logo as concluses desse estudo para fixar em linhas gerais o uso que ns mesmos vamos fazer aqui da Intuio como mtodo filosfico.A primeira coisa que nos perguntaremos : que a intuio? Em que consiste a intuio?A intuio se nos oferece, em primeiro lugar, como um meio de chegar ao conhecimento de algo, e se contrape ao conhecimento discursivo. Para compreender bem o que seja o mtodo intuitivo convm, por conseguinte, que o exponhamos em contraposio ao mtodo discursivo. Ser mais fcil comear pelo mtodo discursivo.Como a palavra "discursivo" indica, este mtodo tem relao com a palavra "discorrer" e com a palavra "discurso". Discorrer e discurso do a idia, no de um nico ato encaminhado para o objeto, mas de uma srie de atos, de uma srie de esforos sucessivos para captar a essncia ou realidade do objeto.Discurso, discorrer, conhecimento discursivo , pois, um. conhecimento que chega ao fim proposto mediante uma srie de esforos sucessivos que consistem em ir fixando, por aproximaes sucessivas, umas teses que logo so contraditas, discutidas cada qual consigo mesma, melhoradas, substitudas por outras novas teses ou afirmaes e assim at chegar a abranger por completo a realidade do objeto, e, por conseguinte, obter dessa maneira o conceito.O mtodo discursivo , pois, essencialmente um mtodo indireto. Em lugar de ir o esprito direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e contempla-o de mltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de perto, at que por fim consegue forjar um conceito que se aplica perfeitamente a ele.Frente a este mtodo discursivo est o mtodo intuitivo. A intuio consiste exatamente no contrrio. Consiste num nico ato do esprito que, de repente, subitamente, lana-se sobre o objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma s viso da alma. Por isso a palavra "intuio" tem relao com a palavra "intuir", a qual, por sua vez, significa em latim "ver". Intuio vale tanto como viso, como contemplao.O carter mais evidente do mtodo da intuio ser direto, enquanto que o mtodo discursivo indireto. A intuio vai diretamente ao objeto. Por meio da intuio obtm-se um conhecimento imediato, enquanto por meio do discurso, do discorrer ou do raciocinar, obtmse um conhecimento mediato, ao final de certas operaes sucessivas.

19. A intuio sensvelExistem na realidade intuies? Existem; e o primeiro exemplo, e mais caracterstico, da intuio, a intuio sensvel, que todos praticamos a cada instante. Quando com um s olhar percebemos um objeto, um copo, uma rvore, uma mesa, um homem, uma paisagem, com um s ato conseguimos ter, captar esse objeto. Esta intuio imediata, uma comunicao direta entre mim e o objeto.Por conseguinte, fica claro e evidente que existem intuies, embora no fosse mais que esta intuio sensvel; porm, esta intuio sensvel no pode ser a intuio de que se vale o filsofo para fazer o seu sistema filosfico. E no pode ser a intuio de que se vale o filsofo por duas razes fundamentais. A primeira que a intuio sensvel no se aplica seno a objetos que se oferecem aos sentidos, e, por conseguinte, s aplicvel e vlida para aqueles casos que, por meio das sensaes, nos so imediatamente dados. Em vez disto, o filsofo necessita tomar, como base do seu estudo, objetos que no se apresentam imediatamente na sensao e na percepo sensvel; tem que tomar como termo do seu esforo objetos no sensveis. No pode servir-lhe por conseguinte a intuio sensvel.Mas, alm disto, h outra razo que impediria ao filsofo usar a intuio sensvel, e porque esta, em rigor, no nos proporciona conhecimento, pois como no se dirige mais que a um objeto singular, a este que est diante de mim, que efetivamente est a, a intuio sensvel tem o carter da individualidade, no vlida mais que para esse objeto particular que est diante de mim. Em vez disso, a filosofia tem por objeto no o singular que est a, diante de mim, mas objetos gerais, universais. Por conseguinte, a intuio sensvel, que est, pela sua essncia, atada singularidade do objeto, no pode servir em filosofia, a qual, pela sua essncia, se encaminha universalidade ou generalidade dos objetos.

20. A intuio espiritual.Se no houvesse mais intuio que a intuio sensvel, a filosofia ficaria muito mal servida.Mas o caso que h na nossa vida psquica outra intuio alm da intuio sensvel. Existe, digo, outra intuio que, desde j, antes de trocar-lhe o nome, vamos denominar "intuio espiritual". Assim, por exemplo, quando eu aplico o meu esprito a pensar este objeto: "Que uma coisa no pode ser e no ser ao mesmo tempo", vejo sem necessidade de demonstrao (a demonstrao discurso e conhecimento discursivo), com uma s viso do esprito, com uma evidncia imediata, direta e sem necessidade de demonstrao, que uma coisa no pode ser e no ser ao mesmo tempo. O princpio de contradio, como o chamam os lgicos, , pois, intudo por uma viso direta do esprito, uma intuio.Quando eu digo que a cor vermelha distinta da cor azul, esta diferena entre o vermelho e o azul, vejo-a tambm com os olhos do esprito mediante uma viso direta e imediata. Eis um segundo exemplo de uma intuio que j no sensvel. sensvel a intuio do vermelho, sensvel a intuio do azul, porm a intuio da relao de diferena a intuio de que o vermelho diferente do azul essa j no uma intuio sensvel, porque seu objeto, que a diferena, no um objeto sensvel, como o azul e o vermelho.Quando eu digo que a distncia de um metro menor do que a distncia de dois metros, esta diferena, esta relao, o objeto de uma intuio e no um objeto sensvel.Por conseguinte a intuio, que estes exemplos nos descobrem, no uma intuio sensvel. Existe, pois, uma intuio espiritual, que se diferencia da intuio sensvel em que seu objeto no um objeto sensvel. Esta intuio tampouco se faz por meio dos sentidos, mas por meio do esprito.At agora vou falando do esprito em geral, sem maior preciso. Mas agora preciso ir depurando, purificando, esclarecendo mais esta noo que j temos da intuio.Se considerarmos os exemplos com que ilustramos esta intuio espiritual, dar-nos-emos conta imediatamente de que eles nos colocam diante de um gnero de objetos que so sempre relaes, e estas relaes so de carter formal. Referem-se forma dos objetos. No ao seu contedo, mas a esse carter, por assim dizer, exterior, que todos os objetos tm de comum: a dimenso, o tamanho etc. Ento, por meio da intuio espiritual, no sentido em que a empregamos at agora, percebemos diretamente, intumos diretamente formas dos objetos: ser maior ou ser menor; ser grande ou ser pequeno em relao a um mdulo; poder ser ou no ao mesmo tempo. Mas todas estas so formalidades.A intuio espiritual nos exemplos que acabo de oferecer , pois, uma intuio puramente formal. Se no houvesse outra na -vida do filsofo, mal andaria ele. Se no pudesse ter mais intuies que intuies formais, tambm no poderia construir a sua filosofia porque com simples formalismos no se pode penetrar na essncia, na realidade roesma das coisas, como o filsofo pretende mais do que nenhum outro pensador.Porm, h na vida do filsofo outra intuio que no puramente formal, h outra intuio que, para contrap-la a intuio formal, chamaremos "intuio real". H outra intuio que penetra no fundo mesmo da coisa, que chega a captar sua essncia, sua existncia, sua consistncia. Esta intuio que vai diretamente ao fundo da coisa a que aplicam os filsofos. No uma simples intuio espiritual, mas uma intuio espiritual de carter real, por contraposio intuio de carter formal a que antes me referia. E esta intuio de carter real, esta sada do esprito, que vai tomai contacto com a ntima realidade essencial e existencial dos objetos, esta intuio real, podemos, por sua vez, dividi-la em trs classes, segundo predomine nela, ao verific-la, por parte do filsofo, a atitude espiritual, ou a atitude emotiva, ou a atitude volitiva.

21. A intuio intelectual, emotiva e volitiva.Quando na atitude da intuio o filsofo pe principalmente em jogo suas faculdades intelectuais, ento temos a intuio intelectual. Esta intuio intelectual tem no objeto seu correlato exato. J sabemos que todo ato do sujeito, todo ato do esprito na sua integridade, se encaminha para os objetos, e o ato do sujeito tem ento sempre seu correlato objetivo, consistente, para tal intuio, na essncia do objeto. A intuio intelectual um esforo para captar diretamente mediante um ato direto do esprito, a essncia, ou seja, aquilo que o objeto .Mas existe, alm. disso, outra atitude intuitiva do sujeito em que atuam predominantemente motivos de carter emocional. Esta segunda espcie de intuio, que chamamos intuio emotiva, tem tambm seu correlato no objeto. O correlato a que se refere intencionalmente a intuio emotiva j no a essncia do objeto, j no aquilo que o objeto , mas o valor do objeto, aquilo que o objeto vale.No primeiro caso a intuio nos permite captar o idos, como se diz em grego, a essncia ou a consistncia do objeto. No segundo caso, ao contrrio, o que captamos no aquilo que o objeto , mas aquilo que o objeto vale, ou seja, se o objeto bom ou mau, agradvel ou desagradvel, belo ou feio, magnfico ou msero.Todos estes valores que esto no objeto so captados por uma intuio predominantemente emotiva.E existe uma terceira intuio na qual as motivaes internas do sujeito, que se coloca nessa atitude, so predominantemente volitivas. Esta terceira intuio em que os motivos que se entrechocam so derivados da vontade, derivados do querer, tem tambm seu correlato no objeto. No se refere nem essncia, como a intuio intelectual, nem ao valor, como a intuio emotiva. Refere-se existncia, realidade existencial do objeto.Por meio da intuio intelectual propende o pensador filosfico a desentranhar aquilo que o objeto . Por meio da intuio emotiva propende a desentranhar aquilo que o objeto vale, o valor do objeto. Por meio da intuio volitiva desentranha, no aquilo que , seno que , que existe, que est a, que algo distinto de mim. A existncia do ser manifesta-se ao homem mediante um tipo de intuio predominantemente volitiva.

22. Representantes filosficos de cada uma.Estes trs tipos de intuio esto representados amplamente na histria do pensamento humano.A intuio intelectual pura encontramo-la na Antigidade, em Plato; na poca moderna, em Descartes e nos filsofos idealistas alemes, sobretudo em Schelling e Schopenhauer.A intuio emocional ou emotiva tambm est amplamente representada na histria do pensamento humano. Na antigidade encontramo-la no filsofo Plotino; mais tarde, em alto grau, levada a um dos mais sublimes nveis da histria do pensamento, encontramo-la em Santo Agostinho. Na filosofia de Santo Agostinho, a intuio emotiva chega a refinamentos e resultados extraordinrios. Depois de Santo Agostinho, durante toda a Idade Mdia, combatem e lutam uns contra outros os partidrios da intuio intelectual e da intuio emotiva. As escolas, principalmente dos franciscanos, de carter mstico, contrapem-se ao racionalismo de S. Toms. Corre por toda a Idade Mdia este duplo fluir dos partidrios de uma e de outra intuio.Por ltimo, a intuio emotiva, que em alguns casos no deixa de estar tingida de um elemento religioso, encontra-se em dois pensadores modernos, nos quais quase no foi notada at agora. Um Espinosa. Em muitssimos livros de filosofia se diz que Espinosa no faz uso da intuio; que Espinosa demonstra suas proposies more geomtrico, como puras demonstraes de teoremas de geometria, onde o elemento discursivo abafa por completo toda intuio. Todavia, isto mera aparncia. Na realidade, no fundo da filosofia de Espinosa, existe como que uma intuio mstica; chega um momento, no ltimo livro da tica de Espinosa, em que, sob a forma de uma demonstrao geomtrica, aparece a intuio emotiva, que rompe os moldes lgicos da demonstrao e se faz patente ao leitor, no sem uma comoo verdadeiramente tremenda da alma; quando Espinosa, ao chegar quase ao trmino de seu livro, sente-se elevado, sente-se sublimado no propsito filosfico que desde o comeo o anima, e escreve esta frase como o enunciado de um de seus teoremas: "Sentimus experimurque nos esse aeternos", que quer dizer: "Ns sentimos e experimentamos que somos eternos". A se v bem at que ponto toda esta crosta de teoremas e de demonstraes estava recobrindo uma intuio palpitante de emoo, uma intuio quase mstica da identidade do finito com o infinito e da eternidade no prprio presente.Outro que, por estranho que parea, pretende tambm esta intuio emotiva nada menos que o filsofo ingls Hume. Para Hume a existncia do mundo exterior e a existncia do nosso prprio eu no podem ser objeto de intuio intelectual; no podem ser objeto nem de intuio intelectual nem de demonstrao racional. No se pode demonstrar a ningum que o mundo exterior existe ou que o eu existe. A nica coisa que se pode fazer convidar algum a dizer se acredita que existe o mundo exterior ou se cr que existe o eu, porque a idia que temos do mundo exterior no mais que um belief, uma crena. Cremos, temos f; nossa crena no mundo exterior e na realidade de nosso eu um ato de f.Quanto intuio volitiva, tem na histria da filosofia porta-vozes e representantes bem autorizados, dentre os quais aquele que talvez mais profundamente chegou a sentir esta intuio de carter volitivo o filsofo alemo Fichte. Fichte faz depender a realidade do universo e a prpria realidade do eu de uma afirmao voluntria do eu. O eu voluntariamente se afirma a si mesmo; cria-se, por assim dizer, a si mesmo; pe-se a si mesmo. E ao pr-se a si mesmo, pe-se exclusivamente como vontade, no como pensamento; como uma necessidade de ao, como algo que necessita realizar-se na ao, na execuo de algo querido e desejado. E para que algo seja querido e desejado, o eu, ao pr-se a si mesmo, pe-se, melhor dito, prope a si obstculos para seu prprio desenvolvimento, com o objetivo de poder transformar-se em solucionador de problemas, em ator de aes, em algo que rompe esses obstculos. A realizao de uma vida, que consiste era dominar obstculos, para Fichte a origem de todo o sistema filosfico. Aqui temos na sua maior plenitude uma intuio de carter volitivo.De modo que na histria da filosofia moderna os trs tipos principais de intuio esto ampla e magnificamente representados.Na filosofia contempornea, a dos filsofos que vivem ainda ou desapareceram faz pouco tempo, a intuio constitui tambm a forma fundamental do mtodo filosfico. Em uma ou outra modalidade, a intuio constitui, em toda a filosofia contempornea, o instrumento principal de que o filsofo se vale para lograr as aquisies de seus sistemas.As modalidades em que esta intuio se apresenta na filosofia contempornea so muito variadas. Seja dito de passagem, existe na filosofia contempornea um imoderado af de originalidade. Cada filosofo pretende ter um sistema. Se ns quisssemos seguir em todos os seus variados matizes as divergncias que h entre este, esse e aquele, essas pequenas divergncias que h entre um e outro, com suas preocupaes de originalidade e de dizer o que ningum disse, perder-nos-amos numa selva de mincias, muitas vezes pouco significativas.Fazendo uma classificao geral e tomando as principais figuras do pensamento contemporneo, podemos encontrar at trs modalidades no uso do mtodo da intuio.Estas trs modalidades vamos exp-las com os nomes dos filsofos que melhor as representam.Temos primeiramente a intuio como a emprega e pratica Bergson. A segunda modalidade est representada principalmente por Dilthey. A terceira modalidade est representada por Husserl, que formou uma escola bastante extensa pelo nmero de seus seguidores e que costumava levar o nome de "escola fenomenolgica".Vamos tentar caracterizar brevemente a classe de intuio que cada um desses trs pensadores preconiza como o mtodo da filosofia.

23. A intuio em Bergson.Para Bergson a filosofia no pode ter outro mtodo que o da intuio. Qualquer outro mtodo que no seja a intuio falsearia radicalmente a atitude filosfica. Por qu? Porque Bergson contrape (at que ponto com verdade, isso no vou discuti-lo agora) a atividade intelectual e a atividade intuitiva. Para Bergson a atividade intelectual consiste em fazer o que fazem os cientistas; consiste em fazer o que fazem os homens na vida ordinria; consiste em tomar as coisas como coisas inertes, estticas, compostas de elementos que se podem decompor e recompor, como o relojoeiro decompe e recompe um relgio. O cientista, o economista, o banqueiro, o comerciante, o engenheiro, tratam a realidade que tm diante de si como um mecanismo cujas bases se podem desconjuntar e logo tornar a se juntar. O cientista, o matemtico, considera as coisas que tm diante de si como coisas inertes, que esto a, esperando que ele chegue para dividi-las em partes e fixar para cada elemento suas equaes definidoras e logo reconstruir essas equaes.Segundo Bergson, este aspecto da realidade que o intelecto, a inteligncia, estuda desta maneira, o aspecto superficial e falso da realidade. Debaixo dessa realidade mecnica que pode se decompor e recompor vontade, debaixo dessa realidade que ele chama realidade j feita, est a mais profunda e autntica realidade, que uma realidade que se faz, que uma realidade impossvel de decompor em elementos comutveis, que uma realidade fluente, que que , por conseguinte, uma realidade no fluir do tempo, que se escapa das mos to logo queremos aprision-la; como quando jogamos gua numa cesta de vime e ela escapa pelas aberturas.Do mesmo modo, para Bergson o intelecto realiza sobre essa realidade profunda e movedia uma operao primria que consiste em solidific-la, em det-la, em transformar o fluente em inerte. Deste modo facilita-se a explicao, porque, tendo transformado o movimento em imobilidade, decompe-se o movimento em uma srie infinita de pontos imveis.Por isso, para Bergson, Zeno de Ela, o famoso autor dos argumentos contra o movimento, ter razo no terreno da intelectualidade, e no ter jamais razo no terreno da intuio vivente. A intuio vi-vente tem por misso abrir passagem atravs dessas concrees do intelecto, para usar uma metfora. A primeira coisa que fez o intelecto foi congelar o rio da realidade, convert-lo em gelo slido, para poder entend-lo e manej-lo melhor; porm falseia-o ao transformar o lquido em slido, porque a verdade que, por baixo, lquido, e o que tem que fazer a intuio romper esses artificiais blocos de gelo mecnico para chegar /fluncia mesma da vida, que corre sob essa realidade mecnica.A misso da intuio , pois, essa: opor-se obra do intelecto, ou daquilo que Bergson chama o pensamento, ia pense. Por isso, no seu ltimo livro chegou talvez ao mximo refinamento na histria da filosofia, que consiste em ter colocado no titulo mesmo do seu livro a ltima essncia do seu pensamento: Intitula-o La pense et le mouvant: "O pensamento e o movente". Intelectual o pensamento. Mas o aspecto profundo e real o movimento, a continuidade do fluir do mudar, ao qual s por intuio podemos chegar.Por isso, para Bergson, a metfora literria o instrumento mais apropriado para a expresso filosfica. O filsofo no pode fazer definies porque as definies se referem ao esttico, ao quieto, ao imvel, ao mecnico e ao intelectual. Mas a verdade ltima o morente e fluente que h debaixo do esttico, e a essa verdade no se pode chegar por meio de definies intelectuais: a nica coisa que pode fazer o filsofo mergulhar nessa realidade profunda; e logo, quando voltar superfcie, tomar a pena e escrever, procurando, por melo de metforas e sugestes de carter artstico e literrio, levar o leitor a verificar por sua vez essa mesma intuio que o autor verificou antes dele. A filosofia de Bergson um constante convite para que o leitor seja tambm filsofo e faa tambm ele as mesmas intuies.

24. A intuio em Dilthey.Passaremos agora a tentar caracterizar em poucas palavras a intuio em Dilthey.A intuio em Dilthey pode ser caracterizada rapidamente com o adjetivo "volitivo". A intuio de Dilthey a intuio volitiva a que, faz alguns instantes, me referia. Tambm para Dilthey, como para Bergson, o intelectualismo, o idealismo, o racionalismo, todos aqueles sistemas filosficos para os quais a ltima e mais profunda realidade o intelecto, o pensamento, a razo, todas essas filosofias para Dilthey so falsas, so insuficientes.Para Dilthey no a razo, no o intelecto que nos descobre a realidade das coisas. A realidade, ou, melhor dito ainda, a "existncia" das coisas, a existncia viva das coisas, no pode ser demonstrada pela razo, no pode ser descoberta pelo entendimento, pelo intelecto. Tem que ser intuda com uma intuio de carter volitivo, que consiste em percebermo-nos a ns mesmos como agentes, como seres que, antes de pensar, querem, apetecem, desejam. Ns somos entes de vontade, de apetites, de desejos, antes que entes de pensamentos. E queremos enquanto somos entes de vontade. Mas nosso querer tropea com dificuldades. Essas dificuldades nas quais tropea nosso querer convertemo-las em coisas. Essas dificuldades so as que nos do, imediata e intuitivamente, notcias da existncia das coisas; e uma vez que nossa vontade, ao tropear com resistncias, chega a lutar contra elas, converte essas resistncias em existncias.A existncia das coisas , pois, dada nossa intuio volitiva como resistncia delas. Por isso o primeiro vislumbre de filosofia existencial est em Dilthey.H um filsofo francs, no direi pouco conhecido, mas sim menos conhecido, Maine de Biran, que viveu em meados do sculo XIX e cuja atuao filosfica passou, no direi despercebida, mas sim pouco percebida. Maine de Biran foi talvez o primeiro que denunciou esta origem volitiva da existencialidade, que denunciou em ns uma base para afirmao da existncia alheia, de existncia das coisas e dos outros homens, uma base nas resistncias que se opem nossa vontade, e estudou demoradamente a contribuio essencial que as sensaes musculares do na psicologia formao da idia do eu e das coisas. Dilthey considera como a intuio fundamental da filosofia e esta intuio volitiva que nos revela as existncias. De outra parte isto o leva tambm a considerar que na vida humana a dimenso do passado essencial para o presente. Assim como o que rodeia o homem se lhe apresenta primordialmente em forma de obstculos e resistncias sua ao, do mesmo modo o presente tem que se nos apresentar como o limite a que chegam hoje os esforos procedentes do passado. E assim a dimenso do histrico e do pretrito faz entrada no campo da filosofia de um modo completamente distinto daquele que tivera na filosofia idealista alem de comeos do sculo XIX.

25. A intuio em Husserl.Por ltimo, direi algumas palavras sobre a intuio fenomenolgica de Husserl.A intuio fenomenolgica de Husserl, para caracteriz-la em termos muito gerais, e, por conseguinte, muito vagos, teria que ser relacionada com o pensamento platnico. Husserl pensa que todas as nossas representaes so representaes que devemos olhar de dois pontos de vista. Desde logo, um ponto de vista psicolgico segundo o qual tm uma individualidade psicolgica como fenmenos psquicos; todavia, como todos os fenmenos psquicos, eles contm a referncia intencional a um objeto.Cada uma de nossas representaes , pois, em primeiro lugar, uma representao singular. Em segundo lugar, esta representao singular o representante, o mandatrio, diremos, de um objeto, Assim, se eu quero pensar o objeto Napoleo, no posso pens-lo de outra maneira que representando-me Napoleo, mas a representao que eu tenho de Napoleo ter que ser singular: ora imagino-o montado a cavalo na ponte de Arcole, ora suponho-o na batalha de Austerliz, com a cabea baixa e a mo enfiada na sua tnica; ora figuro-o desesperado, aps a derrota de Waterloo. Cada uma dessas representaes por si mesma singular; mas as trs, embora sejam totalmente distintas umas das outras, referem-se ao mesmo objeto que Napoleo.Pois bem: a intuio fenomenolgica consiste em olhar para uma representao qualquer, prescindindo de sua singularidade, prescindindo ,do seu carter psicolgico particular, colocando entre parente ses a existncia singular da coisa; e ento, afastando de si essa existncia singular da coisa, para no procurar na representao seno aquilo que tem de essencial, procurar a essncia geral, universal, na representao particular. Considerar, pois, cada representao particular como no particular, colocando entre parnteses, eliminando de nossa contemplao, aquilo que tem de particular, para no olhar seno aquilo que tem de geral; e uma vez que conseguirmos lanar o olhar intuitivo sobre aquilo que cada representao particular tem de geral, teremos nessa representao, embora particular, plasticamente realizada a essncia geral. Teremos a idia, como ele diz, renovando a terminologia de Plato, e por isso se trata aqui, para Husserl, de uma intuio do tipo que denominamos intelectual.Temos, pois, em linhas gerais aproximadamente o seguinte: que Bergson nos representa a intuio de tipo emotivo; que Dilthey nos representa a intuio existencial volitiva; e Husserl representa a intuio intelectual maneira de Plato ou talvez tambm maneira de Descartes.

26. Concluso.Para terminar, conveniente que tentemos extrair dessa anlise que fizemos da intuio, algumas concluses pessoais para nosso estudo da filosofia, para nossas excurses no campo da filosofia. preciso considerar que estas trs classes de intuio que se repartem em grandes linhas o campo metdico filosfico contemporneo tm, cada uma delas, sua justificao num lugar do conjunto do ser. O erro consiste em querer aplicar uniformemente uma s delas a todos os planos e a todas as camadas do ser.Evidentemente, nas camadas do ser que esto dominadas pela construo intelectual das cincias matemticas, fsicas, das cincias biolgicas, das cincias jurdicas e sociais, aquelas camadas onde o sersignifica j, sem preocupar-se da origem delas, existncia e essncia, nessas camadas o importante, o filosficamente importante a descrio das essncias. Fazer descrio daquilo que os objetos so.Para estas camadas do ser, evidentemente, a intuio fenomenolgica de Husserl o instrumento mais apropriado; a intuio intelectual aquela que, tendo ns posto o objeto diante de ns, submete o s categorias do ser esttico, do ser existente; o mtodo mais eficaz para esta camada de ser ser evidentemente a intuio fenomenolgica, que procura furar as representaes desse ser, dessa coisa, para chegar coisa mesma, prescindindo da singularidade e particularidade da representao.Todavia, se o objeto que nos propomos captar for pr-intelectual, for essa vivncia do homem antes que o homem tenha resolvido crer que h coisas, ento teremos que descobrir essa vivncia do homem, anterior crena na existncia das coisas, como um puro e simples viver, mas um viver que sente os obstculos, que tropea com resistncia, com dificuldades. E justamente ao tropear com resistncias e dificuldades, d a essas resistncias o valor de existncias e, tendo-as convertido em existncias, lhes confere o ser, e, uma vez que lhes conferiu o ser, ento j so essncias, s quais pode aplicar-se a intuio intelectual.De sorte que estes trs tipos de intuio no so contraditrios mas antes podem todos ser usados na filosofia contempornea e ns os usaremos segundo as camadas de realidade em que estiverem situados os objetos a que nos consagramos. Em nossas excurses pelo campo da filosofia, seremos fiis ao mtodo da intuio, se umas vezes aplicarmos a intuio fenomenolgica e outras a intuio emotiva, ou, melhor ainda, a intuio volitiva.