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1 GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004. Resenha Denise Barros Weiss* Muitos livros tratam da história da lingüísti- ca, mas A língua inatin- gível é um texto ímpar. Em primeiro lugar, pelos autores. Michel Pêcheux e Françoise Gadet são parte de uma geração de lingüistas que fundaram e depois recriaram a Análise do Discurso na França. São não somente estudiosos muito respeitados em seu campo de trabalho, mas também observa- dores argutos das diferentes vertentes teóricas em lingüística — tanto os da vertente socioló- gica quando os da formalista. Em segundo lugar, pelo ponto de vista ado- tado. O texto expressa uma profunda insatisfa- ção com ambos os modos de fazer lingüística e explica esse desagrado, analisando como cada um dos grupos acabou por ignorar o fato de que a língua não pode ser descrita de acor- do com um sistema que constitui um “conti- nuum de níveis” (para usar a expressão de Ferreira, 1999) e sim um complexo afetado pelo inconsciente e pela história. Por último, pela época em que foi escrito. Segundo Denise Maldidier 1 , La langue introu- vable foi concebido entre 1976 e 77, mas publi- cado somente em 1981. A primeira divulgação das suas idéias básicas ocorreu em uma das sessões do seminário de que eram organiza- dores, além de Pêcheux, P. Henry e M. Plon. Depois, em uma reunião do Centro de Estudos e Pesquisas Marxistas, em uma exposição cujo título era “Há uma via para a lingüística fora do logicismo e do sociologismo?” “É fácil adivinhar que a via que se trata de encontrar entre os dois obstáculos do ‘logicismo’ e do ‘sociologismo’ nos levará ao discurso.” (Maldidier, 2003, p. 58). O livro tem como pano de fundo uma França ainda marcada pela revolução de 68, e consti- tuiu um marco da escola francesa da análise do discurso. O que se pretende neste trabalho é registrar um olhar sobre esse texto, quase trinta anos depois de ele ter sido escrito. Como todo tex- to, este evocou em mim, como leitora, outros textos. Por isso, entremeados às anotações sobre A língua inatingível estão alguns frag- mentos — lembranças de casos, de outros tex- tos —, pedaços de uma memória individual que foram reavivados com a leitura desse material tão rico. Por isso penso que o resultado do trabalho não é exatamente um texto; parece mais um bor- dado — às linhas originais de Pêcheux e Gadet se misturam, em alguns pontos, uns enfeites... Uma leitura do texto Nesta obra podemos ver como a noção de equívoco trabalha a reflexão sobre a análise de discurso, sem trégua. Mas não é só das noções discursivas que trata este livro. Seu nome já aponta para o que inquieta os auto- res: a língua em seu real que, como diz J-C Milner, é o impossível. Para compreender isso, e partindo da idéia de que há língua e há lín- guas, os autores se dão a difícil tarefa de com- preender a relação língua/discurso. 2 A teoria proposta por Gadet e Pêcheux passa ao largo do que seriam duas escolhas fáceis: Tanto evita as evidências ideológicas do que seria uma linguagem clara, racional e unívoca, * Doutoranda em Estudos da Linguagem na Universidade Federal Fluminense. Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora. [email protected]. 1 MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (Re)ler Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2003. 2 Disponível em www.submarino.com.br

GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua Campinas ...portal.estacio.br/media/4386/1-gadet-francoise-pecheux-michel... · 4 GIL, Gilberto. Metáfora. Disponível em 5 Pode-se

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GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A línguainatingível: o discurso na história da lingüística.Campinas: Pontes, 2004.

Resenha

Denise Barros Weiss*

Muitos livros tratamda história da lingüísti-ca, mas A língua inatin-gível é um texto ímpar.

Em primeiro lugar, pelos autores. MichelPêcheux e Françoise Gadet são parte de umageração de lingüistas que fundaram e depoisrecriaram a Análise do Discurso na França. Sãonão somente estudiosos muito respeitados emseu campo de trabalho, mas também observa-dores argutos das diferentes vertentes teóricasem lingüística — tanto os da vertente socioló-gica quando os da formalista.

Em segundo lugar, pelo ponto de vista ado-tado. O texto expressa uma profunda insatisfa-ção com ambos os modos de fazer lingüísticae explica esse desagrado, analisando comocada um dos grupos acabou por ignorar o fatode que a língua não pode ser descrita de acor-do com um sistema que constitui um “conti-nuum de níveis” (para usar a expressão deFerreira, 1999) e sim um complexo afetado peloinconsciente e pela história.

Por último, pela época em que foi escrito.Segundo Denise Maldidier1, La langue introu-vable foi concebido entre 1976 e 77, mas publi-cado somente em 1981. A primeira divulgaçãodas suas idéias básicas ocorreu em uma dassessões do seminário de que eram organiza-dores, além de Pêcheux, P. Henry e M. Plon.Depois, em uma reunião do Centro de Estudose Pesquisas Marxistas, em uma exposição cujotítulo era “Há uma via para a lingüística fora dologicismo e do sociologismo?” “É fácil adivinhar

que a via que se trata de encontrar entre os doisobstáculos do ‘logicismo’ e do ‘sociologismo’nos levará ao discurso.” (Maldidier, 2003, p. 58).

O livro tem como pano de fundo uma Françaainda marcada pela revolução de 68, e consti-tuiu um marco da escola francesa da análisedo discurso.

O que se pretende neste trabalho é registrarum olhar sobre esse texto, quase trinta anosdepois de ele ter sido escrito. Como todo tex-to, este evocou em mim, como leitora, outrostextos. Por isso, entremeados às anotaçõessobre A língua inatingível estão alguns frag-mentos — lembranças de casos, de outros tex-tos —, pedaços de uma memória individual queforam reavivados com a leitura desse materialtão rico.

Por isso penso que o resultado do trabalhonão é exatamente um texto; parece mais um bor-dado — às linhas originais de Pêcheux e Gadetse misturam, em alguns pontos, uns enfeites...

Uma leitura do texto

Nesta obra podemos ver como a noção deequívoco trabalha a reflexão sobre a análisede discurso, sem trégua. Mas não é só dasnoções discursivas que trata este livro. Seunome já aponta para o que inquieta os auto-res: a língua em seu real que, como diz J-CMilner, é o impossível. Para compreender isso,e partindo da idéia de que há língua e há lín-guas, os autores se dão a difícil tarefa de com-preender a relação língua/discurso.2

A teoria proposta por Gadet e Pêcheux passaao largo do que seriam duas escolhas fáceis:Tanto evita as evidências ideológicas do queseria uma linguagem clara, racional e unívoca,

* Doutoranda em Estudos da Linguagem na Universidade Federal Fluminense. Professora da UniversidadeFederal de Juiz de Fora. [email protected] MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (Re)ler Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2003.2 Disponível em www.submarino.com.br

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quanto trata com cuidado os usos poéticos queexploram os equívocos da linguagem. Para osautores, a língua(gem) é uma unidade cheiade furos.3

Gadet e Pêcheux apresentam a história decomo a lingüística persegue, de diversas ma-neiras e por diferentes caminhos, o ideal da lín-gua, aquilo que, como explica o título, é “A lín-gua inatingível”, e de como esse real se lheescapa sempre por entre os dedos. É um textolongo e denso, estruturado em dois grandesblocos, cada um composto por capítulos cur-tos, cujo conjunto forma como que um mosai-co de olhares.

O objetivo desse trabalho, segundo EniOrlandi, em seu prefácio à tradução brasileira,é fazer “uma belíssima história da lingüística,sem deixar de lado o sujeito do conhecimento,o político, a ideologia e a própria história”.

O livro começa com um olhar crítico sobreos caminhos trilhados pela lingüística. Os auto-res a apresentam como estando em um mo-mento delicado, quase em um beco sem saí-da: por um lado, seguindo em direção às mani-festações externas da linguagem, embaralha-se em uma profusão de regras e em uma mis-tura entre o social, o cultural e o lingüístico. Poroutro lado, caindo na eterna procura do SantoGraal da Gramática Universal, chave que abririaas portas para a compreensão de todo o me-canismo das línguas e, por extensão, a língua.Nos dois casos, afirmam os autores, a lingüís-tica se perde, e perde de vista seu objetivo.

A essa visão geral segue-se uma análise aten-ta e por vezes dura das tentativas feitas paracaptar esse real fugidio: os caminhos da lingüís-tica, oscilando entre empirismo ou racionalismo.Os autores apresentam, então, uma aberturapara aquilo que será um dos pontos chave dolivro: como o poder constituído tenta se apo-derar e se apropriar da língua, torcendo-a se-gundo seus próprios objetivos, de modo a man-ter sob controle as manifestações do povo.

Ao tratar da formação das línguas nacionais,Gadet e Pêcheux detalham esse fascínio pelopoder da língua, “um poder nu, que não precisanem mesmo dizer o seu nome” (Milner, apudGadet e Pêcheux, 2004, p.32). Mostram, parti-cularmente, como, no movimento da ascensãoda burguesia, houve, paralelamente às(alegadas) mudanças sociais, dois movimentoscontraditórios: de um lado, uma apropriaçãorápida e eficiente dos códigos usados até en-tão pelos nobres, desde o período feudal, o quegarantia a continuidade de muitas das condu-tas valorizadas e legitimava a burguesia comoclasse social hegemônica; de outro lado, umtrabalho importante de afirmação da língua na-cional como uma forma de expressar apoio erespeito às diferenças, garantindo uma imagemsaudável e muito útil de novidade e de atençãocom as classes desfavorecidas. Como se vê,já na Revolução Francesa se pretendia ser “po-liticamente correto”...

Uma das características mais marcantes dolivro é o uso constante que os autores fazemdas metáforas. Entre as muitas que merecemcitação, destacam-se as do Direito e da Vida,que serão balizas na discussão teórica sobreos rumos da lingüística de cunho social (sob osigno do Direito) e a de cunho biológico (sob osigno da Vida). Segundo os autores, as duasvertentes da antropologia lingüística — social ebiológica — são tentativas constantes de apro-priação da língua, seja pela ordem, pelas regras,pelo domínio do sistema, seja pelo reconheci-mento de cada diferença na produção, de cadadeslize de sentido.

A partir dessa análise, chega a uma descri-ção de outras tentativas de se atingir o cerneda língua, por caminhos dos obcecados por ela,em uma modalidade de loucura que Pierssensdenominou logofilia — outra tentativa de dizero indizível. Os homens loucos por sua línguaperseguem-na não só no teatro, na poesia, mastambém na ciência. James Joyce, Guimarães

3 His theory of language and society refrains from all too easy choices: Pêcheux avoids the ideological self-evidences of so-called clear, rational and univocal language. But he also treats with caution the poetic or madplay that explores the equivocality of language to invoke change. Language is a unity full of breaks. HELSLOOT,Niels. Disponível em http://www.nielshelsloot.nl/publications/1995a.htm

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Rosa resvalaram nessa língua que é sempreoutra coisa. Gilberto Gil fez uma bela tentativade explicar essa obsessão, fornecendo-nos aomesmo tempo um exemplo e uma inspiraçãopara compreendermos essa logofilia do poeta:

Uma lata existe para conter algoMas quando o poeta diz: “Lata”Pode estar querendo dizer o incontívelUma meta existe para ser um alvoMas quando o poeta diz: “Meta”Pode estar querendo dizer o inatingívelPor isso, não se meta a exigir do poetaQue determine o conteúdo em sua lataNa lata do poeta tudonada cabePois ao poeta cabe fazerCom que na lata venha caberO incabívelDeixe a meta do poeta, não discutaDeixe a sua meta fora da disputaMeta dentro e fora, lata absolutaDeixe-a simplesmente metáfora4

O sonho da onipotência sobre a língua se-duziu não somente poetas e políticos, mas tam-bém cientistas. Houve muitas tentativas demimetizar perfeitamente a significação em ono-matopéias, aprisionando a língua como a umaharpa mágica, dominada para tocar somente acanção que se deseja. Mas não é possível apri-sionar o sentido. Aprender, talvez. Apreender,nunca.

Se as línguas já existentes não podem serpresas, que tal construir a própria? Os espe-rantistas continuam nessa empreitada aindahoje. Ou quem sabe encontrar o ideal no passa-do, na língua mãe da humanidade? Ou talvez criarmáquinas obedientes e dóceis, que entendam aténossos pensamentos... Nesse ponto, ficção eciência tentam a façanha, que contudo esbarrasempre na liberdade que a língua tem de assumirsentidos imprevistos pelo seu “criador” 5.

Nesse ponto, os autores nos desanimamdessa busca: Assumem, tomando as palavras

4 GIL, Gilberto. Metáfora. Disponível em www.lumiar.com.br/songbook/s_gil.htm5 Pode-se citar, como exemplo, filmes como o clássico “2001, uma odisséia no espaço”.6 Usou-se nessa resenha a abreviatura LI para designar “A língua inatingível“.7 BANDEIRA, Manuel. Arte de amar.8 Insite. http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/809.html

de Milner, que o real da língua é mesmo o im-possível. Falar é escolher, escolher é renunciar.Assim, tudo não se pode dizer. Como exemplodesse impossível, lembram aqueles que com-pararam a tentativa de apreender o caráter dalíngua ao mito da completude do ser humano.Mais uma vez o impossível se impõe:

Esse ponto de impossível surge do fato de que,como dois sujeitos não se podem unir, ‘não hárelação sexual (LI, 52)6.

Manuel Bandeira também nos fala dessafrustração, que poderíamos associar à que sesente quando não se é capaz de tocar o outropela palavra:

As almas são incomunicáveis.Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,porque os corpos se entendem, mas as almas não.7

Ou podemos ainda recorrer a Fernando Pes-soa:

Como é por dentro outra pessoaQuem é que o saberá sonhar?A alma de outrem é outro universoCom que não há comunicação possível,Com que não há verdadeiro entendimento.Nada sabemos da almaSenão da nossa;As dos outros são olhares,São gestos, são palavras,Com a suposição de qualquer semelhançaNo fundo.

Fernando Pessoa, 19348

Se Milner propõe o real da língua, Gadet ePêcheux vão ainda além: propõem que há umreal da história. Portanto, por esse raciocínio,se não se pode apreender o real da língua, tam-bém não é possível apreender a história. A his-tória, como disciplina, será, então também umasucessão de desvios e escorregadelas, de mu-danças de olhares sobre os fatos.

Os autores começam a entrelaçar as teoriaslingüísticas com o pano de fundo histórico em

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que nasceram, mostrando como ciência e his-tória se interpenetram. Esse movimento come-ça com Saussure.

Os textos de história da lingüística comu-mente destacam, ao tratar de desse autor, anoção por ele proposta de arbitrariedade dosigno. Os autores de A língua inatingível, po-rém, vão seguir outro viés, observando como,em Saussure, surge a aparente contradiçãoentre o Curso de Lingüística Geral e os Anagra-mas — portanto entre a lógica fria do signolingüístico e o deslizamento de sentidos des-ses jogos de palavras — o diurno e o noturno,mais uma metáfora para o dualismo.

Para nós [os autores], o saussurianismo nãose divide assim: o que faz aqui irrupção na lin-güística (e que nela fica parcialmente entrava-do) refere-se precisamente à relação entre odiurno e o noturno, entre a ciência e a poesia(ou até a loucura) (LI, 57).

Os autores advogam a tese de que a princi-pal contribuição de Saussure é a sua concep-ção de valor e criticam os que consideramSaussure “simples”. Evocando Benveniste, afir-mam que

Colocar o valor como peça essencial do edifí-cio [da obra de Saussure] equivale a concebera língua como rede de “diferenças sem termopositivo”, o signo no jogo de seu funcionamen-to opositivo e diferencial e não na sua realida-de; conceber o não dito, o efeito in absentiada associação, em seu primado teórico sobrea “presença” do dizer e do sintagma; o não-dito é constituinte do dizer, porque o todo dalíngua só existe sob a forma não finita do “não-tudo”, efeito da alíngua; é pelo papelconstitutivo da ausência que o pensamentosaussureano resiste às interpretaçõessistêmicas, funcionalistas, gestaltistas efenomenológicas que, entretanto, elas nãocessam de provocar (LI, 58).

Amado Alonso, no prólogo à edição em es-panhol do Curso de Lingüística Geral, enfatizaa importância dada por Gadet e Pêcheux à no-ção de valor:

Este concepto lingüístico de valor ha sido re-volucionário y de una incalculable fecundidad

cientifica: el funcionamento entero de uma lín-gua consiste em el juego de identidades e di-ferenças; valores y sus oposiciones.9

Gadet e Pêcheux enfocam a obra deSaussure sob a perspectiva psicanalítica, so-bretudo o trabalho de J – C Milner:

Depois de Galileu, Darwin, Marx, Freud... o queaparece com Saussure é da ordem de umaferida narcísica. Um saber aí se libera, o qual,sob o peso do que a ciência da linguagem acre-ditava saber, a obcecava sem que ela aceitas-se reconhecê-lo: a língua é um sistema quenão pode ser fechado, que existe fora de todosujeito, o que não implica absolutamente queela escape ao representável (LI, 63).

Entretanto, estranham que o próprio Milner,que reconhece a “indissociabilidade dos doisSaussure”, deixe de perceber a importância doconceito de valor como ponto central de suaobra, detendo-se apenas a considerar a poesiacomo lugar de cessação da univocidade desentido, sem perceber que essa cessação podeser estendida à língua como um todo.

Apresentando as intercessões entre o realda língua e o real da história, os autores vãoentão mostrar como, no decorrer dos movimen-tos decorridos no Leste Europeu no século XX,tentou-se dominar a língua e, através dessa es-tratégia, dominar a história.

O que afeta e corrompe o princípio deunivocidade na língua não é localizável nela: oequívoco aparece exatamente como o pontoem que o impossível (lingüístico) vem aliar-seà contradição (histórica); o ponto em que a lín-gua atinge a história (LI, 64).

Gadet e Pêcheux (p. 64) afirmam que “todadesordem social é acompanhada de uma es-pécie de dispersão anagramática que constituium emprego espontâneo das leis lingüísticasdo valor: as massas tomam a palavra”. Os au-tores vão apresentar mais tarde uma série deexemplos desses acontecimentos, especial-mente na revolução russa. Mas podemos evo-car um exemplo bastante recente desse fenô-meno, ocorrido no Brasil na década de 90 — achamada “Era Collor”.

9 SAUSSURE, F. Curso de lingüística general. 4. ed. Buenos Aires, Editorial Losada, 1961. p. 9.

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Naquela época, o sobrenome do então pre-sidente da República contaminou, inicialmentesob a forma de adjetivo, todos aqueles que fa-ziam parte de suas comitivas ou que partilha-vam de seus ideais político-econômicos. Suaderrocada foi marcada por uma crescente de-preciação desse adjetivo, e culminou com umaassociação entre cores (ou talvez até uma liga-ção com a palavra em inglês para cor — línguatambém associada à modernidade pregada pelopolítico) feita pela população. O resultado des-sa leitura foi um embate entre presidente e po-pulação, em uma brincadeira séria com as me-táforas contidas no nome e nas cores. O presi-dente pediu que as pessoas saíssem às ruasem seu apoio, usando verde e amarelo a popu-lação deu sua resposta com sinal trocado: umeloqüente mar de roupas pretas. E “collorido”transformou-se, por muito tempo, em uma ex-pressão ofensiva.

Em A língua inatingível, esse tipo de traba-lho com a língua vai ser exemplificado com osmovimentos paralelos ocorridos na RevoluçãoFrancesa e na Rússia de 1917. Os autores vãoesmiuçar inúmeros jogos de palavras e desliza-mentos de sentido que refletem mudanças so-ciais nesses dois momentos da história.

Os autores assim resumem a relação entrea lingüística e a política russa do princípio doséculo XX:

Nesse ponto em que começa a lingüística(Moscou é um dos raros lugares em queSaussure tornou-se conhecido a partir de1917), uma revolução cultural se prepara: omovimento das massas de Outubro traça, as-sim, entre os profissionais da linguagem (...)uma linha de demarcação entre aqueles quedobrar-se-ão diante do risco da anarquia e docaos no academicismo da tradição russa, ba-seado numa língua ao mesmo tempo litúrgicae feudal, e aqueles que, de várias maneiras,“escolherão o campo da revolução” (LI, 70).

Vão então apresentar como a língua foi utili-zada no correr da Revolução Russa, quer pelosgovernantes, para manipular informações e di-vulgar um pensamento unívoco sobre o queocorria, quer pelos que, se rebelando contra oregime totalitário, usavam essa língua para fa-lar de sua insatisfação.

Esse rastreamento começa com os “prota-gonistas do Outubro lingüístico e literário”, gru-pos que, durante os últimos anos da décadade 10, “mantiveram-se à frente na cena ideoló-gica”. Em uma listagem que exibe muito conhe-cimento de nomes (e que por isso exige do lei-tor muita informação prévia para ser devidamen-te apreciada), narram como cada grupo atuou,ou tentou atuar, na revolução proletária, mos-trando, com um lamento, como esse conjuntode ações foi engolfado pelo sistema.

Dos movimentos literários, passam a anali-sar os movimentos pedagógicos. O livro subli-nha a relação entre as lutas camponesas pelopoder após a revolução bolchevique e as políti-cas lingüísticas concomitantemente adotadas.Desde antes da Revolução Russa, já havia umaoposição, no campo das idéias, entre a visãourbana, caracterizada pelo gosto pelo progres-so e pela ocidentalização dos costumes, e avisão rural, marcada pelo tradicionalismo religi-oso e a fidelidade à cultura eslava. Essa contra-dição marca o modo como se processou a cha-mada “educação das massas”. A questão era:

Como conciliar as necessidades econômicase políticas (difusão das técnicas agrícolas e in-dustriais, estabelecimento da administraçãosoviética) com as formas nacionais e as heran-ças que elas veiculam? (LI, 78).

O reflexo dessa contradição está na tentati-va dos teóricos de unir as vanguardas a temasligados à tradição dos literatos, criando textosde ficção científica em que opunham aartificialidade das cidades humanas à naturali-dade dos campos (não muito diferente do quese tem hoje nos temas de filmes como BladeRunner e Matrix — que radicalizam as diferen-ças entre o artificial e o natural até o limite dediscutir o caráter do real).

Essa tensão vai tomar corpo também nopensamento leninista, “comprimido entre a ne-cessidade de uma liberdade de participaçãocrítica na política por parte de todos os cida-dãos e a exigência de sua subordinação ‘técni-ca’ no processo de trabalho organizado porespecialistas” (LI, 80).

Essas contradições podem ser observadasna obra de Maïakovski. Por um lado esse poeta

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tomou a si a tarefa de divulgar as palavras deordem dos bolcheviques, e se aproximou dosformalistas, propondo a “despoetização da na-tureza”. Por outro lado, o mesmo intelectual pro-duziu obras em que sobressaem “o humor, afantasia desregrada, e a derrisão agressiva”.

Maiakovski, como artista e como represen-tante — porta-voz — de uma ordem, de umaproposta, teve um destino curioso: apesar dasprovocações e do seu suicídio, o conformismostalinista pôde reconstruir dele uma imagempositiva do herói revolucionário. E, poderíamosacrescentar, depois de muitos anos, em um paísao sul do equador, tornou-se uma estampa fa-mosa, que adornou camisetas e quartos ado-lescentes da chamada “contra-cultura”. Maisuma vez devorado pelo sistema, ainda que, pa-radoxalmente, símbolo de resistência, tornou-se citação fácil para quem nada sabia de Revo-lução Russa, mas que achava “muito maneiro”ser moderno.

Mas a roda viva do movimento político vaigirar, e com ela vão mudar os rumos e as idéi-as. Aumentam as pressões do governo russo,especialmente após a morte de Lenin, sobre opensamento lingüístico e literário.

... o C.C. de 1924 sobre a literatura continuaráa garantir politicamente a existência de dife-rentes correntes, escolas e movimentos; masum processo se trava, no qual as armas deuns e de outros vão progressivamente voltar-se contra eles (LI, 87).

Começa então a “recriação soviética domundo” (LI, 93). O Estado russo adota a educa-ção das massas como meio de acabar com ascontradições da luta de classes. Esse procedi-mento resulta, paradoxalmente, não em umauniformização do pensamento, mas em um acir-ramento das contradições, ainda que abafadaspelo recrudescimento do totalitarismo.

A atenção dos autores se volta, agora, para

o modo como se articulou a “língua de Esta-do”, trabalho de Stalin, cujo objetivo era dar con-ta da história, tornando-a mais de acordo comseus objetivos e sua ideologia. Na falta de umapotente máquina do tempo, o ditador conten-tou-se em usar meios mais corriqueiros de tra-balho — assassinatos, certamente, mas princi-palmente destruição de documentos, em umaenorme tarefa de reconstruir a história recentedaquele país10. O que precisava fazer ia alémda eliminação pura e simples das pessoas físi-cas. Era necessário apagar essa imagemindesejada da memória coletiva. Todos os mei-os possíveis foram usados. Apagamento defotos (o que ele não faria com um computador,hoje...), de dados biográficos, a reescritura dehistórias, a remontagem dos fatos segundo aordem mais conveniente... Mas ele não sabia(nem tampouco os autores desse livro, na épo-ca de sua elaboração) que o passado voltaria,bem mais tarde, para cobrar sua parte: suascidades, tão bem renomeadas, reassumiramseus nomes originais; sua estátua, tão bemconstruída, foi derrubada do pedestal, as línguasque ele supôs soterradas pelo russo voltaramem guerras fratricidas, ansiosas pelo reconhe-cimento11... são as voltas da história.

Onde está o ponto de ruptura de Stalin coma ordem antes proposta por Lenin? Segundoos autores, está na maneira pela qual as metá-foras utilizadas por Lenin foram lidas por Stalin:ao pé da letra. O que se perdeu, para usar alinguagem de Pêcheux e Gadet, foi o humor: acapacidade de enxergar além das palavras,além de um sentido unitário que se quer atribuira elas. A linguagem deixou, mais uma vez, deser uma representação do real para se passarpor ele.

A linguagem como imagem lógica da realida-de, reflexo do real e expressão da objetivida-

10 O que, ao que parece, não foi privilégio dele. Conversas com uma família russa, há alguns anos, me revelaramque uma das dificuldades de se estudar na Rússia dos anos 90 foi justamente desembaralhar os fios dessahistória reescrita tantas vezes – e que mudava a cada geração de alunos nas escolas oficiais.11 Um aluno sérvio explicou que quando começou a guerra na antiga Iugoslávia, uma das primeiras providênciasde cada um dos grupos envolvidos foi voltar a falar em sua língua, e houve um grande movimento de modifica-ção dos nomes, atribuindo àquilo que só tinha um nome em russo um equivalente em sérvio.

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de: o realismo socialista em literatura baseia-se no mito de uma coincidência entre a lin-guagem e o real, impondo-se descrevê-lo ‘ob-jetivamente’, tal como é... na ideologia stali-nista, ou seja, de fato, transfigurar a realidadeao ‘refleti-la’ (LI, 103).

E as pesquisas lingüísticas durante esse tempo?

Na Rússia de 1929, Voloshinov /Bahktin pro-põe o viés sociológico de análise, em oposiçãoao trabalho dos formalistas. Suas teses, em-bora baseadas nas de Plekhanov, serão recha-çadas pela revolução soviética. A proposta lin-güística de Stalin é a da tratar a língua comoferramenta, “um instrumento de comunicaçãohomogêneo no conjunto da sociedade”. Passa-va ao largo, portanto, de quaisquer considera-ções que ligassem a língua e seu domínio à lutade classes. Esse modo de pensar já tinha sidovisto antes, no feudalismo, na revolução burgue-sa... Sintoma do poder?

Outros grupos também se dispuseram apensar a língua no mundo soviético: os círcu-los lingüísticos. Um olhar sobre as suas trajetó-rias revela como se relacionaram poder consti-tuído e pesquisas lingüísticas.

Primeiramente, o Círculo Lingüístico de Pra-ga: sobrevivente do Círculo de Moscou, sofreumudança não apenas de lugar, mas conforma-ção teórica. Produziu a teoria fonológica deTrubezköi, de Jackobson e de Karcevski. Influ-enciados por Saussure e por Husserl, essesteóricos pouco se interessavam por sintaxe.Dissolvido em 1939, o Círculo deixará comoherdeiro um Jackobson que transporá o mar edesembarcará com suas teorias nos EstadosUnidos, onde fundará outro Círculo Lingüístico,o de Nova York. Esse grupo norte-americanonunca negou a herança formalista. Pelo contrá-rio, Jackobson vai tender sempre a procuraruniversais fonológicos: “ele sonha com uma ta-

bela de Mendeleïev dos elementos fônicos” (LI,109).

De Círculo em Círculo, chega-se ao de Viena.Seu chefe? Carnap. Seu propósito? Uma críticada língua — “um saneamento científico da lin-guagem”. Segundo Pêcheux e Gadet, o círculode Viena realizou um trabalho paradoxal: ao mes-mo tempo em que confiavam no fato de que alíngua se purifica por si só, sendo capaz de re-sistência contra as “impurezas”, desconfiavamdos ardis que essa própria língua demonstraser capaz no cotidiano. Ao que parece, os teó-ricos desse Círculo chegam a reconhecer os“furões” da língua, mas os temem como excres-cências que deveriam ser vigiadas atentamente.

A análise dos eventos que marcaram o perí-odo da Segunda Guerra Mundial na lingüísticafunciona como um ponto de ruptura no livro.Até esse ponto, os autores acompanhavam osmovimentos lingüísticos na União Soviética.Agora vão migrar (provavelmente junto aos per-tences de Jackobson) para a América.

Não por acaso a segunda metade do livro12

começa com “A grande Travessia”. Nesse capí-tulo, Gadet e Pêcheux mostram um apanhadode como foi engendrada — por diferentes teó-ricos — a “conjunção astral” que possibilitou oadvento do formalismo que culminará com otrabalho de Chomsky13 e, por oposição, os fu-turos trabalhos em lingüística de caráter socio-lógico. A descrição dos autores começa com agrande diáspora do século XX — um enormecontingente de intelectuais fugindo da Europanazista para o sonho de liberdade norte-ameri-cano. O pano de fundo filosófico é esmiuçado,e mais um duplo é apresentado: Wittgenstein— opondo-se o Tractatus e as Investigações Fi-losóficas (ambos os trabalhos filiados à tradi-ção neopositivista de Carnap) ao Wittgensteindos “jogos de palavras” (LI, 123), que irá inspi-

12 Cabe aqui sublinhar a interessante simetria que subjaz não somente ao tema do livro – os duplos, as contradi-ções, as visões especulares - mas também à conformação do próprio livro. O ponto de virada dos autores ficaexatamente na metade do livro, um número semelhante de capítulos de cada lado sugere não apenas umacisão, no nível do conteúdo do texto, mas também algo de uma visão especular da história da lingüística.13 A importância dada a Chomsky nesse livro faz pensar em como era forte sua influência à época em que esselivro foi escrito, e em como isso foi sendo relativizado no correr das décadas seguintes.

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rar Austin e Searle.

Percorrendo o caminho de Chomsky, os au-tores mostram a inserção desse estudioso emuma linha teórica:

De Saussure ao C. L. P., do C. L. P. ao funcio-nalismo, de Bloomfield a Harris e de Harris aChomsky, um deslocamento teórico foi reali-zado, conseguindo colocar no centro das pre-ocupações lingüísticas a questão da constru-ção sintática dos enunciados; no campo ame-ricano, essa questão se colocará nas formas,fazendo diretamente alusão às preocupaçõesda lógica matemática (LI, 127).

Apresentam a polêmica entre Bar-Hillel14 eChomsky, indicando nela os princípios da teo-ria gerativo-transformacional.

Gadet e Pêcheux encontram em Chomskyuma ligação com o materialismo. Mostram queChomsky, ao recusar o logicismo puro, abreespaço para essa distinção.

A materialidade da língua só consente em serepresentar no materialismo de uma escritacom a condição expressa de não se identificarcom ele (LI, 130).

Os autores mostram a filiação de Chomskyàs idéias de Popper. Apresentam a ligação des-se teórico da filosofia da ciência com o positi-vismo (“relações ambíguas de proximidade eoposição”), mas chamam a atenção do leitorpara as críticas de Popper a essa corrente —especialmente no que diz respeito às posiçõesa respeito do tratamento dos dados em pes-quisa e à teoria da indução.

Um elemento da teoria de Popper que se re-flete no trabalho de Chomsky é o do foco dapesquisa, colocado não nos dados (no que es-ses autores se opõem ao empirismo de Carnap),mas no problema a ser levantado. Essa con-cepção abre caminho para um olhar mais racio-nalista sobre o objeto (no caso de Chomsky, alíngua).

Configuram-se as hipóteses fundamentais dateoria chomskiana: a pesquisa restrita ao nívelfrásico, a dependência estrutural, a estrutura

abstrata.

Se a influência de Popper fez com queChomsky adotasse o modelo da física, a influ-ência de Carnap o faz lidar também com mode-los matemáticos e, com o desenvolvimento desua teoria, ele avançará em direção ao modelobiológico de linguagem, quando, em Aspects,substitui a noção de recursividade pela decriatividade.

Se há uma falha no raciocínio de Chomsky,dizem os autores, essa falha está na sua tenta-tiva de “brincar de Deus” — tentar propor umateoria que, ao mesmo tempo em que dá contado infinito na linguagem, seja verificável segun-do padrões científicos.

A contradição do chomskianismo revela-se,aqui, entre o cuidado em construir protótiposgramaticais (parciais, portanto experimentá-veis) e a tentação de um recurso narcisistainfalsificável aos ideais totalizantes da biologia(LI, 143).

O lingüista vai se mostrar sempre antifuncio-nalista: para ele a linguagem não é um instru-mento de comunicação, mas uma propriedadebiológica da espécie humana. Ele tenta provaressa teoria mostrando a ambigüidade comoexemplo. Se a língua tem como função comuni-car, como, argumenta Chomsky, permite um sis-tema tal que se pode dizer coisas muito dife-rentes com a mesma palavra ou a mesma ex-pressão? É no mínimo antieconômico.

Mas a preocupação com a ambigüidade nãoé específica de Chomsky, e ele também não é oúnico a tentar propor um sistema que dê contado que para ele é um problema. Gadet ePêcheux mostram isso cotejando a perspecti-va chomskiana com a de Ruwet. O primeiro ana-lisa a ambigüidade e tenta resolvê-la no nível daestrutura profunda: “nesse domínio, a ambigüi-dade constitui apenas um fenômeno pontual eidiossincrático considerado como puro sinto-ma, uma conjuntura de discussão” (LI, 145).Ruwet, por sua vez, trata a ambigüidade como“critério de adequação das gramáticas” (LI, 145).

14 Yehoshua Bar-Hillel: filósofo, matemático e lingüista do MIT, conhecido por seu trabalho pioneiro no campo datradução automática (machine translation). (Fonte: http://list-of-linguists.wikiverse.org/)

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Gadet e Pêcheux explicam que o interesseda ambigüidade está no fato de que ela seriaum ponto de resistência ao tratamento lógicoda língua: “é um ponto essencial da diferençaentre ‘língua natural’ e ‘linguagem artificial” (LI,145). Bem diferente, portanto, da posição ado-tada pelos autores que resenharam.

A preocupação com a resolução das ambi-güidades revela a negação teórica das incerte-zas na língua. Chomsky e Ruwet se igualam nastentativas de resolução: ambos falham. A lín-gua inatingível apresenta mais um paradoxo dateoria de Chomsky:

A ambigüidade constitui, portanto, um pontoprivilegiado da contradição chomskiana: nun-ca mais Chomsky terá semelhante intuição daespecificidade indiscutível da língua, mas tam-bém nunca mais ele ficará tão próximo de umjogo lógico. É em termos lógicos, com argu-mentos lógicos, que ele tenta escapar aologicismo: daí a paródia (LI, 147).

Os autores seguem sua análise da teoriagerativa, apontando agora para outras “falhas”que vêm desfazer a regularidade do sistemanaquilo que é dado como o seu centro: no nóda consistência/completude. Levantam os tra-balhos de outros autores (mais vez, destacan-do os de Milner) que mostraram os muitos pon-tos da linguagem de que a teoria gerativa nãodá conta: o sistema de pronomes, os indicado-res de dêixis são alguns exemplos. À página 152,um resumo do que significam esses ataques àteoria:

Não é, portanto, no plano das propostas detratamento que reside, a nosso ver, o interes-se das falhas, mas na “subversão” (termo deMilner) que elas fazem o modelo chomskianosofrer. Naturalmente, trata-se de um ponto emque a lingüística encontra a psicanálise. (...)Embora a lingüística não tenha nada a dizer doinconsciente, ela pode assinalar pontos da lín-gua em que o sujeito não pode ser apresenta-do como um sujeito desejante.

A questão da presença do inconsciente nalíngua e de sua ausência na lingüística nos levaao próximo ponto abordado: a inconsistênciado objeto de que a lingüística pretende dar con-ta. Chomsky apresenta, como encaminhamen-to dessa questão, dois momentos em sua teo-

ria. Um, em que mostra a homogeneidade ma-terial da língua e a impossível distinção, no âm-bito formal, entre o que é gramatical e o que éagramatical (O que diferencia “as incolores idéiasverdes dormem furiosamente” de “as animadascrianças loiras correm furiosamente”?). No se-gundo momento, surge a aparente solução paraesse impasse. Junto com o infalível sinal deasterisco, a figura do falante ideal, capaz de dis-tinguir uma frase da outra intuitivamente, reco-nhecendo-lhes o sentido — ou a falta dele —sem recorrer a contexto (palavra que talvez nun-ca tenha aparecido em sua obra).

Assim, a “questão dos dados é imediatamen-te considerada, na G.G.T., na sua relação com aquestão do sujeito” (LI, 154). Um sujeito a-polí-tico, a-histórico, descarnado, por assim dizer.Talvez até muito semelhante ao marciano dePêcheux e Gadet.

O impossível na língua será objeto de mui-tas tentativas de contorno, na lingüística, peladeterminação do que é ou não gramatical, peloestabelecimento de fronteiras, de balizas. Oimpossível seria, então o que não se enquadranos parâmetros de gramaticalidade. Mas con-tinua fugidio: há sempre um mundo possível emque o agramatical deixa de sê-lo; quando issonão acontece ainda pode entrar em cena o hu-mor, a brincadeira, o nonsense. Assim o impos-sível continua sendo também o intangível.

Em Chomsky essas tentativas de apreensãoda agramaticalidade o farão classificá-la e ten-tar propor escalas de aproximação entre gra-matical e agramatical.

O que escapa à teoria chomskiana? Segun-do A língua inatingível, a noção de discursivi-dade, que substituiria a interpretação semânti-ca das sentenças por “uma prática de interro-gação dos textos referidos à sua posição emum campo histórico. (...) A tese que resulta dis-so é que o sentido não preexiste à sua consti-tuição nos processos discursivos” (LI, 158).

Toda a complicação está no fato de que nãose admite, na teoria gerativa, que há na línguaum caráter transgressor, do qual a metáfora ésomente um exemplo.

Pêcheux e Gadet começam então a fazer o

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longo caminho rumo ao “momento atual” —meados da década de 70. Segundo eles, “essafacilidade negligente, essa certeza de ter con-tornado o obstáculo, sinaliza a prática da gera-ção atual de lingüistas: nesse sentido, Milnertem razão em perceber aí alguma coisa da or-dem de um desperdício, ou até de um assassi-nato: os especialistas da língua regulamenta-ram sua relação com a língua” (LI, 163).

Vão assim mostrar como as contradiçõesadvindas dessa negligência afetam a teoriachomskiana. Fecham o capítulo com um primo-roso resumo de suas preocupações:

Em uns vinte anos, passou-se de um horizon-te filosófico (vago e relativamente acolhedor)da prática lingüística ao sectarismo biopsicoló-gico. Da competência às estruturas mentaisinatas, e destas últimas aos universais, a se-mântica e a biologia selaram sua aliança: oimpério dos sentidos e as evidências do órgãomental.A língua inatingível é a aparição no interior dalingüística de um espaço lógico regulamentan-do as práticas dessa disciplina, levando o sujei-to a se reconhecer nesse regulamento (LI, 168).

A perspectiva biológica dotada porChomsky, que não admite referência a evoluçãoou a aprendizagem com os próprios erros vaiser contestada por Piaget, embora este últimotenha tentado se aproximar do gerativismo. Afonte usada por Pêcheux e Gadet para retrataressas discussões foi Theories du langage,thorie de l’apprentissage, publicado em 1979.No capítulo destinado a apresentar esse con-fronto entre a teoria inatista e a construtivista,os autores criticam ambas as correntes, mos-trando que ambas ignoram a interferência dahistória no indivíduo.

Pode-se, com efeito, interpretar a posiçãoinatista como a instauração de uma distânciamáxima entre o momento filogenético daconstituição do cérebro humano e aquele deseu emprego nas mais diversas atividades atu-almente observáveis, daí o “comportamentolingüístico”: a história da evolução das espéci-es não tem nada a ver, por exemplo, com ahistória transformacional de uma frase! (...) aperspectiva inatista tende, assim, a este olharabsoluto em que, objeto real e objeto de co-nhecimento vindo a coincidir, o epistemólogose instala no lugar do construtor.

(...)A posição construtivista pode ao contrário serinterpretada como um empreendimento derecobrimento filogenético e ontogenético, noponto em que a história de cada “desenvolvi-mento” individual reproduz parcialmente aevolução das espécies e a história dos conhe-cimentos científicos. (LI, 175)

Em “Dois Chomsky?” Gadet e Pêcheux vãoinvestigar até que ponto realmente se distin-guem o lingüista e o cidadão politizado, obser-vando mais um duplo na história da lingüística.Mostram que as relações entre ambos os pa-péis desempenhados por Chomsky são bemmais profundas – assim como Chomsky sebeneficia de seu renome como teórico para fa-lar dos problemas sociais, sua teoria tambémse beneficia do encontro de seu criador com arealidade – é isso que a faz, em última análise,avançar.

No trecho abaixo, os autores fazem uma crí-tica curiosa a Chomsky.

Se o trabalho político do historiador consiste,ao menos em parte, em reinterpretar, em fun-ção da conjuntura presente, os elementos his-tóricos conhecidos, é certo que Chomsky rea-liza um trabalho de historiador, sobre seu pró-prio trajeto e sobre a história da lingüística. Aseu modo, ele reescreve a história da Gramá-tica Gerativo-Transformacional e das ciênciasda linguagem... mas o faz “a seu modo”, ce-dendo a facilidades muitas vezes desconcer-tantes. (LI, 183)

Fica a impressão de que Pêcheux e Gadetacabam, com esse comentário, de alguma for-ma comparando (equiparando?) o tratamentodado à história da lingüística por Chomsky como modo pela qual foi tratada a história em ou-tros momentos — quem sabe na Rússia deStalin?

Se o gerativista reescreveu sua história e areinscreveu em uma história da lingüística “livre-mente adaptada”, por que o fez? Pêcheux eGadet consideram que essa explicação se en-contra nas diferentes raízes da lingüística comodisciplina na Europa e nos Estados Unidos.Enquanto no velho continente a disciplina tevecomo berço o estudo dos textos clássicos,adotando as regras gramaticais desses textoscomo referência para a elaboração de sua gra-

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mática, a que se dá enorme atenção – e isso sereflete no sistema educacional europeu –, osEstados Unidos têm uma história radicalmentediferente, já que sua cultura é marcada por umforte sentido do pragmático.

Nesse contexto, a língua deixa o espaço euro-peu do adestramento (...) e se torna um ór-gão-instrumento do sujeito, um dos meiospelos quais ele se exprime, se comunica comos que o cercam e age sobre eles (LI, 185).

Em um ambiente em que a gramática temtão pouca importância e é tão pouco estuda-da, Chomsky cria justamente uma teoria da gra-mática. De certa maneira isso o impele a mos-trar que tem, sim, uma base, um berço, masnão exatamente o mesmo que os gramáticoseuropeus. Os autores têm palavras duras paraexplicar a necessidade de filiação de Chomskya uma corrente teórica:

Era necessário inscrever essa descoberta (es-sencialmente o itinerário teórico que vai doestruturalismo de Harris ao gerativismo da T.S.)numa história da lingüística suscetível deprefigurá-la fornecendo-lhe títulos de nobre-za15 (LI, 186).

Os autores sugerem então examinar o “fun-damento teórico da controvérsia filosófica ame-ricana que opõe o empirismo ao racionalismopara tentar determinar a posição real da Gra-mática Gerativo-Transformacional, seu solo ide-ológico efetivo, sem se ater à palavra da inter-pretação chomskiana” (LI, 187).

O ponto mais recalcado do trabalho deChomsky, segundo os autores, é a noção deregra, que permeia a gramática e o direito.

A explicação materialista para esse recalqueserá ligada às condições histórias nas quais seorganizou o Direito na América. Mais uma vezrecorrem à comparação, cotejando as configu-rações do direito na França e nos Estados Uni-dos, como já haviam mostrado em relação àgramática.

O direito na França é baseado em uma lei

pré-escrita. Nos EUA, trata-se de direito de ju-risprudência. Em outras palavras, enquanto ofrancês segue regras programadas a priori, oamericano estabelece as regras quando elas sefazem necessárias.

Segundo os autores, essas duas formas deraciocínio em termos legais — o espaço regu-lamentar, base do sistema francês, e o espaçoda regra de procedimento, base do sistemanorte-americano, têm diferentes repercussõesem termos da coerção do indivíduo, já que

nesses dois espaços, o trabalho de interpreta-ção é completamente diferente. No primeiro,trata-se de trabalhar as fórmulas de um textopara nele incluir ou excluir tal ou tal caso. Nosegundo, é a forma, a estrutura lógica da situ-ação que trabalha de alguma forma sobre simesma (LI, 191).

Pêcheux e Gadet reconhecem que essesdois sistemas jurídicos têm uma contrapartidanas maneiras de enxergar e examinar os fatoslingüísticos segundo diferentes teorias: as gra-máticas européias, seguindo o primeiro mode-lo: regras fixas e posterior tentativa de classifi-car os exemplo segundo elas; a lingüística ge-rativa, seguindo o segundo: olhar o modelo e iradaptando-o para conter os novos dados.

As fórmulas humorísticas são também alvode comparação. Enigma, witz e joke são apre-sentados como mais um indicador das diferen-ças entre EUA e Europa. Os enigmas se basei-am em classificações e regulamentos. Witz ejokes, em jogos de absurdo.

Mostram as razões da incorporação da tra-dição intelectual judia — que foi rechaçada du-rante tanto tempo na Europa — à ideologiaWASP16. Tal identificação tem raízes não só naformação do povo americano, mas também naconfluência de modos de expressão — à pai-xão dos norte-americanos pelo debate corres-ponde a “argumentação talmúdica”, tão ao gos-to do povo judeu. Mas essa identificação entremodos de fazer humor norte-americano e judeu

15 Curiosa ironia – nobreza não foi o que os americanos tinham desprezado em sua própria história? Ah, sim, osautores de La Langue são franceses...16 White Anglo-Saxon Protestant – sigla que identifica o norte-americano característico, e que remete ao AmericanWay of Life.

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não se dá sem contradição:

A ambigüidade anglo-saxã é fundamentalmen-te dicotômica: ela se inscreve nesse mundológico reduzido, nesse modelo reduzidoconstruído pelo raciocínio lógico.A relação do humor judeu com o absurdo édiferente: não se entrega nunca à pura lógica,mas supõe um desvio pela história, a língua, oTexto (LI, 195).

A filosofia chomskiana trata a lingüísticacomo parte da psicologia, e essa um setor dabiologia. Mas qual é o lugar do real nessa teo-ria? Segundo Chomsky, nenhuma parte do co-nhecimento humano deveria escapar ao inatis-mo — portanto o real da história, assim comoo real da língua estaria imerso nessa “matriz”.O ser humano, inconsciente desse sistema, nãochegaria a esse conhecimento, que é inato.Assim, diz Pêcheux e Gadet, “compreendemosentão que o real histórico seja objeto de umaexpulsão fora da esfera racional, em nome daluta contra o empirismo: da história como ór-gão mental, não há grande coisa para dizer!”(p. 199)

A descrição dos autores nos leva a conclu-sões chocantes sobre o ponto de vistagerativista. O núcleo humano seria invariante.Nele residiria, como um programa residente, agramática universal — a mesma para todos.Esse raciocínio tem como conseqüência um to-talitarismo de enormes proporções.

Tudo se passa como se, por uma espécie deharmonia preestabelecida, a gramática univer-sal guardasse as categorias, também “univer-sais”, do direito burguês: a responsabilidadeprópria ao direito das pessoas, a possessão li-gada ao direito sobre as coisas (LI, 200).

Nesse caso, talvez se pudesse dizer, então,que a gramática universal seria... a língua deDeus? Então Deus é ocidental, capitalista...17 eem seu nome pode-se então dizer que o con-ceito de liberdade é universal, e aí matar emnome da defesa desse universal. Assustador.Mas coerente.

Pêcheux e Gadet assim tratam esse tema,quem sabe prevendo o futuro:

Como se a ideologia W. A. S. P. tivesse se apro-priado do espírito de perseguição da culturajudia, transformando-o em delírio paranóico decontrole: nesse sistema, um ato de agressãotorna-se um gesto de defesa e de autoprote-ção do modo de vida norte-americano (LI, 204).

Solução? Os autores não prevêem nenhuma,exceto talvez o escape pelo humor, espécie deinteligência que foge ao controle das máquinasoficiais (ou não?). Como é possível que a socie-dade norte-americana consuma como entrete-nimento críticas ferozes ao seu próprio modode ser — de “Os Simpsons” a “Beleza America-na”, de “Edwards Mãos de Tesoura” a “Tiros emColumbine”?). Desencanto, ironia. Fruto de umaépoca? O que Pêcheux diria de hoje? O que di-ria de nossos lingüistas, de nossa cultura? Fi-nalmente, o que diria dessa política internacio-nal?

Um olhar sobre o texto

Contar é muito dificultoso. Não pelos anos quese já passaram. Mas pela astúcia que têm cer-tas coisas passadas — de fazer balancê, de seremexerem dos lugares.

Guimarães Rosa18

A perspectiva de escrever uma resenha de“A língua inatingível” me foi apresentada comouma tarefa hercúlea. Ao abraçá-la, tive amplachance de perceber o quanto isso seria verda-deiro.

A língua inatingível é um livro denso. Maisdo isso, é um livro cujas informações não sepode apreender de uma vez, mas que se vãorevelando aos pedaços, com muitas idas e vin-das, outras tantas consultas a outros materiaise – por que não admitir? – alguma frustração. Oleitor chegará certamente à conclusão de que“tudo não se pode entender”, para brincar comuma das frases que poderia servir de epígrafeao livro. Mas, afinal, não é esse o espírito doque diz o livro?

17 Os filmes norte-americanos sempre me impressionaram pelo fato de neles qualquer pessoa saber falar inglês.Se por acaso não o fazia era certamente um inimigo que deveria ser aniquilado... mesmo se fosse um alienígena!18 Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.80.

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Os autores elaboraram uma sofisticada aná-lise da história da lingüística sob o viés da aná-lise do discurso. Demonstram um conhecimen-to profundo tanto dos movimentos políticos,quanto das revoluções teóricas nos campos dafilosofia e da lingüística ao longo do século XX,a partir da visão do estado da lingüística no fi-nal dos anos 70 (a primeira edição surge na Fran-ça em 1981). E é justamente esse conhecimen-to enciclopédico que por vezes atordoa o leitormenos experiente ou menos informado.

Apesar de o livro ser uma análise da históriada lingüística, nem sempre os autores vão sepautar somente pela cronologia dos fatos. Nos(muitos) capítulos do livro, eles vão construin-do um tecido de informações em que entremei-am os dados da história com a sua visão, for-temente marcada por fontes da psicanálise —Freud, Lacan, Milner são presenças constantese por uma perspectiva marxista.

Gadet e Pêcheux trabalharam, como já se viu,sob duas grandes perspectivas: a da política,através de seus líderes ou das massas em fa-ses de movimentação política, e da ciência,notadamente a psicanálise de base freudiana,perscrutando os movimentos na lingüística emsua busca pelo poder sobre a palavra.

Outro ponto de destaque desse livro é a lei-tura da obra de diferentes autores sob o pontode vista da duplicidade: Dois Saussure, doisMaiakovski, dois Chomsky... Aparecem sempreos contrastes, mas também a ligação entreesses “duplos”.

Outra característica que chama a atenção éo processo de composição dos nomes doscapítulos. Ler o sumário desse livro sem conhe-cer o conteúdo é muito pouco esclarecedor.Geralmente só é possível entender esses títu-los retrospectivamente, após o leitor ter dadoconta não apenas do que diz o capítulo, mas,muitas vezes, das finas redes que ligam essasinformações ao jogo de palavras presente dotítulo. O que significa que alguém que queira uti-lizar o livro como uma fonte de consulta rápidaprovavelmente ficará bastante frustrado. Não éum livro que se possa folhear e fazer um comen-tário, mesmo geral. Há que se ler. Seriamente.

A quem interessaria tal leitura? À primeira vis-ta, aos lingüistas interessados em compreen-der a obra de Pêcheux. Mas o modo como esselivro é escrito faz dele fonte interessante paraquem quer compreender melhor, se aprofundarno estudo dos movimentos de linguagem doséculo XX, principalmente em suas repercus-sões políticas.

À guisa de conclusão

Após a leitura dessa obra, poder-se-ia suge-rir um outro ponto de vista para a pesquisa so-bre as relações língua(gem) e poder: a religião.Dos campos da vida humana, talvez seja aí olugar em que melhor se percebe, por um lado,a não-univocidade da língua, e por outro as ten-tativas sangrentas de assegurar seu domínio esua leitura uniformizada, quer por interesses,quer por crenças — o que, afinal de contas, tal-vez seja uma mesma coisa.

Penso que um bom exemplo do que seriaesse trabalho seja observar as discussões so-bre o nome que se dá ao que se conhece comoDeus. Um fragmento dessa discussão está notrecho a seguir, encontrado em uma das inúme-ras páginas da Internet que tratam do tema:

Os nomes de DeusSegundo a teologia muçulmana, os nomes deDeus são 4 mil: mil são conhecidos apenaspor Deus; mil por Deus e pelos anjos; mil, porDeus, pelos anjos e pelos profetas; mil, porDeus, pelos anjos, pelos profetas e pelos fiéis.Desses últimos, 300 são citados na Torá; 300,nos salmos; 300, nos evangelhos e 100, noAlcorão: desses, 99 são conhecidos pelos fiéiscomuns; 1 está escondido, secreto e acessí-vel somente aos místicos mais iluminados.Segundo os ensinamentos do profeta Maomé,“existem 99 nomes que pertencem somentea Deus: aquele que os aprende, que os com-preende e os enumera entra no paraíso e al-cança a salvação eterna”. De fato, entender “aessência” desses atributos é o primeiro passopara enriquecer-se espiritualmente. Eis porque,no plano estritamente prático, é costume domuçulmano, que se recolhe em oração, fazercorrer entre os dedos as 99 contas do seu ro-sário. Todavia, os nomes de Deus não sãoDeus, mas um simples símbolo da realidadedivina, adaptada aos limites da razão humana.

Agenda latinoamericana mundial.

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O trabalho de linguagem em torno do termoque designaria Deus é sempre a tentativa de“dizer o indizível”.

O trabalho sobre um texto não se encerra,como bem sabe cada leitor que relê um livrodepois de algum tempo. A cada leitura e a cadaleitor, o livro se fecha/se abre, em um jogo deevocações — explicações que lembra espelhospostos um diante do outro. Mas urge encerraresta resenha. Para fazê-lo, recorro, como fiz tan-tas vezes ao longo desse material, a dois frag-mentos de textos literários, que (como aindaestou convencida, apesar de tudo o que foi ditoao longo do texto de Pêcheux e Gadet) exem-plificam mais claramente que outros discursoso jogo permanente de contradição de que nosfala “A língua inatingível”:

O objeto da longa perseguição de Gadet ePêcheux talvez possa ser também a procura de

Fernando Pessoa, em seu heterônimo AlbertoCaeiro.

Caeiro admira a Natureza e busca atingir amesma impassibilidade dos elementos natu-rais. Para este heterônimo o mundo não en-cerra mistérios: Deus, metafísica, “sentido úl-timo das coisas”, nada disso importa, as coisassão apenas as coisas. E é esta realidade pura,sem símbolos de qualquer espécie, que cons-titui o alvo de sua criação poética.19

Sua filosofia pode ser assim resumida:

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mis-tério. 20

Talvez seja esse o paradoxo da língua. Tentardar conta disso será, então, como nomear Deus— a cada nome, outro fica de fora. Quem sabe,como as franjas de Machado de Assis21, indi-cando a eterna contradição humana...

19 Disponível em http://educaterra.terra.com.br/literatura/poesiamoderna/2003/11/05/003.htm20 CAEIRO, Alberto. (Fernando Pessoa). poema V de O Guardador de Rebanhos.21 MACHADO DE ASSIS, A igreja do Diabo.

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