GADINI, S. Em Busca de Uma Teoria Construcionista Do Jornalismo Contemporâneo

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    Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 33 • agosto de 2007 • quadrimestral 79

    Em busca de uma teoria construcionista do jornalismocontemporâneo: a notícia entre uma forma singularde conhecimento e um mecanismo de construção social

    da realidadearalelamente ao fortalecimento do campo jorna-lístico brasileiro, registrado com maior ênfase apartir de meados dos anos 1980, a concepção de

     jornalismo – talvez um pouco próximo da ampla vari-abilidade conceitual que marca as noções de comuni-cação – sofre de uma esquizofrênica amplitude depossibilidades que definem seu objeto, que vai desdea sua restrição a procedimentos técnicos de produçãoe transmissão de informações até (ainda no âmbito

    desse mesmo olhar restritivo) sua afirmação comouma mera prática profissional cuja orientação básicaresidiria na sua compreensão como “espelho da “-realidade.

    Tal cenário parece especialmente demarcado noBrasil, onde os esforços para se pensar o jornalismoem suas dimensões históricas e culturais, e como umcampo marcado por relações de disputa e tensõescom os demais campos que constituem a esfera públi-ca, ainda são relativamente restritos.

    Um exemplo bastante significativo é o fato de que aformação acadêmica na área ainda é muito marcada

    por uma certa tradição tecnicista, que insiste na afir-mação contínua do mito da objetividade e padece deuma espécie de esquecimento de questões cruciais aoentendimento do fenômeno jornalístico, tais como aproblematização das relações com as fontes, a temati-zação, os critérios de noticiabilidade, as rotinas deprodução e a multiplicidade de atores e discursos queconfiguram as condições de produção periodística.

    Neste sentido, o debate em torno do conceito de jornalismo se torna particularmente importante, namesma proporção em que a emergência de outrosdiscursos sociais adquire forma, visibilidade e ade-são no campo midiático. Uma primeira referência des-

    te texto diz respeito aos demais elementos que inte-gram a realidade social cotidianamente construídapelos próprios indivíduos, grupos, movimentos e ins-tituições, que instituem uma contínua dinâmica derelacionalidade.

    Daí por que, ao invés de se falar em algo dado, aperspectiva construtivista da presente abordagem te-órica do jornalismo pensa a vida social como proces-sos de instituição dos sentidos e valores que orientamas ações e percepções dos grupos humanos. Tal con-cepção implica em compreender que a realidade ésempre resultante de uma ação social e, portanto,

    histórica e cultural, ainda que – como bem ressalta-ram Berger e Luckmann (1987) – os indivíduos ten-dam a apreendê-la como uma facticidade exterior e

    Sérgio Luiz GadiniUEPG/PR

    ENTRE EDUCAÇÃO E JORNALISMO

    RESUMOO presente artigo discute e explora algumas relaçõespossíveis entre a perspectiva que compreende o jorna-lismo como uma forma singular de produção de co-nhecimento (Adelmo Genro Filho, 1988) e a aborda-gem construcionista da produção jornalística (GayeTuchmann, 1983 e 1993; e Nelson Traquina, 1993 e2001). Num diálogo articulado entre comentários, crí-ticas e observações de vários autores que tematizam o

     jornalismo, o autor sustenta a idéia de que o potencialda produção jornalística reside em sua singularidadede ação cotidiana e, pois, na dimensão instituinte dasrelações e acontecimentos que marcam a realidadesocial contemporânea.

    PALAVRAS-CHAVE jornalismorelacionamentorealidade

     ABSTRACT 

    The current essay discusses and explores some of the possi-ble relationships between the perspective that includes jour-nalism as a single form of knowledge production (AdelmoGenro Filho, 1988) and the constructive approach in the journalistic production (Gaye Tuchmann, 1983 e 1993; eNelson Traquina, 1993 e 2001). In an articulate discussionincluding remarks, critiques and observations from severalauthors who approach journalism, the author supports theidea that the potential of journalistic production lies in itssingularity of every day action and consequently in theestablished dimension of relationships and events that in-stitute the contemporary social reality.

    KEY WORDS

     journalismrelationshipreality

    P

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    anterior à sua própria experiência; o que não autorizauma reificação da realidade, uma vez que a relaçãodialética entre institucionalização e legitimação – osdois principais graus da objetivação – evidenciam,em definitivo, a realidade como construção.

    Nas sociedades complexas da contemporaneida-de, a realidade social é também instituída por umamultiplicidade de discursos e interesses, por padrõesde comportamentos socialmente definidos e aceitos,por variadas formas de interação que ganham visibi-lidade e forma por meio de dispositivos técnicos; den-tre os quais se destacam os de comunicação.

    A abordagem do jornalismo como forma de conhe-cimento singular, as noções de campo social e produ-ção cultural, bem como as demais referências concei-tuais que perpassam este estudo, estão diretamenteassociadas à idéia de realidade, entendida no âmbitodo que Philippe Corcuff (2001, p. 26) denomina deperspectiva construtivista: “as realidades sociais são

    apreendidas como construções históricas e cotidia-nas dos atores individuais e coletivos”. Esse proces-so, uma vez que não é deliberado nem intencional-mente planejado, pode ocorrer à revelia dos atoresenvolvidos. Em outros termos, as ações humanas nãose processam de modo (sempre) absolutamente inédi-to, mas ocorrem em situações históricas que, por suavez, também são gradualmente transformadas poressas mesmas ações, sejam elas de atores individuaisou coletivos. Por isso mesmo, nesse processo históri-co, “as realidades sociais são ao mesmo tempo objeti-vadas e interiorizadas” (CORCUFF, 2001, p. 27). A

    realidade é, pois, não só uma representação (simbóli-ca), mas uma simultânea e contínua construção social.É, pois, nessa perspectiva – e, de certo modo, próxi-

    mo de uma abordagem construtivista1  – que busca-mos pensar a realidade como uma construção contí-nua, um campo em disputa, marcado pelas maisdiversas formas de expressão e materialidades.

    Apenas para situar a pluralidade do mundo con-temporâneo, tomamos por base aqui a noção de socie-dades complexas, que é trabalhada, entre outros auto-res, por Alberto MELUCCI (2001). Para o autor, essassociedades assumem “a existência de uma lógica desistema significativamente diversa daquela do capi-

    talismo industrial...”. Nas sociedades complexas, “osconflitos se desenvolvem naquelas áreas do sistemadiretamente investidas pelos fluxos informativos esimbólicos mais intensos e, ao mesmo tempo, subme-tidas às maiores pressões para a conformidade. Osatores destes conflitos são provisórios e a sua açãoopera como reveladora, anunciando para a sociedadeos dilemas cruciais que a atravessam” (MELUCCI,2001, p. 27).

    O jornalismo, em especial, não só por uma lingua-gem, técnica e articulação específicas, mas funda-mentalmente por padrões de credibilidade historica-

    mente legitimados, aciona uma gama de significações,forjando processos e produtos que, por sua vez, po-dem envolver e “seduzir” o consumidor, usuário ou

    receptor. A informação jornalística institui, no pro-cesso de produção de sentido, um conhecimento quevai agregar, questionar ou negar a relação e compor-tamento que o usuário mantém no espaço coletivo dascomplexas sociedades contemporâneas.

    Daí a pertinência de se compreender de que modo oacontecimento jornalístico vai interagir na constru-ção da realidade social. Adelmo Genro Filho (1988)define o fato jornalístico como sendo uma construção,sempre interpretativa, elaborada a partir de um fenô-meno. Assim, numa construção discursiva, há um“fenômeno e uma pluralidade de fatos”, conforme os jogos de interesses, opiniões e procedimentos em ques-tão. Ao oscilar na tensão estrutura- acontecimento, o jornalismo trans-porta uma concepção do mundo;uma compreensão dos fenômenos e relações pauta-dos pela mídia. É nessas tensões que são negociados,instituídos e sobrepostos os sentidos, valores, inten-ções e interesses que perpassam as dimensões do

    universo imaginário.Constituído pelo simultâneo imbricamento dos as-pectos singulares, universais e particulares presentesem toda e qualquer situação fenomênica, o jornalismoimplica, sempre, num recorte temático que redesenhao mundo social, a partir de um determinado enfoque.Na prática, o discurso jornalístico estrutura-se emtorno de um conjunto de textos, imagens, citações,títulos, diagramação, além de uma série de outrosprocedimentos editoriais que articulam estilos pró-prios, introduzindo suas respectivas expressivida-des e estruturando e sugerindo outras configurações.

    Em outros termos, o jornalismo conecta uma multipli-cidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados, osquais fazem, fizeram ou passarão a fazer parte doimaginário em que o mesmo se constitui.

    Assim, o discurso jornalístico é compreendido comomais um dos inúmeros produtos que circulam noespaço social em que se situa a noção de construçãosocial da realidade. A existência e publicação, porvezes isoladas, de discussões em torno das variadaspropostas teóricas e tendências do jornalismo con-temporâneo ganharam, recentemente, uma sistemati-zação feita por Nelson Traquina (2001), que apresen-ta um mapa das principais abordagens e conceitos

    sobre a produção jornalística no último século.2Nesse texto, o autor propõe uma leitura do jornalis-

    mo com base em cinco orientações que nortearam ahistória da produção das notícias: teoria do “espe-lho”, teoria da ação social pessoal ou teoria do gateke-eper , teoria organizacional, teorias de ação política eas teorias da notícia como construção social, de ondesurgem as perspectivas da teoria estruturalista e dateoria interacionista. Traquina se detém, entretanto,nessa última abordagem.

    O paradigma que compreende a notícia como cons-trução social da realidade surge basicamente entre o

    final dos anos 1960 e início da década de 70. Seupressuposto básico é de que a notícia, à medida que“presentifica” o acontecimento a que se remete, tam-

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    Apesar de atribuir ao acontecimento periodísticouma gama de características que o diferenciam deoutras construções discursivas, Miquel Alsina acabapor não trabalhar a dimensão constitutiva da produ-ção mediática como uma prática que, ao recortar umadeterminada variação registrada, apreende-a, dando-lhe uma outra estrutura de acontecimento, o qual,mesmo tendo como referência um evento antes desta-cado do mundo, possui um tempo e um espaço pró-prios, que não são e nem podem ser os mesmos davariação fenomênica percebida e, agora, comunicadacomo um acontecimento discursivo pelos media.

    Os fenômenos e eventos que povoam o mundo coti-diano precisam ser percebidos como processos in-completos que se articulam e se apresentam, deixan-do sempre uma margem de significação em aberto, aser construída, exatamente porque se supõe que, noprocesso do conhecimento, o real não aparece imedia-tamente em sua face concreta e essencial. A constru-

    ção do conhecimento se dá na apropriação de suasrelações com o mundo. É assim que o homem transfor-ma as coisas, tornando o mundo compreensível. E,embora o mundo não se esgote no que é aparentemen-te dado, mas é sempre uma possibilidade, a noção demundo real, aqui trabalhada, refere-se à forma pelaqual o mesmo está estruturado no presente, como oexperienciamos e como se apresentam as situações davida cotidiana.

    A mesma abordagem construtivista se torna maispertinente para nortear conceitualmente o presenteestudo. Com base na perspectiva sociológica interpre-

    tativa de Alfred Schütz (1979), e também dialogandocom as contribuições de Berger e Luckmann (1987),Gaye Tuchman (1983) trabalha o jornalismo comoforma de ação instituinte da vida coletiva; como pro-cesso de construção social da realidade cotidiana.

    Para Tuchman, as abordagens da sociologia inter-pretativa

    sostienen que el mundo social proporciona normas quelos actores invocan como recursos o compulsiones cuan-do trabajan activamente para realizar sus proyectos. Mediante esse trabajo, los actores dan forma al mundosocial y sus instituciones como fenómenos comparti-

    dos y construidos. Se producen simultáneamente dos procesos. Por un lado, la sociedad ayuda a dar forma ala conciencia. Por el outro, mediante su aprehensiónintencional de los fenómenos en el mundo social com- partido – mediante su trabajo activo –, los hombres ylas mujeres construyen y constituyen los fenómenossociales colectivamente. (TUCHMAN, 1983, p. 196).

    Assim, a perspectiva da sociologia interpretativano jornalismo acentua as atividades dos informado-res e das organizações informativas mais que as nor-mas sociais, uma vez que os próprios critérios de

    noticiabilidade não estão claramente pré-determina-dos pelas relações ou pela estrutura sociais.Alfred Schütz (1987), um dos principais mentores

    dessa compreensão sociológica, se ocupa dos fenô-menos no mundo, constituindo uma referência com aqual os autores abordam o mundo social. Nessa pers-pectiva interpretativa, “aunque un lector de periódicopodría impugnar la veracidad de un relato informati-vo específico, él o ella no impugna la existência mis-ma de la noticia como fenómeno social” (Tuchman,1983, p. 200).

    É dessa maneira que o mundo da vida cotidiana évisto ou compreendido, pelos pensadores dessa ori-entação teórica, enquanto “realidade por excelência”dentre as possíveis e “múltiplas realidades” de quefala Alfred Schütz. Oportuno lembrar que, para essamesma abordagem, os atores sociais criam significa-dos e, com isso, também uma consciência comparti-lhada da ordem social, fazendo com que a própriaordem social se torne, guardadas as proporções, de-pendente dos significados compartilhados.

    Daí a pertinência para se pensar o jornalismo e sua

    criação cotidiana de significados que, por sua vez,atribuem “sentidos”, valoração, prioridades de olhar,interesses e, enfim, participam da instituição dos mo-dos coletivos de organização da vida humana. Porisso Gaye Tuchman vai problematizar o jornalismoem uma já reconhecida dupla perspectiva: de reforçoda ordem ou normas sociais e pela possibilidade decriação de outros sentidos igualmente compartilha-dos pelos atores sociais. O que possibilita pensar,ainda, que

    Los relatos informativos no sólo prestan a los aconteci-

    mientos su existencia como sucesos públicos, sino quetambién les imparten carácter, puesto que los reporta- jes informativos ayudan a dar forma a la definición pública de los acontecimientos atribuyéndoles, de ma-nera selectiva, detalles específicos o “particulares”.Hacen accesibles a los consumidores de noticias estosdetalles. (TUCHMAN, 1983: 204).

    Isso porque, continua TUCHMAN (1983, p. 16), “lanoticia coordina las actividades en el interior de unasociedad compleja al hacer disponible a todos la in-formación que de otra manera sería inaccesible”. Des-se modo,

    Por impartir caráter público a los casos que ocurren, lanoticia es primero y primordialmente una instituciónsocial. Em primer término, la noticia es un métodoinstitucional para hacer que la información esté dispo-nible ante los consumidores... En segundo término, lanoticia es una aliada de las instituciones legitima-das... En tercer término, la noticia es localizada, reco- gida y diseminada por profesionales que trabajan enorganizaciones. De tal manera, la noticia es, inevita-blemente, un producto de los informadores que actúandentro de procesos institucionales y de conformidad

    com prácticas institucionales” (TUCHMAN, 1983;16).

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    Nilson Lage (2003)3  critica a perspectiva percorri-da por Gaye Tuchman, a partir do texto “A objetivi-dade como ritual estratégico”, publicado original-mente em 1972 e, posteriormente, traduzido eveiculado por Traquina.

    Por esse texto seminal, você verá que a autora,uma espécie de madrinha do newsmaking, ad-mite uma série de virtudes nos jornalistas (con-tam o que viram com a precisão possível, ouvemvárias versões etc), mas conclui que fazem issoporque têm medo de processos, de serem demiti-dos etc. Não é uma visão negativa do jornalismo,é uma visão negativa da natureza humana emgeral (poderia aplicar-se a médicos, dentistas,advogados, engenheiros), inspirada, em últimaanálise, no pessimismo da Human Nature, obraclássica do pensamento saxônico. (LAGE, 2003).

    O jornalismo na perspectiva da singularidade doacontecimentoEm um esforço ousado, Adelmo Genro Filho (1988)propõe uma teoria marxista para o jornalismo. Paraalém das implicâncias do modelo apresentado porGenro Filho, interessa aqui explorar o diferencial queessa proposição traz ao jornalismo. Trata-se da noçãode singularidade como ponto de partida para o olharperiodístico. Mas, a idéia de singularidade só temsentido se relacionada às outras duas esferas que, apartir de Hegel e da posterior discussão de GeorgLukacs, formam um determinado acontecimento: a

    universidade e a particularidade.Ao elaborar suas reflexões, Genro Filho preocu-pou-se em compreender as potencialidades e o signi-ficado do jornalismo. Dirá, então, que o relato jorna-lístico de um fato singular já contém dimensõesparticulares e universais na forma viva do próprioacontecimento, pois um fato jornalístico, em certa pro-porção, expressa a interiorização das relações sociaisque o envolvem na construção (inter) subjetiva desentidos do discurso.

    O autor de O Segredo da Pirâmide (1988, p. 49) alerta,com isso, que a atividade jornalística não se reduz auma mera coleta e reprodução dos fenômenos en-

    quanto algo dotado de significados puramente objeti-vos. Antes, ela inclui a reconstituição fenomênica já“recheada de significação” pela intermediação subje-tiva tanto do comunicador que elabora a notícia comopor parte do receptor que, enquanto membro dessamesma comunidade social – não necessariamente lo-cal, mas potencialmente global e presentificada noimaginário – participa da produção do sentido dosrespectivos enunciados. Falar em jornalismo é, então,falar em fragmentos de realidade, resultantes de um jogo de fatores e códigos de produção discursiva. Areflexão de Genro ilustra bem essa complexidade:

    A notícia jornalística reproduz o fenômeno en-quanto tal, resguardando sua aparência e forma

    singular, ao mesmo tempo em que insinua a es-sência no próprio corpo da singularidade, en-quanto particularidade delineada em maior oumenor grau e universalidade virtual. A informa-ção jornalística sugere os universais que a pres-supõem e que ela tende a projetar. É na face agu-da do singular e nas feições pálidas do particularque o universal se mostra como alusões e ima-gens que se dissolvem antes de se formarem... Oreal aparece, então, não por meio da teoria, quevai apanhar o concreto pela sua reprodução lógi-ca, mas recomposto pela abstração e pelas técni-cas adequadas numa cristalização singular e fe-nomênica plena de significação, para então serpercebido como experiência vivida. (GENRO FI-LHO, 1988, p. 140).

    Ao destacar a especificidade do singular no discur-so jornalístico, Genro Filho diz que

    As informações que circulam entre os indivíduosna comunicação cotidiana apresentam, normal-mente, uma cristalização que oscila entre a sin-gularidade e a particularidade. A singularidadese manifesta na atmosfera cultural de uma ime-diaticidade compartilhada, uma experiência vi-vida de modo mais ou menos direto. Somente oaparecimento histórico do jornalismo implicauma modalidade de conhecimento social que, apartir de um movimento lógico oposto ao movi-mento que anima a ciência, constrói-se delibera-

    da e conscientemente na direção do singular,como ponto de cristalização que recolhe os movi-mentos, para si convergentes, de particularidadee da universalidade (1988, p. 160).

    Existe, obviamente, uma inter-relação entre essastrês categorias que representam aspectos objetivos domundo real. A questão central, nesse debate, pareceresidir fundamentalmente no fato de que a aborda-gem jornalística tende a apreender o real pelo movi-mento e este como produção do novo, daquilo quemotiva a elaboração de uma determinada notícia.

    Genro Filho (1989, p. 2) observa que a ligação entre

    essas três esferas de um fenômeno abordado é semprerelacional. O particular, por exemplo, “é sempre par-ticular em relação a um singular e a um universal”.Não há um particular por si mesmo, como tambémnão existe um singular fixo. “Em cada uma das di-mensões estão presentes as demais categorias, masestão presentes de forma subjacente, superada, comose fossem dissolvidas”. Não havendo apenas umsingular, em boa medida, a singularidade de umfenômeno depende do ângulo e da compreensão comque se reveste o olhar do indivíduo quando de suatentativa de compreensão.

    Se a singularidade é a força central da informação,na construção discursiva de um evento, serão “ascaracterísticas, os detalhes necessários para montar

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    um quadro com uma certa semelhança da percepçãoimediata que os indivíduos têm das coisas que con-tornam o discurso jornalístico”. É daí que decorre a“grandeza e a força do jornalismo”, acredita GenroFilho (1988).

    Existe, obviamente, uma série de outras contribui-ções bibliográficas que podem ser relacionadas aomodo como os autores citados trabalham o jornalis-mo. Destaque-se aqui, por exemplo, a discussão deMaurice Mouillaud, que trabalha o jornal como umcampo polêmico que, dessa forma, também atua nainstituição cotidiana de sentidos no imaginário cole-tivo. O discurso do jornal integra um conjunto derelações que envolvem dispositivos e técnicas queproduzem sentido num contexto e momento (Moui-llaud, 1997, p. 29). Além disso,

    O jornal diário tornou-se, na realidade, um subs-titutivo do espaço público, um fórum onde se

    escuta o eco de todas as vozes públicas, ao mes-mo tempo em que tem sua própria voz. Esta dua-lidade está na origem das estratégias pelas quaiso jornal manipula, seja por identificar-se com ele,seja por distanciar-se do mesmo, o discurso deoutrem. Uma tipologia das “estratégias da cita-ção” é proposta em conclusão a essas análises.(MOUILLAUD, 1997, p. 27).

    Rosa Nívea Pedroso (2003) discute o caráter infor-mativo do jornalismo e, de certo modo, também reto-ma essa trajetória em que a realidade social é compre-

    endida como um campo aberto para disputassimbólicas e onde, cotidianamente, as produções jor-nalísticas também atuam.

    Na avaliação da professora Pedroso (2003), o jor-nalismo é uma atividade que “transforma o aconteci-mento em notícia (e a notícia em meta-acontecimento,isto é, o fato reacontece ao ser relatado/narrado” que,por sua vez, “reacontece de acordo com as leis domundo simbólico)”, seja em formato de reportagem,entrevistas diretas, artigos, foto-legendas, notas, den-tre outras variações discursivas.

    Ao trabalhar com fatos – teoricamente inéditos, exó-ticos e singulares – a produção jornalística assume a

    possibilidade concreta e cotidiana de “interpretar” arealidade social, seguindo rotinas editoriais, condi-ções técnicas e procedimentos de seleção, hierarqui-zação e publicação de determinados olhares que inte-gram e agem na vida social. A produção periodísticatorna-se, assim, um discurso que, ao apresentar-secomo “porta-voz” de determinados olhares – marca-dos pela busca da pluralidade, proximidade, univer-salidade, periodicidade, interesse coletivo, dentre ou-tras características –, participa da instituição,manutenção ou projeção das relações do espaço sim-bólico, geográfico e cultural em que os produtos jorna-

    lísticos circulam.Limites de tempo e espaço; condições de produção;qualificação profissional e interferência empresarial

    na orientação editorial são, assim, alguns fatores quepodem marcar o processo de produção, circulação econsumo da informação jornalística. Fatores essesque podem redirecionar os sentidos que vão ser desta-cados e marcar a apresentação dos mais diversosprodutos do jornalismo contemporâneo. Da mesmaforma, os desdobramentos políticos, econômicos eculturais dessa perspectiva estão diretamente associ-ados aos modos de organizar, viver, pensar e agir dosindivíduos que participam de um determinado con-texto e época.

    São esses procedimentos rotineiros – e considera-dos “objetivos” – que Gaye Tuchman (1993, p. 74)denomina de “rituais estratégicos” de proteção con-tra erros, críticas, e falsidades. Numa retomada – in-direta e, de certo modo, sutil – de influências do funci-onalismo sociológico, a objetividade é compreendidapor Tuchman como estratégia que possibilitaria ummaior e, supostamente, necessário distanciamento

    entre os jornalistas e os fatos, bem como entre os jornalistas e as fontes.Sem abraçar exclusivamente uma dessas várias

    abordagens como a mais convincente, é possível con-siderar alguns aspectos apresentados pelos autorescitados, explorando o potencial do jornalismo pelaperspectiva da singularidade do acontecimento, aoconsidera-lo como um dos inúmeros mecanismos queparticipam dos processos e relações que instituem arealidade. E, assim, também contribuem na constru-ção agendamento, tematização e visibilidade que pos-sibilitam pensar sobre os fatos selecionados e, jorna-

    listicamente, pautados do campo social.Além das principais características que, tradicio-nalmente, são referências no jornalismo4 , é possíveldestacar o agendamento (agenda setting) e as rotinasprodutivas como fatores que integram a produçãoperiodística e, numa perspectiva relacional entre al-guns dos conceitos aqui discutidos, pensar que o jornalismo configura uma construção atualizada dasrelações entre os fatos do cotidiano, operando no ima-ginário histórico-cultural de uma dada época.

    No agendamento (singular) do fazer jornalístico... ainstituição social da realidadeDe um modo geral, os discursos (produtos) midiáti-cos operam nos interstícios, nos supostos “vazios”das relações sociais, negociadas, impostas ou, ainda,instituídas pelos grupos humanos. É, pois, também adimensão imaginária que, num determinado momen-to, torna uma informação mais aceita e autoprojetávelno meio social do que, diferentemente, se registra emoutras ocasiões. Esse mesmo enfoque e exploração dadinâmica instituído-instituinte torna o discurso jor-nalístico um mecanismo de intervenção nas relaçõessócio-imaginárias do mundo contemporâneo.5

    Por essa mesma lógica, os sentidos dos discursos

    midiáticos não são deflagrados senão numa dinâmi-ca instituinte, seja no espectro da negociação, imposi-ção, resíduo cultural ou memorizações. Como o senti-

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    do é produzido nas relações entre as coisas, fatos eindivíduos que ocupam posições de sujeito, o espaçosocial onde se desencadeiam esses processos de cons-trução de valores, sentidos e situações projetadas é, aprincípio, uma possibilidade, uma esfera aberta e in-determinada. Daí porque se pode pensar – nos cam-pos sociais pelas relações estruturadas e, ao mesmotempo, em estruturação – em processos de disputa econstrução de hegemonia. Assim, o discurso jornalís-tico configura e se constitui em uma forma possível decompreensão e, conseqüentemente, de construção darealidade (social) cotidiana. Sem dúvida, em cadacaso, as condições de produção, circulação e de reco-nhecimento (VERÓN, 1981, p. 193) implicam meca-nismos diferentes que exigem a utilização de estraté-gias e análises específicas. Essa lógica sobre os modosde dizer, entretanto, é objeto para outras discussões.

    Sob certos aspectos, o jornalismo efetua, então, umaespécie de “mundo possível” que se apresenta na

    forma de representações discursivas que ganham vi-sibilidade social por meio das estruturas de produ-ção, circulação e consumo. Miquel Rodrigo Alsina(1989) dirá que no processo de produção jornalísticainterferem três mundos distintos e inter-relacionados:Por um lado, compreendido como a fonte dos eventosque o jornalismo utiliza para produzir a notícia, estáo “mundo real”. Já o “mundo de referência” envolvetodos aqueles elementos nos quais se podem enqua-drar os fenômenos do mundo real problematizado. Justifica-se aqui o fato de ser imprescindível, para acompreensão de um evento, o seu enquadramento

    num modelo de mundo referencial. Por sua vez, o“mundo possível” seria aquele que o jornalista cons-trói, a partir do “mundo real” e do “mundo de referên-cia” escolhido. Conclui-se, pois, que o mundo possí-vel construído e projetado no discurso da informaçãorecolhe suas marcas e traços do mundo de referência.

    Essa noção de mundo possível, trabalhada por Al-sina (1989), está associada aos mecanismos de cons-trução histórica e imaginária da sociedade e da reali-dade contemporâneas. É nessa dimensão imagináriaque o discurso jornalístico opera enquanto recorte eproduto da dinâmica instituído-instituinte, marcadopor seus respectivos modos, mecanismos, especificida-

    des editoriais, fatores de conexão, recursos técnicos,dentre aspectos que instituem a produção jornalística.

    Pondere-se que se, por um lado, Miquel Alsina de-safia o senso prático profissional, identificando nanotícia uma lógica de acontecimento como rompi-mento sistêmico do cotidiano, por outro lado, ele mes-mo parece complicar-se um pouco quando tenta cap-tar o que seriam as especificidades do discursoperiodístico. Adelmo Genro Filho (1988), mesmo queparcialmente e nos limites de um modelo sociológico,parece superar esse dilema ao identificar a centrali-dade da produção jornalística em sua relação de sin-

    gularidade; no que há de mais específico e peculiarem um dado fenômeno pautado. Ressalte-se, entre-tanto, que essa singularidade só tem sentido de produ-

    ção, apagamento ou projeção de significação valorati-va, a partir da interlocução com o imaginário social.

    A noção de poder designa, aqui, o que seriam osefeitos dos discursos no interior de um determinadocontexto de relações sociais, sendo que tais efeitosnão podem deixar de ser uma produção de sentido. Éo que explica Eliseo Verón:

    Todo reconhecimento engendra uma produçãoe, por sua vez, toda produção resulta de um siste-ma de reconhecimento. Desse modo, um tal tipode “mensagem” dos media tem efetivamente umpoder sobre os “receptores”; esse poder só existesob a forma de sentido produzido: comporta-mentos, falas e gestos que definem relações soci-ais determinadas entretidas por esses mesmos“receptores” e que se entrelaçam na infinita rededa semiose social. (VERÓN 1981, p. 197).

    É nesse sentido que o jornalismo constrói e trans-porta um “mundo possível” (ALSINA, 1989), que seprocessa e se desdobra como construção sócio-cultu-ral e imaginária. Como os indivíduos deslocam-se,vivenciam e realizam suas experiências num determi-nado universo social, que é, a priori, conformado poruma série de variantes sócio-culturais, pode-se dizerque o ser humano é “apresentado” a uma estrutura demundo com a qual aprende a conviver e vai formandosua compreensão social, sua personalidade, seu mun-do existencial e, enfim, capacitando-se para pensar eagir coletivamente.

    É nessa perspectiva (sociológica) que se pode me-lhor compreender o modo como se processam os des-dobramentos do discurso jornalístico. Adelmo GenroFilho (1988, p.81) dirá que é a partir da necessidadede relacionar os indivíduos com o mundo global quesurge o “jornalismo como uma forma de conhecimen-to que vai cumprir um papel semelhante ao da per-cepção individual da singularidade dos fenômenos,só que agora é como se nos relacionássemos com aimediaticidade do mundo, de uma aldeia global”.

    A realidade presentifica-se, projeta-se e se constrói(ou é construída) pelos discursos. O mesmo ocorrecom o jornalismo, na medida em que opera uma série

    de elementos e relações que interagem, direta ou indi-retamente, na vida das pessoas. Aqui, também emfunção da dimensão globalizante dos espaços midiá-ticos, não é apenas o grau de proximidade que deter-mina o interesse por um determinado discurso. Alémdisso, os problemas e confrontos da realidade perpas-sam todo o processo de elaboração da informação, poisconstituem um recorte do fluxo contínuo de ocorrências.

    Entendido como o discurso da cotidianeidade, o jornalismo responde a uma necessidade social dainformação: noticia, informa e veicula uma aborda-gem a respeito dos eventos da realidade (global) coti-

    diana, logicamente passível de identificação pelo seurespectivo público-alvo, uma vez que são essas mes-mas condições e possibilidades de produção que tor-

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    nam uma notícia aceitável... na medida em que oreceptor é interlocutor, que age como “reconhecedor”dos sentidos projetados nos produtos que ganhamvisibilidade e forma pela ação jornalística.

    Ao “cristalizar” a singularidade de um dado even-to (dando forma e expressão pela articulação discur-siva), o jornalismo constrói acontecimentos de ummodo específico; pontua relações entre os aspectos deordem particular, que envolvem os fenômenos abor-dados, apresentando – como projeção potencial uni-versalizante – outras formas de compreender as situ-ações da realidade noticiada. Mas esse efeito, como sesabe, é apenas um momento do processo de construçãodo real do qual o jornalismo participa, como um meca-nismo de produção de sentido entre os interlocutores(Pêcheux, 1988), usuários, leitores ou telespectadores.

    Não se trata, além disso, apenas da recepção que opúblico-alvo vai ter do discurso elaborado, mas fun-damentalmente do fato de que o processo mesmo da

    definição da pauta à construção discursiva, em si,pressupõe um conjunto de relações significantes quepovoam o momento em que se delimitou o que, estra-tegicamente – seja sob o ponto de vista mercadológi-co, de valoração conceitual, importância ou impacto –será incluído ou não na edição periodística. Como sehabituou a pensar: o grau de inovação em que o jorna-lismo opera é dado pela possibilidade de aceitaçãoque o seu público potencial apresenta. Embora o re-ceptor dos suportes de comunicação também seja, naspalavras de Antonio Fausto Neto (1991, p. 17), “al-guém construído na própria economia enunciativa

    ou na produção imaginária dos organizadores e enun-ciadores do discurso”.Pertinente considerar ainda que os procedimentos

    de produção de sentidos no discurso jornalístico ope-ram-se nesse constante imbricamento de falas, bemcomo do apagamento ou anulação de certos aspectosconstitutivos da deflagração de sentidos. Contudo,sabe-se que essa justaposição de vozes e falas não éalgo que ocorre apenas nos discursos midiáticos, poiscaracteriza, antes, todo e qualquer processo de produ-ção de sentidos. A construção – ordem e coerêncialógica – que o acontecimento discursivo assume ins-taura um estatuto e dimensão conceitual, estabelecen-

    do uma ordem nos fatos enunciados, os quais, mesmosendo referentes de eventos do cotidiano, não possu-em o mesmo tempo e espaço, exatamente porque queem cada construção instaura-se uma outra ordem domundo que os discursos midiáticos apresentam aoseu respectivo público-alvo.

    Sabe-se ainda que as produções jornalísticas, nãosendo absoluta e aleatoriamente casuais, orientam-se, por exemplo, por pistas semânticas, pautas agen-dáveis, indicam sinais que os fatos e boatos sugerem,dando-lhes uma conexão – nem sempre tão lógicaquanto os supostos “fatos brutos” possam aparentar

    – que vai, em alguma medida, apresentar-se comouma outra compreensão estrutural dos eventos e rela-ções do mundo social.

     As “rotinas” produtivas como referências e limitesprofissionaisPara além ou paralelo às estruturas sociais e à pró-pria lógica empresarial da comunicação, o jornalismoé marcado por “rotinas” profissionais, que podem serdefinidas como “uma série de actuações dos meios decomunicação que regulam e determinam o exercícioprofissional a partir de factores que nada têm a vercom a importância intrínseca dos factos ou a suaactualidade” (Fontcuberta, 1999, p. 106). Na medidaem que integram o cotidiano da profissão, de certaforma como algo “inerente”, as rotinas “são vistas comoo preço da urgência imposta pelo trabalho com factosda actualidade e como imperativos do próprio processode produção mediática”. (Fontcuberta, 1999, p. 106).

    O estudo de Gaye Tuchman (1983), uma das pri-meiras autoras a problematizar o assunto na perspec-tiva construcionista,6  indica que os modos de organi-zação e funcionamento do jornalismo impõem um

    ritmo de trabalho baseado ou decorrente de três fato-res – espaço, tempo e fontes – que, em última instân-cia, determinam a própria agenda do fazer jornalístico.

    Desse modo, “a estruturação do tempo numa re-dacção também influi na avaliação dos factos comoacontecimentos informativos”, diz Fontcuberta (1999,p. 106). O tempo central de funcionamento efetivo daestrutura de um diário, por exemplo, é um indicadorde que os acontecimentos, programados ou registra-dos nesse período, possuem um grau de noticiabili-dade superior aos fatos que ocorrem após, ou antes,desse tempo de “cobertura” jornalística cotidiana.

    A rotina profissional de produção jornalística, con-tudo, acompanha não só o processo de agendamentocomo também as expectativas do público e os desdo-bramentos que o acontecimento pode adquirir. É, ain-da, fundamental considerar as rotinas que podemfacilitar ou, em outros casos, justificar o não acompa-nhamento da reportagem. Na base disso está, obvia-mente, uma “estrutura” de rotina profissional de pro-dução jornalística que não pode ser desconsiderada etampouco ignorada, seja por profissionais da área,produtores culturais ou leitores que, freqüentemente,alegam descaso da parte da mídia para com determi-nados eventos. Algumas vezes tais argumentos pro-

    cedem, em outras, contudo, seria oportuno ter presen-te a lógica das rotinas produtivas do jornalismo.

    A pluralidade de fontes é outro fator essencial queenvolve as rotinas profissionais da área e, pois, vaimarcar as estratégias de produção editorial. A priori-dade ou, em certos casos, centralidade de fontes ofici-ais, por exemplo, é uma prática que parece ser cadavez mais habitual no jornalismo brasileiro. Tais ca-racterísticas da rotina profissional passam a consti-tuir, apesar da ação “facilitadora” das assessoriascada vez mais equipadas, um “hábito” profissional e,ao mesmo tempo, uma desculpa para que, do ponto

    de vista administrativo, os proprietários de veículose, por extensão os diretores de redação e edição, nãoapostem no tradicional exercício do jornalismo de

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    apuração, checando, comparando e verificando a pro-cedência e interesse das centenas ou milhares de in-formações que, diariamente, chegam aos editores, viae-mail, telefone, correio ou contato direto.

    De toda forma, diante de uma gama crescente deinformações, os profissionais do jornalismo precisam,inevitavelmente, “exercitar” sua condição de selecio-nar, hierarquizar, excluir e incluir na edição do diaseguinte os assuntos que, sob sua ótica e em relativaconsonância com os interesses e expectativas dos lei-tores e no próprio jogo de “pressão” por parte dasindústrias culturais, será editado e terá destaque nocaderno de cada edição diária.

    Gaye Tuchman (1983) discute o assunto ao tentarcompreender “como” os jornalistas decidem o que énotícia no meio profissional e o porquê destes profis-sionais se pautarem por determinados critérios, e nãopor outros, por exemplo, para decidir o que os leito-res/ouvintes/telespectadores podem vir a receber

    pelos respectivos meios periodísticos.Importante, por isso, considerar as rotinas produti-vas como elementos integrantes das estratégias deprodução jornalística, onde a notícia resulta de umtrabalho socialmente produzido; o que implica em terpresente não apenas o contexto, mas também os pro-cessos e os modos que instituem a atividade periodís-tica. É nessa orientação de pesquisa (newsmaking) quese busca compreender e descrever o trabalho dos emis-sores como parte de um processo marcado por roti-nas, imagens – por vezes, estereótipos –, expectativasdos leitores, agendamento instituído pela presença e

    ação de outros atores no campo midiático, limites eseleções temáticas.7

    Como decorrência, o processo de seleção – agenda-mento, pauta e produção – jornalística não ocorre deforma isolada, sob única responsabilidade de algunsprofissionais, mas integra um processo que é formu-lado, e mantido inclusive, sob o consentimento dasociedade civil (mais ou menos organizada!), dosconsumidores e dos gestores da vida pública ou ad-ministrativa vigentes.

    E, assim, a “responsabilidade” pela edição (publi-cação ou não) de determinados fatos e assuntos nãopode ser atribuída unicamente ao que se entenderia

    por critérios e opções “subjetivas” dos próprios pro-fissionais. Logicamente, considerar esses múltiplosmecanismos de intervenção no processo não equivalea isentar os profissionais do jornalismo pela suasrespectivas concordâncias (adesões, conivência ouindiferença) diante das políticas editoriais das em-presas de comunicação. Isso porque os virtuais e dis-cutidos interesses da sociedade civil muito dificil-mente parecem ser os mesmos que as algumasempresas insistem em denominar como “interessesdo mercado”; no meio dos quais, os profissionais nãoparecem ter muitas condições de reivindicar isenção

    ou indiferença.

    Observações ConclusivasÉ nesse sentido que se pode dizer que todo produto jornalístico (seja ele voltado ao campo cultural, eco-nômico ou político) “trafica” e publiciza imagens darealidade social, à medida que o mesmo é identifica-do, consumido e apropriado pelo público. Ao estabe-lecer uma (inter) conexão com o mundo, o produto jornalístico presentifica a simultaneidade de uma enor-me variedade de fenômenos, desenhando um mapado universo social onde são recortados os aconteci-mentos noticiados pela mídia. Esse ato de produçãosocial imaginária (e, pois, histórica) capacita o indiví-duo a projetar novas relações e compreensões, possi-bilitando – pelo olhar singular do acontecimento pau-tado e discursivamente estruturado – outras noçõesda realidade, materializadas em uma forma de pro-dução singular do conhecimento humano.

    Contudo, daí a afirmar que essa perspectiva seriauma teoria marxista do jornalismo, como sugeriu Adel-

    mo Genro Filho (em sua importante obra sobre o as-sunto!) talvez, ainda, haveria uma grande distância.Mas, este já seria um outro debate! O fato é que, naperspectiva aqui discutida, o jornalismo leva a cabo –pela ação cotidiana de sua produção discursiva – umconhecimento que pode participar da construção co-tidiana da realidade social... um olhar, portanto, as-sumidamente construcionista para uma teoria do jor-nalismo contemporâneo.FAMECOS

    NOTAS

    1. Em As novas sociologias: construções da realidadesocial, Philippe Corcuff (2001, p. 89) aponta algu-mas diferenças e, ao mesmo tempo, aproxima-ções entre o “construtivismo estruturalista, queparte das estruturas sociais, reivindicado porPierre Bourdieu” (1990 e 1998), e o “construtivis-mo fenomenológico”, ao qual estão mais próxi-mos os trabalhos de Peter Berger e Thomas Luck-mann (1987), desenvolvidos a partir de AlfredSCHÜTZ (1979 e 1987). Nessa última perspecti-va, “a sociedade é uma produção humana; umarealidade objetiva e o homem é uma produçãosocial”. (BERGER e LUCKMANN, 1987, p. 87)

    2. Um outro autor português, Jorge Pedro Sousa,sistematiza os paradigmas e teorias das notíciase do jornalismo no último século. Pode-se afir-mar que o trabalho de Souza, de certo modo,complementa e dialoga com o texto de NelsonTraquina, já que também ele assume uma versãoconstrucionista das notícias. (SOUSA, 2002, p. 18).

    3. Conforme discussões feitas na Lista JornalismoCultural on line, realizadas no período em 30/03/2003, disponíveis em

    www.yahoogrupos.com.br/jncultural/. Acessoem 30/08/2003.

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    4. Otto Groth, por exemplo, já na primeira décadade século XX (na Alemanha), fala em universali-dade, periodicidade, atualidade e difusão (BE-LAU, 1966, p. 43).

    5. Para uma discussão mais densa e sistemáticasobre jornalismo e construção do imagináriosocial, ver GADINI, Sérgio Luiz. Jornalismo e Acontecimento: A Produção de Sentido no Discursoda Informação. Dissertação (Mestrado em Comu-nicação e Cultura Contemporâneas) – Faculdadede Comunicação, Universidade Federal daBahia. Salvador, 1994.

    6. Robert Park e Walter Lipmann, na primeira me-tade do século XX, já haviam discutido o assun-to, com base no interacionismo simbólico sem,contudo, aprofundar os desdobramentos daprodução jornalística, como vão fazer, mais tar-

    de, Tuchman e outros autores.

    7. É importante destacar, aqui, a noção de gatekee- per . Aplicado aos estudos do jornalismo, nadécada de 1950, pioneiramente por David White,esse conceito da psicologia social refere-se àpessoa que toma uma decisão numa seqüênciasistemática. No processo de produção da infor-mação, “é concebido como uma série de escolhasonde o fluxo de notícias tem de passar por diver-sos gates, isto é, portões que não são mais do queáreas de decisão em relação às quais o jornalista,

    isto é o gatekeeper , tem de decidir se vai escolheressa matéria ou não” (TRAQUINA, 2001, p. 36).

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