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Galeria da Sombra

Alguns contos e outros mais, escritos no labor acadêmico e em jornadas matinais. Vitor Chaves de Souza Primeira edição

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Copyright © Vitor Chaves de Souza, 2013 Todos os direitos reservados. Esta obra é uma publicação digital gratuita disponível exclusivamente na página pessoal do autor e da Garimpo Editorial. Título Galeria da Sombra Capa e projeto gráfico Vitor Chaves de Souza Imagem da capa New York City, 2010, por © Fatseyeva/Shutterstock.com Preparação Elaine Cristina Santos Revisão ortográfica e gramatical Antonio Colavite Filho Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasil) ___________________________________ de Souza, Vitor Chaves Galeria da Sombra / Vitor Chaves de Souza ; São Paulo : Garimpo Editorial, 2013 ISBN 978-85-62877-11-7 1. Contos e crônicas brasileiras 2. Literatura Brasileira 11-05620 CDD-869.93 ___________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1. Contos e crônicas: Literatura brasileira 869.93 2. Literatura brasileira 869 Garimpo Editorial    Rua Fausto, 357, Conj. 21 Moinho Velho – São Paulo – SP CEP 04285-080

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para Rafael Colavite cuja amizade abriu-me

um mundo fantástico de palavras

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PALAVRA DO AUTOR Na antiguidade, a humanidade preservou mitos e histórias elementares como princípios de vida. Do grego ἀρχή, arché, significa algo que é tanto “princípio” como “principal”. Eram os arquivos da humanidade que, segundo a sabedoria, configuravam as fontes primeiras e, por isso, principais do conhecimento. Uma galeria guarda arquivos, sobretudo as memórias primordiais de uma civilização. Enquanto algumas reflexões invocam a grande máquina do Estado, as práticas ritualísticas ou os sistemas artísticos, na tentativa de transformar tais exteriorizações em coisas primeiras e principais, palavras e narrativas correm pela sombra do cotidiano paulista buscando a autenticidade do indivíduo, do si mesmo, por detrás da sociedade. A saber, de um jovem inquieto em sua estação, este livro é uma pequena coleção de contos sobre as coisas que guardamos dos encontros diários na tentativa de torná-los em princípios e principais diante de dogmas, doutrinas ou ideias políticas, religiosas e filosóficas.

VITOR CHAVE DE SOUZA Paris, 2013

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prefácio 7 [ Contos ] Deus 10 O paraíso perdido 18 Tentação no deserto 41 Provérbio 42:41 44 Polar 54 Garçom de muitos 93 [ Poesias ] I 98 II 99 III 101 IV 104 V 105 VI 108 VII 110

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Prefácio

Eu devo ter dormido por horas A névoa da madrugada continuava a aumentar

Rosto quente, mente vazia Escorriam lágrimas frias do conhecimento último

Era o mundo pelo qual tínhamos sonhado Durante as estações de força e glória

Que agora era triste e obsceno E lá estávamos, tão orgulhosos

Em qual memória iríamos nos tornar? Deveria ser bela, ideal e singular

Algo para ser contemplado, Senhor Pois caímos no calor da noite

Tão irresponsáveis Com os poderes da criação

Gerando uma princesa coroada em joias Vestida com o mais belo vestido

Destemidamente invencível Tão perfeita, tão irreal

Em uma galeria da sombra.

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[ Contos ]

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Deus

“Vamos lá, Timão, vamos lá!” dizia

Daniel, alto e eufórico, diante da televisão do bar The Blue Pub.

“Obrigado por me convidar para assistir ao jogo contigo”, disse Rafael.

“Sem problemas, Rafael, sua companhia é um prazer”, disse Daniel. “O importante é o Timão ganhar hoje!”

“Vamos lá, Timão!”, exclamou Rafael. A garçonete entregou-lhes cardápios. Era

uma moça alta, rosto liso, atraente, cabelo curto e corpo deslumbrante. Discreta, trajava um avental azul com a logomarca do bar. A parede atrás do balcão era decorada por bebidas caras e raras. Havia um grande espelho completando a

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decoração da parede e refletia o corpo da garçonete, disputando audiência com a televisão. Enquanto Daniel não tirava os olhos da televisão, Rafael não os tirava da garçonete; e disfarçava, lendo o cardápio.

Um senhor surgiu por detrás do balcão e ajudou a garçonete em algumas tarefas.

“Vou ao Bicanca e já trago o restante do bar”, disse o senhor à garçonete.

“Puxa vida, como as coisas aqui são caras”, pensou Rafael ao dar espaço para o senhor sair do balcão.

Entre os preços altos que se destacavam, estava uma bebida chamada Deus.

“Daniel, veja só o preço desta bebida, que caro!”

“É mesmo. Estarei satisfeito com uma ou duas cervejas comuns”, comentou Daniel, examinando rapidamente o cardápio para não perder um único lance de seu time.

“Daniel, se o Timão estiver perdendo, a gente pode fazer uma vaquinha e comprar Deus; que tal?”

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“Uhhh... quase gol do Timão!”, pulou Daniel na cadeira, dando risada da piada do amigo após o lance do time.

“Desejam pedir algo?”, perguntou a garçonete limpando o balcão. Rafael encantara-se com a garçonete. Ela, por sua vez, divisava um rapaz elegante no outro lado do bar.

“Eu quero uma cerveja”, respondeu Rafael fixando-lhe a vista profundamente.

“Eu também quero uma”, aproveitou Daniel sem prestar atenção na moça.

Ela anotou os pedidos com rapidez. Rafael coçou o queixo e alisou o cabelo.

“E ai, Daniel, conte-me sobre a fotografia que tirastes com o goleiro do Timão!”, perguntou Rafael espreitando a garçonete levar os pedidos para a cozinha.

“Ah, sim! Eu fui ao shopping, numa loja esportiva. O goleiro estava lá tirando fotos e dando autógrafos.”

“E você conseguiu uma foto?”

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“Sim, eu consegui tirar uma fotografia com ele, mas junto com um monte de gente que eu nunca vi na vida.”

A garçonete retornou e entregou-lhes as cervejas. Daniel bebia, apreensivo com o desempenho de seu time.

“Quem comprasse uma camiseta na loja poderia tirar uma fotografia individualmente e pegar autógrafo com o goleiro. Como eu não comprei, e a maioria dos que estavam lá também não, fizeram uma fotografia com todos juntos ao final”, completou Daniel.

Rafael ouvia o amigo e girava o porta-copos entre os dedos. Continuava a dividir sua atenção entre o jogo de futebol e a garçonete.

“Legal este porta-copos inglês. Será que podemos levar para casa?”

“Não sei. Podemos consultar”, respondeu Daniel.

“Moça!”, chamou Rafael quando a garçonete passou próximo. “Eu posso levar este porta-copos para casa como lembrança do dia em que te conheci?”

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“Pode”, respondeu a garçonete, balançando os ombros e sorrindo displicentemente. Enxugou um copo e foi para o outro lado do balcão.

“Rafael, uma cerveja apenas não justifica esta cantada mal feita”, comentou Daniel achando graça.

“Oh, não...”, interrompeu Rafael olhando para a televisão.

“O que aconteceu?” Daniel olhou assustado para o televisor. “Gol do Palmeiras...” “Não acredito! Como?”, indagou Daniel

com as mãos na cabeça. Eles assistiram incrédulos ao replay do

lance. O barulho no bar dividia-se entre lamentações e gozações.

“Ai, Timão, o empate já nos classificaria!”, lamentou Daniel. Bebeu um longo gole da cerveja. “Droga, quanto custa a garrafa Deus?”

“R$ 159,00”, respondeu Rafael.

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“Caramba, dá para comprar 50 refrigerantes com este preço.”

“Na igreja Deus é de graça, não?” “Dependendo da igreja, pode até sair

mais caro.” “Mas se funcionar...” Eles fizeram silêncio atentos ao jogo.

Assistiam apreensivos aos instantes finais da partida.

“Vamos comprá-la!”, exclamou Daniel, impaciente e resoluto, sem tirar os olhos da tela.

Rafael pensou que fosse brincadeira, mas Daniel falava sério.

“Moça, por favor, queremos uma garrafa Deus”, solicitou Daniel.

“Ai, moço, infelizmente Deus está em falta”, respondeu a garçonete com seu jeito todo especial.

“Não acredito!”, exclamou Daniel. “Nenhuma outra bebida no estilo?

Talvez chamada Alá?”, disse Rafael. “Não”, sorriu a garçonete. Ela recebeu um olhar demorado do rapaz pelo qual se

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interessara no outro lado do bar. Discretamente, ela foi arrumar a prateleira.

O senhor retornou com uma caixa para a garçonete e esbarrou no ombro do Rafael ao entrar no balcão. Ele se dirigiu para a cozinha e a garçonete abriu a caixa, olhando de volta para o rapaz, que sorriu para ela. “Vamos lá, Timão, vamos lá!”, gritou Daniel com o rosto pesado.

A garçonete descarregou os produtos das caixas e arrumou algumas novas taças e bebidas na prateleira.

“Gol?” “GOL!”

“GOOOL!” Daniel e Rafael pularam de alegria com a

surpresa de um gol do Corinthians no minuto final do jogo. Abraçaram-se e comemoraram. Os olhos de Daniel brilhavam. Ele saboreava a cerveja com gosto e já solicitava outra.

“É isso aí, Timão!” “Eu nunca vou te abandonar!” “Aqui tem um bando de loucos, loucos por ti, Corinthians!”, cantava Daniel.

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Rafael divertia-se com a alegria do amigo. Gostaria de fazer sucesso com a garçonete como o time de futebol fazia com eles. Deslumbrava-se mais com ela do que com o próprio jogo vitorioso. Observou-a trabalhar e terminar de arrumar a prateleira. Perguntou-se se haveria mulher mais linda que ela que pudesse estar ao seu alcance algum dia.

A garçonete colocou a última garrafa no canto da prateleira e foi para a cozinha. Rafael permaneceu contemplativo com a imagem da garçonete correndo pelo reflexo. Seu olhar terminou de acompanhá-la, ao final do espelho, e ele arregalou os olhos quando viu o último item que ela colocara na prateleira. Era a garrafa Deus.

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O Paraíso Perdido

— Eva, mas que bagunça este quarto. Arrume o lençol, também a mesa de trabalho e a tela do seu computador. Olhe pra mim. Eu disse: arrume o lençol, a mesa e o computador! Eva acordava do cochilo e observou a mãe falar.

Sentou-se e folheou uma revista de pintura. Logo estava apreensiva com o celular na mão, desde o momento que levantara pela manhã. Mudava as páginas impacientemente e pouco contemplava as pinturas expressionistas de tendências pós-modernas. Borrifou e encarou o celular. A tela sem novidades deixou-a zangada. Continuou a folhear a revista. Após

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algum tempo, jogou a revista para o lado e deitou-se na cama. Encarava o teto e balançava os pés impacientemente. Celular ainda na mão, abraçava-se. Girou a cabeça em direção à janela e viu o Sol se pôr. Outro dia se passava igual ao anterior. Dormiu sem se cobrir e acordou no dia seguinte com o Sol alto.

— Eva, menina, você dormiu com a roupa de ontem? Que horror!

Ela acordou, olhos inchados. Sentou-se na cama e as pálpebras pesavam. Viu a mãe abrir a janela e a luz do Sol trincou quarto adentro. Tapou os olhos e chiou algo.

— Deixa disto, menina — disse a mãe, tirando as mãos da filha da frente do rosto dela. — Vai, vai tomar um banho e se trocar. Dá-me aqui seu celular que eu cuidarei dele pra ti enquanto arrumo esta bagunça. Eva tomou uma ducha quente e demorada. Vestiu-se com roupas que a deixavam parecida com uma boneca. Colocou seu colar favorito e teve seu desjejum. Comia devagar e sem apetite. Quando sua mãe visitava

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a mesa e lhe olhava forte, ela disfarçava estar disposta, coluna ereta e comia apresentando satisfação. Terminou o café matinal e foi para o quarto. Usava o computador, conversava com amigos na internet e navegava por sites, alguns de notícias, outros de relacionamentos, e poucos de arte. Sua mãe deixara o celular ao lado do computador. Eva o colocou em sua coxa. Estava navegando por uma página de trailers legendados e o celular tocou. Ela pulou com o celular vibrando em sua perna, olhou o número com ansiedade e identificou o telefonema. Correu para a mãe, entregou-lhe o celular ansiosa e a mãe o atendeu.

— Sim? Ah, sim, prazer Seu Antonio. Sim, sou a mãe da Eva que conversou contigo nesta semana. Lembra-se? Isso. Ela pode te visitar? Quando? Hum. Hum-hum. Ok. Anotado! Obrigada, Seu Antonio. Até logo — disse a mãe, entregando o celular para a filha. — É para você ir ao estúdio na sexta-feira pela manhã!

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— Aleluia! — exclamou a menina. — Não acredito que vai dar certo. — Sim, filha, claro que vai dar certo — disse a mãe com as mãos no rosto da filha, beijando-lhe a testa. — Veja, mas este é um primeiro passo. Ele não falou ainda de contratação ou efetivação. Ele quer te conhecer. Você é uma pessoa muito especial, certamente ele vai te contratar. Eu te levarei lá e te darei todo o apoio que for necessário. Os olhos da filha brilhavam ao acompanhar as palavras da mãe. Ela correu para o quarto e espalhou a novidade para seus amigos através da internet. Ficou o dia todo online conversando e contando as vantagens de trabalhar com um famoso designer. Aquele profissional era o melhor da cidade – e quiçá do Estado. Os pais de Eva orgulhavam-se da filha e desejavam que o talento dela fosse reconhecido publicamente.

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No dia seguinte, horário combinado, Eva estava na porta do estúdio de Seu Antonio, junto com a mãe. — Deixe que eu te apresente, ok? — disse a mãe ao tocar a campainha. Elas aguardaram após o toque. Não foram atendidas. Tocaram novamente. E ficaram a aguardar. Tocaram mais uma vez e esperaram como quem aguarda a eternidade. A mãe resolveu telefonar para o Seu Antonio. Eva estava nervosa e emburricada com o atraso. — Aqui é a secretária do Seu Antonio. Desculpe, infelizmente ele teve um imprevisto e viajou a trabalho — disse uma voz do outro lado do telefone. A mãe guardou o celular, encarou a fachada do prédio do escritório, indignada por terem sido abandonadas. — Vamos, Eva, este senhor não merece sua disposição e talento! Elas retornaram para casa e Eva escondia sua tristeza, com medo de que a mãe a repudiasse por chorar ou entristecer-se.

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— Você sabia que você é muito bonita? — Sim, claro. Desde pequena as pessoas me paparicam e dizem que sou bonita — respondeu Eva. — Você nunca namorou? Não acredito como uma mulher como você ficaria sozinha este tempo todo. — Pois é, só “fiquei” com um rapaz uma única vez, mas nunca namorei. Não tenho tempo para isso! Frequentemente Eva conversava com os amigos pela internet, através de chats, em seu quarto, e trocava diversas mensagens de texto o dia inteiro. — Mas não sente falta de um namoro, Eva?

— Não. Não vou ficar com qualquer um. Quero alguém que me entenda, que me acompanhe, que esteja comigo em meu trabalho e nas minhas decisões.

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— Você é uma moça segura de si e isso encanta os homens. Certamente, quando achar o homem certo, o relacionamento vai proporcionar todas estas coisas.

— Depende. Não acredito muito em amor assim. Eu quero viajar para a Europa no futuro, trabalhar lá. Tem que ser alguém que tenha capacidade de fazer isso comigo, que fale assim: “Vamos para a Europa na semana que vem?” Aí nós iremos. Senão, não rola.

— Você viaja muito, né? — Sim, conheço a Europa toda. No ano

passado, eu passei o Natal em Madri, com meus pais, e neste ano passaremos o meu aniversário em Paris, também com meus pais.

— Nunca foi sozinha? — Não. Eu gosto de viajar com meus

pais. Pra que eu iria sozinha? Quando vou com eles, ficamos nos melhores hotéis, comemos nos melhores lugares, fazemos os melhores passeios.

— Não tem vontade de viajar sozinha? Ou com um namorado?

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— Não, como eu disse, apenas com alguém que me acompanhe em minhas coisas!

— Você é uma moça bonita, não terá problemas em encontrar alguém especial.

— Eu sei! As pessoas vivem falando que sou bonita. Eu até me canso disso, sabia? Vivem me elogiando, dizendo que eu pareço uma boneca de tão bonita e perfeita que sou. Mas, sabe, isto cansa! Só ouço elogios.

Houve silêncio. — Bem, e o trabalho? Nada de novo?

Você é uma pessoa muito talentosa! — Obrigada. Mas não fiz nada

ultimamente, nenhuma pintura, nenhuma arte, nenhuma ideia. Ando atarefada com alguns papéis artísticos e decorados para a família. Ah, sim, e também fui a algumas festas chiques de antigas amigas da faculdade.

— Há quanto tempo terminou a faculdade?

— Cinco anos. — Você tem muito talento para estar

parada, Eva, é um desperdício.

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— Mas é melhor estar assim do que trabalhar para qualquer um. Além disso, estou aguardando um arquiteto renomadíssimo me convidar para trabalhar com ele. Chama-se Ruy van der Wuuw. Ele é europeu, é dos bons. Está com escritório novo aqui na cidade e minha amiga disse que ele contratará pessoas boas e competentes para o escritório dele. Vou conhecê-lo e trabalhar com ele. — Há quanto tempo está aguardando o chamado dele? — Alguns meses. — Por que você não pega uns trabalhos por conta, freelancer? — Eu até tento, mas não aparece nada. Tenho que esperar meu pai arrumar o escritório, aí eu poderei montar meu negócio próprio. Até lá, quero trabalhar com os melhores para aprender com os melhores. — Espero que dê certo! — Obrigada! Nesta semana eu devo receber o convite do Ruy van der Wuuw. Agora

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vou para a aula de ballet, depois para a aula de Espanhol.

— Mãe, pai! Ruy van der Wuuw respondeu à minha mensagem!

— Que maravilha, filha — comentou a mãe após passar as últimas coordenadas para a cozinheira e a faxineira. — E?

— Vou trabalhar com ele! — exclamou a filha.

— Uau, ele já te confirmou? — perguntou a mãe espantada.

— Bem, ele disse que quer me conhecer — respondeu a filha.

O pai olhou para ela por cima do jornal e sorriu.

— Melhor que isto, só se ele for espanhol, como nossos ancestrais, de sangue e fúria forte — comentou o pai enquanto aguardava o almoço.

— Vamos acertar para que tudo dê certo — comentou a mãe.

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Eva deu um beijo na mãe. Abraçou o pai. Olhou para a mãe que, com uma palavra muda, mandou Eva ir para o quarto.

— Sim, Ruy van der Wuuw, Eva te

visitará em seu escritório agora mesmo, não perderemos tempo, eu mesmo a levarei aí — disse a mãe ao telefone diante de Eva, que prestava atenção em cada detalhe da conversa. — Obrigada, até daqui a pouco — concluiu a mãe ao desligar o aparelho e correr para o carro com Eva.

“Quanta coisa pra fazer!”, pensou Eva a caminho do escritório. “Ontem, fiz um texto para o blog da minha amiga comentando as obras daquele escultor péssimo que se mete a ser como os europeus. E hoje, vou visitar o grande Ruy van der Wuuw. Tenho que conseguir trabalhar com ele para crescer e estar entre os melhores, aprender e ir pra Europa!”

O escritório de Ruy van der Wuuw não era longe. A mãe e Eva foram bem recebidas por

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uma secretária gentil. Aguardaram alguns minutos e logo o artista estava conversando com as duas.

— Então esta pequena se interessa por artes, escultura, pintura e, principalmente, design — comentou Ruy van der Wuuw.

— Sim — respondeu a mãe antes que a filha se pronunciasse.

Eva, com olhos vivos e espertos, apenas deixava a mãe fazer a conversa. Ruy van der Wuuw dividia seu humor sorrindo para Eva e cobrando arduamente seus funcionários. Eva não sabia se ele estava sendo educado ou se simpatizou com ela. Após algum tempo de conversa, a mãe os deixou a sós. Equipou a filha com dois celulares de baterias cheias e se dispôs para qualquer favor que eles precisassem.

— Aqui nós trabalhamos em equipes e grupos criativos — disse Ruy van der Wuuw, caminhando com Eva pelo escritório. — Fazemos intercâmbios entre as áreas do conhecimento. Temos profissionais de todo o ramo da estética. Isto forma nossa identidade.

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Não gostamos dos conceitos arquitetônicos comerciais vigentes até então. Como disse o grande Niemeyer, de curvas é feito o universo todo. Ao invés da reta, buscamos o encanto da forma curva, como o buscou Picasso, a tolerância do mundo atual, e a crítica de Le Corbusier — disse Ruy van der Wuuw ao apontar para modelos que construíra. — A realização da arte e a aspiração dos saberes dentro de um único design gráfico arquitetônico — concluiu, gesticulando para cá e para lá.

Eva o acompanhava, mas não conseguiu seguir todas suas palavras, mesmo prestando-lhe atenção no rosto, na expressão, nos gestos e na fala do artista. Ele apresentou os setores de trabalho, mostrou sua equipe, os projetos em andamento, os conceitos básicos do escritório e, finalmente, convidou-a para fazer um estágio voluntário, sem remuneração, para ela experimentar o ambiente e a proposta de trabalho. Ela voltou para casa empolgada.

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— Ei, Michele, olha só que estranha

aquela estagiária nova. — O que é estranho nela? — Eu a chamo e ela não dá bola pra

mim. — Ah, deve ser porque ela é da alta elite,

toda orgulhosa com seu kit de desenho importado.

— Será? Se é assim, por que está trabalhando de graça?

— É rica, não precisa de dinheiro. Mas acho que pode ser algum tipo de teste que o Ruy van der Wuuw exigiu.

— Pode ser. Mas que é estranho, é. Vou jogar uma bolinha de papel nela. Veja.

— Sua doida, ela nos encarou feio. Fiquei com medo. Pequena, mas brava.

— Ela é doente. Ignora a gente e só olha quando a provocamos. Vixi, agora ela está vindo para cá!

Houve discussão.

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— Vamos voltar ao trabalho? — disse Ruy van der Wuuw.

Elas se assustaram e pularam na cadeira. Pediram desculpas. Ruy van der Wuuw estava atrás das duas funcionárias e viu tudo. Viu, também, quando Eva levantou-se, foi até as duas meninas e falou algumas bobeiras para elas. Ruy van der Wuuw não chamou Eva para uma conversa particular, mas as duas funcionárias foram advertidas.

Eva trabalhou um dia com Ruy van der

Wuuw. — O que? Ah! Ela está doente? Puxa, o

que ela tem? Hum! Espero que não seja grave. Bem, quando ela ficar boa e quiser voltar a trabalhar, as portas estarão abertas para ela continuar o período de estágio voluntário. Só que na semana que vem eu irei para a Holanda e voltarei daqui dois meses. Sim, eu que agradeço

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a atenção. Até mais! — disse Ruy van der Wuuw para a mãe de Eva ao telefone.

Ruy van der Wuuw desejou que Eva estivesse bem de saúde, mas torceu para que esta doença fosse uma desculpa para não voltar a trabalhar no escritório.

— Mãe, eu não iria levar desaforo para

casa! — disse Eva. — As pessoas naquele escritório eram escrotas, sem educação, sem estilo. É ruim conviver com gente assim, só faziam trabalhos ruins, sem qualidade, sem criatividade.

— Fez bem, minha filha. Eu não quero que leve desaforo para casa nem que conviva com profissionais ruins. Papai e eu te ensinamos a ser uma pessoa forte e nobre. Seja dura com aqueles que não te respeitam e busque trabalhar com o melhor, sempre!

— Sim, mãe. Eva evitou abaixar a cabeça. Devia estar

erguida sempre. Sua mãe a abraçou e lhe disse

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que em breve alguém bom e importante iria descobri-la. Eva acreditava em seus pais, tinha todo apoio deles para o que fosse o melhor para ela. Ela os obedeceu e aguardou. Por anos.

— Eva, eu tenho este amigo que é

fotógrafo de casamento; você pode começar a pegar experiência profissional auxiliando-o.

— Ah, fotografia de casamento não é meu interesse — respondeu.

— Eva, meu tio é escultor e pintor. Ele tem um pequeno ateliê. Se você desejar começar a praticar pintura e vendas com ele, posso te apresentar a ele.

— Ah, eu queria algo maior, mais importante — respondeu.

— Eva, minha prima montou um escritório de arquitetura com alguns amigos há dois anos. Estão começando, têm poucos clientes, mas já se sustentam e estão ganhando projeção no mercado. Gostaria que eu te recomendasse para eles?

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— Ah, estou aguardando alguém melhor aparecer para eu trabalhar para esta pessoa — respondeu.

— Eva, pelo amor de Deus, faça alguma coisa! Lá em Minas Gerais dizem que peru dentro do círculo se perde e a família, às vezes, torna-se um círculo na vida da gente!

— Tenho que ir para a aula de pintura. Tchau!

Mais alguns anos se passaram e Eva

começou a se questionar se sua vida iria para frente ou não. Ela queria um novo computador, mas não tinha dinheiro para comprá-lo por conta própria. Sua mãe deu bastante vinho para seu pai beber numa noite; assim, elas pediram ao pai um computador novo e ele não negou o pedido. Junto veio um novo celular com os mais modernos recursos de mensagens de texto – o que era conveniente para Eva se comunicar. Estava conectada a qualquer momento. Trabalho não era problema, pois seus pais

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proviam tudo que ela desejasse. Eva vivia férias intermináveis. Apenas seus sonhos, como aquele de mudar-se para a Espanha e lá trabalhar com algum artista famoso, eram sempre adiados. Os anos que se passavam já a incomodavam. Pois nenhum homem interessou-se por ela; nenhum grande artista a aceitou como aprendiz; nenhum de seus objetivos estava sendo realizados. Mas seus pais nunca a abandonavam, estavam sempre ao lado dela, protegendo-a e zelando pela integridade de Eva. Até que um dia um designer gráfico foi além de seu ofício.

— Desculpe-me, dona, mas tua filha

possui limitações das quais ela mesma não está disposta a trabalhar. Este é o problema.

— Como assim, meu caro, explique-se! Minha filha é uma pessoa muito especial, estudou nas melhores escolas, pertence a uma família dos modos mais nobres, e o senhor me diz que ela possui limitações? E, ainda, quais são

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as limitações que ela não está disposta a trabalhar? — perguntou a mãe indignada.

— Ela é talentosa e leva jeito para arte. Isso não posso negar. Mas ela possui algumas barreiras...

— Minha filha é extremamente educada e nobre, pronta para ser a melhor profissional que o senhor verá no mercado! Ela não tem barreiras!

— Ela poderá ser uma grande profissional sim, mas apenas se ela trabalhar seus limites. Ela não nos ouve!

— Não fales isto! Se não a deseja como funcionária, basta nos dizer. Você tem algum problema com Eva?

— Não tenho, mas o trabalho tem. Como eu disse, o problema aqui é que Eva não aceita seus limites e, por isso, atrasa as relações e processos.

— Mas, ora, você fala como se ela fosse uma pedra no caminho!

— Não, minha senhora. O trabalho dela é bom, alguns até têm ciúmes dela. Mas,

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convenhamos, você a trata como se ela não tivesse nenhuma dificuldade.

— Minha filha é muito inteligente e herdeira de uma nobre família. Ela é tão capaz quanto outro qualquer. Ela sabe falar quatro idiomas! Aposto que você mal fala o Português — disse a mãe.

— Ao menos eu sei meus limites — respondeu o designer.

— Mas que falta de educação tua! — Falta de educação? Eu estou sendo sincero e tentando ajudar. Eva tem problemas para se relacionar e para ouvir o outro. Ela precisa conhecer seus limites, aceitá-los e trabalhar para ampliar estes limites — disse o designer. — Que horror! Que humilhação! Como ousa dizer o que Eva deve ou não fazer? — gritou a mãe com o designer. — Eva, vamos sair deste lugar que fede orgulho! — Orgulho? — indignou-se o designer vendo as duas darem as costas e dirigirem-se para a saída. — Em nenhum momento faltei

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com educação — disse alto o designer. — Sou compassivo com os objetivos profissionais de Eva, mas ela não pode querer ser a primeira e a pessoa mais importante da Terra! Eva estava no seu quarto, sentada, balançando as pernas. Sua mãe a proibira de comunicar-se com qualquer amigo naqueles dias sob o pretexto que o isolamento seria o melhor para ela. Como sempre, não podia, também, sair de casa sozinha. O monitor de seu computador estava desligado e o celular sem bateria. Ela raramente ficava ociosa, sem se ocupar com o computador e a internet. Rabiscou algumas linhas no papel; entre elas, escreveu a palavra “voar” nos idiomas que conhecia. Olhou para a janela e viu o Sol se pôr novamente. Ela não sabia se queria sair dali, de sua casa, de sua família. Desejos, meios nem caminhos lhe estavam próximos. Enfim, outro dia se passou e Eva mais uma vez não saiu de

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casa para passear pelas ruas de seu saudoso bairro Paraíso.

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Tentação no deserto

Ele colocava café numa xícara quando eu

entrei na sala. As pessoas e o falatório não me impediram de vê-lo, sozinho, olhos baixos, rodando a colher no café e soprando o calor da xícara. Aproximei-me e cumprimentei-o. Ele olhou com aquela expressão desconfiada de sempre. Sorriu ao me ver. Abraçou-me com um braço, o outro segurava a xícara. Perguntei se ele estava bem. Sua esposa mostrou-me algumas irritações alérgicas no pescoço dele e sugeriu que fosse ao hospital.

“Eu já fui muito em hospital nestes últimos dias”, reclamou.

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Bebia seu café aos pouquinhos e fitava o nada. Virou e perguntou-me se poderíamos ter um grupo para conversas e debates informais, como aquelas discussões de rua em Curitiba, onde cada um expunha seus pensamentos, falavam o que pensavam e confrontavam-se em respeito mútuo. Animei-me e logo concordei. Ele era um senhor dedicado e disposto para questões inquietantes.

“Sabe, desde que li pela primeira vez aquela passagem na qual Jesus transformara água em vinho, aquilo me deixou encafifado”, disse-me.

Como não poderia ficar? O milagre surpreendera a todos no relato bíblico. Difícil seria discutir sobre a veracidade do milagre, pensei racionalmente.

Ele prosseguiu: “Aí chegou um camarada e disse lá na estória, ‘Então, vocês nos enganaram e guardaram o melhor vinho, dando-nos apenas o vinho vagabundo durante a festa’; tenho a impressão de que esta malandragem está na natureza humana”,

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gesticulou meticulosamente as palavras junto com as mãos, “o ser humano nunca muda”.

Percebi. O que lhe incomodava não era a verossimilhança do milagre, mas o comportamento humano.

“Veja estes nossos políticos; acabaram de aumentar absurdamente os próprios salários e criaram um novo imposto. E o que podemos fazer em relação a isto? Pegar uma espada e sair cortando cabeças? Ou sermos apenas coniventes? Parece que é da natureza do ser humano enganar os outros e só se preocupar com as coisas próprias”.

Ele abaixou os olhos e tomou o restante do café.

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Provérbio 42:41

Rogério girou a chave na ignição do

carro e deu a partida. Limpou o suor da testa e dirigiu pela cidade grande.

O Sol lhe turvava a visão. Estava cansado e dirigia apressadamente. Avistou a moça de vestido vermelho na esquina da avenida. Diminuiu a velocidade, ela o identificou e se postou próximo à sarjeta. Rogério estacionou. “Rogério?” perguntou ela, segurando o cachecol do vento. “Sim, senhorita”, respondeu, abrindo a porta do passageiro. “Entre no banco da frente mesmo.”

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Ela sentou e descansou uma sacola no colo. Alisou o cabelo, tossiu e tirou do bolso um pedaço de papel com endereço. Entregou-o para Rogério, que leu e balançou a cabeça positivamente. Rogério dirigiu.

“Veja só, que insatisfação, pouca vergonha desta cidade”, disse Rogério, apontando para crianças quase nuas pedindo dinheiro no semáforo. A mulher pouco considerou e virou o rosto. Olhava para o outro lado da rua e viu uma bonita parede de pedras com os números 4241 pichados. “Foi o número do quarto do meu pai na UTI”, pensou a moça. Ela soluçou alguma coisa para si mesma. Seu reflexo no vidro do carro foi embaçado pela passagem no túnel e logo voltou a brilhar quando saíram do escuro para uma avenida que tangia uma larga fileira de comércio de camelô.

“Não te incomoda as crianças sozinhas e pobres, dona?” “Muita coisa me incomoda, esta é uma delas. Mas o que posso fazer por elas?”

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Rogério tentou pensar numa solução para crianças sozinhas e pobres. O trânsito intenso lhe cobrava a atenção. Seu semblante cansado escondia a idade. “Vai ver o marido?”, perguntou ele.

“Não”, respondeu prontamente a mulher. “Eu não tenho marido. Desculpe-me, mas os homens são incompreensíveis.”

“Não te preocupe, não te julgo mal, tem muito safado por aí.”

“Você não tem ideia de quantos!” Rogério sorriu e concentrou-se nos

desvios do trânsito no centro da cidade. A moça encantou-se com algumas decorações festivas dos grandes prédios. Chegaram ao destino dela. Ela agradeceu e pagou pela corrida. Rogério partiu.

“Olá, professor. Vamos para mais um dia

de trabalho?”, perguntou Rogério, ajudando um senhor a fechar o portão do condomínio, número 42, apartamento 41, na rua Bélgica.

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“Obrigado, Rogério”, respondeu o senhor de rosto vermelho, olhar pesado e roupas de frio.

O senhor tirou um lenço do bolso após trancar a porta e assoou o nariz. Entrou no carro com dificuldade e se acomodou no banco da frente, enquanto Rogério colocou a pasta de trabalho do senhor no banco traseiro. Partiram.

“Pois não, minha senhora, para onde

vai?” “Eu quero ir ao centro, na rua dos

brechós.” “É para lá que vamos, então.” “Hum, que coisa boa de comer você tem

aí?”, perguntou a mulher ao ver uma marmita no banco de trás. “Se for coisa boa, pode deixar comigo.”

Rogério sorriu. “A corrida ficou em $ 42,41, moça.”

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“Bom dia, professor. Pronto para mais um dia de trabalho?”, perguntou Rogério, ajudando o senhor a carregar sua maleta cheia de livros e trabalhos.

“Obrigado, Rogério”, respondeu o senhor.

O senhor entrou no carro com dificuldade e se acomodou no banco da frente, enquanto Rogério colocou a pasta de trabalho e os pesados livros do senhor no banco traseiro. Partiram.

“E você, é casado?”, perguntou a

secretária da oficina ao fazer o recibo de manutenção do carro.

“Sou solteiro. Tenho uma filha pequenina.”

“Que graça! Qual o nome dela?” “Amanda”, respondeu Rogério. “Esta é a

minha princesa”, disse Rogério apresentando um retrato 3x4 da filha, o qual estava na carteira.

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A moça observou a menina e sorriu. “Que linda! É realmente uma princesa.”

“Obrigado, ela é especial.” Rogério guardou a carteira no bolso. Viu

algumas crianças pobres passarem pela oficina e pedirem dinheiro. A moça chamou um dos funcionários, que retirou as crianças do espaço.

“É triste ver crianças sozinhas, né?”, comentou a moça, finalizando o preenchimento dos papéis.

“Sim. Que futuro elas terão?”, arguiu Rogério. “Mais triste ainda, se a mãe, como no meu caso, fica falando abobrinha do pai para a filha, colocando minhoca na cabeça da filha, só para prejudicar o ex-marido.”

A moça apenas ouvia. “Isso é alienação parental, sabia?” “Eu não sabia”, respondeu a moça.

“Bem, a manutenção ficou em $ 424,10.”

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“Olá, professor. Animado para mais um dia de trabalho?”, perguntou Rogério, ajudando o senhor a entrar no carro.

“Eh, um pouco”, respondeu lentamente o senhor, como se lhe faltasse ar. “Obrigado, Rogério”, disse ao sentar no banco da frente.

Partiram e começou a chover. O trânsito estava intenso e ficaram

parados por um longo tempo na avenida principal da cidade. Rogério tirou um caderno do porta-luvas e demonstrou entusiasmo.

“Professor, veja o que diz esta citação. É de uma leitura para a aula de hoje à noite: ‘A literatura nada mais é do que um corpo de estruturas verbais e hipotéticas que imitam proposições reais. Por isso é trágica: o âmago mais íntimo de quem esconde a verdade de si próprio. Mas real dentro de si mesma: distanciamento imprescindível para conhecer o mundo ao qual se pertence.’ O que o senhor acha?”

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O senhor coçou os olhos. Semblante sério. Demorou a responder como quem matutava uma tese na cabeça.

“Bem, Rogério, parece-me razoável.” Os óculos grossos do senhor escondiam-

lhe o olhar. Respirava com dificuldade e limpou o nariz com um lenço branco.

“Eu achei muito interessante”, comentou Rogério, buscando alternativas no trânsito. “Eu gostaria de estudar mais a respeito no futuro.” O senhor fitou Rogério e encolheu-se dentro de sua grossa jaqueta, procurando aquecer-se do frio.

Chegaram à escola na qual o professor trabalhava. “Bom dia”, disse o porteiro da escola. “Nome do motorista e número do carro, por favor.”

“Rogério. Carro Chevrolet. Placa EAH-4241.”

O funcionário anotou os dados e Rogério entrou com o carro no estacionamento

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para deixar o professor próximo à porta de acesso do prédio. O senhor se sentiu embaraçado com a gentileza. Rogério estacionou o carro e o professor pegou seus pertences.

“Obrigado, Rogério, mas não precisava me trazer até aqui dentro. Tua carona já é de grande ajuda; sem ela, não sei como eu faria para trabalhar”, disse o senhor, saindo do carro com dificuldade. “Disponha, mestre. São pessoas como o senhor que dão esperança para nós.”

O senhor reagiu com timidez. “Amanhã nos veremos novamente?”,

perguntou Rogério. “Ah, sim”, confirmou o senhor, sorrindo desta vez. Acenou e caminhou em direção à escola. Rogério acenou de volta e apoiou-se na porta do carro, observando o caminhar lento, pesado e corcunda do professor, que se escondia debaixo de um guarda-chuva azul.

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“Bom dia, professor. Vamos para mais um dia de trabalho?”

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Polar

— E falando nisso, Woodson, como está

o teu time? — Vai muito bem. Ontem ganhou de 21

a 16. Três passes para touchdown do Aaron Rodgers.

— Que bom — comentou Mike, observando a paisagem vista do alto do helicóptero. — Ele é um grande quarterback — concluiu, pensando no porquê de sua filha estar tão ausente ultimamente.

A aeronave sobrevoava o interior do Alaska. O inverno espantou toda forma de vida daquele lugar. O branco da neve e o marrom de

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algumas árvores formavam uma linda paisagem de montanhas que se perdiam no horizonte.

— Qual teu palpite para o Super Bowl, Mike? — Não sei — respondeu o soldado, pensando ainda na filha. O som do motor e da hélice colocavam, como um mantra, os pensamentos de Mike mais próximos de suas preocupações familiares. Woodson, mesmo atento nas operações e manobras do helicóptero, notou, há algum tempo, que o colega estava distante do trabalho. — Minha filha não responde aos meus telefonemas há alguns dias e isso me preocupa.

— Ora, Mike, ela deve ter tido algum contratempo — disse Woodson. Ele identificou a área de pouso e conferiu as coordenadas do voo. — E se foi algo pior? — continuou Mike.

— Calma, rapaz, tem apenas três dias que vocês não se falam. Se tivesse ocorrido

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alguma tragédia, certamente nós já saberíamos dela.

— Credo, Woodson! Não me diga uma coisa desta! — exclamou Mike. “Ele não sabe o que estou passando”, pensou; “por isso, não respeita a dor que sinto”. — E mais: uma notícia ruim sempre chega quando não estamos esperando por ela. Todo desastre chega de surpresa! — completou Woodson. Mike demonstrou rancor. Sua resistência às palavras do colega impediu-o de perceber que eles já voavam baixo, surpreendendo-se com o início do processo de pouso. — Ela deve estar com algum problema, ou saindo com alguém, alguém de mau caráter para ela ficar com este comportamento irresponsável — disse Mike, que ajustou um rifle e arrumou a mochila. — Ou deve estar usando drogas! Vai saber? Acho que aquela discussão que tivemos semana passada, na qual critiquei os amigos dela. Ela me disse que os

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amigos são as coisas mais importantes do mundo; aquilo deve ter colocado fogo no rabo dela.

— Aqui estamos — disse Woodson, achando curiosa as hipóteses de Mike.

Um vento agressivo carregado de neblina cortava o céu. Aos poucos surgia uma pequena casa cercada por neve. O pouso de Woodson foi perfeito, numa área a poucos metros da casa. Woodson desligou a aeronave e vestiu um agasalho. — Mike, Mike. Se toda pessoa te ignorasse pelas tuas reclamações, você não estaria mais entre nós — brincou. — O que estás insinuando? Que sou importuno? — protestou, ajudando o amigo a descer com os equipamentos.

Eles caminharam pela neve em direção à casa coberta de branco. Apenas a parte superior das paredes estava visível. Levaram tempo para localizar a entrada. Woodson bateu à porta, esperou e não foi atendido. Tirou uma folha de

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papel dobrada do bolso, leu um nome e abriu a porta com cuidado.

— Mikolaj? — chamou Woodson do lado de fora para não ser invasivo. Seu chamado não foi correspondido.

— Mikolaj, aqui é primeiro sargento Clark Woodson do exército americano.

A residência permaneceu em silêncio. Eles entraram cuidadosamente e observaram o ambiente. Após uma breve análise, suspeitaram que todos os cômodos estavam vazios, mesmo porque não eram muitos.

— Mikolaj? — insistiu Woodson. A casa tinha uma agradável sala, cozinha,

quarto e banheiro. O interior abrigava o calor de uma baixa lareira. As lamparinas estavam acesas e cheiro de comida vinha da cozinha. A sala, o maior cômodo da casa, toda marrom, possuía uma larga e baixa mesa ao centro com algumas estátuas artesanais mal feitas de animais em madeira. Duas poltronas cercavam a mesa, uma posicionada estrategicamente próxima à lareira e com uma bela vista para a janela, e outra coberta

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por livros. Não havia eletrônicos, apenas um rádio de comunicação na escrivaninha de trabalho. As paredes estavam parcialmente decoradas por pôsteres diversos e peças antigas de trabalhos gráficos, como réguas de aço, quadros de serigrafia e uma grande folha com tarjas CMYK que aparentemente serviu de teste de impressão.

Mike abriu sua agenda. “Mikolaj Yvon”, leu para si mesmo. “Professor universitário e pesquisador. Radicado nos Estados Unidos da América desde 1982.”

— O que este russo faz aqui? — perguntou ao guardar a agenda com a ficha de Mikolaj.

— Ele é biólogo — respondeu Woodson, observando fotografias de ursos na parede da sala. — Trabalha pesquisando animais da região. O urso é sua especialidade. É conhecido pela comunidade acadêmica por registrar o modo de vida dos ursos e realizar descobertas sobre a espécie ursus arctos alascensis.

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— Veja só, você também conhece sobre ursos, Woodson? Ou também é conterrâneo desta terrinha?

— Não sou um especialista, mas gosto de ursos. Com exceção nos campos da futebol, aí eu os quero derrotados! — brincou ao se aproximar da escrivaninha de trabalho de Mikolaj.

Nela estavam alguns livros, óculos de leitura, folhas com registros de descobertas científicas; na frente, mais fotografias de ursos, algumas de paisagens e duas lentes fotográficas. O abajur estava ligado em pleno dia.

— As malas estão prontas aqui no quarto — disse Mike, apontando para três malas em cima da cama na dependência vazia.

Woodson conferiu seu relógio. Eles estavam no horário combinado. “Deve ter saído para dar um último passeio”, pensou. — Mike, vamos esperar lá fora, sim?

Eles se retiraram da casa e foram para o helicóptero. Passaram-se duas horas e Mikolaj não retornou para sua modesta cabana.

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Woodson fez contato com o tenente responsável pela operação e informou-lhe que o professor não se encontrava no local para eles o levarem de volta a Montana, onde morava sua família. Explicou ao tenente que, aparentemente, Mikolaj se preparara para partir, mas provavelmente saíra para um último passeio matinal, já que alguns de seus pertences, como sua agenda e livros pessoais, pareciam estar em uso naquele dia ou no anterior. O tenente disse a eles que outros serviços precisavam do helicóptero, que não tinham tempo a perder e deveriam retornar naquele mesmo dia com o pesquisador. Solicitou-lhes que colocassem um bilhete na casa orientando Mikolaj para os aguardar, caso ele chegasse, e que fizessem uma breve patrulha aérea pela região.

— Quantos anos de atividade Mikolaj tem? — perguntou Mike.

Woodson conferiu os procedimentos de partida do AH-6J, um Little Bird, e levantou voo.

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— Não sei exatamente, mas deve ser mais de trinta anos — respondeu Woodson após a procedência de decolagem. — Ele já é um pesquisador aposentado. — É muito tempo para a mesma atividade. Minha filha não para em nenhum emprego. Não é incompetência, pelo contrário, ela está sempre pulando de lá pra cá, insatisfeita com tudo e todos. Eu me pergunto até quando minha princesinha viverá estas indecisões. Ela já deveria estar casada, sabe? Pelo menos com um bom rapaz, de boa família. Ela teve tudo! Casa, educação, faculdade e, mesmo assim, parece não se ajeitar na vida.

— Você não acha que te preocupa demais com ela? — Como não me preocupar? É minha

filha, minha princesinha. — Você fala como se ela fosse uma

criança. — Não é criança, mas é minha criança.

E, às vezes, ela age como uma.

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“Às vezes, o pai também age como uma criança”, pensou Woodson, sorrindo.

— Do que ri? — perguntou Mike. — Nada, nada. Eles sobrevoaram lugares que julgaram

serem pontos de passeio e de trabalho de Mikolaj. A região era cercada por montanhas e uma rala floresta de coníferas composta por pinheiros e abetos que se destacavam em meio ao branco da neve. A vegetação era escassa e sobreviviam poucos arbustos resistentes à agressão do frio. A ventania e o nevoeiro atrapalharam a patrulha aérea. Woodson decidiu retornar e tentar outras estratégias.

— A gente vê tanta tragédia na televisão, tanta desgraça, que vai saber se isso não acontece com a gente — reclamou Mike.

— Você ainda se refere à sua filha? Ou agora ao sumiço de Mikolaj? Pois, se for à sua filha, pode parar com isso, se pensar só em tragédia, só atrairá tragédia. Tudo que verá serão tragédias. E, ademais, este seu humor

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atrapalhará a vida de sua filha que, ao meu ver, só quer um pouco de liberdade e diversão.

— É fácil para você falar. Você não é pai de uma menina como ela, uma menina muito especial e que está aí perdida no mundo.

— Esta observação não é justa. Eu também sou pai de quatro filhos e eles significam muito para mim. Trabalhei para eles realizarem seus sonhos. Eduquei-os da melhor forma possível e amo-os com todo meu coração. Preocupo-me, sim, mas sem esta preocupação excessiva que você tem — disse Woodson com aspereza.

Mike torceu o nariz e borrifou. São parceiros de trabalho há anos, desde a última grande operação internacional na América do Sul. A guerra e a patrulha são hiatos e parênteses na vida de alguns militares; as operações tornam-se escolas para o ver, o ouvir e o falar com os mais diversos professores que não se formaram para tal instrução. E Mike ao menos fala; até demais para o gosto de Woodson.

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— Já passou pela tua cabeça que tua filha está querendo um pouco de liberdade?

— Ora, ela é livre. Mas é minha filha. Se vive junto, tem que dar satisfação.

— Dar satisfação para tudo? — Para tudo não. Mas ela não fala que

vai sair, não fala que horário voltará. Está sempre com os amigos fazendo os programas mais doidos, sem horário, sem responsabilidade. Parece que as amigas mandam nela.

— Isto é fase, Mike. Aquela fase juvenil de ilustrar o ego fazendo aquilo que os amigos gostam para se sentir importante no meio do grupo. Sei como é. Não se preocupe tanto com isto, senão você adoecerá sozinho. Respeite a liberdade dela. Caso contrário, se desejar controlá-la, você apenas vai afastá-la de ti e tua casa. Cuidado para não tentar controlar a vida dela.

O semblante sério de Mike fez Woodson desconfiar que o amigo estava indisposto para o ver e o ouvir.

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Eles retornaram e foram à casa de Mikolaj novamente. Não havia novos rastros. Woodson olhou para a porta e suspirou descontente. Abriu-a, chamou por Mikolaj, conferiu o ambiente vazio e fez contato com o tenente através de seu comunicador pessoal.

— Tenente, fizemos patrulha aérea, mas o mau tempo não ajudou. Retornamos à casa e nosso bilhete continua na porta de entrada. Conferimos o interior, Mikolaj não está aqui. Mike deixou Woodson conversar com o tenente e andou pelos arredores. Havia um grande campo aberto à frente da casa onde pousaram a aeronave sem sinais de Mikolaj. Mike circulou em volta da casa observando cada detalhe que pudesse inferir uma pista. Na parte detrás havia uma floresta de pinheiros que lhe chamou a atenção. Ele entrou na floresta através de um caminho que deduziu ser a passagem mais lógica para uma pessoa trilhar e notou, a alguns metros adentro, três cavidades na neve. Ficou encafifado com as marcas e suas formas simétricas que se assemelhavam a passos.

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Investigou mais um pouco em direção ao sul e não encontrou novidades. Sons de aves distantes ecoaram na floresta. Já começava a escurecer e ele não gostava de estar naquele ambiente sozinho. Rapidamente, voltou para ver Woodson.

— O tenente falou que fez contato com a esposa de Mikolaj — disse Woodson, guardando os aparelhos de comunicação na mochila. — Ela conversou com Mikolaj ontem à noite e o marido confirmou que estaria pronto para nossa chegada. Disse, ainda, que Mikolaj parecia empolgado com alguns resultados inéditos de sua pesquisa e que suas últimas convivências entre os ursos renderam-lhe prazerosos momentos de descobertas.

— O tenente recomendou algum procedimento?

— Pela missão não ter saído como o planejado, o tenente classificou esta missão de transporte para missão de resgate. Temos permissão e ordem para intervirmos e localizarmos Mikolaj com quaisquer meios.

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Antes de escurecer, que já já será o caso, aqui escurece cedo nesta época do ano, devemos atualizá-lo com novidades. Se necessário, reforços estarão à nossa disposição. — OK. E a família do professor? — Avisaram que houve um contratempo no transporte, por enquanto.

— Estão poupando a família da notícia ruim para depois chegar a surpresa? — disse Mike ironicamente.

Woodson estava acostumado com as agressividades gratuitas do amigo e não revidou, pois abismava-se com suas atitudes.

— Mike, o tenente apenas poupara a família de um eventual transtorno. Se falarem que Mikolaj não está aqui, e o encontrarmos, ficarão apreensivos desnecessariamente.

— Bem, enfim, em todo caso, preciso te falar uma coisa. Atrás da casa, no início da floresta, eu vi três marcas na neve que podem ser de pegadas. Mas estas marcas não possuem início nem fim. A sequência, penso eu, foi apagada!

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— São pegadas humanas? Há marcas de pés?

— Não exatamente. Mas podem ser. — Vamos entrar e conferir a casa

primeiro antes de aventurarmos nas causas externas, OK? — disse Woodson, após julgar que o argumento do amigo não era substancialmente convincente.

Eles entraram na casa e iniciaram uma investigação minuciosa. Ambos sabiam trabalhar em improviso, porém Mike era mais resistente, apesar de esforçar-se para acompanhar o colega, que era mais criativo.

— Que problemão este pesquisador foi nos dar. Justo hoje que teríamos o restante da semana de folga e eu poderia conversar com minha filha — lamentou Mike.

Woodson ouvia o colega ludibriar seus problemas pessoais enquanto analisava a escrivaninha de Mikolaj à procura de pistas que poderiam indicar ou esclarecer o que se passava.

— Não me parece faltar luz aqui para o abajur estar ligado — inferiu Mike.

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— Não mesmo. “Ele pode ter uma vista fraca”, pensou Woodson, “mas não deve ser o caso; afinal, ele é fotógrafo autodidata e a casa possui uma boa iluminação natural. Provavelmente saiu às pressas logo pela manhã após trabalhar a noite”, concluiu. — Veja a xícara — apontou.

Havia metade de café numa grande xícara vermelha. Sua agenda estava aberta no dia anterior com algumas anotações. Eles tiveram a impressão de que Mikolaj trabalhava antes deles chegarem.

— Aqui na agenda, nos últimos dias, ele cita constantemente um tal de “O Grande Rei” — comentou ao folhear o material.

Mike se aproximou, olhou de rabo de olho, desconfiado.

— Não há nenhuma anotação aí dele sobre a família? Nadinha?

— Eu não prestei atenção nisso — respondeu Woodson, surpreso com a preocupação de Mike.

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— Coitada da família. Deve se sentir abandonada por ele.

— Mas Diabos, Mike, deixa a família de lado pelo menos um pouco. Atenta-se para o trabalho, OK? Olhe aqui, há desenhos de ursos em todas páginas. Pelas fotografias e anotações, suponho que sejam ursos que ele acompanha e O Grande Rei pode ser algum urso especial. Diz aqui, numa nota de rodapé em suas anotações, que O Grande Rei foi o responsável pelas suas mais recentes descobertas e que o animal é especial para ele.

Algum tempo passou, Woodson passeava pelas folhas do diário e Mike se colocou na tarefa de fazer um lanche e arquitetar hipóteses sobre o desaparecimento de Mikolaj.

— O que temos aqui? Talvez um crime meticulosamente realizado — disse Mike, comendo uma fatia de pão. — A ausência de rastros sugere uma trama pensada. Independente de quem sumiu com Mikolaj, ou se ele resolveu suicidar-se, estrategicamente as

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pegadas e rastros foram apagados. Seja o que for, foi algo grande, algo ruim, algo cruel.

Woodson olhou com desgosto para o colega e se conteve para não ser deselegante e mandar o amigo se calar.

— Ou, ele saiu à noite e houve uma recente queda de neve local, escondendo suas pegadas — inferiu Woodson racionalmente, contrariando a teoria do amigo. — E, por algum motivo, não conseguiu retornar à sua cabana. Ele pode estar preso em algum lugar, quem sabe feriu algum membro e ainda não conseguiu retornar. — Talvez. Assim teríamos uma justificativa para as três marcas na floresta. — Sobre estas marcas, Mike, a floresta é selvagem e irregular. Não sei se você reparou, mas existem traços na neve que se assemelham àqueles rastros na areia deixados pela água de um rio que transbordou ou pelo vento. Qualquer coisa pode ter gerado aquelas três marcas às quais você se refere, inclusive seu cérebro, ao ver uma coincidência no chão.

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— Ah, sim, agora eu estou imaginando coisas?

— E como não? Temos dados concretos nesta casa que Mikolaj estava aqui até poucas horas antes de chegarmos. As malas arrumadas mostram que ele se preparava para partir. A mesa desarrumada mostra que ele ainda não estava pronto. Não me parece que alguém invadiu ou arrombou este lugar. Precisariam de um helicóptero para vir e um helicóptero não pousaria aqui sem deixar marcas. Se viessem por terra, levariam dias e haveria rastros e resíduos significativos pelo caminho. Certamente Mikolaj saiu. O motivo? Desconhecemô-lo. Mas temos de encontrar este senhor logo — concluiu Woodson, coçando a testa e analisando outras folhas anotadas. — Eu já acho que Mikolaj pode ter sido sequestrado ou raptado. — Claro, e quem sequestraria ou raptaria um professor aposentado? — questionou Woodson, desacreditando que o amigo insistia em suas hipóteses.

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— Ele pode ter inimigos neste local. Não sabemos se existem comunidades anônimas por aqui. E se ele fez algo para alguém? Por que ele sumiu misteriosamente justo no seu último dia de trabalho? Será que ele tinha uma amante? Ou talvez ele não queira ver a família novamente. Ou pior: é ele quem não quer falar com a própria filha!

Antes que Woodson pudesse reagir ao comentário de Mike, eles ouviram um som grave e estridente vir de fora da casa. Assustaram-se, olharam para a porta. Já era noite. Mike carregava um rifle e Woodson colocou a mão na bainha de uma faca, pronto para puxá-la a qualquer momento. Eles ficaram em silêncio. Mike fitou Woodson apreensivo, que decidiu levantar-se e aproximar-se da porta. Woodson abriu a porta e Mike se posicionou atrás com a arma em punho. Woodson saiu com cuidado. Sua vista acostumou-se com a luz da Lua e das estrelas. Lentamente, caminhou ao redor da casa e não encontrou nada. Mike ficou vigiando a porta.

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— Deus do céu, o que era aquele som? — perguntou Mike após Woodson dar uma volta. Ao invés de responder ao amigo, Woodson manteve sua atenção no silêncio da noite e viu um brilho dentro do helicóptero. Ele fez sinal para Mike permanecer na entrada da casa.

No helicóptero, conferiu que o rádio estava recebendo uma chamada de comunicação.

— O que era, afinal? — perguntou Mike ansioso com o retorno de Woodson.

— Havia uma chamada, era o tenente dizendo que devemos localizar Mikolaj sem demora e que um helicóptero com reforços já está a caminho.

Mike estava apreensivo e agitado. Seus planos de passar o restante da semana com a família era ameaçado pelas inconveniências no trabalho.

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— Você tem alguma sugestão de como encontrarmos este professor o mais rápido possível?

Novamente, o barulho grave e estridente ecoou no ar, mas desta vez mais longe, e Woodson conseguiu localizá-lo: vinha da parte norte da floresta.

— Sim, talvez se seguirmos este som, poderemos achar Mikolaj — respondeu Woodson. — Mike, fecha a porta e venha — disse com voz baixa, olhar fixo ao norte; pegou sua lanterna da mochila e correu agachado em direção ao som.

— Espere! — clamou Mike atrapalhado com o rifle numa mão e a outra tentando localizar sua lanterna.

Eles entraram na floresta e caminharam em passos leves. À frente, um pouco para a esquerda, ouviram novamente o som. Desta vez conseguiram identificar melhor sua origem.

— Woodson, droga, Woodson, isso vai dar problema! — disse Mike assustado; segurou

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no ombro de Woodson para caminhar e vigiar os lados ao mesmo tempo.

— Calma, Mike. Desconfio que seja apenas um urso — inferiu Woodson, demonstrando satisfação ao seguir a fonte do barulho.

— Apenas um urso? “Apenas”? — indagou Mike ironicamente num tom alto.

— Silêncio, Mike! Quer atrair uma família toda de ursos?

Imediatamente, Woodson parou e fixou seu olhar para cima. Mike percebeu o movimento do amigo e viu algo brilhar no céu. Um fulgor constante, ora ofuscado pela neblina, ora brilhando com o sopro do vento.

— Woodson, aquilo não é uma estrela. — Não, está intenso e oscilante para ser. — Aquilo não é um avião. — Não. A luz não se mexe. — E também não é um helicóptero. — Não. Está tudo muito silencioso. — Meu Deus, Woodson, eu sabia, aquilo

é um OVNI!

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Desta vez foi Woodson quem fez barulho com uma gargalhada. Aves voaram, o som que seguiam voltou a ecoar mais forte e tiveram a sensação de que algo se aproximava. Woodson assustou-se. — Rápido, esconda-se neste buraco! — disse Woodson. Eles agacharam atrás de uma grande e côncava rocha que se parecia com uma pequena caverna. Mike segurava o rifle com força e buscava o ponto mais fundo da rocha para se esconder. Woodson, costas contra a rocha, olhava por cima dela para ver de onde vinha o som. Viu uma sombra passar entre as árvores e sumir em meio à neblina. Sentiu seu coração palpitar como nunca antes. — Eu vi uma grande sombra passar. Acho que era um urso e aquele som é de um urso — disse Woodson ao se acomodar no fundo da rocha com Mike.

— Está falando sério? — Sim — respondeu, secando o suor da

testa.

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Eles permaneceram em silêncio e esperaram que aquela sombra, fosse o que fosse, tivesse ido embora.

— Woodson, Mikolaj deve ter sido abduzido.

— Você realmente acha isso? — Claro! — disse Mike com tal

seriedade que Woodson nunca vira naquele olhar — O professor sumiu sem deixar marcas, não há resquícios de vida humana neste lugar, apenas estes ursos e aves. E, agora, aquela misteriosa luz lá na frente que acende e apaga.

Woodson, desinteressado na conclusão a que o amigo chegara, empunhou sua faca e levantou-se antes que Mike pudesse terminar seu raciocínio.

— Que está fazendo? — perguntou Mike.

— Vamos conferir aquela luz — respondeu Woodson, dirigindo-se ao brilho.

“Isto é uma má ideia!”, pensou Mike, criando coragem para seguir o colega.

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Caminharam mais preocupados com o que estava em volta do que com a própria luz. Chegaram numa grande árvore de onde a luz brilhava. Embaixo da árvore encontraram um par de botas de esqui. Woodson olhou para cima e ficou pasmo.

— É, Mike, seu OVNI transformou-se numa lanterna!

— Meu Deus, é apenas uma lanterna presa no alto da árvore. E o que ela está fazendo lá? E estas botas de esqui, que fazem aqui?

— Não sei, mas não é desta vez que seremos abduzidos — brincou.

Woodson escalou a árvore até o topo. Na lanterna estava impresso o nome de Mikolaj. Pegou-a e guardou-a na mochila. Ele ficou maravilhado com a vista lá de cima: ali era um lugar privilegiado para se observar a natureza local, pois podia-se ver, com a ajuda da Lua, na noite, grande parte do vale. O que mais lhe chamou a atenção foi um lago quase congelado. Pensou ter visto alguns vultos nos arredores. Ele forçou o olhar, concentrou-se para tentar

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distinguir melhor e seu comunicador pessoal tocou em sua mochila, dando-lhe um susto que quase o derrubou da árvore. Atendeu ao chamado, conversou pelo aparelho, desceu, tirou um mapa da mochila e passou algumas orientações para o outro lado da chamada.

— Vamos, Mike! — disse, após finalizar a conversa pelo comunicador e carregar as botas de esqui. — Lá de cima eu vi um lago com alguns vultos.

— Vultos de novo não — resmungou Mike. — E o nosso reforço?

— Acabei de passar as coordenadas, estão chegando.

Correram por uma longa e inclinada descida e em pouco tempo alcançaram o lago. Era um lago grande, cercado por árvores e natureza. Do outro lado da margem, onde a floresta se tornava mais densa e viva, viram diversos ursos, a maioria descansando. Evitaram apontar as lanternas para aquela margem e se puseram a analisar as proximidades.

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— Bem, então são ursos, exatamente como eu imaginei — disse Woodson.

— É, desta vez você acertou — consentiu Mike. — Mas, um momento, acho que encontrei algo! — disse empolgado, levantando-se e caminhando em direção à margem próxima.

Woodson observou o amigo ir até a margem e pegar uma bolsa. Levantou-a e mostrou-a para o Woodson. Era uma bolsa de couro grande e marrom. Mike abriu-a. Havia comida, um caderno e lentes fotográficas. Abriu o caderno e viu o nome de Mikolaj na contra-capa. Fuçou mais um pouco e encontrou um spray de odor para espantar animais. Retornou os pertences para a bolsa e colocou-a no ombro.

Mike continuou vasculhando as margens do lago quando Woodson sentiu uma sensação estranha. Virou-se para trás e viu um grande urso a poucos metros dele. Apavorou-se. Não sabia se pegava sua faca ou se jogava longe a lanterna ou se corria ou se gritava. Mesmo no limiar da surpresa, lembrou-se que correr seria

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inútil, que enfrentar o urso com uma faca também seria banal, e que o ideal seria manter-se imóvel e mover-se apenas quando o urso não estivesse olhando para ele, o que seria difícil de acontecer, pois o urso encarava-o friamente. Apesar do medo estampado em sua face, conseguiu permanecer imóvel. Mas o urso deu um passo e fungou com um gemido. Woodson andou inseguro para trás. O urso deu mais alguns passos, levantou-se e rugiu; levantou tão alto em direção à Lua que Woodson julgou ter visto uma coroa na cabeça do grande animal. Naquele momento, Woodson não pensava em outra coisa a não ser correr. E assim o fez. Correu muito e o urso o perseguiu. Ele ouvia os passos do urso mais próximos, e mais próximos, até sentir a respiração do urso em sua nuca. Ele não via mais árvores, neve ou lago; via apenas a imagem de sua família e do último jogo de futebol a que assistira no estádio: na ocasião, seu time ganhou com uma virada histórica, quando ninguém mais acreditava na vitória, nem ele próprio. E era uma virada desta que ele mais

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desejava naquele momento. Então ele ouviu um estouro de tiro e o urso gritou. Woodson tropeçou, caiu e olhou para trás com a faca na mão. O urso estava no chão inconsciente. Conforme a neblina passava, Mike aparecia atrás do urso com o rifle em mãos. Woodson levantou-se e correu para abraçar o amigo.

— Meu Deus, Mike, o que você fez? — Era você ou o urso. Optei por ti. Fiz

bem? — perguntou Mike assustado. — Bem, só o tempo responderá a esta

pergunta — respondeu Woodson, ofegante sem perder o humor, mas com os olhos lacrimejando.

Observou o gigante urso no chão e agradeceu por não ter sido morto pelo animal. Logo ouviram o som do helicóptero com o reforço.

— Precisamos sair desta área antes que venham mais ursos — disse Woodson, tentando recuperar-se de um dos maiores sustos que já levara em sua vida.

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Quando Mike abaixou-se para pegar sua lanterna, viu algo colorido no chão no trajeto mais longe que a luz alcançava.

— Woodson, espere um pouco, veja ali na frente! — disse Mike, apontando a lanterna para o ponto colorido.

Aproximaram-se e surpreenderam-se com o que viram: um senhor caído na neve. O lado direito da face estava brutalmente machucado e havia sangue espalhado pelos arredores. Seu rosto pálido e frio, ao menos a parte esquerda que lhe era reconhecível, e seu cabelo assemelhavam-se com o retrato de Mikolaj na ficha de Mike.

— Acho que encontramos Mikolaj — disse Mike perplexo.

Alguns barulhos de ursos vieram do outro lado da margem. O som do helicóptero se aproximava e Mike não tardou em soltar um sinalizador em direção ao céu.

— Parece ter levado um golpe de algum urso — disse Woodson, apontando para as feridas. — Há quatro cortes paralelos e

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simétricos profundos que podem ser as garras do animal.

O professor vestia roupas esportivas de inverno. Próximo ao corpo estava um spray e uma a câmera fotográfica. Mike manuseou a câmera fotográfica com cuidado e conferiu que ela estava ligada.

— Provavelmente ele fotografava antes de ter sido atingido. A revelação do filme poderá dar dicas aos peritos — sugeriu Mike, preocupado com alguma nova surpresa.

Pelas coordenadas e com a ajuda do sinalizador que Mike soltara, a equipe de apoio chegou num grande helicóptero de batalha, um MH-60L DAP, com capacidade para carregar tropas. Pousaram a poucos metros da margem, numa área aberta. O barulho do helicóptero espantou alguns ursos do outro lado da margem. O frio não incomodou os cinco soldados e o médico que foram prestar ajuda.

— Rápido, precisamos ser rápidos, há ursos por todo lado — disse Mike agitado.

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A equipe aproximou-se do corpo de Mikolaj e Mike ficou vigiando. Woodson conversou brevemente com dois soldados. O médico analisou Mikolaj e concluiu que estava morto há algum tempo. Decidiram colocá-lo no helicóptero para evitar o risco de ataques de ursos. A equipe fez registros fotográficos do local e reuniu os objetos que estavam com Mikolaj. Com a ajuda de Woodson e Mike, colocaram o corpo no helicóptero e voaram para a cabana.

No helicóptero, eles conversavam com os soldados sobre o que descobriram até aquele momento.

— Então, conforme os senhores sugerem —, disse um soldado que estava no comando do resgate —, Mikolaj saiu de madrugada para encontrar-se com os ursos uma última vez. Ele estava com seus instrumentos de trabalho: mochila equipada, câmera fotográfica e o spray para repelir ursos. A lanterna encontrada no topo da árvore possui o nome de Mikolaj gravado nela e, segundo tua hipótese, ele estava

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buscando um bom ponto de visão, ou talvez tentou esconder-se de algum urso, mesmo sabendo que esconder-se destes animais em árvore é inútil. Pelas botas de esqui terem sido abandonadas embaixo da árvore, ele foi capturado por um urso, que o deixou inconsciente no ataque e o arrastou até a margem do rio, conforme podemos verificar os diversos rastros naquele lugar.

— Sim, penso ter acontecido isto — concordou Woodson.

— E você, que acha? — perguntou o soldado a Mike.

— Eu acho que eu tive um péssimo dia! — reclamou Mike. — O tenente disse que teríamos uma missão tranquila antes de voltarmos para casa no feriado, apenas buscar um professor no meio do Alaska, passeio sossegado num lugar paradisíaco. Besteira! Quase morremos aqui! — Após uma pausa, ele concluiu: — Bem, enfim, sobre Mikolaj, concordo com a hipótese de Woodson.

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O soldado em comando tomou nota e reportou a missão ao tenente.

Lá do alto, Woodson tinha em mente a triste cena do professor morto; perguntou-se por que Mikolaj também não teve um amigo para salvá-lo. Mike, enquanto isso, sentia-se herói, sem deixar o mau humor.

Ao pousarem, Mike foi para o helicóptero arquivar os dados da missão e Woodson, juntamente com os demais soldados, encarregou-se de limpar a casa e retornar os pertences de Mikolaj à sua família. Woodson fez questão de conferir se cada item estava sendo cuidadosamente carregado. Guardou o diário de Mikolaj em um lugar de destaque na caixa de objetos pessoais do professor. Limparam o local, carregaram os pertences no helicóptero e partiram diretamente para o Estado de Montana. Woodson viu o helicóptero levantar voo e faz uma prece pela família; aproveitou e lembrou-se de seus filhos ao retornar para seu helicóptero, onde Mike o aguardava.

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— Uau, que noite! — disse Woodson, tomando sua posição de piloto e olhando para a neve que começava a cair lá fora.

Mike guardou o celular no bolso. — Estou feliz por termos saído vivos

desta. Mas triste pela morte do professor. Infelizmente coisas ruins assim acontecem.

— Nem me fale mais disto — comentou Mike com aquele olhar preocupado e perdido no horizonte novamente. Após algum silêncio, prosseguiu: — Minha filha enviou-me esta mensagem dizendo que tem uma coisa muito importante para falar comigo. Não sei o que é e estou com medo de saber, ainda mais depois do que passamos hoje. Como você disse: todo desastre chega de surpresa!

— Ora, não espere por isso, Mike — disse ao levantar voo. — Primeiro, porque você não sabe o que é; não adiante desastres na sua cabeça. Segundo, independente do que aconteça, a diferença está em como reagimos diante de tais situações. Não é a primeira vez que você fica reclamando da vida e esperando o

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pior acontecer. Lembra-te como nos conhecemos na grande missão da América do Sul? — Sim, nossos batalhões se juntaram e no final do dia você me ofereceu tua água.

— Ofereci-te porque você não parava de reclamar do calor!

Mike ficou desconcertado. Agradava-lhe a atenção de Woodson, mas desta vez percebera que, em muitas vezes, a atenção que conquistava não era suportável.

— Veja este tal Mikolaj —, prosseguiu Woodson —, trabalhava com ursos há décadas, conhecia bem o animal e sabe-se lá o que o levou a sair atrás de um urso justamente no primeiro dia de aposentadoria oficial e no dia que retornaria à sua casa; deu no que deu.

— Viu? É disso que estou falando. Agora só falta você me dizer que ele morreu feliz, que pelo menos ele tinha paixão pelo que fazia e morreu fazendo o que gostava, e blá blá blá — Mike faz uma breve pausa. — Sabe o que eu acho? Acho que minha filha, minha

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princesinha, deve estar com um “urso” na vida dela. E vai dar problema!

— É, verdade, vai dar problema mesmo — provocou Woodson. — Mas você tem um rifle em mãos! — concluiu, observando o nascer do Sol nas Montanhas Rochosas.

Mike espantou-se com tal observação. — E, falando nisso, Mike, como está o teu time?

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Garçom de muitos

Houve uma época em que o restaurante era o mais famoso da grande cidade de São Paulo. Triunfara nas décadas de 70 e 80, onde mesas eram disputadas com dias de antecedência para um jantar. Hoje as coisas são diferentes. “Esta casa existe desde 1968 e apenas eu e mais dois funcionários estamos nela desde sua fundação”, disse o garçom. Seu nome era Pádua. Servia aos clientes por mais de meio século. “Os donos e sócios-proprietários já foram trocados diversas vezes. Mandamos todos os patrões embora e ficou só quem quer trabalhar”, brincou. O restaurante, com sua nova administração, buscava resgatar os anos de

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ouro do empreendimento. Apostavam em novas propagandas, novas estratégias de culinária e novos atrativos para conquistar clientes. No entanto, alguns frequentavam aquele lugar não apenas pela comida, mas também pelo atendimento de Pádua. As mesas do canto do aquário eram as mais requisitadas, pois sabiam que era o lado servido pelo garçom. “Foi um prazer ver-te novamente”, disse um para Pádua. “Sem o senhor, a pizza não tem o mesmo sabor”, disse outro. Ele ficava grato pelas saudações e disfarçava sua timidez ajeitando os óculos grossos e folheando seu caderninho de pedidos como se não perdesse a concentração no trabalho. A verdade é que ele apreciava os elogios e sempre deixava escapar um comentário emotivo após o afago recebido. “Que bom que gostaram do serviço. Quase que vocês não me viam hoje, por pouco eu não voltei para casa devido a uma dor de cabeça. Mas logo encontrei o problema. Eu estava apertado para ir ao banheiro. Como eu tomo remédio para pressão e estava segurando, deu-

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me uma forte dor de cabeça. Aí fui ao banheiro e logo fiquei bom”, desabafoum franzindo a testa mas sem perder o bom humor, que seguia com uma piada. “Querem mais vinho? Ele está morno? Se o vinho estiver quente, pode mandar pra mim que eu darei um jeito nele e o beberei todo”. Seu atendimento era eficiente e divertido, rápido e atencioso. Sabia de cabeça cada pedido. “Já outra Coca-cola? Olha que você está em fase de crescimento, garoto, só não pode crescer para os lados”, disse para um rapaz que pediu seu terceiro refrigerante. Ele não era um garçom comum. Aposentara-se e continuava a trabalhar pelo simples prazer em servir. Alguns clientes não percebiam a paixão de Pádua; já outros, quando a percebiam, tratavam-no como se fosse um querido membro familiar, oferecendo-lhe generosas gorjetas e abraçando-lhe com carinho tal que encantaria qualquer conhecido. “Acredita que tem gente que me oferece uma bebida ou me convida para jantar com eles?” Estas pessoas e reações, que correspondiam com o serviço ao

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qual o garçom se propunha realizar, ajudavam-no a se sentir bem e realizado. Ao final da noite, os garçons e funcionários estavam cansados e apressados para retornarem aos seus lares, mas Pádua exibia um sorriso único e parecia não ter pressa para retirar as mesas e limpar o salão. “Enquanto a morte não chegar, é porque ainda sou útil e a vida precisa de meus serviços”, dizia de peito cheio. E, aos poucos, aquele restaurante resgatava sua antiga clientela e conquistava novos frequentadores, até a administração perceber que eram os antigos, zeladores da tradição e requintes dos bons costumes, que garantiam o sucesso do serviço. Era Pádua. Garçom de muitos anos, garçom de muitos pedidos, garçom de muitos clientes. Garçom de muitos.

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[ Poesias ]

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I Aqueles com os quais convivi, e aqueles por quem vibrei. Carrego, não sei porque, uma multidão que uma vez amei.

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II Meu amor é destemido, intrépido, audaz. Não desanimado ou intimidado. Eis meu amor. Senão, seria amor? Pois na manhã faz sol. Lindo céu azul. Amanhã, outro sol. O mesmo, só que agora com nuvens brancas. Outro dia, tons de cinza. Chuva fina. São Paulo é assim. Mudança de estação, mais um inverno. Outono é solidão, que só traz dias mais quietos. Há quem diga que a natureza corre. É verdade, o planeta gira. A fila anda. O semáforo abre.

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O trem passa. E outro também passa. As pessoas andam. E as palavras desaparecem no tempo. Mas o amor, se é amor, não cai fora fica dentro eterno no momento fugaz no passado e aberto no futuro.

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III Quando penso sobre aquele que é o Criador pergunto-me: “Por que tudo isso? Um sorriso; ao final, dor?” Sinto que pouco, muito pouco, posso falar Mas sim, acredito, não nego, a vida é um constante confessar. Um nome santo, antigo, por meus ancestrais me foi nomeado. Este acaso, aqui desde o início, o divino até agora não revelado. Torre de Babel, diferença de credos,

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de um mesmo Deus nomes de outros dialetos. Perguntou o sábio de Unamuno Para que se fechar, em si, menino? distante do mundo? distante da vida? Se somos aqui, você e eu, Se sou judeu, se sou cristão, que importa? Sou humano e não a carcaça de uma opinião. Sei que ela, meu amor, tão especial como alguém cantou na alegria e no gueto da dor ela se esqueceu de quem a amou. Fuga, falta algo, algo que não ouso pronunciar. E do outro lado falta ela minha querida rosa do mar.

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Para ele, Deus é consequência Para ela, causa da livre ação Que somos, se somos urgência Deus é a carência de união.

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IV Sozinho, sem ar solidão impossível um par. Quieto, em dor amanhã esperança de um amor. Ingrato, sem razão sempre desejo a comunhão. Agora, e além viver, é o que peço, Senhor. Amém.

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V espaço quero quero e s p a ç o espero, desespero espero encontrar um pouco de e s p a ç o preciso de e s p a ç o que e s p a ç o ? espaço, para despertar e desperto espero meu e s p a ç o esperançoso, quebro o e s p a ç o

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e s p a ç o d o s e r e s p a ç o d o s i l ê n c i o e s p a ç o d a e s p e r a n ç a espero a esperta p a r a d a n ç a r encontrarmo-nos no e s p a ç o e acordar o sonho em um abraço voo no e s p a ç o v o c ê a q u i , eu a í n ã o l o n g e , busco constante já falei, meu e s p a ç o e você? f i c a. . . perto, pertinho deixa o e s p a ç o s e r e s p a ç o se você voltar, e o amor puder ser

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nosso único pedaço de e s p a ç o.

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VI O amigo que amigo do outro lado do rio se tornara na sombra do inimigo! por causar em mim em nós o desafio de partir a fio a nado, a solidão de uma memória que já não conhece a graça pois dói -- que dor! pois deixa -- que abandono! a glória -- que imprudência! de não querer o que se quis e querer o que não se quis

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a este só cabe a indecisão em suas mãos de volta no coração agora, com razão, que ironia desejo inveja e ferida a distância o trai e nos trairia se não formos ao final amigos.

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VII Incondicional existência toca-me sem exigência fé é abertura, e não crença que desperta nova vivência Há uma dinâmica na vida a saber, ela também é crer Um bem constante Adeus para poder viver Ela promove mudança ação em última pendência O drama da palavra calma fé é a preocupação suprema A fé permite viver, caloroso

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o rio que flui dentro de mim tranquilo e harmonioso uma beleza sem início e sem fim Incorpora a ansiedade, a culpa e talvez o medo para viver, sem idade, viver um novo enredo Fé, posso ter fé sem saber quem tu és? E posso saltar sem saber quem Ele é? Pois não basta acreditar, não basta crer para a fé precisa-se ter a coragem de ser.

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Fotografia da quarta capa por Vitor Chaves de Souza

Modelo: Nicolas Antonoff

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