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Impulso, Piracicaba, 16(41): 61-73, 2005 61 Sartre: anarquista? SARTRE: ANARCHIST? Resumo Sartre foi um dos mais influentes filósofos do século XX. Militante de causas políticas e sociais, não se filiou a nenhum partido político. O que este artigo faz é buscar em sua obra, tanto no período existencialista quanto no marxista, indícios de sua aproximação com o anarquismo. A razão disso é que, por duas vezes, em entrevistas, o filósofo afirmou-se anarquista. E tais indícios são encontrados, seja em sua defesa de uma moral autônoma e libertária seja em sua discussão em torno da revolta. Palavras-chave SARTRE ANARQUISMO POLÍTICA. Abstract Sartre was one of the most important philosophers of the 20 th century. Militant of political and social issues, he was never a member of any political party. This paper aims to search in Sartre’s works, both in the existentialist and Marxist periods, evidences of his proximity with Anarchism. The reason is that in two moments, in interviews, he presented himself as an anarchist. These evidences are found, both in his defense of a moral and libertarian autonomy, and in his discussion on the subject of revolt. Keywords SARTRE ANARCHISM POLITCS. SÍLVIO GALLO Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) [email protected] WALTER MATIAS LIMA Universidade Federal de Alagoas (UFAL) [email protected] imp_41.book Page 61 Tuesday, November 29, 2005 9:45 AM

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Sartre: anarquista?SARTRE: ANARCHIST?

Resumo Sartre foi um dos mais influentes filósofos do século XX. Militante decausas políticas e sociais, não se filiou a nenhum partido político. O que esteartigo faz é buscar em sua obra, tanto no período existencialista quanto nomarxista, indícios de sua aproximação com o anarquismo. A razão disso é que,por duas vezes, em entrevistas, o filósofo afirmou-se anarquista. E tais indíciossão encontrados, seja em sua defesa de uma moral autônoma e libertária seja emsua discussão em torno da revolta.Palavras-chave SARTRE – ANARQUISMO – POLÍTICA.

Abstract Sartre was one of the most important philosophers of the 20th century.Militant of political and social issues, he was never a member of any politicalparty. This paper aims to search in Sartre’s works, both in the existentialist andMarxist periods, evidences of his proximity with Anarchism. The reason is thatin two moments, in interviews, he presented himself as an anarchist. Theseevidences are found, both in his defense of a moral and libertarian autonomy, andin his discussion on the subject of revolt.Keywords SARTRE – ANARCHISM – POLITCS.

SÍLVIO GALLOUniversidade Estadual de

Campinas (Unicamp)[email protected]

WALTER MATIAS LIMAUniversidade Federal de

Alagoas (UFAL)[email protected]

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O homem é livre para comprometer-se, masnão é livre a menos que se comprometa

a ser livre.

SARTRE, 1960

ean-Paul Sartre foi, sem dúvida alguma, um dos mais im-portantes intelectuais militantes franceses do século XX.Próximo dos comunistas, com toda a agitação da políticafrancesa desde os anos 1930, jamais se filiou ao partido,tendo sido duro crítico do stalinismo. A partir dos anos1960, aproximou-se dos grupos maoístas.

Assim, podemos identificar uma filiação política deSartre? Anarquista, talvez? É certo que ele também nun-ca se engajou no movimento anarquista francês. No en-

tanto, em pelo menos duas oportunidades, declarou-se anarquista: umadelas, logo no início dos anos 1970, quando gravou uma longa entrevista,em seu apartamento – apresentada aqui no Brasil pela TV Cultura, anosatrás, com o título Sartre por Sartre. Em certo momento dessa longa en-trevista, Sartre e Simone de Beauvoir, relembrando sua militância política,dizem-se anarquistas, uma vez que tinham em mente uma sociedade semEstado e jamais haviam se filiado ao Partido Comunista Francês (PCF),rumo seguido pela quase totalidade dos intelectuais franceses de esquer-da. A segunda vez em que Sartre assumiu-se como anarquista foi numadas últimas entrevistas concedidas próximo de sua morte, quando já es-tava bastante doente, meses antes de seguir para o hospital e do qual ja-mais sairia. Essa entrevista vem publicada, ao fim deste artigo, nesta edi-ção da Impulso.

O pensamento sartriano é afirmador da liberdade e contrário a to-dos os totalitarismos. Mostra ao homem como ele é submisso – lembre-mos que Sartre viveu no entre-guerras, foi combatente na II GrandeGuerra e participou da Resistência Francesa e de todos os grandes acon-tecimentos políticos do pós-guerra –, mas não que ele deva ser submisso.A obra de Sartre é uma constatação da condição abjeta do homem, nãoum sistema moral. O reconhecer-se submisso, inútil, sem sentido podeser o primeiro passo para que o indivíduo se engaje na existência, assu-mindo uma práxis libertária como ser-no-mundo. Neste artigo, procura-remos destacar, das diversas fases da obra sartriana, pontos capazes dejustificar filosoficamente sua filiação ao anarquismo ou, pelo menos, suascontribuições filosóficas importantes para pensar o anarquismo e a açãopolítica libertária em nossos dias.UMA MORAL AUTÔNOMA E LIBERTÁRIA

Em princípio, trabalharemos com os conceitos desenvolvidos emL’Étre et le Néant (O Ser e o Nada), que teve sua primeira edição francesa

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em 1943, quando Sartre possuía 38 anos de idade.No entanto, nos cadernos de seu diário de guer-ra,1 escritos entre 1939 e 1940, já notamos os te-mas fundamentais, o núcleo conceitual a gestar aobra, que, segundo o próprio Sartre, já estava sen-do escrita. Ela apresenta como subtítulo Ensaiode Ontologia Fenomenológica, mostrando de an-temão que o objetivo do filósofo é o estudo doser, e seu caminho, a fenomenologia. Nosso des-taque será para a questão da moral e da liberdade,da qual parece ser possível extrair importantes as-pectos para o anarquismo.

A moral cristã ocidental funda-se, genealo-gicamente, no decálogo de Moisés. Com basenessas leis, toda formulação adquire autoridadedivina; os valores na moral cristã são, pois, valoresabsolutos com uma fundamentação metafísica.Ao ter de agir individual e socialmente conformeregem esses valores, o homem vê sua existênciacondicionada e não é, portanto, livre. Jean-PaulSartre insurge-se contra esses valores absolutos,afirmando que a liberdade deve ser o único e su-premo valor do homem.

A conhecida afirmação de Dostoievski, emOs Irmãos Karamazovi, de que “Se Deus estámorto, tudo é permitido” parece fundar a éticasartriana, embora uma análise mais apurada mos-tre que sua reflexão não passa por aí. Deixando delado a discussão em torno da existência de Deus,Sartre mostra que a questão moral não é uma re-alidade do âmbito da divindade – supondo suaexistência concreta –, por ser um problema estri-tamente humano, com existência apenas emmeio a homens.

Para compreender a fundamentação dessamoral humana, faz-se necessária, como preâmbu-lo, uma brevíssima incursão pela antropologiasartriana que aparece em O Ser e o Nada. Valen-do-se da terminologia hegeliana, Sartre apresen-ta-nos o ser do homem dividido em um corpoopaco a si mesmo, que não se percebe, habitando

o mundo dos objetos – o ser “em-si” – e numaconsciência, transparente, reflexiva – o ser “para-si”. Não vejamos aqui, entretanto, o dualismopsicofísico a cortar a filosofia clássica de Platão aDescartes, com sua res cogitans e sua res extensa;na perspectiva sartriana, o meu “eu” como cons-ciência absoluta não possui ou habita um corpoque lhe serve de prisão, mas eu sou um corpo, namesma medida em que sou uma consciência.

O em-si está cheio de si mesmo, é aquiloque é, absoluta identidade. Desse modo, nãopode conhecer a alteridade: jamais verá algo quenão seja ele mesmo; o em-si jamais perceberá ooutro como outro. O para-si, por outro lado, éaquilo que não é; em outras palavras, o para-siafirma-se pela negação. Sua consciência de simesmo advém do fato de perceber o outro comonão sendo ele mesmo. O para-si não conhece aidentidade, nunca será idêntico a si mesmo, poisseu reconhecimento dá-se na negação da imagemalheia como a sua própria. É um ser que só se co-nhece como reflexo, jamais como “si-mesmo”:ele não conhece aquilo que Sartre chama de ipsei-dade, o ser si mesmo. Em-si e para-si existemcomo distância, mas nunca separados: ser reflexi-vo por excelência, o puro em-si é a negação dohomem; por outro lado, também a idéia de umaconsciência pura, desencarnada, absoluta nãoprocede – seria justamente o conceito de Deus.

O homem é um ser bisonho, uma aberra-ção da natureza. O absurdo de sua situação sópode ser expresso por um paradoxo: o homem éuma “unidade dual”; não é nem apenas corponem somente consciência, e a exclusão de qual-quer uma dessas duas instâncias seria a negaçãode sua própria condição de homem. Seu ser éuma união de contrários: a consciência é o ser danegação, o em-si é o ser da afirmação; dialetica-mente, o homem é uma síntese, mas uma sínteseainda não resolvida, uma perpétua luta internasem possibilidade de trégua e, não conseguindotranscender essa luta, ele se angustia.

Mas qual a razão dessa inglória batalha semtrégua e sem possibilidade de vencedores? Porque o ser humano não aceita sua condição cindi-da e tenta selar a cisão? O que distancia em-si e

1 Nem todos os cadernos desse diário escrito pelo filósofo no front daII Guerra Mundial, servindo como oficial de comunicações, foramencontrados e uma coletânea irregular daqueles disponíveis foi publi-cada no Brasil sob o título Diário de uma Guerra Estranha. Cf. SAR-TRE, 1983a.

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para-si? O que preenche a brecha entre o corpo ea consciência? A resposta é simples: em-si e para-si são distanciados pelo nada que jamais permiteseu encontro. Nesse sentido, Sartre afirma que épelo ser do homem que o nada vem ao mundo;é apenas pelo ser do homem que aparece a nega-ção, por ser ele um “vazio de ser”. Fonte da ná-usea diante da existência e da angústia de ser, ohomem desespera-se, quando percebe jamais po-der preencher esse vazio. O desejo secreto e irre-alizável do humano é ser Deus: em-si/para-si,consciente/inconsciente de si ao mesmo tempo;um ser sem espaços. Na inútil e desesperançadabusca de preencher o vazio, de negar a negação,sendo afirmação plena, o homem faz-se projeto,lança-se ao futuro. Pensar e agir são duas formas,ou melhor, duas tentativas de anular o angustian-te nada de seu ser.

Outra característica da consciência é a fa-culdade da imaginação, a capacidade de escapar asi mesma, de projetar-se no futuro, em meio aseus outros possíveis. Segundo Sartre, essa parti-cularidade da consciência de poder sair de si fazcom que exista a vontade. A estrutura da vonta-de, por seu lado, fundamenta-se no ato datranscendência, no ir além de si e do objeto.Como transcendência, a vontade só pode ter lu-gar no mundo, em meio a uma infinidade de ob-jetos, pois o ato de transcender pressupõe algo aser transcendido. A vontade apresenta-se, pois,como um ser-no-mundo, mas como um “ser-pa-ramudar-o-mundo”, pois implica uma transfor-mação ou, pelo menos, um desejo de mudança.

A existência, no homem, da faculdade davontade ampara-se no fato de ele constituir umser imperfeito, que busca na transcendência, noir-além, a sua realização, a sua plenitude. O fun-damento da vontade é a necessidade humana depreencher-se, de buscar sua identidade constru-indo-se, fazendo-se homem a cada momento, lu-tando desesperadamente contra sua bisonha con-dição de ser fraturado. A vontade original é o de-sejo de cobrir as distâncias que a consciência ins-taura em nosso ser.

A ação humana aparece, pois, como impli-cação direta da vontade, tentativa encarnada de

satisfazê-la. Como exteriorização, ela se dá porcertos meios, visando alguns fins, que são o pró-prio assunto do debate acerca da moral. Em seudiário de guerra, Sartre anota a questão: sendo amoral um sistema de fins, a que fim deve dirigir-se a ação do homem? A um fim seu, próprio, in-terno ou a um fim determinado exteriormente?Em outras palavras, a moral como fundamenta-ção da ação humana deve ser autônoma ou hete-rônoma?

Os fins como tais são devir, têm sua exis-tência apenas como futuro; mas, ao mesmo tem-po, são como que atirados, lançados para a reali-dade humana presente, reclamando sua realizaçãoimediata, aqui e agora. Desse modo, só a realida-de humana pode ser ela mesma seu próprio fim,pois torna-se realidade concreta apenas no devir,no contínuo realizar-se, nunca estando pronta eacabada (isso se deve ao fato de ser o homem umser que se faz a si mesmo). A realidade humanaestá sempre no futuro, ela é seu próprio sursis, seupróprio distanciamento.

Por ser a moral decorrente, ação que, porsua vez, se fundamenta na vontade só possível deexistir em seres finitos e limitados, apenas temsentido falar em uma moral estritamente humana,nunca numa moral divina ou numa moral de ani-mais; no primeiro caso não há a finitude humana,ao passo que aos segundos falta a transcendênciada consciência. A moral é uma realidade “humana,demasiado humana”, para parafrasear Nietzsche,e é um problema exclusiva e especificamente hu-mano. Assim, Sartre responde à questão posta nodiário: a ação humana só pode dirigir-se para umfim interno, puramente humano. A única moralpossível é a moral da autonomia.

Em O Ser e o Nada, Sartre desenvolve umaanálise do ser do valor. De fato, essa análise éuma retomada do trabalho já desenvolvido emsuas anotações no diário de guerra, em especialdos conceitos em torno do problema da vonta-de. Em sua concepção, valor e vontade apresen-tam a mesma estrutura ontológica. Se nós se-guirmos as trilhas dos moralistas clássicos, quevêem no valor algo que, ao mesmo tempo, é in-

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condicional e não é, o ser do valor parece esca-par-nos, sendo incaptável:

O valor é, pois, incaptável: se o tomamos como ser,corre-se o risco de desconhecer totalmente sua ir-realidade e fazer-se dele, como os sociólogos, umaexistência de fatos entre outros fatos. Neste caso, acontingência do ser mata o valor. Mas, ao contrário,se não se tem olhos senão para a idealidade dos va-lores, deles será tirado o ser; e, sem o ser, desmo-ronam.2

Sartre defende que a consistência do ser dovalor não está em ser posto, ser dado, e sim, poroutro lado, ser aquilo através de que um sertranscende seu próprio ser. Poderíamos dizer,então, que o valor é o ser que permite a vontade,é o seu motor e, em conseqüência, o impulso daação humana. Não sendo o valor algo dado, ab-soluto, com o qual nos defrontamos, mas o mo-tor da transcendência e veículo da vontade, per-cebe-se, mais uma vez, a impossibilidade, naperspectiva sartriana, de uma moral heterônomaque vise fundar normas e leis em valores absolu-tos e abstratos, como a moral cristã; só podemosfalar em moral autônoma, libertária, apoiada naação individual.

O valor é, para Sartre, a ausência da totali-dade que preencheria o ser, ou melhor, a falta paraque seja alcançada a realidade e a plenitude de ser.Assim, o para-si, a consciência não existe diantedo valor, como acontece ante o objeto na relaçãode conhecimento (sujeito-objeto), pois o valorfaz parte da própria estrutura do ser da consciên-cia, é uma característica interna de seu ser. Essefato aparentemente simples traz conseqüênciasextremamente importantes para o terreno moral,porque não pode existir uma consciência reflexi-va que seja, em seu desvelamento, consciênciamoral pelo simples fato de ser consciência, umavez que seu próprio aparecimento é o desvela-mento do valor – falta absoluta – como consti-tuição de sua estrutura. Os valores podem, pois,ser ou não objeto da atenção de minha consciên-cia – contemporaneamente sendo sua estrutura –

, mas nenhuma consciência será moral pelo sim-ples fato de ser consciência.

Por outro lado, sendo parte da estrutura daconsciência, os valores nunca poderão ser abso-lutos universais, mas serão sempre criações parti-culares, individuais. Sartre diz que é preciso aban-donar aquele “espírito de seriedade” que nos faztomar os valores como dados e transcendentes,absolutos, bons em si mesmos e, portanto, cau-sadores do bem. Uma moral fundada nesses va-lores é uma moral de “má-fé”, pois estamos rece-bendo uma orientação externa, estamos enganan-do a nós mesmos. A “má-fé”, para Sartre, é oauto-engano, é agir segundo uma imagem abstra-ta e alheia, e não de acordo com a afirmação donosso próprio ser. A “má-fé” pode ser vista comoo veículo pelo qual as ideologias nos dominam;resulta do terror da consciência que se percebecomo falta, sem identidade, e consiste no assumirde identidades falsas que nos dão uma tran-qüilidade enganosa.

Os valores não são abstratos, transcenden-tes: nós próprios os inventamos. Isso quer dizerque somos nós mesmos que damos sentidos àsnossas vidas; e esse sentido por nós escolhido énosso valor: a falta que buscamos completar paraa nossa realização, nos vários momentos de nos-sa existência. Impossível não perceber, aqui, umeco de Nietzsche e de sua Genealogia da Moral.O único valor para o homem é, então, a realida-de humana, pois tudo o que ele faz é a constru-ção de sua realidade, de sua vida. Por querer serseu próprio fundamento – não poderia ser ne-nhum outro –, a realidade humana é profunda-mente moral.

Sem o mundo, sem o homem, nunca have-rá valor: eis a nossa conclusão básica. As conse-qüências políticas são bastante claras: o valormetafísico é uma abstração irreal usada com fina-lidades ideológicas de manipulação das consciên-cias e da realidade humana. Desde a aurora dostempos históricos, legisladores morais de todosos matizes nada mais fizeram do que aviltar a li-berdade humana em nome de um poder absolutoe da exploração. Sua ação sempre foi facilitadapela angústia existencial que sentimos diante do2 Idem, 1981a, p. 145.

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nada de nosso ser e, para fugir a ele, aderimos –de “má-fé” – a qualquer identidade externa quenos é oferecida pelos ideólogos de plantão. Emnosso íntimo, porém, sabemos que essatranqüilidade conseguida com a identificação so-cial – heterônoma – é falsa, e é a coragem deabandoná-la que fundamenta algumas revoluções– não todas, pois muitas são uma nova forma deexploração ideológica externa – e resgata a digni-dade humana em nossa autonomia.LIBERDADE E AÇÃO: UMA MORAL CONCRETA

O sentido por nós escolhido para a vidaserá o nosso valor, e a escolha é a própria afirma-ção do valor escolhido. Obviamente, escolhemossempre o bem, ou melhor, aquilo que julgarmosser o nosso bem. Mas escolhemos a nós mesmos,tomamos a nossa própria realidade como nossovalor. Afirmamos, dessa maneira, que nosso bemé a nossa própria realização. Mas o fato de eu es-colher a mim mesmo como homem implica mi-nha escolha por toda a humanidade, pois nãoexiste homem abstraído do mundo e da socieda-de. Ao me realizar, estou realizando toda a huma-nidade e, assim, o bem que escolho para mim de-ve, necessariamente, ser o bem para o outro, pois,se não realizo a humanidade, estou negando amim mesmo como homem.3

A ética sartriana significa uma revolução naética tradicional. Nesta, os fins definem os atoshumanos, devendo ser fundados em valores ab-solutos; na visão do filósofo francês, por outrolado, são os atos humanos que definem os seusfins e os seus meios; a ação (decorrente da esco-lha) nada mais é do que a expressão da liberdade.Se os fins, os valores são definidos pelos atos (li-berdade), então podemos afirmar que a liberdadeé a própria fundamentação dos valores. Devemosatentar aqui para o fato de que, em Sartre, a liber-dade não é uma essência, mas simplesmente

aquele nada existente no miolo do ser do ho-mem, esse nada que faz com que a realidade hu-mana seja um perpétuo devir: o homem não é, ohomem faz-se a cada momento.

O ser do homem apresenta-se como a en-carnação da liberdade. Não um livre-arbítrio con-cedido por Deus, mas liberdade como o funda-mento mesmo, como estrutura de ser, modo deser. Não importa se existe ou não um Deus: jámostramos que mesmo que ele exista, nunca po-derá ser o nosso legislador moral. O homem estásó, abandonado, solto no mundo; não tem nadanem ninguém em que se apoiar; nada há que le-gitime o seu comportamento, tirando-lhe a res-ponsabilidade; há apenas sua liberdade, sua esco-lha e a responsabilidade pelos seus atos também étoda sua.

Essa existência em meio a outros, o fato deser um ser-com-os-outros traz, porém, novas im-plicações. Por um lado, minha auto-imagem é omeu aparecer-para-o-outro, e a forma pela qual ooutro me percebe é uma preocupação constante.Na famosa peça teatral Hui-Clos – Entre QuatroParedes, no Brasil –, há a famosa conclusão exis-tencialista de que “o inferno são os outros”. Po-demos dizer que essa subjetividade nos remete aum “modo fascista de ser”: de repente, fazemosuma imagem do outro e tentamos impor-lhe queaja de acordo com essa imagem subjetiva por nósconstruída. Por outro lado, fica a questão da res-ponsabilidade e da escolha: escolhendo-me, esco-lho a todos, e sou responsável não apenas pormim, mas também pelos outros. Na verdade, ocomplicador da questão é, novamente, a “má-fé”e a utilização ideológica dessa fraqueza de ser queé o homem; num contexto de autonomia coletivae de um desenvolvimento social das liberdadesindividuais, ela tende a ser diferente, embora Sar-tre não a tenha examinado.

Mas, voltando, pode-se afirmar que nenhu-ma moral estabelecida pode, na verdade, dar indi-cações de uma decisão a priori, indicações sobre oque e como fazer. Sartre diz que o mundo nãonos manda sinais, nós é que temos de descobrir osinal em nossa escolha: o sinal é a nossa liberdade.Na conferência que acabou publicada sob o título

3 O humanismo radical de Sartre aproxima-se muito de um “retornocrítico” ao humanismo renascentista. Essa concepção da escolha indi-vidual como escolha coletiva por toda a humanidade lembra bastanteum poema do poeta inglês John Donne, que sintetiza a posição renas-centista, For whom the bells tolls. Ela começa afirmando que “homemalgum é uma ilha” e termina com algo mais ou menos assim: “cadahomem que morre deixa-me diminuído/pois sou parte da humani-dade/portanto nunca perguntes/por quem os sinos dobram/elesdobram por ti”.

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O Existencialismo é um Humanismo, o filósofomostra o exemplo de um estudante que o procu-ra pedindo conselhos. O rapaz está atormentadocom a idéia de ir para a guerra, pois, ao mesmotempo em que se sente impelido a fazê-lo, preo-cupa-se com a situação da mãe, que lhe é muitoapegada e depende dele. O jovem procura indica-ções de como agir e justificativas morais para asua ação; tenta, inconscientemente, abdicar desua responsabilidade para com a mãe, para com apátria e para consigo mesmo, em nome de valoresexternos justificadores de sua ação. De formaaparentemente rude, Sartre responde-lhe que aúnica coisa a ser dita é que ele aja de acordo coma sua liberdade; escolha o que escolher, essa op-ção será o seu valor, e a responsabilidade pela suaação e pelas conseqüências que ela poderá susci-tar será também única e exclusivamente sua.

Nessa “rudeza” do filósofo, e mesmo emsua “não-resposta” – a rigor, ele não deu uma res-posta, não no sentido esperado pelo jovem –, re-side um respeito básico por este. Sartre recusa-sea ser um legislador moral, pois estaria contribuin-do para que o jovem agisse de “má-fé”, além de es-tar também, ele próprio, agindo de “má-fé”, ao as-sumir-se como algo que não é. No incitar o jovemà escolha reside a verdadeira moralidade concreta.

Não havendo valores absolutos, não existesentido em criticar uma moral de base divina epretender fundar uma nova moral em valores ou-tros, mas também apriorísticos e absolutos. Nes-sa mesma conferência, Sartre critica um grupo delaicos franceses que, em 1880, pretenderam supri-mir Deus, mas fundaram uma nova moral abso-luta em outros valores absolutos, criando uma so-ciedade policial com uma série de normas a seremseguidas. Destruíram uma farsa, colocando outrano lugar, cuja máscara diferia da anterior apenaspela decoração; o sujeito a usá-las permanecia omesmo. A moral será sempre libertária, ou nãoserá moral, pois seu fundamento único residenessa ausência de ser a que chamamos liberdade.

Segundo Sartre, construir uma moral écomo pintar um quadro: o que há a fazer seráaquilo que for feito, nada existe a priori. Os va-lores estéticos, como os morais, serão aqueles de-

correntes da própria obra. Estética e moral sub-traem-se, assim, ao reino dos apriorismos parafundarem-se na posterioridade.

Uma questão importante: não existindo va-lores e padrões morais preestabelecidos, comopodemos determinar o valor dos atos e das esco-lhas? A resposta está, novamente, na liberdade.Se for a liberdade a fundamentar a escolha, estaserá mais valiosa quanto mais livre tiver sido o atode escolher. Ou seja, o grau de liberdade implica-do nos atos é que determina o seu valor.4

Se a vida é um compromisso constante, umsuceder contínuo de escolhas, ser moral não ésubmeter-se às regras, mas transgredi-las, fundare afirmar a liberdade. A obra literária de Sartreestá farta de exemplos dessa moralidade libertáriaimpregnando a existência cotidiana. Talvez umdos melhores seja o que é representado por Ma-thieu Delorme, um dos personagens centrais datrilogia Os Caminhos da Liberdade, na cena quefecha o primeiro romance da série, A Idade daRazão. Delorme, um jovem e confuso professorde filosofia, perambula pela vida ao longo do ro-mance e descobre, nos lances finais, que Marcele,sua amante, está grávida. Sucede-se uma série depressões sociais, da família, dos amigos, mesmodos desconhecidos, para que ele se case com ela.O problema é que ele não sabe se a ama ou se suarelação é apenas uma comodidade. Quando to-dos estão certos de seu casamento, repentina-mente ele rompe com Marcele, sai da cidade elança-se à vida, contrário a tudo e a todos, cons-ciente da imagem que os outros terão dele, masfundando a sua liberdade nessa escolha inusitada.

4 Parece estranho falar, no contexto sartriano, em grau de liberdade,posto que esta é ausência de ser. A escolha é, por definição, resultadoda liberdade... Talvez fosse melhor falar de grau de consciência comque a escolha é feita, mas como a consciência é liberdade, acaba dandono mesmo. É o psicopedagogo Michel Lobrot quem faz uma distinçãointeressante acerca das formas de liberdade, em seu livro A Favor ouContra a Autoridade (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977), que, decerto modo, parecem complementar Sartre. Distingue ele três tipos deliberdade: a basal, a adaptativa e a criativa. A primeira seria aquela deque fala Sartre, e não existe em graus; já as duas outras dependem dascondições materiais em que as escolhas são feitas, levando em conta osdeterminantes sociobiológicos, e podem ser mais ou menos livres.Infelizmente, não há espaço aqui para discorrer sobre as concepções deLobrot – o leitor interessado pode procurar a obra aqui citada.

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Estar na “idade da razão” não é assumiruma suposta maturidade e agir no seio de umamoral estabelecida, sendo reconhecido social-mente por seus pares, mas agindo na mais pura“má-fé”. Estar na “idade da razão” é negar o es-tabelecido, fundar sua liberdade e sua própriamoral. Outro exemplo interessante encontra-seno conto “A infância de um chefe” (da obra OMuro), no qual Sartre desenvolve algo assemelha-do a uma psicanálise da construção de uma per-sonalidade autoritária, desde a infância.

Já em O Ser e o Nada, vemos o caso do be-bedor solitário e do condutor de povos. O que osdiferencia? Nada mais do que o grau de liberdadecom que foi escolhido esse modo de ser. Desdeque tenha livremente escolhido viver dessa ma-neira, o bêbado pode ser mais autêntico que o lí-der. Por outro lado, o líder, em sua vã agitação,poderá estar negando sua liberdade e a si próprio,ao negar a liberdade de seus seguidores, ao passoque o beberrão responde apenas por si.

Tais são, muito resumidamente, as con-siderações de Sartre sobre a moral. Delas pode-mos extrair importantes conseqüências no âmbi-to político. A principal, pensamos, é a seguinte:se a realidade humana é moral, e essa realidade éa liberdade, serei profundamente imoral se agircontra as escolhas, se tentar negar a liberdade dooutro. Assim como já sustentava o anarquistaMikhail Bakunin, no século XIX, Sartre assumeque minha liberdade só é capaz de se dar em meioà liberdade dos outros.5 Desse modo, podemos

afirmar que as ditaduras, os totalitarismos e, deresto, a própria “democracia moderna”, enquantolimita a escolha ao domínio do voto e da repre-sentatividade e defende a submissão das mino-rias, são, todos, absolutamente imorais. Um sis-tema político moral deveria fundar-se na convi-vência libertária de todos os indivíduos da comu-nidade; obviamente, tal sistema é ainda devir –para não dizer utopia... –, estando ainda por serconstruído com a existencialização de nossas li-berdades.MORAL E REVOLTA

O existencialismo, notadamente o de Sar-tre, inventou um estilo: a recusa de sínteses dou-trinárias. Tal atitude será mantida em toda aconstrução da Crítica da Razão Dialética. ParaSartre, trava-se um combate duvidoso no âmbitoda política; contudo, uma tomada de posição énecessária para a construção de uma práxis quecontenha um mínimo de coerência e leve a umaatividade, na política empírica, caracterizada peladenúncia resoluta de tudo o que fira a dignidadeda liberdade da pessoa, como sujeito singular oucoletivo.

Trata-se, agora, de buscar o sentido da his-tória, isto é, desvendar a verdade manifestada pormeio de ações inevitavelmente livres dos homens.No entanto, no que diz respeito à Critique de laRaison Dialectique, essa busca não será feita pelainserção única no cogito existencial, muito menospela recusa da filosofia da história em seu conjun-to, como expresso em O Ser e o Nada. É a buscados princípios que determina a inteligibilidade dahistória.

Pode-se afirmar que a descoberta da histó-ria por Sartre começa a ser esboçada a partir de1947, quando ele escreve Qu’est-ce que la Littéra-ture?. Essa descoberta é marcada por vários acon-tecimentos da época, que levarão à temática dosentido da história. Esta torna-se a questão pre-mente nas décadas de 1940 e de 1950, na França.Intelectuais engajados em torno da revista LesTemps Modernes, como Raymond Aron, Simonede Beauvoir, Michel Leiris, Maurice Merleau-Ponty, Jean Paulhan, Albert Camus, Claude Le-fort e Jean-Paul Sartre, elaboram uma constante

5 Bakunin polemiza com Rousseau, que vê na liberdade um fator natu-ral, procurando demonstrá-la como fator socialmente construído.Assim, a sociedade – o outro – não é um empecilho à minha liberdade,mas o único meio de seu desenvolvimento. Um pequeno trecho deBakunin: “Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres huma-nos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liber-dade é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação.Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, deforma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que mecercam, e mais extensa e ampla for sua liberdade, maior e mais pro-funda se tornará minha liberdade. Ao contrário, é a escravidão doshomens que põe uma barreira na minha liberdade ou, o que é a mesmacoisa, é sua animalidade que é uma negação de minha humanidade por-que, ainda uma vez, só posso considerar-me verdadeiramente livre,quando minha liberdade, ou o que quer dizer a mesma coisa, quando aminha dignidade de homem, meu direito humano, que consiste emnão obedecer a nenhum outro homem e a só determinar meus atos deacordo com as minhas próprias convicções, refletidos pela consciênciaigualmente livre de todos, me são confirmados pela aprovação detodos. Minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade detodos, se estende ao infinito” (BAKUNIN, 1983, p. 32-33).

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crítica de desconfiança a tudo o que se aproximede doutrina, buscando na ação comprometida oempenho em descobrir a verdade do tempo emque estão inseridos. São intelectuais distantes –em oposição – do pensamento cristão e da dialé-tica marxista, no sentido da dogmática em que omarxismo tornou-se no interior do PCF. São,também, intelectuais que não contam com oapoio de forças sociais institucionalizadas, porexemplo, organizações políticas.

Com a deflagração da Guerra Fria, a partirde 1950, a situação mundial endurece, levando ospensadores a tomar posição diante dos aconteci-mentos, o que provoca uma dissensão na revistaLes Temps Modernes. A repercussão do macar-thismo nos Estados Unidos, a crise desencadeadapela Guerra do Vietnã, a repressão colonial emMadagascar, a descoberta de campos de trabalhoforçado na União Soviética e o comportamentoagressivo do PCF contra o poder da IV Repúblicaem todas as instâncias tornam árdua e arriscada adefesa da verdade e da liberdade. Os membros darevista assumem posturas diversas em relação aosacontecimentos da época, o que justifica as dis-sensões e os rompimentos de várias amizades,como a de Sartre/Camus ou a de Sartre/Merleau-Ponty.

Em 1958, após cinco anos da morte de Sta-lin, desencadeia-se a prática da “coexistência pa-cífica”, em substituição à Guerra Fria. Contudo,o que ficou conhecido por “processo de desesta-linização” não significou necessariamente nenhu-ma mudança política de base, podendo ser exem-plificado pela investida das tropas soviéticas con-tra a insurreição popular húngara de 1956, o con-tinuado partidarismo do PCF e a política desubmissão à URSS no problema com a Argélia.Tais acontecimentos marcam a necessidade, emSartre, de escrever sobre os fundamentos teóri-cos do “marxismo prático”, resultando na elabo-ração da Crítica da Razão Dialética. Esse texto étambém uma resposta a Maurice Merleau-Ponty,por seu livro As Aventuras da Dialética, tantoquanto o despertar de Sartre de seu “sono dog-mático”, proporcionado também por Merleau-Ponty na leitura de Humanismo e Terror.

Sartre procura construir uma crítica queofereça conteúdo ao vazio em que caíra a esquer-da não comunista. A atitude de comprometimen-to como “companheiro de viagem” dos comunis-tas torna tal crítica uma avalanche de textos queconfluirão em torno do marxismo, como enten-de Sartre, e na busca da inteligibilidade da históriacomo a tendência de uma sociedade que se quertransparente e realiza a história pelo exercício deuma liberdade situada.

Na Crítica isso é possível, porque o pontonodal em que se processa todo conhecimento re-ferido por toda ação, no qual se elabora toda in-teligibilidade teórica e prática, é o sujeito ou, me-lhor, a intersubjetividade e a reciprocidade. E osujeito não é uma substância, no sentido meta-físico, mas um devir, isto é, todo existente é umamálgama de imanência e transcendência: cons-tante superação de si e invenção diária, ação ne-gadora, porque objetivo de si por meio do outroque não é ele. Ou seja, o sujeito é liberdade e luta,é revolta contra a alienação e a reificação.

Para Sartre, a alienação atinge todos os do-mínios da sociedade moderna, pois o não reco-nhecimento de si que o trabalhador tem diantedo produto de seu trabalho causa o alheamentodo homem como espécie e o estranhamento nonível da intersubjetividade. Isso porque o homemperde sua condição de homem para tornar-se,como trabalhador alienado, um indivíduo quenão encontra condições imediatas para a supera-ção da escassez e, conseqüentemente, não conse-gue exercer a liberdade como projeto, nem indi-vidual nem coletivo. Assim, a alienação opõe-se àpráxis, ao reduzir o indivíduo à própria condiçãode prático-inerte (objeto), ou melhor, de utensí-lio. Alienado, o indivíduo não encontra espaçopara a liberdade e, uma vez que a práxis é em simesma dialética, não há liberdade onde não seluta para a construção de relações de compreen-são da própria ação, isto é, não pode haver dialé-tica sem liberdade e, por conseguinte, não existeliberdade onde não se luta contra a escassez.

Sartre aponta para a caracterização do fazerhistórico, no qual os relacionamentos humanosnão podem determinar-se exclusivamente pelas

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interpretações economicistas, pois a ação dosindivíduos está vinculada a uma apreensão funda-mental do encontro entre os sujeitos (do reco-nhecimento e da reciprocidade). Isso o leva amostrar que os indivíduos estão inseridos numarelação primeira de reconhecimento, isto é, aexistência do ser humano coloca-o numa asso-ciação imediata com os outros seres humanos,primeiramente de reconhecimento, em que oindivíduo não pode tratar o outro como objetosem antes reconhecê-lo como sujeito, isso acon-tecendo antes de toda relação de reificação.

O prático-inerte insere o sujeito numa re-lação de alienação, inclusive na vivência intersub-jetiva, pois desde o momento em que o trabalho,entendido como o desenvolvimento dialético einteligível da práxis humana, é apenas vividocomo o produtor – isto é, o trabalhador – de prá-ticos-inertes, até mesmo os valores, no sentidoético e, também, moral, são vividos inseridos noprocesso de alienação:

o valor não é a alienação do fim ou da objetividaderealizada, é o da práxis mesma. Ou, se se prefere, éa práxis descobrindo a inércia sem reconhecê-la,inércia da qual está afetada pelo ser prático-inertedo agente prático. O que significa, segundo o pon-to de vista da ética, que os valores estão unidos àexistência do campo prático-inerte. (...) Todo siste-ma de valores repousa sobre a exploração e a opres-são; todo sistema de valores é negação efetiva da ex-ploração e da opressão (inclusive os sistemas aris-tocráticos, se não explicitamente, pelo menos porsua lógica interna); todo sistema de valores confir-ma a exploração e a opressão (inclusive os sistemasconstruídos pelos oprimidos, se não pela intenção,ao menos na medida em que são sistemas); todosistema de valores, enquanto que está sustentadopor uma prática social, contribui direta ou indireta-mente a pôr em seu lugar dispositivos e aparatosque chegado o momento (...) permitirão que se ne-gue esta opressão e esta exploração; todo sistema devalores, no momento de sua eficácia revolucionária,deixa de ser sistema e os valores deixam de ser va-lores, porque obtinham esse caráter de sua insupe-rabilidade, e as circunstâncias, ao transformar as es-truturas, as instituições e as exigências, os transfor-mam em significações superadas; os sistemas se re-absorvem nas organizações que têm criado, e estas,

transformadas pelo transtorno do campo social, seintegram em novas ações coletivas, executadas nocontexto de novas exigências, e descobrem novosvalores.6

O processo de alienação é fruto do desvir-tuamento de uma relação de reciprocidade e re-conhecimento fundamentais para a construçãodo homem como humano. Defender valores semrefleti-los com base nos determinantes que cons-tituem o campo ético, e sem pensar as condiçõessociohistóricas e culturais que o ensejam, é admi-tir explícita ou implicitamente a institucionaliza-ção da alienação, elevando-a à hipóstase como si-tuação definitiva do processo de reificação.

De acordo com Sartre, uma das maiores di-ficuldades do homem é a efetivação do ethos mo-derno determinada, entre outros aspectos, pelacrise dos universais, no âmbito da ética. Tal ques-tão passa também pela constatação de que a atualsociedade é um mundo sem paidéia, resultante dacoisificação dos próprios valores.

A luta contra a escassez é igualmente a bus-ca de uma relação de conciliação entre os sujeitoshistóricos, uma vez que a produção do prático-inerte lança o indivíduo num mundo de utensí-lios que passa a ser mais poderoso que o homem,tornando-o, dessa forma, objeto de alienação. Eas relações intersubjetivas, por sua vez, tornam-serelações de estranhamento, em que os sujeitos setratam não como pessoas, no que diz respeito àética, mas como objetos, e os valores éticos, porserem também expressão da coisificação e portornarem-se relativos, deixam de ser a expressãoda garantia da condição de sujeito que o ser hu-mano deve possuir.

Entretanto, dado que os valores éticos pas-sam a ter correlação imediata com o antagonismoentre modo de produção e relação de produção,os sujeitos que se alheiam nessa dialética da trans-formação da matéria não exercem a liberdadecomo a expressão consciente de si e dos outros,não sendo capazes de reflexão crítica e de reco-nhecimento da existência dos outros como sujei-tos éticos iguais a eles, criando a dicotomia entre

6 SARTRE, 1960, p. 302-303.

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o sujeito moral e os valores morais. Uma dassoluções para essa dicotomia está no conceito dereciprocidade, empregado por Sartre.

Tal conceito adquire conotação ontológica,porque a interpretação da liberdade insere-se nadinâmica da dialética da intersubjetividade. Sartredestitui a liberdade de toda conotação de umaprática a ser delimitada espacialmente, no sentidode poder ter um limite que se reduza aos espaçosdas associações meramente econômicas dosindivíduos, por exemplo, quando algumas pesso-as dizem que a liberdade delas começa quandotermina a dos outros, ou o direito delas terminaquando inicia o dos outros.

Se a relação humana é de reconhecimento ereciprocidade prévios, antes da instituição de umarelação alienada, a liberdade não começa nem ter-mina como se fosse realizada no âmbito da pro-priedade privada, mas torna-se justamente o en-contro dos indivíduos. É o encontro de duas oumais liberdades que caracteriza a relação de inter-subjetividade. Os homens nunca estão a sós unscom os outros: o relacionamento intersubjetivoe, por conseguinte, o exercício da liberdade evi-dencia-se por um conflito ontológico entre ossujeitos. Mas é justamente esse conflito que pos-sibilita a realização da liberdade, uma vez que oenfrentamento do outro como o outro que é di-ferente (mas não desigual, nem desigual por serdiferente), podendo ser integrado numa dimen-são de reciprocidade e fazendo parte das condi-ções histórico-sociais em que os sujeitos estão in-seridos, caracteriza a dinâmica de uma práxis quequer lançar o indivíduo num mundo de reconhe-cimento mútuo, em que cada um encontra, to-mando por base o reconhecimento, as condiçõesda criação de novos processos de subjetivação,confluindo singularidade e coletividade, superan-do as reificações.

Cremos que Sartre constrói uma antropo-logia filosófica e uma filosofia social que signifi-cam uma hermenêutica da práxis. Toda a Críticada Razão Dialética sugere essa perspectiva.

Uma das marcas do tema da revolta, emSartre, está na sua constante perspectiva interpre-tadora e entendemos a interpretação com um ato

de revolta. Assim, podemos dizer que uma das ca-racterísticas da revolta, para esse filósofo, é revelara singularidade da experiência por meio da inter-pretação filosófica e literária, mostrando que a li-berdade só existe ao preço de uma revolta.7 Mastornamos a perguntar: por que a revolta, hoje?

Nas atuais democracias, na “sociedade daimagem” ou do “espetáculo”, o que justifica atentativa de repensar a noção de revolta é a exces-siva carga normalizadora que tem como particu-laridade principal a exclusão do poder e da pes-soa. Na sociedade liberal, ninguém vigia, nin-guém castiga, pois todos são, ao mesmo tempo,vigiados. No lugar da punição, a normalização.Permanecem apenas as punições disciplinares eadministrativas, que reprimem, que normalizamtodo o mundo, e nas quais encontramos o terro-rismo das técnicas de adiamento. Criam-se, as-sim, técnicas também de regulação, o que ensejaa teatralização midiática da vida. Onde havia“leis”, agora imperam as “medidas” (leia-se: “me-didas provisórias”), pois passíveis de recursos eadiamentos, de interpretações e, muitas vezes,fraude. Essa tendência excessiva à normalizaçãoabre, também, o espaço-tempo do pervertível: naausência de um responsável-culpado, encontra-mos a repressão administrativa e a ocultação do“crime” que se torna espetáculo midiático.

Contra esse estado de coisas, a obra sartria-na põe-se como significação da revolta. Inclusivea revolta como ato pedagógico e a pedagogiacomo prática de revolta. Insurgir-se contra oopressor poder dos homens sobre os próprioshomens. Nesse caso, a pedagogia aparece como apossibilidade do sujeito de “objetalizar” a históriae a intersubjetividade (em processos de singulari-zações), a relação mesmo-outro, assumindo o ne-gativo e a contradição como inerentes à educação.A pedagogia – assim como o processo educativo– pode ser entendida (e defendemos isso) comohermenêutica da práxis educacional e negativida-de desmistificadora, uma vez que essa é uma dascaracterísticas da revolta: a desmistificação.

7 Cf. idem, 1974.

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Pensando com Sartre, a educação é a práxisque ajuda os homens a sair de sua inércia, levan-do-os a totalizar, eles próprios, suas respectivaspráxis, em vez de sofrer “a totalização reificada”,“alienada” dos objetos. Assim, refletir, desmisti-ficar, reunir e não esquecer sua presença concre-ta, sua experiência psíquica, nem o momentoconcreto da história em que se encontram, man-tendo permanente questionamento, é o que põeuma atividade pedagógica como interpretaçãorevoltada da educação. Tal educação que se quer,também, desmistificadora e insere-se numa prá-tica política que se recusa como espetaculariza-ção da vida e da morte, ensejando um processodialético de superação das condições ideológicase alienantes, nas quais encontram-se os sujeitosda educação.8

Certamente, a experiência pessoal de Sartrerevela-se como uma situação, uma luta por situ-ar-se dentro da situação, com o fim de superá-la.Essa experiência, contudo, não é tão pessoal, tãoalheia ao comum dos mortais. Sartre viveu em suaexperiência a intersubjetividade e o projeto fun-

damental que a define, auto-afirmação diante doser acabado.

Quando propõe o anarquismo como vidamoral, para a nossa atualidade, faz surgir a neces-sidade de “humanizar” o homem, de arrancá-lode sua inércia natural, ajudando-o a “totalizar” elepróprio suas respectivas práxis, em vez de sofrero mundo reificado, do que chamou de prático-inerte. Daí um dos sentidos para revolta, inclusi-ve revolta moral e práxis educativa: rejeição daautoridade, do poder e, de certo ponto de vista,prenunciando Foucault,9 do poder como gover-nabilidade. Pois, como dizia Sartre, “o homemdeve se inventar todos os dias”.

Para encerrar, podemos afirmar que, emSartre, a finalidade do homem, e de todo ato mo-ral, é a libertação humana. Isso fica claro, comoprocuramos mostrar, tanto em O Ser e o Nadaquanto na Crítica da Razão Dialética. Há algomais libertário que isso? Dessa forma, emboraJean-Paul Sartre jamais tenha militado em gruposanarquistas, pensamos ser possível aproximá-loda tradição de pensamento libertário. O que ter-mina por não soar tão estranho, quando lemos aentrevista Anarquia e Moral, publicada a seguir.

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8 Sabemos que Sartre não desenvolveu análises filosóficas sobre o fenô-meno educacional, mas queremos destacar a potencialidade de seupensamento para tal empreendimento, embora não esteja no escopodeste artigo.

9 Cf., por exemplo, Michel FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade. SãoPaulo: Martins Fontes, 1999.

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Dados dos autores

SÍLVIO GALLOProfessor da Faculdade de Educação da

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),licenciado em filosofia pela Pontifícia Universidade

Católica (PUC-Campinas), mestre e doutor emeducação (filosofia da educação) pela Unicamp.

WALTER MATIAS LIMAProfessor da Universidade Federal de Alagoas

(UFAL), graduado em filosofia e mestre em filosofiapela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

doutor em educação (filosofia da educação)pela Unicamp.

Recebimento: 13/abr./05Aprovado: 10/jun./05

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