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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Curso de Licenciatura Plena em Ciências da Religião
Samir Araujo Casseb
Cultura de Paz e Não-Violência no Ensino Religioso
Possibilidades através da vida e obra de Mahatma Gandhi.
Belém 2009
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Samir Araujo Casseb
Cultura de Paz e Não-Violência no Ensino Religioso Possibilidades através da vida e obra de Mahatma Gandhi
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura Plena em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará. Orientador: Prof. Dr. Douglas Rodrigues da Conceição
Belém 2009
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Dados Internacionais de catalogação na publicação Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA
Casseb, Samir Araujo Cultura de paz e não-violência no ensino religioso: possibilidades através da
vida e obra de Mahatma Gandhi/ Samir Araujo Casseb; Orientador, Douglas Rodrigues da Conceição. Belém, 2009.
Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.
1. Religião e Cultura 2. Educação I. Título
CDD: 21 ed. 291.17
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Samir Araujo Casseb
Cultura de Paz e Não-Violência no Ensino Religioso Possibilidades através da vida e obra de Mahatma Gandhi
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura Plena em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará.
Data de aprovação: 30/01/2010
Banca Examinadora
__________________________________ - Orientador Prof. Douglas Rodrigues da Conceição Dr. Em Ciências da Religião Universidade Metodista de São Paulo
__________________________________ Prof. Carlos José de Melo Moreira Msc. Em Educação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
__________________________________ Profª. Rosilene Pacheco Quaresma Esp. Em Educação e Problemas Regionais Universidade Federal do Pará
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Para todas as almas
que passaram e estiveram comigo
ao longo desta caminhada de 4 anos.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor doutor Douglas Rodrigues da Conceição, pelas aulas e bate-papos embebidos em fraternas conversas.
A minha mestra, professora doutora Kátia Marly Leite Mendonça, pela oportunidade e benção de podermos caminhar juntos ao projeto Peregrinos da Paz.
A minha mãe, Suely Maria das Graças dos Reis Araujo, filha de Raimunda Reis Araujo, pelo seu exemplo de amor e determinação.
Ao meu pai, Pedro Fonseca Casseb, pelo seu exemplo de amor e partilha.
Aos professores e professoras que estiveram comigo ao longo de quatro anos no curso de Ciências da Religião.
Aos amigos Josué Calebe, Armando Sidônio, Sebastião Azevedo, e as amigas, Sônia Pontes e Janaina Monteiro, pelos momentos de alegria e compartilha.
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Senhor,fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar, que ser
consolado; compreender que ser compreendido, amar que ser
amado.
Pois, é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.
Oração de São Francisco de Assis
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RESUMO
CASSEB, Samir Araujo. Cultura de Paz e Não-Violência no Ensino Religioso: possibilidades através da vida e obra de Mahatma Gandhi. 2009. 98 f. Monografia (Licenciatura Plena em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009. Estudo sobre Cultura de Paz e Não-Violência na educação através do Ensino Religioso, tendo como ênfase a interpretação e o debate em torno da vida e obra do indiano Mohamdas Karamanchad Gandhi, o Mahatma Gandhi (1896-1948). A abordagem da pesquisa concentra-se em teorias e propostas de estudiosos, ativistas e instituições dos séculos XX e XXI, tais como a “filosofia do encontro” e “educação para o caráter” de Martin Buber; “o princípio da alteridade” em Paul Ricoeur e os “quatro pilares da educação para o século XXI” preconizados pela UNESCO, que apontam a Cultura de Paz e Não-Violência como uma saída para o atual estado de violência e barbárie em que se encontram as sociedades contemporâneas. A análise das reflexões sobre Cultura de Paz e Não-Violência através da Educação bem como da vida e obra de Mahatma Gandhi, permitiu-nos concatená-las aos atuais conteúdos e propostas para o Ensino Religioso listados na atual LDB – 9394/96 – e, também, aos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso. Os resultados de tal iniciativa dimensionaram a importância que a atual legislação educacional para o Ensino Religioso tem na formação do cidadão planetário através da abordagem da Cultura de Paz e Não-Violência através do fenômeno religioso e seus desdobramentos, e evidenciaram que a vida e obra de Mahatma Gandhi é um importantíssimo referencial na construção de uma educação voltada para valores, visto que, a história da humanidade após a passagem do Mahatma pela Terra nos deixou lições e esperanças de que é possível erigimos uma humanidade pautada na ética da responsabilidade pelo outro, com amor e em busca da Verdade. Palavras-chave: Cultura de Paz. Não-Violência. Educação. Ensino Religioso. Mahatma Gandhi.
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ABSTRACT CASSEB, Samir Araujo. Cultura de Paz e Não-Violência no Ensino Religioso: possibilidades através da vida e obra de Mahatma Gandhi. 2009. 98 f. Monografia (Licenciatura Plena em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009. Application about Culture of Peace and No-Violence in education through of Religious Teaching, end towards interpretation and discussion about the life of the indian Mohamdas Karamanchad Gandhi, Mahatma Gandhi (1896-1948). The explanation is concentrated in studious and institutions theories from centuries XX and XXI, how, Martin Buber, Paul Ricoeur, and UNESCO, that indicate the Culture of Peace and No-Violence how the solution for violence state and barbarize from our society in this time. The life of the Mahatma Gandhi connected with Religious Teaching and LDB 9394/96, and the PCN‟S Religious Teaching admits development from the global citizen. Mahatma Gandhi is influence for education on values for the humanity across the Earth in searching from the Truth. Key-word: Culture of Peace. No-Violence. Education. Religious Teaching. Mahatma Gandhi.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11 2 DA BARBÁRIE À EMERGÊNCIA DE UMA CULTURA DE PAZ E NÃO-VIOLÊNCIA ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO 14 2.1 SOCIEDADE EM MEIO À INSTRUMENTALIZAÇÃO E BARBÁRIE 15 2.2 SOBRE O CONCEITO DE CULTURA DE PAZ 20 2.3 CULTURA DE PAZ E EDUCAÇÃO 23 3 MAHATMA GANDHI: UMA TRAJETÓRIA DE VIDA EM BUSCA DA VEDADE ATRAVÉS DA NÃO-VIOLÊNCIA (AHIMSA) 33 3.1 EXPERIÊNCIAS DE VIDA NA CONSTRUÇÃO DA NÃO-VIOLÊNCIA: DA FAMÍLIA NA ÍNDIA PARA O MUNDO 34 3.2 SOBRE GANDHI E A NÃO-VIOLÊNCIA 57 3.3 O LEGADO DE GANDHI: MUDANÇAS E ESPERANÇAS NAS ESFERAS DA ÉTICA E DA POLÍTICA 65 4 O ENSINO RELIGIOSO COMO POSSIBILIDADE PARA O FOMENTO DA CULTURA DE PAZ E NÃO-VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS 68 4.1 ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL, UM BREVE HISTÓRICO 69 4.2 CULTURA DE PAZ E NÃO-VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS: RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NO ENSINO RELIGIOSO 77 4.3 GANDHI, NÃO-VIOLÊNCIA E ENSINO RELIGIOSO: DISCUSSÕES E PROPOSTAS 83 5 CONCLUSÃO 90 REFERÊNCIAS 95 APÊNDICES 99 ANEXOS 111
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1 INTRODUÇÃO
Esta monografia de conclusão de curso trata de reflexões, ações e
possibilidades para o fomento da Cultura de Paz e Não-Violência através da
educação tendo como cerne o Ensino Religioso e, especificamente, as relações da
Não-Violência desenvolvidas na vida e obra de Mahatma Gandhi como conteúdo a
ser ministrado no Ensino Religioso.
O tema desta pesquisa foi elaborado a partir de nossa vivência, desde o
ano de 2007, junto ao projeto de extensão universitária da Universidade Federal do
Pará (UFPA), Peregrinos da Paz, coordenado pela professora Drª Kátia Mendonça,
que tem por objetivo desenvolver o ensino, a pesquisa e a extensão para o fomento
de uma Educação para Valores.
As “filosofias para a paz” discutidas no Peregrinos tem uma orientação
teísta, sendo assim, percebemos uma grande aproximação entre essas filosofias e
os conhecimentos veiculados no curso de Ciências da Religião, dessa forma, por
meio desta articulação pensamos em dar nossa contribuição ao inserir o Ensino
Religioso como ferramenta para a construção de uma educação voltada para
valores, mas, por que essa iniciativa?
Frente ao avanço da violência em escala global, principalmente entre os
jovens, a Educação tem papel fundamental na tentativa de efetivar iniciativas e
políticas públicas que tenham por objetivo o resgate de valores humanitários; é o
que propõe, por exemplo, o Relatório para a Educação do Século XXI elaborado
pela UNESCO (DISKIN, 2002). Sendo assim, buscamos por meio de nosso trabalho
contextualizar o Ensino Religioso no fomento de uma Educação para o caráter e
valores nas escolas através da abordagem da Não-Violência como conteúdo da
referida disciplina.
Entendemos também, que a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB 9394/96 – e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Religioso (PCN‟S) quando colocam esta disciplina como obrigatória nas escolas e
vedado a quaisquer formas de proselitismo, com base no respeito às diversas
religiosidades, aproxima-a das prerrogativas exigidas para o fomento da Cultura de
Paz e Não-Violência nas escolas.
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Para tanto, primeiramente discutimos a emergência da Cultura de Paz em
meio à barbárie através da análise de reflexões de pensadores do século XX, tais
como, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Martin Buber, entre outros. Em seguida,
abordamos referências – intelectuais e institucionais – que defendem a educação
para o caráter como ação contra a barbárie e promotora de valores universais.
Algumas experiências de docência comprovaram que princípios pacifistas
como os de Gandhi, Martim Buber, Paul Ricoeur, entre outros, surtem resultados
positivos na resolução de conflitos entre professor-aluno e aluno-aluno nas escolas
da rede pública, tal como o trabalho desenvolvido pelo projeto de extensão da
UFPA, Peregrinos da Paz (MENDONÇA, 2008).
Em um segundo momento, nos detemos na análise da autobiografia de
Gandhi buscando destacar elementos de sua convivência em família e no decorrer
da sua vida que foram primordiais para a construção da filosofia da Não-Violência.
Em seguida, buscamos autores que discutem no campo filosófico, político e ético, as
características da Não-Violência empregada por Gandhi e sua influência e
desdobramentos nos dias de hoje.
Mahatma Gandhi é considerado por muitos como a maior referência em
termos da filosofia e resistência não-violenta, neste sentido, através de uma
aproximação hermenêutica de sua autobiografia buscamos elucidar valores e
referências religiosas que possam ser trabalhadas no âmbito da educação para
valores através do Ensino Religioso.
Por meio da investigação dos princípios da Não-Violência, preconizados e
realizados por Mahatma Gandhi na Índia (GANDHI, 1999), tornar-se-á possível
adaptar os ideais pacifistas de Gandhi para uma linguagem por onde seus princípios
possam ser trabalhados através das aulas de Ensino Religioso. A proposta de
abordagem dos conteúdos desta disciplina, de acordo com os PCN‟S do Ensino
Religioso (FONAPER, 2006), pode enquadrar-se ao trabalho de valores que advêm
de discussões que tenham a Não-Violência como tema gerador, entre outros, já que
esta disciplina requer a abordagem da alteridade, diversidade e relativismo cultural;
conceitos estes que levam à compreensão do outro e que podem ser desenvolvidos
por meio da prática da Não-Violência.
Por fim, tecemos uma breve análise sobre o histórico e a atual legislação
do Ensino Religioso tendo como base a LDB nº 9394/96 (LDB atualmente em vigor)
e os PCN‟S do Ensino Religioso e autores que discutem esta disciplina no âmbito da
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Cultura de Paz. Realizada esta etapa, tomamos as considerações obtidas para
aplicá-las em nossa prática docente vinculada à disciplina Estágio Supervisionado
(Prática de Ensino) pertencente à matriz curricular do curso de Ciências da Religião
da Universidade do Estado do Pará (UEPA), bem como em nossas experiências
como facilitador no Ensino Fundamental e em cursos de formação de professores
em Educação para Valores pelo projeto de extensão universitária Peregrinos da Paz.
Sendo assim, nossa pesquisa é uma tentativa em corroborar para
relações sociais mais fraternas e dialógicas no ambiente escolar; com a expectativa
de que os jovens alunos transponham suas experiências com a Não-Violência para
as diversas esferas de sociabilidade em que estão inseridos. Avaliamos como
resultado de nossa pesquisa que o Ensino Religioso a partir da abordagem do
fenômeno religioso pelo paradigma das ciências da religião – por assim se
caracterizar como não-proselitista – tem fundamental importância e contribuição no
fomento da Cultura de Paz nas escolas.
O fato de investigarmos os desdobramentos do comportamento não-
violento, também vem no intuito de cada vez mais suscitarmos e consolidarmos
debates acadêmicos que envolvam a temática das relações sociais pautadas pela
ética e respeito mútuo.
Entendemos que investigações científicas que fortaleçam discussões e
que envolvam a esfera da ética e Não-Violência podem contribuir para o avanço do
campo de pesquisa voltada ao problema aqui debatido. Além de contribuir, também,
para a possibilidade de empregarmos atitudes pacifistas na docência, e ainda, na
elaboração de projetos de extensão, ensino e pesquisa que envolvam a temática da
Não-Violência, estreitando os laços entre a universidade e a sociedade – que é o
princípio fundamental na obtenção dos resultados de nossa pesquisa, expondo que
o Ensino Religioso é de fundamental importância na plena formação de nosso
alunado enquanto cidadãos do mundo.
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2 DA BARBÁRIE À EMERGÊNCIA DE UMA CULTURA DE PAZ E NÃO-
VIOLÊNCIA ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO
O verdadeiro problema para nós, ocidentais, não se restringe tão-só em recusar a violência,
mas em nos indagar sobe uma luta contra a violência que – sem se esvair na não-resistência ao Mal – possa
evitar a instituição da violência a partir dessa luta. A guerra contra a guerra por acaso não perpetua
aquilo que se encarregou de abolir, para com a consciência tranqüila consagrar
a guerra e suas virtudes viris?
Emmanuel Levinas
Este capítulo trata de reflexões sobre a violência e barbárie presentes em
nossa contemporaneidade. Articulamos debates suscitados por pensadores dos
séculos XX e XXI que em meio à racionalização e relações instrumentais e o
fetichismo do ser humano, vêem a sociedade se desviar do seu projeto de liberdade
e justiça preconizados pelo Iluminismo. O fato que atesta tal observação foram os
horrores cometidos na Segunda Guerra Mundial e, em específico, o holocausto
judeu que tem no campo de concentração de Auschwitz a representação cabal do
poder de desumanização e destruição do Mal.
Com o intuito de que Auschwitz não se repita e de que relações éticas –
tanto no campo micro quanto no macro – pautadas em valores universais se
sobreponham às relações instrumentais, vários debates e propostas em torno da
construção de uma Cultura de Paz global no século XXI vêm sendo apontado como
uma esperança (e urgência) na construção de uma cidadania planetária que de fato
garanta a justiça, liberdade e paz nas sociedades.
Para tanto, pensadores, ativistas e instituições, tais como Theodor
Adorno, Martin Buber, Maria Montessori, Paul Ricoeur, Kátia Mendonça, UNESCO,
vêem na Educação para o século XXI um veículo primordial para a disseminação da
Cultura de paz e Não-Violência pelo mundo. No entanto, faz-se necessário rever as
concepções, práticas, conteúdos e relações que caracterizam o atual modelo de
educação. Sendo assim, reflexões e propostas para a educação do século XXI
centradas na educação para o caráter e valores, tendo a Não-Violência e a relação
15
dialógica como componentes fundamentais, figuram como ações concretas na
construção da Cultura de Paz.
2.1 Sociedade em meio à instrumentalização e barbárie
De acordo com Max Horkheimer (2002), o atual estado de pensamento –
e sentimento! – niilista da humanidade é o dilema concreto do impasse presente na
filosofia contemporânea. Para este autor, a filosofia moderna incrustada na cultura
industrial de nossa época, deve indagar o conceito de racionalidade e as possíveis
falhas que o tornaram vicioso. Sob esta perspectiva, a indagação de Horkheimer
remete ao fato de que há um problema em consolidar a “liberdade” conquistada
pelos países democráticos por meio da guerra e a conseqüente mortandade de
seres humanos a que isto levou. No entanto, o que o filósofo da Escola de Frankfurt
observa, tomando como referência a Segunda Guerra Mundial, é que depois de
removido os escombros e enterrados os corpos restaram as desilusões e as
incertezas do pós-guerra em meio ao oásis tecnológico em que vivemos:
[...] prevalece um sentimento geral de temor e desilusão. As esperanças da espécie humana parecem hoje mais distantes de serem realizadas do que mesmo nas épocas ainda tateantes em que primeiro foram formuladas pelos humanistas. Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a idéia de homem. (HORKHEIMER, 2002, p. 9-10).
Para Horkheimer (2002), a idéia de homem obliterada pela causa do
progresso reflete a atual crise da cultura que é a tendência moderna em acreditar na
ação pela ação, ou, na abstinência ativa de ação e no pensamento pelo
pensamento; uma profunda contradição, pois, a racionalidade progressista tem
como mote o avanço da civilização e não a alienação da perspectiva ontológica do
ser humano e, conseqüentemente, de humanidade.
Sendo assim, o autor atesta que o projeto de esclarecimento libertador
preconizado pelo Iluminismo – em detrimento do pensamento metafísico –
16
fracassou: “A razão se liquidou a si mesma como agente de compreensão ética,
moral e religiosa” (HORKHEIMER, 2002, p. 27). Os conceitos de Justiça, Igualdade,
Felicidade e Tolerância, por exemplo, perderam as suas raízes intelectuais, pois, a
redentora razão objetiva saudada pelos iluministas foi substituída em nossa
modernidade pela razão formal onde o próprio pensamento foi reduzido ao nível do
processo industrial tornando-se uma parcela da produção:
A verdade e as idéias foram radicalmente funcionalizadas e a linguagem é considerada como um mero instrumento, seja para a estocagem e comunicação dos elementos intelectuais da produção, seja para a orientação das massas. [...]. Complicadas operações lógicas são levadas a efeito sem real desempenho de todos os atos intelectuais em que estão baseados os símbolos matemáticos e lógicos. Tal mecanização é na verdade essencial à expansão da indústria; mas se isso se torna marca característica das mentalidades, se a própria razão é instrumentalizada, tudo isso conduz a uma espécie de materialidade e cegueira, torna-se um fetiche, uma entidade mágica que é aceita ao invés de ser intelectualmente aprendida (HORKHEIMER, 2002, p. 31).
Dessa forma, a confirmação da razão em seu sentido moderno perpassa
pela autoridade da ciência concebida como classificação de fatos e cálculos de
probabilidades. Portanto, a afirmação de que a justiça e a liberdade, por exemplo,
são em si mesmas melhores do que a injustiça e a opressão é cientificamente
inverificável e inútil, o que reflete um esvaziamento do significado dos conceitos, fato
que corrobora para o uso destes tanto na defesa dos tradicionais valores
humanitários quanto para advogar a opressão (HORKHEIMER, 2002). A esta
racionalidade instrumental integra-se uma lógica utilitária que se esquece do sujeito
e de sua experiência alienando-o de pensar sobre a sua subjetividade e conforma-o
a um sistema embrutecedor, individualista e ceticista, marcado pelo pensamento
prático:
A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objetivo e de seu poder de julgar este último, e que reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o como do que com o porquê, transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registrar fatos. [...] os métodos artificiais de reprodução que padronizam e classificam os seres humanos antes mesmo de nascerem – tudo isso reflete um processo que invade o próprio pensamento e conduz a um sistema de proibição de pensar que deve resultar finalmente na estupidez subjetiva, prefigurada na idiota objetiva de todo o conteúdo da vida. O pensamento em si mesmo tende a ser substituído por idéias estereotipadas. (HORKHEIMER, 2002, p. 62-63).
17
Para Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), a essência deste
esclarecimento é a dominação. No bojo da difusão da economia burguesa, a razão
calculadora amadurece a sementeira da nova barbárie que os autores consideram o
anti-semitismo como exemplo. Para eles, o fascismo tornou verdadeiro o argumento
de que os judeus são uma anti-raça, o principio negativo enquanto tal, dependendo
da sua exterminação a felicidade do mundo (idéias estereotipadas), e ainda, a
neutralização da razão (estupidez subjetiva) implica no acirramento da violência
entre agressor e agredido:
Se um mal profundamente arraigado na civilização não encontra sua justificação no conhecimento, o indivíduo também não conseguirá aplacá-lo, ainda que seja tão bem-intencionado quanto a própria vítima. Por mais corretas que sejam, as explicações e os contra-argumentos racionais, de natureza econômica e política, não conseguem fazê-lo, porque a racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do sofrimento. Na medida em que agridem cegamente e cegamente se defendem, perseguidores e vitimas pertencem ao mesmo circuito funesto. [...]. Para as pessoas envolvidas, seus gestos são relações letais e, no entanto, sem sentido, [...]. Neles fica demonstrada a impotência daquilo que poderia refreá-los, a impotência da reflexão, da significação e, por fim, da verdade. O passatempo pueril do homicídio é uma confirmação da vida estúpida a que as pessoas se conformam (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 159-160).
Partindo para a dimensão micro-ética, Adorno (1985) observa que as
relações humanas envoltas pela racionalidade instrumental têm como conseqüência
o “olhar hipnótico” que não desperta a consciência moral no outro, que o ignora de
forma indiferente extinguindo o sujeito (ofuscamento do outro). Destarte, no mundo
estereotipado da produção em série e da racionalidade econômica, a capacidade de
julgar e a distinção do verdadeiro e do falso estão desaparecendo. Sendo assim: “A
indiferença pelo indivíduo que se exprime na lógica não é senão uma conclusão
tirada do processo econômico. O indivíduo tornou-se um obstáculo à produção”
(ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 189). Ainda no foro da ética, mais precisamente
de uma hermenêutica-ética, o filósofo judeu Martin Buber também comentará as
relações vazias de sentido e sentimento típicas da sociedade ocidental moderna
através das palavras princípio Eu-Tu e Eu-Isso.
Martin Buber (2001) considera que o mundo é duplo para o homem
segundo a dualidade de sua atitude expressa pelo pares de palavras princípios Eu-
Tu e Eu-Isso (Ele/Ela) que fundamentam a existência. O primeiro par de palavras
princípio, Eu-Tu, diz respeito à relação espontânea onde o homem no encontro com
18
a natureza, com outro homem e com seres espirituais, apresenta-se em totalidade
estabelecendo uma relação dialógica. Já o par Eu-Isso representa o mundo da
experiência onde o experimentador não participa do mundo, a experiência se realiza
“nele” e não entre ele e o mundo: é o âmbito da racionalidade instrumental.
Para ilustrar o mundo da palavra princípio Eu-Isso, tomemos o exemplo
do próprio Buber a partir da aproximação de um homem (Eu) em relação a uma
árvore (Isso):
Eu posso classificá-la numa espécie e observá-la como exemplar de um tipo de estrutura e de vida. Eu posso dominar tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão a expressão de uma lei – de leis segundo as quais um contínuo conflito de forças é sempre solucionado ou de leis que regem a composição e a decomposição das substâncias. Eu posso volatilizá-la e eternizá-la, tornando-a um número, uma mera relação numérica. A árvore permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto e tem seu espaço e seu tempo, mantém sua natureza e sua composição. (BUBER, 2001, p. 56).
Já no mundo da palavra princípio Eu-Tu, vejamos como se daria esta
relação:
Entretanto pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um Isso. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim. Não devo renunciar a nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para vê-la, não há nenhum conhecimento do qual devo me esquecer. Ao contrário, imagem e movimento, espécie e exemplar, lei e número estão indissoluvelmente unidos nessa relação. [...]. A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela. Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade. Teria então a árvore uma consciência semelhante à nossa? Não posso experienciar isso. Mas quereis novamente decompor o indecomponível só porque a experiência parece ter sido bem sucedida convosco? Não é a alma da árvore ou sua dríade que se apresenta a mim, é ela mesma. (BUBER, 2001, p. 9).
Portanto, apesar da distinção entre as formas de nos relacionarmos com
o mundo: Eu-Tu, ou, Eu-Isso, para Buber (2001) a relação Eu-Isso é tão importante
e essencial quanto a relação Eu-Tu. O problema identificado pelo pensador polonês
é que a relação Eu-Isso (instrumental) predomina entre os homens e entre esses e o
mundo. Por isso, Buber nos alerta que os homens não são meros objetos de
experimentação ou simples meios para se atingir um objetivo qualquer:
19
O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu TU, endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples ELE ou ELA limitado por outros ELES ou ELAS, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é TU, sem limites, sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz (BUBER, 2001, p. 57).
Adorno e Buber (embora o primeiro tenha feito críticas ao existencialismo
buberiano) abordam as conseqüências da racionalidade instrumental no campo da
microética – violência, indiferença, ofuscamento do Outro – precisamente na
fenomenologia dos detalhes como observa a professora Kátia Mendonça:
[...] Se o Deus de Buber é o Deus dos pequenos detalhes, o Demônio de Adorno também é o Demônio dos pequenos detalhes. E aí podemos ver que, embora distante de Buber, [Adorno] mantém com este algo em comum que é uma concepção micrológica da vida nos pequenos detalhes, herdeira provável da doutrina judaica das centelhas divinas. [...]. Em Adorno (assim como em Buber, [...]) o demônio está na intencionalidade do sujeito quando regida pela razão instrumental. (MENDONÇA, 2002, p. 30-31).
Sendo assim, nossa atual sociedade regida pelos ditames da razão
instrumental no mais alto desenvolvimento tecnológico traz consigo o cenário da
barbárie: a agressividade primitiva, o ódio primitivo, um impulso de destruição que
de acordo com Adorno é uma tendência imanente de nossa civilização e que a
caracteriza, e: “É a partir disso que podemos conceber o bárbaro como aquele que
submete o outro à violência – qualquer que seja a sua expressão: física, psicológica
ou simbólica”. (MENDONÇA, 2002, p. 33).
De acordo com Mendonça (2002) – referindo-se a Max Weber – a razão
instrumental tem no processo da barbárie o fulcro da eliminação do outro ou a não
percepção de sua humanidade: processo esse que torna o homem indisponível para
o Encontro ético. Neste sentido, o homem deve estar atento e não deixar subjugar-
se pela atitude Eu-Isso, fonte de relações reificadas, pois, é neste âmbito que se
desenvolve a interdição para o encontro com o Outro. E referindo-se a Buber: “Se o
homem não pode viver sem o Isso, no entanto, ele não pode esquecer que aquele
que vive só com o Isso não é homem”.
Em meio a este cenário de barbárie a humanidade vem se mobilizando
para buscar propostas e soluções que recuperem princípios valorativos que incidam
em políticas públicas, comportamentos e em relações éticas que tenham por
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orientação uma perspectiva de comunhão entre os homens e entre esses e o
mundo. Uma das principais iniciativas relacionadas a essa premissa é a
disseminação de uma Cultura de Paz e Não-Violência por diversas sociedades.
2.2 Sobre o conceito de Cultura de Paz
O filósofo Elie Wiesel (2006) advoga que para podermos construir a paz
no mundo é necessário imaginá-la. Em atitudes concretas, essa imaginação estaria
arraigada a recordação e a divulgação dos grandes sonhadores da reconciliação e
da paz, através, também, da formação de faculdades que ensinem a necessidade e
os benefícios da paz promovendo-a não como a simples ausência da guerra, mas,
como uma virtude, uma justiça e um compromisso em um processo propedêutico de
partilha e afirmação da vida e confirmação da esperança que a paz evoca.
Neste sentido, para Wiesel (2006) a disseminação da paz, tanto a nível
abstrato quanto concreto, traria a percepção ontológica de que a natureza humana
não está atrelada a pura violência. Neste caso, a violência seria um ponto de
reflexão para observarmos que o mal que fazemos ao outro é o mal que fazemos ao
nosso semelhante:
Desde a origem da espécie, desde o início da história ou, no mínimo, da história religiosa, a violência domina as sociedades. Caim e Abel eram irmãos inimigos, um tornou-se o assassino ou a vítima do outro. A lição que devemos tirar desse episódio é simples: seja quem for o assassino é o próprio irmão que morre. Infeliz vítima, maldito vencedor. (WIESEL, 2006, p. 29).
Wiesel (2006) chama atenção ainda para a necessidade da paz em prol
das crianças que são as que mais sofrem nas guerras feitas pelos adultos, pois
perdem seus pais e a perspectiva de um futuro mais feliz.
O filósofo norte-americano admite que a construção da paz no mundo
seja difícil, no entanto, não é impossível, visto que, a humanidade já nos provou
isso:
Enquanto a França e a Alemanha odiavam-se e lutavam, outrora, por alguns quilômetros quadrados de terra, atualmente, passamos pela fronteira sem
21
ser necessário o visto; ora, se alguém tivesse falado comigo que, um dia, isso viria a ocorrer, eu não teria acreditado. Mas, se os mesmos visionários tivessem predito, há 30 ou 40 anos, a queda do Muro de Berlin, o fim do apartheid, o desmoronamento do império comunista, não teriam sido confinados em um asilo? Melhor ainda: se alguém tivesse predito, em 1943, que Israel e a Alemanha, um dia, estariam associados por acordos de paz e amizade, nenhum ser normal teria ido tão longe em suas predições... mas, já que isso ocorreu, por que não pensar que, um dia, talvez um dia bem próximo, israelenses e palestinos estarão reunidos no mesmo frêmito de compreensão e de felicidade? [...]. Não será, também razão para proclamar que a imaginação da paz é já uma forma de ficar próximo da paz, de bendizê-la e transformá-la em extraordinário veículo de esperança? (WIESEL, 2006, p. 30).
Paul Ricoeur (2006), filósofo francês, coaduna com Wiesel no sentido de
imaginar a paz como algo distinto de sonhar a paz, pois, imaginá-la é concebê-la em
bases justas não se pautando (e desanimando) a partir das tentativas fracassadas,
mas sim, desejá-la e ter esperança em alcançá-la: “Com efeito, a paz, finalmente, é
mais do que a ausência ou a suspensão da guerra; é um bem positivo, um estado de
felicidade que consiste na ausência de temor, na tranqüilidade para aceitar as
diferenças (RICOEUR, 2006, p. 34).
A disseminação da paz perpassa pela alteridade, e no cerne da aceitação
das diferenças está a percepção de que o outro é um semelhante – “o-homem-meu-
semelhante” – resultando daí a experiência da hospitalidade que é a capacidade de
receber o outro como um outro diferente de nós mesmos, no bojo da alteridade
vinculada à similitude (RICOEUR, 2006).
Além de uma paz entre nações e na relação com o semelhante, Umberto
Eco (2006), filósofo e romancista italiano, nos fala de uma pequena paz: a paz local,
que em seu entender seria a única possibilidade de paz possível, mas, sendo esta
um modelo para o resto do mundo, ou seja, a partir de soluções locais estas partes
constituiriam o todo:
[...] há possibilidades de negociar pequenas soluções locais, porquanto [...] não vejo a possibilidade de negociar soluções globais, na escala mundial. Se, em uma pequena cidade, há um conflito, é necessário trabalhar para a redução da conflituosidade neste lugar. Como se fossem manchas de leopardo, por assim dizer, uma série de soluções locais podem servir como exemplo, como modelo; e, como uma pequena sangria que reduz a pressão em determinado ponto do corpo. [...]. (ECO, 2006, p. 80).
Eco (2006) ressalta que a paz local não é cada qual instaurar a paz em
seu pequeno país sem dar importância para o resto do mundo. Por paz local
22
entende-se o comprometimento de se criar condições de paz nos lugares em que
precisamente existem situações de conflito.
Para Kátia Mendonça (2006) a efetivação da cultura de paz tem por
princípio a mudança de mentalidades e a construção de valores, tendo por eixo o
deslocamento ético em relação ao outro: a percepção deste como aquele pelo qual
se tem responsabilidade e a retomada no pensamento social e político de questões
fundamentais como Justiça, Solidariedade, Verdade e Não-Violência:
Ora, como indica o termo cultura na expressão cultura de paz envolve a mudança de mentalidades e a construção de valores envolvendo a não-violência, a responsabilidade ética, a compaixão, a solidariedade, a paz entre os seres viventes, o desapego, o respeito à vida em todas as suas manifestações, a honestidade, a construção de uma fé que dialoga antes que exclui, a dignidade e, finalmente o respeito ao espaço público e à cidadania. (MENDONÇA, 2006, p. 5).
A partir do pensamento do político e dramaturgo iugoslavo Václav Havel1,
Mendonça (2003) observa que a principal característica da Cultura de Paz é a
percepção de que há um Sentido na vida relacionado com a presença do Ser, ou
seja, uma ética ancorada na transcendência:
Como Masarik, Havel irá perceber o drama do homem moderno como vinculado à perda da fé religiosa e do contato com a experiência humana. Em Cartas a Olga, serão aprofundadas as questões antes semeadas em suas peças teatrais. Nessas cartas escritas durante seus anos de prisão, a presença do transcendente será decisiva. Deus nelas se apresenta, não como um Deus formal, um Deus pessoal ou institucional. Havel busca na verdade o Deus imanente, fonte da Responsabilidade, que confere Sentido ao mundo e que se manifesta na relação com o Outro. (MENDONÇA, 2003, p. 8).
Neste sentido, Mendonça (2003) associa este homem – portador de uma
dimensão ética dele indissociável constituída pela relação dialógica com o outro e
através desta com Deus – a um novo humanismo marcado por valores como
Confiança, Abertura, Responsabilidade, Solidariedade e Amor. Assim, este novo
homem seria capaz de erigir uma nova forma de cidadania, não mais aquela
marcada pelo cidadão consumidor, mas sim, pelo cidadão planetário.
A partir de então, uma concepção de cidadania planetária que é
fundamental à Cultura de Paz seria possível, invertendo-se a relação de opressão
1 Vaclav Havel liderou com êxito o movimento revolucionário não-violento “Primavera de Praga”
contra o regime comunista implementado na antiga Iugoslávia.
23
arraigada à política aos moldes de Maquiavel para uma política onde o cidadão teria
uma responsabilidade moral, uma responsabilidade coletiva maior que o leva a
admitir uma co-responsabilidade pelo destino conjunto, comprometendo-se com uma
responsabilidade não a penas por, mas, responsabilidade diante de (cidadão
planetário). Para Havel, esta política de cidadania planetária traria a liberdade ao
homem em relação às estruturas do poder:
Estando em todo lugar a responsabilidade está vinculada no plano da ética individual à liberdade. E aí a política só poderá ser transformada a partir de mudanças intrínsecas aos indivíduos, naquilo que Havel chamaria de “revolução existencial” [autotranscendência] que precede a revolução política. Esta só ocorre a partir de uma transformação interior dos homens e na forma dos homens públicos lidarem com o poder. E, neste sentido, Havel aponta como condição necessária a liberdade interior que permite ao homem fugir das “diabólicas tentações do poder” e alcançar a liberdade política. [...]. Ou seja, para pensarmos em cidadãos planetários é necessário que, antes de tudo, sejamos seres humanos de visão eticamente planetária, vinculados a um profundo respeito ao outro, ao próximo, seja ela outro ser humano ou a natureza. (MENDONÇA, 2003, p. 10-11).
Esta perspectiva de ética política é fundamental para o nosso mundo
multicultural onde o cidadão planetário necessita de uma compreensão aprofundada
entre culturas que lhe permitam cooperar de maneira verdadeiramente ecumênica
na elaboração de uma nova ordem mundial – entenda-se Cultura de Paz
(MENDONÇA, 2003).
A iniciativa de se imaginar e querer a paz seja ela a nível global ou local
atrelada a uma perspectiva ética-dialógica de responsabilidade com o outro incidindo
na forma de uma cidadania planetária, tem nas instituições sociais e nas
mobilizações individuais e coletivas o espaço para sua efetivação. Sendo assim, no
século XXI, estudiosos apontam a Educação como o principal veículo de
disseminação de uma Cultura de Paz e Não-Violência pelo mundo.
2.3 Cultura de Paz e Educação
Os autores relacionados no tópico acima discutem propostas para a paz e
contra a violência através da Educação.
24
Por uma educação voltada à paz e a vida, conta à barbárie e após
Auschwitz, Adorno é taxativo:
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. [...]. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. (ADORNO, 2006, p. 119).
Para Adorno (2006), a educação deve esclarecer-nos e conscientizar-nos
do que e como foi o processo que culminou em Auschwitz para que não mais se
repita. Com este propósito, a educação defendida por Adorno deve atingir e
modificar tanto a estrutura básica da sociedade quanto os seus membros, que assim
como foram responsáveis pela barbárie, também o são pelo projeto de que ela se
torne pregressa.
A partir da observação de que é limitada a possibilidade de se mudar os
pressupostos sociais e políticos (e em conseqüência os objetivos) que geraram a
barbárie moderna, Adorno (2006) advoga que as tentativas de se contrapor ao
retorno de Auschwitz devem necessariamente ser impelidas para o lado subjetivo,
precisamente, à investigação psicológica das raízes da crueldade dos
perseguidores2. Dessa forma, a educação em Adorno tem o caráter de uma crítica
auto-reflexiva que deve ser implementada na primeira infância, já que é neste
período do desenvolvimento humano que incorporamos aspectos de nossa
personalidade futura.
Atestando que a maioria dos jovens soldados hitleristas era camponesa,
Adorno (2006) avalia a necessidade da desbarbarização do campo como um dos
objetivos educacionais dos mais importantes. Tal premissa teria nos modernos
meios de comunicação um veículo notável de expansão da educação para o campo
desde que respeitasse o peculiar estado de consciência desta população, visto que,
os sistemas normais de escolaridade têm freqüentes problemas em se
estabelecerem de forma suficiente na área rural. Além da utilização de rádios e de
transmissões de televisão, Adorno alude a colunas educacionais móveis de
2 Adorno assim como outros pensadores da Escola de Fankfurt, tal como Marcuse, em suas teorias
tem forte influência da psicanálise de Sigmund Freud – apesar de algumas críticas direcionadas ao método freudiano.
25
voluntários que procurem ministrar cursos, discussões e ensinos suplementares na
área rural.
O esporte também teria papel fundamental, no entanto, Adorno (2006)
chama atenção para o caráter ambíguo do esporte. Esta prática seria salutar desde
que ao invés de incentivar a competição evocando a agressão, brutalidade e
sadismo, tencionasse para a promoção do caráter lúdico das práticas esportivas.
Adorno detém-se a discorrer com especial atenção sobre dois pontos que
ele considera nevrálgico para a educação contra a barbárie: a superação no sistema
educacional da estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir que remetem ao
caráter autoritário, e o enfrentamento do perigo que representa o poder cego dos
coletivos:
O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem no começo a todos os indivíduos que se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada um na escola. É preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física – muitas vezes insuportável – a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram tais barbaridades com o nome de “costumes”. [...]. Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. (ADORNO, 2006, p. 127-128).
Esta educação voltada para a virilidade com o ideal de que é preciso “ser
duro”, severo consigo mesmo e suportar a dor, resulta que o indivíduo submetido a
esse processo adquire o direito de ser severo também com os outros vingando-se
da dor cujas manifestações precisou reprimir. Para superar esta violência, Adorno
(2006) – com base na teoria psicanalítica de Freud – propõe que a educação deva
abordar o fato de que o medo não deve ser reprimido e sim trabalhado para a sua
superação no confronto com a realidade sem maiores traumas.
E finalmente, por uma educação emancipadora, Adorno (2006) propõe
que o esclarecimento deve ter o objetivo de emancipar o indivíduo para que ele não
se torne parte da massa amorfa de consciência coletivizada. A principal
conseqüência desta proposição seria emancipar o indivíduo da frieza de sentimentos
que a manipulação das massas realiza para sua própria efetivação; a emancipação
traz consigo um forte apelo ao desenvolvimento da sensibilidade humana.
26
Adorno já nos chamava atenção para a importância da educação na
primeira infância para evitarmos a barbárie, tal prerrogativa se desenvolveu pelo final
do século XX e início do XXI. A educação da criança tem um destaque especial nas
considerações da psiquiatra e educadora italiana Maria Montessori.
Montessori considera a necessidade de se trabalhar a paz com crianças e
jovens através da educação a partir da observação do aprendizado individualista
que as crianças têm na escola:
A educação, tal como habitualmente é praticada, incita o indivíduo a seguir seu próprio caminho e a se preocupar exclusivamente com seus interesses pessoais. O que a criança aprende na escola? A não ajudar aos outros, a não soprar para seus amigos as respostas que eles desconhecem e a se preocupar somente com duas coisas: no final do ano, ser promovido para uma classe superior e obter os prêmios que lhe angariarão vitórias na competição com seus colegas. E essas crianças, transformadas em pequenos pobres egoístas, essas crianças, que a psicologia experimental provou que eram mentalmente comprometidas, encontram-se mais tarde na vida como grãos de areia no deserto, sem ligação umas com as outras, isoladas de seus próprios vizinhos e estéreis. Se uma tempestade surgir, essas pequenas partículas humanas que não possuem qualquer generosidade espiritual serão pegas pelas rajadas de vento e se transformarão num turbilhão mortal! (MONTESSORI, 2004, p. 51).
A proposta educacional de Montessori para reverter este cenário firma-se
no desenvolvimento espiritual do homem e no reforço de seu valor pessoal. O
homem através do conhecimento científico e de seu valor único deve conquistar o
mundo do espírito humano e afirmar a sua grandeza frente à mecanização do
mundo e das relações pessoais. A diretriz para essa iniciativa é o amor que
devemos ter para com a criança:
[...] o homem é grande porque recebe as emanações do divino. [...]. A criança é, para a humanidade, ao mesmo tempo uma esperança e uma promessa. Tomando cuidado com esse embrião como nosso mais precioso tesouro, trabalharemos para fazer a humanidade crescer. Os homens que educarmos dessa maneira estarão capacitados a usar seus poderes divinos para ultrapassar os homens de agora, que confiaram sua sorte às máquinas. O que nos é indispensável é a fé na grandeza e na superioridade do homem. (MONTESSORI, 2004, p. 52).
Para Montessori (2004), é de fundamental importância que no processo
de educação para a paz a criança e o adolescente tenham a oportunidade de se
engajar numa verdadeira vida social para que se desenvolvam seu senso moral e
seu senso de disciplina, que para a educadora italiana são virtudes para o bom
27
convívio social, pois, propiciam uma aprendizagem concreta pela e para a
experiência humana, fato que vai contribuir para a boa formação de suas
personalidades.
A formação da personalidade é ponto central nas proposições de
Montessori. Assim como Adorno, Montessori (2004)3 preconiza que a educação
deve estar a serviço da emancipação, pois, acarreta na liberdade da pessoa
individual e, conseqüentemente, na evolução do gênero humano. Para tanto, a
educadora retoma o foco na educação da criança observando que nos primeiros
níveis de educação as escolas devem proporcionar espaços e atividades adequadas
ao mundo e a dimensão específica da criança, ou seja, o espaço físico e a forma
como repassamos os conteúdos à criança devem refletir a vida da criança e não a
vida do adulto, neste contexto, insere o ensino da religião como exemplo:
Podemos ilustrar esse conceito pela forma como se deveria ensinar a religião às crianças, se desejamos lhes dar uma educação religiosa nessa idade. A religião deveria ser apresentada como uma proteção de Deus para o indivíduo. A criança tem um anjo da guarda que vela por ela, um anjo que não é um tirano. A criança ora a Deus para velar por ela e por todos os que ama. Ela ora por sua proteção pessoal. A criança sabe que tem Alguém que vela por ela, que a ama e protege. Para uma criança, essa é uma visão natural de Deus, porque é um reflexo de sua vida de criança. Certamente, quando essa percepção persiste no adulto, quando ele só busca na religião uma proteção, é porque ele não alcançou um desenvolvimento intelectual pleno. No adulto, isso revela uma forma de desenvolvimento estacionado. (MONTESSORI, 2004, p. 136).
Em relação ao jovem, além do engajamento na sociedade, Montessori
(2004) advoga que o trabalho é imprescindível na sua formação pessoal. Propõe
que o jovem não deve deter-se em demasia nas leituras, pois é necessário um
tempo para que o jovem interaja com a sociedade através do trabalho. A partir
dessas considerações, a autora observa como seria uma outra forma mais
adequada de se avaliar a formação de um estudante:
As universidades conferem diplomas tão logo os estudantes tenham passado nos exames, mas, às vezes, isso é uma questão de sorte. A sociedade admite em suas fileiras homens de quem ela sabe pouco e que não têm consciência. Os verdadeiros exames deveriam ser espirituais. Deveríamos pedir ao estudante para demonstrar suas capacidades mostrando o trabalho que pode desempenhar. Os candidatos deveriam
3 Apesar desta relação, registramos que Adorno não acreditava na metodologia educacional proposta
por Montessori, no entanto, reconhecera a importância e relevância das idéias da educadora italiana para a educação voltada à paz (ADORNO, 2006).
28
provar seu valor e serem reconhecidos como homens de valor para a sociedade. Eles teriam, então, o senso de sua responsabilidade e a tomariam como guia de suas vidas. (MONTESSORI, 2004, p. 138).
Estas proposições de Montessori visam culminar em uma educação que
desperte o homem para seus valores, visto que, o fim último de uma educação para
a paz é tornar o homem consciente de sua grandeza e de seus valores, pois o que
constrói a paz não é a racionalidade humana, mas sim, valores como a bondade e a
caridade. (MONTESSORI, 2004).
A construção dessa paz depende fundamentalmente do diálogo entre os
adultos e a criança, uma relação dialógica em que não predomine a violência do
adulto sobre a criança, pois, à criança deve ser garantida a sua integridade já que
nela reside a essência da paz sob uma perspectiva transcendental:
Do ponto de vista religioso, a criança é o ser mais poderoso do mundo. Não podemos colocar em dúvida a existência de uma comunicação entre ela e o Criador. Ela é sua obra mais evidente. E podemos afirmar que a criança é o ser humano mais religioso. Se procurarmos um ser puro, um ser sem idéias filosóficas preconcebidas ou ideologia política, e igualmente afastado das suas, encontraremos esse indivíduo neutro que é a criança. E se acreditarmos que os homens são diferentes porque falam diferentes línguas, devemos reconhecer, na criança, um ser que, por não falar língua alguma, está pronto para aprender qualquer uma delas. [...]. Seu coração é tão sensível à necessidade de justiça que devemos chamá-la, como fez Emerson, “o Messias que volta constantemente entre os homens decaídos para conduzi-los ao Reino dos Céus”. (MONTESSORI, 2004, p. 143-144).
Outro ponto de destaque em relação à educação e cultura de paz diz
respeito ao papel do professor, neste sentido, Martin Buber (2003) preconiza que a
relação entre professor e aluno deve ser dialógica no intuito de se erigir a verdadeira
educação: a educação para o caráter.
Buber em seus textos pedagógicos aponta caminhos e considerações
para a educação moral e dialógica. Neste sentido, o educador desempenha um
papel fundamental como sendo o portador da referência de comportamento para os
seus alunos – Buber tinha a expectativa de que o educador pudesse ensinar através
do seu caráter. Para tanto, seria necessária uma grandeza por parte do educador,
que estaria pautada pela humildade e responsabilidade que este teria na relação
com seus alunos, ganhando assim a confiança do alunado que é o elemento
fundamental na relação dialógica entre educador e aluno (MENDONÇA, 2008).
29
A postura do educador comprometido com a formação do caráter de seu
aluno deve ter como princípio considerar o aluno em sua totalidade (relação Eu-Tu),
não ocupar-se somente em repassar conhecimentos específicos para uma atividade
determinada, mas sim, enxergá-lo como um ser dotado de plenas possibilidades e
potencialidades físico-espirituais que são imprescindíveis na formação de sua
personalidade: este é o cerne da práxis do educador para Martin Buber:
La educación digna de esse nombre es esencilamente educación del caráter, pues el buen educador no solo tiene em cuenta lãs funciones aisladas de su alumno como quien procua aportarle únicamente determinados conocimientos o habilidades, sino que há de ocuparse continuamente com esse ser humano em su totalidad, y ciertamente com esse ser humano ea su totalidad tanto según su actual realidad, em la que vive ante ti, como tambiém según su possibilidad, teniendo em cuenta lo que de el puede llegar a ser desde el mismo. Ahora bien, así considerado como um todo em realidad y em potencia, a um ser humano se Le puede estudiar o solo como personalidad, es decir, como esta figura espiritual y corporal única junto com lãs fuerzas que hay em el, o como carátecter, es decir, como La relación entre la esencia de este ser único y la secuencia de sus acciones y actitudes (BUBER, 2003, p. 39).
Porém, Buber (2003) não negligencia que a educação para o caráter é
tarefa difícil, já que os alunos não se mostram muito aptos a lições de ética como se
mostram em relação à álgebra. Diante disso, devemos desistir da abordagem da
ética em sala de aula ou reformular a educação para o caráter em um molde
tacanho? Buber nos diz, “Não”! A vivacidade do educador é capaz de conquistar o
aluno, quebrar as barreiras constituídas sobre o medo e o desapontamento e
engendrar a educação para o caráter:
No basta com que la educación del carácter se comprima em uma hora de aprendizaje; tampoco podría camuflarse em tiempos libres prudentemente estabelecidos al afecto. la educación no soporta ninguna política. Aunque el alumno no advierta la intención oculta, la registra em la actuaciín del maestro y le retira la inmediatez que constituye su poder. Sobre la totalidad del alumno solo influye verdaderamente la totalidad del educador, su existência toda espontáneamente. el educador no necesita ser ningún gênio ético para educar caracteres, pero há de ser um ser humano vitalmente completo el que se comunica inmediatamente com su alumno: su vitalidad irradia sobre ellos y lês influye precisamente entonces de La forma más viva y pura, anque no piense en absoluto em querer influirles (BUBER, 2003, p. 40).
Na educação para o caráter, o educador deve acolher as respostas dos
alunos apontando o que é certo e o que é errado em uma determinada situação, e
não ditar o que é bom e mal, mesmo que as opiniões sejam contrastantes. No
30
momento em que se constitui esse conflito entre educador e aluno, para Buber essa
é a melhor oportunidade para se esclarecer que conflitos podem ser decididos em
uma atmosfera saudável, através do amor! Sendo assim:
Ni por un momento puede ejercitar uma aparente lucha dialétictica en lugar de la verdadera lucha em torno a la verdad, pero – si vence – há de ayudar al vencido a sobrellevar la derrota; y, si no vence sobre el alma obstinada que se el enfrenta no se vence tan fácilmente a las almas!, tiene que encontrar la palabra de amor, que es la única capaz de dejar atrás uma situación tan difícil como ésta (BUBER, 2003, p. 42).
A educação para uma cultura de paz e não violência delineada pelas
distintas (mas não opostas) perspectivas apresentadas neste capítulo, refletiram
direta ou indiretamente na concepção da educação para o século XXI debatida por
várias instituições. Uma dessas instituições, referência neste debate, é a
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO)
que para uma educação para o século XXI tem como principal mote “Compreender o
mundo, compreender o outro”. (DELORS, 2006).
De acordo com a UNESCO, ajudar a transformar a interdependência real
em solidariedade desejada corresponde a uma das tarefas essenciais da educação.
Neste intuito, faz-se necessário que a educação prepare cada indivíduo para se
compreender a si mesmo e ao outro através de um melhor conhecimento do mundo,
neste sentido, a educação do século XXI deve pautar-se por um profundo viés ético
e valorativo com repercussões em escala global:
A educação tem, pois, uma especial responsabilidade na edificação de um
mundo mais solidário, e a Comissão4 pensa que as políticas de educação
devem deixar transparecer, de modo bem claro, essa responsabilidade. É, de algum modo, um novo humanismo que a educação deve ajudar a nascer, com um componente ético essencial, e um grande espaço dedicado ao conhecimento das culturas e dos valores espirituais das diferentes civilizações e ao respeito pelos mesmos para contrabalançar uma globalização em que apenas se observam aspectos econômicos ou tecnicistas. O sentimento de partilhar valores e um destino comuns constitui, em última análise, o fundamento de todo e qualquer projeto de cooperação internacional. (DELORS, 2006, p. 49).
Destarte, a UNESCO elaborou alguns princípios que estão sintetizados
nos quatro pilares da educação para o século XXI: Aprender a conhecer, é adquirir
4 Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, que teve Jacques Delors como relator
no período de março de 1993 a setembro de 1996 (DELORS, 2006).
31
os instrumentos da compreensão; Aprender a fazer, para poder agir sobre o meio
envolvente; Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros, a fim de
participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente
Aprender a ser, integra as três precedentes. Preconiza-se que estes pilares venham
o orientar políticas pedagógicas futuras (DELORS, 2006, p. 101-102):
Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente
vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno
número de matérias. O que também significa: aprender a aprender, paar
beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de
toda a vida.
Aprender a fazer, afim de adquirir, não somente uma qualificação
profissional mas, de uma maneira mais ampla, competências que tornem
a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe.
Mas também aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências
sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e adolescentes, quer
espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente,
graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
Aprender a viver juntos desenvolvendo a compreensão do outro e a
percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-
se para gerir conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da
compreensão mútua da paz.
Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à
altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, de
discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar
na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória,
raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-
se.
Além destes pilares, o Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-
Violência elaborado pela UNESCO com a colaboração de ganhadores do prêmio
Nobel da Paz aponta para uma educação baseada em valores, seis princípios
básicos e fundamenais: Respeitar a vida; Rejeitar a violência; Ser generoso; Ouvir
para compreender; Preservar o planeta e Redescobrir a solidariedade. (DISKIN,
32
ROIZMAN, 2002). Estes princípios devem ser colocados em prática no cotidiano das
escolas, nas chamadas “Escolas de Paz” através de seis diretrizes (NOLETO, 2002,
p.7):
Respeita a vida e a dignidade de cada pessoa, sem discriminar nem
prejudicar;
Praticar a não-violência ativa, repelindo a violência em todas suas
formas: física, sexual, psicológica, econômica e social, em particular ante
os mais fracos e vulneráveis, como as crianças e os adolescentes;
compartilhar o meu tempo e meu tempo e meus recursos materiais,
cultivando a generosidade, a fim de terminar com a exclusão, a injustiça e
a opressão política e econômica;
Compartilhar o meu tempo e meus recursos materiais, cultivando a
generosidade, a fim de terminar com a exclusão, a injustiça e a opressão
política e econômica;
Defender a liberdade de expressão e a diversidade cultural,
privilegiando sempre a escuta e o diálogo, sem ceder ao fanatismo, nem à
maledicência e ao rechaço ao próximo;
Promover um consumo responsável e um modelo de desenvolvimento
que tenha em conta a importância de todas as formas de vida e o
equilíbrio dos recursos naturais do planeta;
Contribuir com o desenvolvimento de minha comunidade, propiciando a
plena participação das mulheres e o respeito dos princípios democráticos,
para criar novas formas de solidariedade.
Lançadas estas reflexões e propostas, percebemos que a construção de
uma Cultura de Paz pela educação perpassa pela disseminação de exemplos e
ideais que incentivem a paz e a não-violência pautados na ética da responsabilidade
com o outro, justiça e emancipação, valores universais e no trabalho com as
emoções e espiritualidade humana.
Falar em Cultura de Paz é impreterivelmente falar em Não-Violência.
Neste sentido, abordaremos este princípio a partir da vida e obra da “Grande Alma”
33
da Índia: Mahatma Gandhi!, que por meio de suas experiências com a Verdade,
sintetiza as prerrogativas para uma Cultura de Paz e Não-Violência no mundo.
3 MAHATMA GANDHI: UMA TRAJETÓRIA DE VIDA EM BUSCA DA VERDADE
ATRAVÉS DA NÃO-VIOLÊNCIA (AHIMSA)5
Gandhi era inevitável. Se a humanidade há de progredir, não poderá esquecer Gandhi.
Ele viveu, pensou e agiu inspirado pela visão da humanidade evoluindo para um mundo de paz e harmonia.
Se ignorarmos os seus ensinamentos, não poderemos queixar-nos.
Martin Luther King Jr.
Neste capítulo abordaremos a Não-Violência tendo como foco a vida e
obra de Mahatma Gandhi. A partir da autobiografia Minhas Experiências com a Vida
e a Verdade, Gandhi narra fatos e acontecimentos que marcaram a sua vida na
busca pelo seu ideal: a fé na Verdade. Nessa busca, percebemos que a grande
preocupação do Mahatma era o ser humano, de qualquer religião, idade, sexo ou
nacionalidade.
As experiências vividas por Gandhi, as boas e as más, dentro e fora de
seu país, a Índia, na infância, adolescência e vida adulta, foram fundamentais para a
constituição de filosofias e práticas, tais como o voto de brahmakarya, o movimento
satyagraha, a construção do ashram, a vivencia e propagação do ahimsa, todas
relacionadas à Não-Violência.
Em seguida, elencamos autores que debatem a Não-Violência nas
esferas da ética e da política como um princípio fundamental para a construção da
Cultura de Paz e como uma alternativa (inovadora, se considerarmos nossa
realidade relacional e política) para o enfrentamento dos desafios humanos e sociais
que se agigantam em nosso século.
5 Ahimsa: termo sânscrito (a = não + himsa = dano ou injúria) que significa “não-violência” em
qualquer das esferas da ação humana, ou seja, física, verbal ou mental (GANDHI, 1999).
34
Discorremos também, sobre o legado e as inquietações que a Não-
Violência da Grande Alma da Índia deixou para os seres humanos de todo o mundo.
3.1 Experiências de vida na construção da Não-Violência: da família na Índia
para o mundo
Antes de começarmos a história de vida de Gandhi, comecemos por um
depoimento que reflete um pequeno capítulo da história da humanidade após a vida
do Mahatma6:
Em 1939 – oito anos antes da declaração da independência da Índia, e nove anos antes da morte de Gandhi - disse Einstein: “Um condutor de seu povo, não apoiado em qualquer autoridade externa; um político cuja vitória não se baseia em astúcias nem técnicas de política profissional, mas unicamente na convicção dinâmica da sua personalidade; um homem de sabedoria e humildade, dotado de incrível perseverança, que empenha todas as suas forças para garantir a seu povo uma sorte melhor; um homem que enfrenta a brutalidade da Inglaterra com a dignidade de um homem simples, e por isso se tornou um homem superior – futuras gerações dificilmente compreenderão que tenha vivido na terra, em carne e osso, um homem como esse” (ROHDEN, 2004, p. 23).
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1896, em
Porbandar, na Índia ocidental, em uma família da casta Baniya7. Seu avô, Ota
Gandhi, e depois seu pai, Kaba Gandhi, foram primeiros-ministros de Estados do
Kathiyavar8. Seu pai, também fora membro do tribunal rajastânico, uma instituição
que ainda no século XIX era muito influente na resolução de conflitos entre chefes e
homens de distintos clãs de uma região da Índia entre Gujrate e a província de Délhi
(GANDHI, 1999).
6 Mahatma: termo sânscrito (mahant = grande + atman = alma, espírito) que literalmente significa
“magnânimo”. Título conferido na Índia a grandes sábios ou santos (GANDHI, 1999). Gandhi foi assim chamado pelo povo da Índia após suas campanhas para a libertação de seu país do Império Britânico. Ele não gostava desse termo relacionado à sua pessoa, pois, não se sentia digno de tal admiração. Outro termo também relacionado pelo povo a Gandhi foi Bapu, do sânscrito que significa Papai, este sim não incomodava o Mahatma. 7 Baniya: mercador, do sânscrito vanika. Distinguem-se quatro grandes castas: brâmanes, reis (ou
senhores), mercadores e plebeus. O termo Baniya não figura no original, que diz simplesmente que os Gandhi eram originalmente, especieiros. Com efeito, [...] a palavra Gandhi significa “especieiro” (ROHDEN, 2004, p. 203). 8 Kathiyavar: original Kathiavad [...]: grande península na costa oeste da Índia, ao norte de Bombaim
(ROHDEN, 2004, p. 203).
35
A atuação política de Kaba Gandhi, atrelada a sua personalidade,
deixaram exemplos de formas de conduta na memória de Gandhi, fato este que
percebemos posteriormente na conduta do próprio Mahatma. Este descreve um
episódio da vida de seu pai que retrata o que viria a ser esta influência relacionada à
convicção e lealdade a uma causa:
Meu pai adorava a família. Era fiel, corajoso, tinha bom coração, mas era temperamental. Devia entregar-se com cera facilidade aos prazeres da carne, pois casou-se pela quarta vez quando tinha mais de quarenta anos. Contudo, era incorruptível e tornou-se conhecido por sua rígida imparcialidade em relação à família e às pessoas. Sua lealdade ao Estado era famosa. Uma vez, um alto funcionário falou mal do Saheb Thakore de Rajkot, chefe do meu pai, ele ficou revoltado com os comentários. O funcionário exigiu que meu pai se retratasse, mas ele recusou-se e acabou detido por algumas horas. Ao perceber que Kaba Gandhi se mantinha irredutível, o funcionário determinou que fosse solto (GANDHI, 1999, p. 24).
Gandhi observa que seu pai era homem de pouca instrução escolar e
religiosa e de poucas posses materiais, mas, apesar de tais restrições, Kaba Gandhi
era tido por homem hábil na tarefa de resolver negócios práticos e problemas
complexos; tudo isso devido a sua educação baseada na experiência, aprendizado
este que o Mahatma valorizava na formação educacional de crianças, jovens e
adultos (GANDHI, 1999).
Em relação à mãe, Putlibai9, Gandhi a considerava como sendo uma
santa, visto que era profundamente religiosa e devota. Putlibai sempre fazia preces
antes de tomar as suas refeições e não faltava a cerimônias religiosas, também fazia
promessas difíceis, mas, que as observava inflexivelmente. A doença nunca foi
pretexto para deixar de cumprir alguma observância religiosa, quando caia doente,
Putlibai recorria a jejuns, um rito que marcaria posteriormente a ações político-
espirituais do Mahatma. A devoção a uma causa sincera, também deixaram marcas:
Jejuar dois ou três dias consecutivos não era nada para ela, e fazer
somente uma refeição diária durante os chaturmas10
tornara-se um hábito.
Não contente, uma vez, durante um chaturmas, jejuou em dias alternados. Em outra, prometeu não comer senão em cada aparição do sol. Nesses dias, eu e meus irmãos pequenos ficávamos mirando o céu, esperando o sol surgir para avisá-la. [...]. Lembro-me de alguns dias em que, quando
9 Segundo Diskin (2007) Putlibai foi a principal influência no período infantil de Gandhi. O amor e
devoção com que Putlibai se entregava a seus votos e à família foram exemplos para o resto da vida do Mahatma. 10
Chaturmas: literalmente “período de quatro (chatur) meses (masa)”. Práticas devocionais ou de purificação, que se realizam a cada quatro meses (GANDHI, 1999).
36
surgia repentinamente no céu, corríamos para chamá-la e ela saía para ver com seus próprios olhos. Quando chegava, o sol já havia sumido e ela ficava sem comer. – Não importa – dizia com alegria no coração -, Deus não quer que eu coma hoje. – E voltava para seus afazeres (GANDHI, 1999, p. 24-25).
Sobre a infância, Gandhi (1999) guardava na memória principalmente os
episódios relacionados aos tempos de escola, com ênfase aos nomes e aos traços
de seus mestres. Quanto à sua conduta, apesar de se considerar um aluno
medíocre, lembra que não mentia a seus professores e colegas; era tímido, pontual
e preferia a companhia dos livros e das lições do que a conversa com outras
pessoas.
Um incidente curioso ocorrido na escola retrata o tipo de relação
respeitosa que Gandhi nutria para com os seus professores, o que na verdade,
como o próprio Gandhi nos diz, tal relação é decorrente do que aprendera pelo
respeito aos mais velhos:
[...]. O coordenador pedagógico da escola, o Sr. Giles, veio até à sala em visita de inspeção. Havia nos dado cinco palavras para escrever, como exercício de ortografia inglesa. Uma delas era “chaleira”, que eu escrevera errado. O professor tentou avisar-me cutucando-me com a ponta da bota, mas eu não entendi que ele estava me dizendo para “colar” a palavra do companheiro ao lado. Pensei que estivesse nos vigiando. O resultado foi que todos os alunos escreveram as palavras corretamente, exceto eu, considerado estúpido. O professor procurou alertar-se sobre minha estupidez, mas na verdade nunca consegui aprender a arte de “colar”. Apesar de tudo, o respeito que nutria por ele nunca diminuiu. Eu era por natureza ingênuo quanto aos erros e defeitos dos mais velhos. Mais tarde, vim a saber de outras faltas cometidas por esse professor, mas minha admiração continuava a mesma, pois aprendera a obedecer aos mais velhos em vez de julgá-los (GANDHI, 1999, p. 25-26).
Outro fato que marcara a relação de Gandhi (1999) com os mais velhos,
neste caso especificamente com os seus pais, foi a leitura do livro Shravana
Pitribhakti Nataka11, presenteado a ele por Kaba Gandhi.
Esta obra é uma peça a respeito da dedicação de Shravana a seus pais.
À época da leitura deste livro, Gandhi (1999) entrou em conato com uma pintura que
mostrava Shravana carregando os pais cegos em tipóias amarradas aos ombros.
Esta pintura foi mostrada ao jovem Gandhi por artistas itinerantes que freqüentaram
a sua casa e que também tocaram músicas da peça as quais Gandhi aprendeu a
11
Título sânscrito da peça Sharavana – aqui nome próprio pitri – “pai”, bhakti – “devotamento”, nataka – “peça de teatro”, o que significa “A piedade filial de Shravana, peça de teatro” (ROHDEN 2004, p. 208).
37
executá-las em uma harmônica presenteada pelo pai. Estas três obras deixaram
Gandhi impressionado, tomou a narrativa de Shravana, de dedicação aos pais e aos
doentes, como exemplo de conduta por toda sua vida.
Outra obra artística também tocou profundamente o coração do jovem
Gandhi, foi a peça intitulada Harishchandra, que trouxe ao Mahatma as primeiras (e
perenes) reflexões sobre a essência e busca pela verdade na vida:
[...]. O espetáculo tocou-me profundamente. [...] “Por que todos não podem ser tão verdadeiros quanto Harishchandra?”, perguntava-me a todo o instante. Persistir na verdade e passar por todos os obstáculos pelos quais Harishchandra passara era o meu ideal. Acreditava piamente naquele homem, e só de pensar na sua história, começava a chorar. O meu bom senso hoje me leva a crer que Harishchandra talvez não fosse um personagem verdadeiro. Ainda assim, tanto ele como Shravana são verdades vívidas para mim, e tenho certeza que se fosse ler essas histórias de novo eu me sentiria igualmente emocionado (GANDHI, 1999, p. 26).
Ainda na infância, com 13 anos, Gandhi casou-se com sua esposa,
Kasturbai, também ela com a mesma idade e analfabeta. Gandhi (1999) recorda seu
casamento com muito pesar, pois, futuramente postou-se terminantemente contrário
à tradição hindu do casamento arranjado pelos pais dos noivos ainda na infância.
Gandhi descreve que os primeiros anos de seu casamento, pelo fato de
ter de impor sua autoridade de marido exigindo fidelidade de sua esposa, fizeram-no
austero e ciumento (GANDHI, 1999).
Apesar destes sentimentos reprováveis, Gandhi afirma que seu
casamento com Kasturbai desde sempre foi calcado no amor, fato este que fez com
que refletisse ainda jovem sobre a condição repressiva da mulher no casamento,
condição esta que Gandhi discursava sobre quando adulto12:
Minhas restrições eram na verdade uma forma de aprisioná-la. Kasturbai não era o tipo de mulher que tolerasse tudo isso facilmente, e fazia questão de sair quando e para onde bem entendesse. Quanto mais a tolhia, mais liberdade ela queria ter e mais mal-humorado eu me tornava. Passamos então a não mais nos falar. Acho que Kasturbai se rebelava contra minhas restrições de uma forma bastante inocente. Como uma garota tão ingênua conseguia tolerar alguém que a impedia de freqüentar o templo, ou visitar amigas? Se tinha o direito de tolhê-la, não teria ela o direito de tolher-me também? Hoje consigo ver essas questões com clareza. Mas, naquela época tinha de fazer valer o meu papel e a autoridade de marido (GANDHI, 1999, p.30).
12
Gandhi enumerava duas fortes repressões na cultura hindu que combatia: a submissão da mulher ao marido no casamento e o sistema de castas (ROHDEN, 2004).
38
Gandhi (1999) ainda confessa que se não fosse o seu luxurioso apego
por Kasturbai13 ele poderia tê-la ajudado mais em sua educação.
As próximas experiências narradas por Gandhi (1999) dizem respeito à
sua angústia e culpa frente à mentira. O jovem Gandhi cometera três pecados
repreensíveis pela sua religião e família: comer carne, roubar e fumar, além de por
pouco não cometer adultério.
Interessante notar é que neste episódio em que transgride alguns
costumes de sua cultura, Gandhi, admitindo sua culpa, também alerta que suas
atitudes de rebeldia tiveram influência direta de um amigo (amizade esta que seus
pais e esposa eram contrários). No entanto, o que mais causava dor a Gandhi não
era o fato de cometer atos que lhe eram proibidos, mas sim, a conseqüência destes
atos: ter que mentir para seus pais:
Sabia que se meus pais por acaso descobrissem que me tornara adepto da carne, ficariam profundamente magoados. Essa idéia estava me corroendo por dentro e, como que para purgar minha culpa, tomei uma decisão, repetidas vezes para mim mesmo: “É muito importante comer carne, mas é mais importante fazer a „reforma‟ no país. Entretanto, mentir aos pais é pior do que não comer carne. Irei poupá-los, pois, da idéia de aderir à carne. Quando eles se forem e eu me sentir livre, eu a comerei abertamente. Mas até lá eu me absterei”. Comuniquei ao meu amigo a minha decisão e nunca mais voltei a comer carne. Meus pais jamais desconfiaram de que dois de seus filhos foram carnívoros. Execrei a carne pelo desejo puro e verdadeiro de não mentir aos meus pais, mas não abri mão de meu amigo. Minha missão de transformá-lo fora desastrosa e nem me dera conta disso (GANDHI, 1999, p. 38).
A primeira lição sobe o ahimsa, Gandhi (1999) a teve quando roubou
algumas moedas (destinadas a pagar a empregada de sua casa) para compra
cigarros. Sentindo grande remorso e culpa pela incursão ao tabagismo e o roubo
das moedas, só via uma maneira de purificar-se: confessar o pecado do roubo. No
entanto, sabia que sua atitude pecaminosa iria desapontar profundamente seus pais,
mas, mesmo assim resolveu confessá-la. Sem coragem de dizer ao pai, que estava
enfermo em uma cama, escreveu uma carta contando do roubo e que estava
profundamente e sinceramente arrependido e envergonhando, dessa forma,
adiantava a Kaba Gandhi que esperava e aceitaria quaisquer formas de castigo.
O pai de Gandhi leu a carta com atenção, ao fim da leitura, fechou os
olhos como se estivesse meditando profundamente e começou a chorar. Essa cena
13
Kasturbai faleceu em Outubro de 1942, aos 62 anos quando encontrava-se presa com Gandhi na Índia (FISCHER, 1982).
39
ficou gravada na memória do Mahatma, pois, por sua causa, sabia o sofrimento pelo
qual seu pai passava naquele momento (GANDHI, 1999).
Este lamento em nada surpreendera Gandhi, o inesperado foi a amorosa
e tenra atitude de perdão de Kaba Gandhi ao seu filho:
As pérolas de amor, saídas dos olhos de meu pai, purificaram-me o coração e expiaram meu pecado. Somente aqueles que experimentam amor semelhante em suas vidas sabem o significado do que escrevo. [...]. Essa experiência foi, para mim, uma verdadeira lição de ahimsa. Na época, sentia-a apenas como o amor de um pai por um filho, mas hoje percebo que foi ahimsa em sua forma mais pura, pois quando ahimsa contagia, transforma tudo o que toca, e seu poder torna-se ilimitado. [...]. Acredito que a forma mais pura de arrependimento acontece quando reconhecemos um erro, junto com a promessa de nunca mais repeti-lo – quando temos oportunidade de oferecer algo a alguém sem que essa pessoa esteja esperando ou pedindo. Sei que minha confissão fez com que meu pai se sentisse totalmente seguro em relação a mim e me amasse mais (GANDHI, 1999, p. 42).
Aos 16 anos de Gandhi, seu pai faleceu em decorrência de uma fístula. A
tristeza pela morte do pai veio acompanhada pelo sentimento de vergonha. Antes de
Kaba dormir, Gandhi massageava os pés de seu pai para aliviar as dores, no
entanto, ele não via a hora de acabar este devoto serviço para entregar-se a outra
devoção: a luxuria. No dia em que Kaba Gandhi partiu, Gandhi deixou a massagem
ser terminada por um tio para ir deitar-se com Kasturbai; no momento em que estava
na cama com sua esposa, um empregado da família bateu na porta do quarto para
dar a notícia do falecimento de seu pai. Gandhi culpou-se por não estar ao lado de
seu pai na hora de sua partida, pois, preferiu o sexo com sua esposa à dedicação ao
pai. Desta relação sexual, nasceu um doentio bebê que não viveu por mais de
quatro dias. Esse episódio não cicatrizou na alma do Mahatma, carregou-o pelo
resto da vida como exemplo a ser repassado a outros casais em relação ao desejo
luxuriante (GANDHI, 1999).
Gandhi (1999) observa que as influências de sua educação religiosa
enraizaram-se ainda na infância, no seio familiar. Pertencente a religião vaishnava14,
Gandhi freqüentava o templo com sua família, mas, não gostava de ir lá. O seu
primeiro vislumbre religioso deveu-se a ama de sua família, Rambha, que dizia ao
pequeno que recitasse o Ramanama15 para curar-se de todos os seus temores e
14
Vaishnava: vishnuíta, devoto do deus Vishnu (GANDHI, 1999). 15
Ramanama: “nome de Rama”. A repetição do nome do deus Rama de forma incessante (mantra). Para Gandhi essa repetição era um ato de purificação e comunhão beatífica (GANDHI, 1999).
40
moléstias. A repetição constante do Ramanama para Gandhi era mais confiável do
que quaisquer remédios.
Outro mantra também arrebatou o pequeno Gandhi (1999), seu primo
ensinara a ele e ao seu irmão o Rama Raksha16 – contido no livro Ramayana17 –
que recitavam todas as manhãs após o banho. No entanto, quando Gandhi mudou-
se de Porbandar para Rajkot, logo esqueceu o mantra, porém, ainda acreditava em
seu potencial de cura, pois, soubera e conhecera um devoto do Ramayana, Ladha
Maharaj, que se curou completamente da lepra após a devota leitura do livro
sagrado.
Outras literaturas sagradas chegaram às mãos de Gandhi, tais como o
Bhagavad-Gita18 e o Manusmriti19. Os versos da Bhagavad impressionaram Gandhi
(1999) como sendo um livro de grande inspiração e evocação do fervor religioso. Já
as narrativas da criação contidas no Manusmriti, acentuaram suas tendências
ateístas à época.
Envolto nas leituras de livros sagrados da cultura hindu (concordando
com alguns preceitos e discordando de outros), Gandhi lembra dois momentos
fundamentais na formação de sua personalidade religiosa. A primeira experiência diz
respeito à tolerância religiosa – que à época não se estendeu ao cristianismo:
Foi em Rajkot, contudo, que desenvolvi grande tolerância para com todos os ramos do hinduísmo e religiões correlatas, pois meus pais nos levaram
ao haveli20
, bem como aos templos de Shiva e Rama. Além disso, muitos
monges jainistas nos visitavam com freqüência e chegavam a sair de seus costumes, aceitando comer com nossa família não-jainista. Discutiam vários assuntos de cunho religioso e mundano com meu pai, que tinha também muitos amigos devotos do islamismo e zoroastrismo, e juntos falavam dos vários aspectos das religiões. Mas meu pai escutava as opiniões de amigos de crenças diferentes da dele com respeito e atenção. Eu estava sempre presente a esses encontros, pois cuidava dele, o que fez com que desenvolvesse tolerância por todas as religiões, menos o cristianismo. Tinha restrições a esse credo, e por um bom motivo: naquele tempo,
16
Rama Raksha: literalmente “proteção de Rama”, texto de invocação a esse deus pedindo às suas bênçãos (GANDHI, 1999). 16
Ramayana: poema épico cuja versão original em sânscrito, datada entre 400 a.C. e 400 d.C., atribui-se a Valmiki. O herói da epopéia é Rama, avatar de Vishnu e símbolo de nobreza espiritual. A versão que Gandhi costumava ler era a de Tulsidas, em híndi, hoje o texto mais popular do hinduísmo moderno (GANDHI, 1999). 18
Bhagavad-Gita: literalmente “Canção do Mestre” ou “Canto Celestial. É o livro mais importante do hinduísmo. Faz parte do Mahabhaata que é a grande epopéia nacional da Índia (GANDHI, 1999). 19
Manusmriti: “Leis de Manu”, código religioso e moral do bramanismo. Nesse texto estão escritos os deveres particulares de cada uma das castas (GANDHI, 1999). 20
Haveli: termo persa cujo significado primitivo é “casa”, “habitação”; entretanto, em gujarate e marata, o sentido é de “templo”. Santuário dos devotos o deus Vishnu (GANDHI, 1999).
41
missionários cristãos costumavam postar-se em frente as colégio, menosprezando os hindus e suas divindades (GANDHI, 1999, p. 46).
A segunda experiência relaciona-se ao Manusmriti, livro o qual Gandhi
discordava de seus preceitos, dessa forma, o choque entre a moral preconizada no
livro e a sua moral o fez refletir sobre a função primordial que a moralidade tem na
vida, estreitamente vinculada com a busca da verdade:
Uma coisa, entretanto, enraizou-se profundamente em mim: a convicção de que a moralidade é a base de tudo na vida, e que a verdade lhe dá substância. A procura da verdade passou a ser, então, meu único objetivo, e começou a crescer dentro de mim com tamanha intensidade que sentia meus horizontes se expandindo. Havia um verso em gujarate, que aprendi na escola e arrebatou meu coração. A mensagem desse poema – o bem em retribuição ao mal – tornou-se o princípio que rege minha vida. É apaixonante e tem múltiplas possibilidades de leitura. Seguem-se as estrofes que considero maravilhosas: Quando te derem um copo d’água, oferece um prato de comida; Quando te derem um bom-dia sincero, curva-te com respeito e zelo; Quando te derem uma simples moeda, devolve com ouro; Se conquistarem tua vida, não será uma vida contida. Os atos e palavras dos sábios só serão coerentes quando reconhecerem o trabalho dos que o servem. A verdadeira nobreza de um ser humano está na alegria
de retribuir com o bem o mal que lhe causam21
. (GANDHI, 1999, p. 47).
Pouco depois da morte de seu pai, Gandhi (1999) entrou na faculdade de
Ahmedabad. Sentindo-se despreparado e não se acostumando às exigências
acadêmicas, mas querendo prosseguir seus estudos, Gandhi viu com bons olhos e
alívio o convite feito por um amigo de seu pai, Mavji Dave (Joshiji), para que fosse
estudar Direito na Inglaterra, pois, a qualificação e careiras obtidas na metrópole
eram de melhor prestígio que a profissionalização na Índia.
Com a apreensão de sua mãe e irmão, Gandhi (1999) antes de ir para a
Inglaterra teve que fazer três votos solenes que diziam respeito à manutenção de
seus costumes religiosos. Então, Gandhi jurou não tocar em bebidas alcoólicas,
mulheres e carne – hábitos apreciados pelos ocidentais e também por jovens
indianos que foram estudar na Inglaterra.
Com algumas economias e a permissão de sua família, Gandhi (1999)
deixou Rajkot e Kasturbai com um bebê de poucos meses rumo a Bombaim para de
21
No futuro, Gandhi relacionará estes versos ao Sermão da Montanha proferido por Jesus Cristo, que para o Mahatma, continham mensagens de amor e respeito ao próximo (outro), e, fundamentalmente, a perspectiva de não se retribuir a violência com outro ato violento.
42
lá partir a Londres22. Antes de partir, ainda foi interpelado pelo chefe de sua casta
(sheth23) que era contrário a viagem, pois, achava que Gandhi não conseguiria
manter seus costumes em Londres; Gandhi retrucou e disse que iria mesmo sem a
aprovação do sheth, conclusão, com a ajuda de alguns amigos de seu irmão, partiu
para a Inglaterra com empenho, e, excluído de sua casta modh bania24.
Já em Londres, Gandhi (1999) teve suas primeiras “aulas” de etiqueta
britânica e começou a bancar o cavalheiro inglês, obviamente que a assimilação dos
costumes cotidianos dos ingleses lhe trouxera experiências de mudança
comportamental, uma delas foi quanto à alimentação, pois, Gandhi considerava-se,
em solo inglês, um adepto da carne. Porém, na mesma Londres, Gandhi entrou em
contato com leituras de cunho vegetariano.
As idéias propagadas pelo vegetarianismo arrebataram Gandhi (1999), e
este se tornou convicto vegetariano. No entanto, esta experiência em erradicar o
consumo da carne e optar pela alimentação a base de vegetais foi marcante porque
fez com que ratificasse o voto de abstinência carnívora feito a sua mãe, fato este
que marcou para o resto de sua vida a percepção sobre o sentido e conseqüências
de se fazer (ou quebrar) um voto de promessa:
Gostaria de faze alguns comentários sobre votos e promessas solenes. A maneira como estas são interpretadas e efetivadas por muitas pessoas pelo mundo afora é causa de muitas disputas. Por clara e óbvia que seja uma promessa, muitas pessoas distorcem seu significado para acomodá-la a seus próprios interesses. Encontramos esse tipo de atitude em todas as classes sociais. O egoísmo leva as pessoas que fazem votos a enganar a si mesmas, aos que estão ao seu redor e a Deus. Uma regra básica seria tomar uma promessa feita a alguém de modo honesto e literal. Outra seria aceitar a interpretação da parte menos favorecida. Nesse caso, caberiam duas interpretações. Quando não se adota nenhum desses caminhos, o resultado é luta e iniqüidade, que têm suas raízes na mentira. Aquele que busca a verdade dentro de si não encontra obstáculos para seguir à risca os votos que fez e, assim sendo, não há margem para interpretações errôneas. A interpretação que minha mãe dava à carne deveria ser, segundo regra básica, a única verdade para mim, e não simplesmente o resultado de minhas experiências pessoais ou do meu orgulho em relação ao conhecimento adquirido (GANDHI, 1999, p. 66).
Despido do conhecimento que detinha sobre as várias interpretações que
se dava ao que é carne (de peixe, aves, ovos, etc.), Gandhi (1999) manteve-se fiel
22
Gandhi embarcou para Londres em 4 de setembro de 1888, um mês antes de completar 19 anos. Permanece em Londres durante três anos; os estritamente necessários para completar seus estudos de Direito, formar-se advogado e ser admitido na Corte Suprema Inglesa (DISKIN, 2007). 23
Sheth: uma pessoa importante na área dos negócios. Comerciante bem sucedido (GANDHI, 1999). 24
Modh bania: nome de uma subcasta da casta dos comerciantes (GANDHI, 1999).
43
aos votos feitos a sua mãe, aos seus familiares e a Deus, e passou a considerar
quaisquer alimentos de origem animal como sendo carne. Sua convicção foi tanta
que chegou a fundar a revisa O Vegetariano que assim como um bom prato de
salada, não durou muito tempo.
Ao final do segundo ano na Inglaterra, Gandhi (1999) teve contato maior
com diversas religiões. Através de um convite feito por dois amigos teosofistas,
mesmo conhecendo pouco do Bhagavad Gita, empreendeu leitura do livro O Canto
Celeste, uma tradução para o inglês do Gita de Sir Edwin Arnold no intuito de
compará-la com o original escrito em sânscrito – língua que Gandhi pouco dominava
– para corrigir possíveis traduções erradas no livro de língua inglesa. Por esta
ocasião, Gandhi foi profundamente tocado pelos versos do segundo capítulo da
Gita:
Do apego aos sentidos, nasce a atração; da atração, brota o desejo; o desejo gera uma paixão avassaladora e a paixão conduz à imprudência. Nesse momento, a memória, totalmente traída, abandona o seu propósito mais nobre, para então corroer a mente. E assim, o propósito, a mente e a pessoa se deterioram. A leitura do livro causou-me tamanho impacto, que hoje considero a Bhagavad-Gita como obra que mais abrange o conhecimento da verdade. Nesses anos todos, foi-me de extrema valia nos momentos de tristeza. [...]. Somente anos mais tarde ela tornou-se uma leitura diária para mim. [...]. (GANDHI, 1999, p. 73).
Por influencia dos amigos teosofistas, também leu de Edwin Arnold o livro
Luz da Asia que retrata a cultura budista, este último livro fascinou Gandhi (1999).
Ainda por intermédio dos amigos teosofistas, conheceu Madame Elena Blavatsky e
a Sra. Besant, a primeira, autora de uma obra capital da Teosofia, A Chave da
Teosofia, que Gandhi também leu, fato este que o aproximou cada vez mais de
obras do hinduísmo no intuito de conhecer mais sua religião e, apesar dos convites
para ingressar na Teosofia, não os aceitou, pois, julgava conhecer pouco sua própria
religião e sendo assim, não se sentia preparado para ingressa em outra.
Por influência de outro amigo, este cristão, vegetariano, Gandhi (1999)
tomou conhecimento da Bíblia. Confessa que o Velho Testamento não despertou
muita atenção, porém, o Novo Testamento arrebatou seu coração. Ficou
impressionado com a mensagem de Jesus Cristo proclamada no Sermão da
Montanha:
44
A primeira parte da Bíblia não fazia muito sentido para mim, e não gostei do Livro dos Números. No entanto, tive uma impressão bem diferente do Novo Testamento, principalmente o Sermão da Montanha, que me falou diretamente ao coração. Tracei um paralelo com a Gita. Adorei os versos: “E assim vos digo, não cedei ao mal: se vos esbofeteiam, oferecei a outra face, e se vos tirarem a túnica, dai-lhes também o manto”. Essas palavras me remeteram diretamente aos versos de Shamal Bhatt citados anteriormente: “Quando te derem um copo d‟água, oferece um prato de comida”. Minha mente inquieta tentava relacionar os ensinamentos da Gita com o livro A Luz da Ásia, e estes com o Sermão da Montanha. A renúncia era a forma nobre de religião e me fascinava (GANDHI, 1999, p. 74).
Gandhi leu outros livros que retratavam diversas religiosidades e a vida e
obra de religiosos: “(...) o herói como profeta, e aprendi sobre a grandeza, a bravura
e a austeridade do Profeta (GANDHI, 1999, p. 74). Lera também, obras sobre o
ateísmo, pois, achava importante tomar conhecimento delas, no entanto, os ícones
ateus não lhe cativaram, afinal, já tinha deixado a muito o seu flerte com o ateísmo –
chegou a presenciar alguns incidentes entre religiosos e ateus, tais incidentes
fizeram com que Gandhi (1999) nutrisse preconceito em relação ao ateísmo devido
a arrogância dos ateus para com quem tinha alguma crença religiosa.
Com suas convicções religiosas maduras, Gandhi (1999) formou-se em
Direito, e apesar de sua insegurança enquanto advogado, voltou à Índia para
exercer sua profissão. Já em Bombaim teve sua primeira causa. Inseguro, porém,
honesto, para ganhar esta causa, Gandhi foi aconselhado a pagar propina ao juiz do
caso:
-Terá que pagar propina ao rábula – disseram-me. Recusei energicamente. – Mas mesmo o grande criminalista, o Dr. Fulano de Tal, que ganha três ou quatro mil por mês, paga comissão! – Não preciso imitá-lo – respondi. – Eu me contento com 300 rúpias por mês. Meu pai não ganhava mais do que isso (GANDHI, 1999, p. 95).
Inseguro no dia do julgo do litígio, Gandhi (1999) abandonou o caso após
a primeira seção, e como as finanças iam mal, Gandhi e seu irmão, também
advogado, resolveram sair de Bombaim e retornar a Rajkot.
Após uma estadia em Rajkot, Gandhi (1999) viajou à África do Sul25, para
a cidade de Natal a serviço do escritório de advocacia onde trabalhava. No país
africano, também colônia britânica, tomou conhecimento das restrições que os
africanos e indianos que lá viviam eram submetidos (tal como na Índia), apesar de
serem considerados cidadãos do império. Esta “cidadania” britânica sempre fora
25
Gandhi passaria vinte anos na África do Sul (DISKIN, 2007).
45
cativada por Gandhi, ele detinha verdadeira paixão e lealdade pela Constituição
Britânica. Embora em um futuro próximo discordasse da dominação britânica na
Índia, o respeito à Carta Magna inglesa foi de significativa importância na
fundamentação de sua busca pela verdade:
Hoje, sei que meu amor pela verdade estava na raiz desse sentimento. Jamais pude simular a lealdade ou qualquer outra virtude. Em todas as reuniões às quais compareci em Natal, era costume cantar o hino nacional inglês. Não que eu não percebesse os defeitos da dominação britânica, mas achava que em seu todo ela era aceitável. Naquela época acreditava que era, de um modo geral, benéfica para os dominados (GANDHI, 1999, p. 158).
Porém, o mesmo hino em louvor à rainha inglesa que entoava com
respeito e fervor, o fez refletir sobre a sugestão apontada na letra frente a sua
iniciação e dedicação ao ahimsa:
Mais tarde, a letra do hino começou a me irritar. À medida que minha concepção da ahimsa amadurecia, comecei a vigiar mais o meu pensamento e as minhas palavras. Estes versos: Dispersar seus inimigos e derrubá-los; Confundir sua política e frustrar seus truques desonestos, contrariavam, em especial, meu sentimento de ahimsa [...] não seria decente, para quem acreditasse no ahimsa, cantar tais versos. Como supor que os ditos “inimigos” fossem “desonestos”? E o simples fato de serem inimigos significava que estavam errados? A Deus só podemos pedir justiça [...] (GANDHI, 1999, p. 159).
Neste país, um incidente mudou sua vida por completo no que dizia
respeito à dominação britânica, e futuramente, a toda e quaisquer formas de
humilhação:
Uma demanda judiciária exigiu a presença de Gandhi em Pretória, capital do Transvaal. Ele tomou o trem para a viagem noturna e entrou num compartimento de primeira classe, com a passagem. Em Maritzburg, na província de Natal, um homem branco entrou no compartimento, olhou para o intruso escuro, e retirou-se, para reaparecer em momento depois, com dois funcionários da estrada de ferro, que ordenaram a Gandhi que fosse para o vagão de bagagens. O indiano protestou, mostrando sua passagem de primeira classe; mas eles disseram que ele tinha de sair. Gandhi ficou. Em conseqüência, os funcionários foram buscar um policial, que o atirou e às suas malas na plataforma da estação (FISCHER, 1982, p. 33).
Neste momento, Gandhi admoestado pelo preconceito contra sua etnia
refletia e internalizava o fundamento do que viria a ser a Ahimsa (não-violência): a
desobediência civil pacífica (FISCHER, 1982).
46
Nesse mesmo período de constituição do ahimsa em Gandhi (1999), ele
destaca outra alegria: sua aptidão para tratar dos doentes, sejam amigos ou
desconhecidos:
Minha atitude em relação ao tratamento dos doentes evoluiu aos poucos para uma paixão, a ponto de chegar a fazer-me negligenciar meu trabalho. Às vezes eu envolvia não apenas minha esposa, mas toda a família nessa atividade. Essa espécie de serviço não tem significado, a menos que se tenha prazer em fazê-lo. Quando realizado para impressionar, ou por medo opinião pública, atrofia o homem e esmaga o seu espírito. O cuidado proporcionado sem alegria não ajuda a quem o dá nem a quem o recebe. Mas todos os prazeres e riquezas empalidecem e se perdem no nada, diante de um serviço prestado com alegria (GANDHI, 1999, p. 161).
Esse espírito de serviço cada vez mais ocupou lugar nos pensamentos e
atitudes de Gandhi, mesmo com a carreira de advogado prosperando, ele sentiu
necessidade de trabalhar em favor dos doentes. Com a ajuda de seu amigo, Dr.
Booth, montou uma pequena Santa Casa de Misericórdia e lá dispensava cuidados
aos doentes: “Esse serviço trouxe-me um pouco de paz” (GANDHI, 1999, p. 185). A
experiência neste pequeno hospital foi muito útil nos serviços de enfermagem
prestados por Gandhi aos soldados envolvidos na guerra dos bôeres.
O trabalho com os doentes, também possibilitou a Gandhi (1999) auxiliar
no parto e nos cuidados médicos de seus dois filhos nascidos na África do Sul.
Desta experiência, o Mahatma elaborou sua concepção da relação que os pais
devem ter com seus filhos (educação familiar) e o sentido (procriador) da relação
sexual:
Estou convencido de que é fundamental, para a criação dos filhos, que os pais tenham conhecimentos gerais a respeito do cuidado com os bebês. A todo momento, manifestam-se os benefícios do meu estudo minucioso da matéria. Meus filhos não teriam hoje tanta saúde caso eu não tivesse me dedicado ao assunto e posto meus conhecimentos em prática. Agimos sob a superstição de que as crianças nada aprendem em seus primeiros cinco anos de vida. A educação dos filhos, desde o começo, baseia-se nessa concepção. O estado físico e mental dos pais no momento da concepção se reflete no bebê. A seguir, durante a gravidez, ele continua a ser afetado pelos humores, desejos e temperamento da mãe, assim como por seu estilo de vida. Depois que nasce, a criança passa a imitar os pais e, por um número considerável de anos, depende totalmente deles para seu crescimento. O casal que disso der conta jamais empreenderá a união sexual com o objetivo de satisfazer sua luxúria, mas apenas para gerar descendência. Considero ser o auge da ignorância a crença de que o ato sexual é uma função necessária, tal como dormir ou comer. Para existir, o mundo depende do ato da geração. Assim como o mundo reflete a glória divina, os atos geradores devem ser racionais, para que possam favorecer o crescimento ordenado do mundo. Quem se aperceber disso controlará sua
47
luxúria a qualquer preço, e adquirirá o conhecimento necessário para promover o bem-estar físico, mental e espiritual de sua progênie, beneficiando assim a posteridade (GANDHI, 1999, p. 186).
O excerto acima se relaciona diretamente com o voto do brahmacharya26
empreendido por Gandhi em amor à Verdade – influencia do poeta e amigo
Raychandbhai:
Chagamos agora ao ponto da história em que o voto de brahmacharya passou a ser matéria de séria consideração de minha parte. Estivera unido a um ideal monogâmico desde meu casamento, e a lealdade à minha esposa constituía parte de meu amor pela verdade. Entretanto, foi somente na África do Sul que me dei conta da importância de observar o brahmacharya, mesmo em relação a ela [...]. Qual então, perguntei-me, deveria ser minha relação com minha esposa? Será que minha manifestação de fidelidade consistia em torná-la um instrumento de minha luxúria? Enquanto fosse escravo da luxúria, de nada valeria ser fiel. Para ser justo com minha esposa, devo dizer que ela nunca tomava a iniciativa de seduzir-me. Era, portanto, algo muito fácil para mim fazer os votos de brahmacharya, bastava desejá-lo. Minha vontade fraca, ou meu apego lúbrico, eram os únicos obstáculos (GANDHI, 1999, p. 186-187).
Imbuído pelo voto de brahmacharya, Gandhi (1999), apesar de vários
subterfúgios tal como trabalhar até a exaustão e dormir em cama separada de sua
esposa, fracassou por duas vezes. Sua primeira intenção em cumprir tal voto era o
de não ter mais filhos, logo percebeu que este motivo não iria fazê-lo cumprir a
promessa de autocontrole. O que de fato consolidou o voto de brahmacharya foi o
convencimento de que a procriação e o conseqüente cuidado com os filhos são
incompatíveis com o serviço à comunidade, dessa forma, convicto, decidiu
abandonar o desejo por filhos e riqueza para viver a vida de um vanaprastha27, e,
dessa forma, firmou que o cumprimento de um voto é primordial para a conquista da
verdadeira liberdade:
[...]. A importância dos votos tornou-se mais clara do que nunca. Percebi que um voto, longe de fechar uma porta para a verdadeira liberdade, com efeito abre-a. Até então, havia sido mal-sucedido porque faltava vontade, faltara fé em mim mesmo, fé na graça de Deus e, portanto, minha mente ficara à deriva no tormentoso mar da dúvida. Percebi que ao se recusar a fazer um voto os homens caíam em tentação, e observando-o, passava-se da libertinagem para o verdadeiro casamento monogâmico [...]. Foi por isso que Nishkulanand cantou: A renúncia sem a aversão não é duradoura.
26
Brahmacharya: termo sânscrito, literalmente “conduta divina”, “amigo de Brahma”. Aqui tem o sentido de “continência, celibato”, voto que Gandhi tomou junto com sua esposa quando ele tinha 38 anos (GANDHI, 1999). 27
Vanaprastha: do sânscrito, “eremita da floresta”, literalmente: “o que partiu para a floresta” – é uma das condições do homem, segundo os costumes indianos tradicionais (ROHDEN, 2004, p. 239).
48
Assim, onde o desejo nos abandonou, um voto de renúncia vai se apresentar como fruto natural e inevitável (GANDHI, 1999, p. 188-189).
O brahmacharya começou para Gandhi (1999) em 1906 e perdurou
durante o resto de sua vida. Confessa que desde o início nunca foi fácil o
cumprimento deste voto, mas, com observância e vigilância conseguiu mantê-lo.
Alguns outros hábitos também foram incorporados para auxiliá-lo no cumprimento do
voto: o controle do paladar, por exemplo; passou a comer alimentos simples, sem
condimentos e, quando possível, crus (alimentava-se basicamente de frutas frescas,
oleaginosas e leite, apesar do efeito estimulante deste último).
Outra prática auxiliar foi a do jejum com a finalidade de melhor perceber e
controlar os sentidos e pensamentos, no intuito de resguardar a alma, o corpo e a
mente tonando-os o santuário de Deus, porém, Gandhi (1999) observa que o jejum
físico deve ser acompanhado do jejum mental, ou seja, não adianta simplesmente
deixar de comer algo, faz-se necessário reflexão sobre o ato do desprendimento que
é significativo ao jejum28.
Nesta dedicação por uma vida simples e devota, Gandhi (1999) também
aboliu tratamentos a base de remédios. Para curar suas moléstias – a partir da
leitura do livro Volta à Natureza, de Just – o Mahatma as tratava e curava-as com
tratamentos a base de terra e água limpas associadas a uma dieta de frutas.
Além da mudança de hábitos e dedicação aos votos, Gandhi (1999)
cunhou o ahimsa também por experiências que teve a partir da leitura de diversos
livros. Uma destas obras que lhe causou uma sensação mágica foi Até o Último, de
Ruskin. Nesse livro, descobriu algumas de suas convicções: o Bem imanente ao ser
humano e a importância da leitura na construção do caráter de uma pessoa:
Acredito que descobri algumas de minhas mais profundas convicções nesse grande livro de Ruskin, e foi esse motivo que me fez mudar a minha vida. Um poeta é aquele que consegue invocar o bem latente no peito dos homens. Os poetas não influenciam a todos por igual, porque nem todos adquirem o mesmo grau de percepção. Entendi que os ensinamentos de Até o Último são: 1. Que o bem do indivíduo está contido no bem do todo. 2. Que o trabalho do advogado tem o mesmo valor que o do barbeiro, na medida em que todos têm o mesmo direito de ganhar a vida pelo trabalho. 3. Que uma vida de trabalho duro, isto é, a vida de quem cultiva o solo e a do artesão, é a que merece ser vivida. O primeiro eu sabia. O segundo,
28
Em 6 de abril de 1919, Gandhi conclamou a nação indiana, com sucesso, a mobilização em torno do Hartal, movimento nacional que suspendeu as atividades econômicas na Índia por meio do jejum e da oração, mostrando que a força religiosa que uniam hindus e mulçumanos era capaz de efetivar a não-cooperação contra a Império Britânico (FISCHER, 1982).
49
havia vagamente percebido. Quanto ao terceiro, nunca tinha me ocorrido. Até o Último deixou claro como o dia que o segundo e o terceiro estavam contidos no primeiro. Levantei-me de madrugada, pronto para levar esses princípios à prática (GANDHI, 1999, p. 262).
Cada vez mais compenetrado e determinado no voto do brahmacharya
para poder prestar serviço à comunidade e comungar-se a Deus e a verdadeira
verdade, Gandhi (1999) daria outro passo decisivo em sua saga: o nascimento do
Satyagraha29.
Através de suas experiências em meio aos combates travados na África
do Sul, Mahatma Gandhi (1999) buscou um termo que expressasse o movimento
indiano de resistência não-violenta em busca da autonomia frente ao Império
Britânico. Por meio de seu jornal, o Indian Opinion, ofereceu um prêmio simbólico ao
leitor que elaborasse um termo adequado. Então, Maganlal Gandhi criou a palavra
sadagaha (sat: verdade, agraha: firmeza) e ganhou o prêmio. Para torná-la mais
lúcida, Gandhi modificou-a para satyagraha (termo da língua gujarate).
Estes ideais de Gandhi (1999) foram vividos por ele em uma comunidade
onde encontravam-se hindus, muçulmanos, cristãos, judeus e intocáveis;
comunidade denominada de Ashram30 Satyagraha, fundado em 15 de maio de 1915,
em Ahmedabad:
Eu queria familiarizar a Índia com o método que havia tentado na África do Sul, e desejava testar em terras indianas até onde seria possível a sua aplicação. Então, meus companheiros e eu escolhemos o nome Ashram Satyagraha, que reunia tanto nosso objetivo quanto nosso método de serviço. Para conduzir o ashram, era necessário um código de princípios e observâncias. Preparou-se um, e amigos foram convidados a opinar. Entre muitas das sugestões que recebemos, a do Sir Gurudas Banerji ainda está em minha memória. Ele gostou dos princípios, mas sugeriu que a humildade deveria ser somada às observâncias, pois acreditava que as gerações mais jovens careciam dela. Embora eu percebesse essa falha, temia que a humildade deixasse de existir no momento que se tornasse uma questão de devoção. O verdadeiro sentido da humildade é o autodesapego.
Autodesapego é moksha31
(liberação). Sendo assim, ele próprio não pode
ser uma observância. Deve haver observâncias para atingi-lo. [...]. Servir sem humildade é apego e egoísmo. Nessa época, havia cerca de treze
29
Satyagraha: expressão criada por Gandhi e seus colaboradores a partir dos termos sânscritos agraha (firmeza, constância) e satya (verdade) (GANDHI, 1999). 30
Ashram: do sânscrito, significa “comunidade”, “mundo” (GANDHI, 1999). Gandhi já tivera uma experiência de vida comunitária no Ashram Tolstoi, quando morava na África do Sul (FISCHER, 1982). 31
Moksha: termo sânscrito, literalmente “libertação”. Última das quatro metas ou finalidades da vida humana: 1º artha refere-se às posses materiais; 2º kama é a busca do prazer e do amor; 3º dharma abrange todo o contexto dos deveres religiosos e morais; 4º moksha é a redenção ou liberação espiritual – o bem humano definitivo (GANDHI, 1999).
50
tâmeis em nosso grupo. Cinco jovens tâmeis tinham me acompanhado desde a África do Sul, e o restante viera de diferentes partes do país. Éramos mais ou menos vinte e cinco homens e mulheres. Foi assim que o ashram começou. Todos faziam suas refeições em uma cozinha comum e empenhavam-se em viver como uma família (GANDHI, 1999, p. 340).
Mesmo neste clima de humildade e cooperação, em seu primeiro ano, o
ashram passou por dificuldades – sustentava-se por meio de doações. A maior
dificuldade ocorreu quando de uma proposta de uma família de intocáveis para
morar no ashram, Gandhi (1999) aceitou-a. Porém, alguns donatários cessaram
suas contribuições e o que mais fustigou Gandhi foi a rejeição da família por alguns
membros do ashram (inclusive sua esposa). Alguns eram indiferentes à família de
intocáveis, evitavam ter contato com eles, o dono do poço que abastecia o ashram
alardeava que os membros da comunidade iriam contaminar a água pelo contato
com os intocáveis, desse episódio, segue uma lição de não-violência na prática:
Começou a xingar-nos e a molestar Dudabhai [intocável]. Eu disse a todos que agüentassem os abusos e continuassem insistindo em retirar a água. Quando percebeu que não devolvíamos os insultos, o homem ficou envergonhado e parou de nos perturbar (GANDHI, 1999, p. 341).
Diante desta tempestade interna, Gandhi (1999) propôs que se o ashram
não tivesse mais condições de se manter eles deveriam se mudar para o bairro dos
intocáveis. A resolução desta querela foi uma das maiores experiências que Gandhi
viveu servindo para fortalecer mais ainda suas convicções – principalmente sua fé
em Deus:
Não era a primeira vez que eu enfrentava uma provação assim. Em todas as outras situações, Deus mandou ajuda no último momento. Uma manhã, logo depois de Maganlal ter me avisado sobre nossa situação financeira, uma das crianças veio e disse que um Sheth, que estava esperando num carro lá fora, queria me ver. Fui até ele. – Quero ajudar o ashram de alguma maneira. O senhor aceitaria? – perguntou ele. – Certamente que sim – eu disse – E eu confesso que estou, neste momento, praticamente sem recursos. – Virei amanhã a esta hora – disse ele. – O senhor estará aqui? – Sim – respondi. E ele se foi. No dia seguinte, exatamente na hora combinada, o carro apareceu em nossa área e buzinou. As crianças trouxeram a notícia. O Sheth não entrou. Saí para vê-lo. Ele pôs em minhas mãos notas no valor de 13.000 rúpias e foi embora. Jamais esperara essa ajuda [...]. Agora sentíamo-nos seguros por um ano (GANDHI, 1999, p. 342).
Para o Mahatma, conflitos eram momentos de intenso aprendizado e
prática do ahimsa. Quando Gandhi (1999) partiu para o distrito de Champaram com
51
o objetivo de investigar a situação dos camponeses e suas demandas contra os
plantadores de anil, o Comissário da cidade e o secretário da Associação dos
Plantadores receberam-no de forma hostil, comunicando-lhe que não passava de
um forasteiro e que por isso não deveria se meter nos assuntos entre os plantadores
e os arrendatários. Educadamente, Gandhi respondeu que não se considerava um
forasteiro, pois, era apenas um indiano viajando e conhecendo a situação dos seus
irmãos de seu país. A polidez e a resposta de Gandhi, obviamente, não agradaram
as autoridades governamentais do distrito que intimaram-no a sair imediatamente da
localidade, Gandhi respondeu que ainda não terminara de investigar a situação dos
pobres e maltratados camponeses de Champaram e por isso iria ficar. A contra
resposta da autoridade governamental foi a intimação de julgamento por ele ter
desobedecido a ordem de deixar o distrito.
O julgamento causou comoção na população local e em Gandhi (1999)
que através desse episódio ficou, como diz, frente a frente com ahimsa:
A notícia da intimação espelhou-se como um fogo selvagem, e contaram-me que Motihari testemunhou naquele dia cenas sem precedentes. A casa de Gorakhbabu e a sala do tribunal foram tomadas pela multidão. Felizmente eu terminara todo o trabalho durante a noite e podia lidar com tanta gente. Meus companheiros provaram ser de grande ajuda. Ocuparam-se em conservar a disciplina, pois a multidão me seguia aonde quer que eu fosse. Uma espécie de simpatia surgiu entre os funcionários – o fiscal, o magistrado, o Superintendente de Polícia – e eu. Poderia ter resistido legalmente às notificações, mas em vez disso aceitei-as todas, e minha conduta perante os funcionários era correta. Eles entenderam que eu não queria ofendê-los pessoalmente, mas que desejava opor uma resistência civil às suas ordens. Por isso se acalmaram e, em vez de me importunar, ofereceram-se amavelmente a mim e a meus colaboradores para cooperar no controle das multidões. Mas ficou evidente que sua autoridade estava estremecida. Naquele momento, as pessoas haviam perdido completamente o medo de ser punidas, e entregavam-se ao poder do amor que seu novo amigo exercia. Devo lembrar que ninguém me conhecia em Champaram. [...]. O mundo fora de Champaram lhes era desconhecido. Ainda assim eles me receberam como se fôssemos amigos de longa data. Não é exagero, mas uma verdade factual, dizer que nesse encontro com os camponeses eu fiquei face a face com Deus, Ahimsa e a Verdade (GANDHI, 1999, p. 352-353-354).
Gandhi (1999) foi julgado, veredicto: a acusação foi retirada. O Mahatma
observa que toda a mobilização dos camponeses e de alguns funcionários da
autoridade política (policial) local a seu favor – um ato de desobediência civil –
demonstrou que quem estava sendo julgado não era ele e sim a autoridade injusta
do governo britânico.
52
A desobediência civil tornou-se a pedra de toque e principal característica
do movimento satyagraha. A desobediência civil para Gandhi (1999) tem um caráter
educativo, sendo assim, necessita de um aprendizado propedêutico (obediência às
leis) antes que se tome qualquer atitude explícita de desobediência, pois, caso não
haja um esclarecimento quanto ao cerne da desobediência civil, qualquer movimento
que se posicione empenhado nesta conduta pode recorrer em um grande erro – tal
como aconteceu em algumas localidades da Índia onde o movimento resultou na
morte de indianos, muçulmanos e militares britânicos, daí porque Gandhi resolveu
naquele momento suspender o satyagraha em 14 de fevereiro de 1922. Caso ocorra
o erro, Gandhi ressalta a importância de assumi-lo e reconhecê-lo:
[...]. De repente, tive a sensação de que cometera um grave erro em convocar as pessoas daquele distrito [Kheda] e de outros legares para se lançar à desobediência civil de modo prematuro, como agora me parecia. Eu estava participando de um comício. Tornei públicos esses pensamentos, o que fez me sentir um pouco ridículo. Entretanto, eu nunca me arrependi de ter feito aquela confissão. Pois sempre sustentei que só quando alguém percebe seus próprios erros com uma lente convexa, e procede de forma oposta em relação aos outros, adquire capacidade de chegar a uma estimativa relativamente justa dos dois. Acredito, assim, que uma observação escrupulosa e consciente dessa regra é imprescindível para
quem quiser ser um satyagrahi32
. Vejamos agora qual foi esse Himalaia de
erro. Antes que alguém possa adequar-se à prática da desobediência civil, deve estar completamente disposto a obedecer respeitosamente às leis do Estado. Pois a maior parte de nós obedece a elas por medo da pena que sofreria ao violá-las, e isso não envolve um princípio moral. [...]. Um satyagrahi obedece às leis da sociedade de forma inteligente e por livre e espontânea vontade, porque considera um dever sagrado. É apenas quando uma pessoa obedece escrupulosamente às leis, que está em posição de julgar quais delas são boas e justas, e quais são injustas e perversas. [...]. Sendo assim, antes de reiniciar um processo desses em grande escala, seria necessário criar um núcleo de voluntários bem treinados, de coração puro e que houvessem compreendido todas as estritas condições do Satyagraha (GANDHI, 1999, p. 401-402).
No entanto, um acontecimento chocante abalou não só a Índia como o
mundo. No dia 13 de abril de 1919, ocorreu o chamado massacre de Jallianwalla
Bagh, onde quase dois mil indianos reunidos em um largo foram sumariamente
executados a mando do bigadeiro-general Reinal E. H. Dyer, comandante militar
daquela província que tinha proibido procissões e comícios:
A seguir, o Relatório Hunter conta o episódio do massacre de 13 de abril, verificado em Jallianwalla Bagh, massacre esse que deu forma aos acontecimentos de anos subseqüentes, e que indelevelmente está escrito
32
Adepto do satyagraha (ROHDEN, 2004).
53
na história da Índia [...]. “ele (Dyer) explicou que seu espírito tomou a decisão no decorrer de sua ida para lá, em automóvel; se suas ordens contrárias à realização do comício fossem desobedecidas, ele estaria pronto a fazer fogo sem perda de tempo.” “Eu estava resolvido”, depôs o mencionado general. “Eu levaria todos os homens á morte”. [...]. O relatório calcula que havia de dez a vinte mil pessoas no Bagh. “Nenhum dos manifestantes se encontrava munido de arma de fogo, embora seja possível que alguns deles estivesse armado se pau”, afirma o relatório. [...]. “Pergunta: Supondo-se que se a passagem fosse suficiente para permitir que os carros blindados entrassem, teríeis vós aberto fogo com as metralhadoras? Resposta: Penso que, provavelmente, sim”. [...]. “Quando o fogo teve início, a multidão começou a dispersar-se. Ao todo, 1 650 cartuchos foram deflagrados... Os tiros foram individuais, e não de salva... Aproximadamente 379 pessoas foram mortas”, e, ao que a comissão calculou, as pessoas feridas foram em número umas três vezes maior. Portanto, 1 137 feridos, mais 379 mortos, ou 1516 atingidos para 1 650 balas. A multidão constituíra um alvo perfeito. Os manifestantes haviam corrido para o lado do Bagh cercado pela parede mais baixa, que media um metro e meio de altura. Dyer ordenou a seus homens que mirassem aquele ponto [...]. “Pensei que estivesse fazendo um grande bem”, foi a airada recapitulação de Dyer, quanto ao massacre de Jallianwalla Bagh (FISCHER, 1989, p. 97-98-99).
Após o massacre, Gandhi convenceu-se de que o diálogo entre indianos
e o Império Britânico seria impossível, “como cães e gatos”, sendo assim Mahatma
Gandhi (1999) estava mais do que convencido de que o Império deveria partir da
Índia por meio da desobediência civil e não-cooperação dos indianos33.
Preocupado com o grave e crescente estado de pauperização da
população indiana, Gandhi (1999) buscava soluções que pudessem ajudar a pelo
menos minimizar este cenário. Uma das soluções encontrada foi a troca das
vestimentas ocidentais (em sua maioria importada e comercializada por ingleses) por
roupas produzidas pelos próprios tecelões indianos, na esperança de que cada
indiano pudesse ter sua própria roca de fiar ou tear manual para poder fazer suas
vestes. Com a ajuda da senhora Gangabehn Majmundar, Gandhi conseguiu uma
roca de fiar e começou sua aventura. Percorreu o país incentivando aquelas
pessoas que tinham tear e as que sabiam manipulá-lo a retomar a produção
artesanal de roupas. A matéria prima das vestimentas artesanais indianas, o
algodão, era a base dessa iniciativa, pois, Gandhi não admitia nenhum tecido
industrializado, mesmo de industrias indianas, visto que, a compra do algodão de
33
Na luta contra a tirania e a lei marcial, Gandhi (1999) observa que para a divulgação e construção
do movimento satyagraha e a desobediência civil, dois periódicos foram fundamentais para que um grande número da população indiana tomasse conhecimento das propostas e ações do satyagraha: o Young Índia – escrito em inglês; e o Navajivan, escrito em gujarate, língua de maior alcance e identificação ao povo indiano.
54
produtores indianos garantiria o fortalecimento da economia dessas pessoas,
contribuindo para a diminuição da pobreza entre essa classe.
Dessa forma, Gandhi (1999) empreendeu pela Índia, com uma série de
dificuldades financeiras e na obtenção de matéria prima, o movimento nacionalista
khadi34, swadeshi35, que preconizava a feitura das roupas dos indianos, os dhotis36,
pelos próprios indianos, de forma artesanal e com matéria prima produzida no
próprio país. Gandhi aprendeu a fiar e começou a produzir seus próprios dhotis em
seu ashram37.
Como mensagem de adeus, Mahatma Gandhi observa o laço entre suas
experiências de vida, a descoberta do ahimsa, o caminho em busca da Verdade e a
vida em amor e a fé em Deus:
Por fim, considerando as atuais experiências, minhas conclusões dificilmente poderiam ser vistas como definitivas. [...]. Dou muito valor às minhas experiências. [...]. Tem sido um esforço incessante descrever a verdade como ela se apresentou a mim, e o exato modo como a alcancei. Esse exercício me tem proporcionado uma inefável paz mental, pois minha profunda esperança sempre consistiu em levar aos hesitantes a fé na Verdade e no ahimsa. Minha experiência convenceu-me de que não há outro Deus senão a Verdade. E se todas as páginas deste capítulo não proclamarem ao leitor que o único meio para a realização da Verdade é o ahimsa, devo concluir que todo meu trabalho de escrever estas páginas foi em vão. [...]. Depois de tudo, por mais sinceras que tenham sido minhas buscas do ahimsa, elas não deixaram de ser imperfeitas e inadequadas. Os pequenos vislumbres que eu possa ter tido da Verdade dificilmente podem exprimir o seu brilho indescritível, que é um milhão de vezes mais intenso que o do sol, que vemos diariamente com nossos olhos (GANDHI, 1999, p. 427)
O Mahatma atesta a compreensão e práticas do princípio do ahimsa
como o elo com a Verdade em uma perspectiva holística:
Com efeito, o que consegui perceber foi apenas o que há de mais fraco e trêmulo nessa poderosa fulgurância. Mas posso assegurar que, como resultado de minhas experiências, uma perfeita compreensão da Verdade só pode resultar da completa percepção do ahimsa. Para ver face a face o Espírito da Verdade universal, que tudo permeia, o indivíduo deve amar a mais insignificante criatura como a si próprio. E um homem que quer chegar a isso não pode permanecer fora de nenhum campo da vida. É por isso que
34
Khadi: “tecido de algodão rústico” feio em teares manuais (GANDHI, 1999). 35
Swadeshi: compromisso nacional, durante a ação de Gandhi pela independência da Índia, para não
comprar produtos estrangeiros (GANDHI, 1999). 36
Dhoti: tecido de algodão, geralmente branco, que os homens indianos enrolam na cintura formando uma espécie de calção (GANDHI, 1999). 37
Em 31 de julho de 1921, Gandhi fez um célebre discurso à Índia que deu início ao movimento de swadeshi (FISCHER, 1982).
55
minha devoção à Verdade me levou ao campo da política. E posso afirmar, sem a menor hesitação e ainda assim humildemente, que aqueles que dizem que religião não tem nada a ver com política não sabem o que significa religião (GANDHI, 1999, p. 427-428).
E Para se observar o ahimsa, o caminho da autopurificação é
imprescindível:
A identificação com tudo o que vive é impossível sem uma autopurificação. Sem ela, a observância da lei do ahimsa permanecerá um sonho vazio. Deus jamais será realizado por alguém que não tenha o coração puro. A autopuificação, portanto, deve implicar a ascese em todos os aspectos da vida. Por ser contagiosa, a purificação de nós mesmos leva à purificação dos que nos rodeiam. Mas o caminho para a autopurificação é árduo e íngreme. Para atingi-la, o indivíduo tem de se tornar absolutamente livre de paixões em pensamentos, palavras e ações. Precisa elevar-se acima das correntes opostas de apego e ódio, atração e repulsa. Sei que ainda não tenho dentro de mim essa tríplice pureza, apesar de minha constante e incessante luta por ela. É por isso que os elogios do mundo não me comovem, na verdade com muita freqüência me doem. [...]. As experiências e os experimentos me têm sustentado, proporcionando-me grande alegria. Mas sei que ainda tenho um caminho difícil a transpor. Devo reduzir-me ao zero. Enquanto o homem não se colocar por livre e espontânea vontade como a última de todas as criaturas, não há salvação para ele. O ahimsa é o limite máximo da humildade. Ao me despedir do leitor, pelo menos por enquanto, peço-lhe que se uma a mim em oração ao Deus da Verdade, para que Ele possa conceder-me o benefício do ahimsa em mente, palavra e ação (GANDHI, 1999, p. 428).
A autobiografia de Gandhi foi escrita antes da consolidação da
independência da Índia. A Índia conseguiu sua independência no dia 15 de agosto
de 1947, mas, Gandhi não participou das comemorações, pois, com a criação do
Paquistão, empreitada por Mohammed Ali Jinnah, presidente da Liga Muçulmana,
vários conflitos se espalharam pela Índia, quase uma guerra civil, pois os indianos
que moravam no território do Paquistão deveriam sair de lá e partir para o território
indiano. Na fronteira entre os dois Estados na travessia de hindus e muçulmanos
para seus respectivos países, começaram os conflitos que se espalharam por toda a
nação recém criada (FISCHER, 1982).
Gandhi foi para Calcutá (local onde ocorriam os mais sangrentos
conflitos) jejuar até a morte se os combates não acabassem. Jawaharlal Nehru,
primeiro ministro indiano e discípulo de Gandhi, e Sardar Patel, deputado ligado a
Nehru e Gandhi, conclamaram a nação a parar com os conflitos, pois Gandhi já
estava a beira da morte. Hindus e muçulmanos comovidos com o estado do
56
Mahatma depuseram as armas e entraram em oração para que ele se recuperasse
(FISCHER, 1982).
Gandhi sobreviveu à sua penitência e sacrifício38, mas, continuava
descontente com a separação da ex-colônia em duas nações, pois entendia que
muçulmanos e hindus, mesmo os primeiros sendo minoria, eram “os dois olhos da
Índia”, portanto, deveriam conviver como irmãos no mesmo território ao lado de
judeus e cristão e dos próprios ingleses. Para evitar a separação dos territórios,
Gandhi pediu a Nehru que renunciasse ao cargo de primeiro-ministro em benefício
de Jinnah e este deveria compor todo o governo com muçulmanos nos postos de
comando do governo indiano; Jinnah preferiu a criação do Paquistão sob a ameaça
de uma guerra civil caso não fosse atendido, pressionado, Gandhi cedeu (FISCHER,
1982).
Grupos de hindus mais radicais acharam que Gandhi cedera demais aos
muçulmanos e começaram a tramar represálias. No dia 30 de janeiro de 1948,
Nathuram Vinayac Godse, chegou a Deli onde Gandhi faria sua oração matinal junto
à comunidade. Seriam os últimos momentos de vida do Mahatma:
[...]. “Antes de deflagrar os tiros, eu, na verdade, desejei-lhe felicidade e curvei-me à sua frente, em reverência”. Godse colocara-se na passagem pela qual Gandhi deveria transitar e inclinara-se. Manu procurara afastá-lo dali, para um lado, de modo que Gandhi pudesse começar os serviços sem mais delongas. Godse empurrou-a para longe, e, plantando-se a menos de um metro diante do Mahatma, atirou três vezes. O sorriso desvaneceu-se do rosto de Gandhi; os braços do Mahatma penderam-lhe dos lados do corpo. “Oh, Deus!”, murmurou e caiu morto no mesmo instante. Seu legado é a coragem, sua lição, a verdade, sua arma, o amor. Sua vida é seu monumento. Ele agora pertence à humanidade (FISCHER, 1982, p. 274).
Resignado com o desmembramento da Índia, Gandhi em seus últimos
dias preparava mais um ato político-simbólico, de amor, que o levaria a tentar unir os
irmãos hindus e muçulmanos, Mahatma Gandhi, aos 78 anos, planejava uma
viagem ao Paquistão.
O seu projeto de unir os homens ainda persiste na mente, na alma, e no
coração de várias pessoas ao redor do mundo. Enquanto houver os não-violentos, A
Grande Alma estará lá.
38
Gandhi jejuou “O jejum dos jejuns” do dia 13 de janeiro de 1948 até o dia 18 (FISCHER, 1982).
57
3.2 Sobre Gandhi e a Não-Violência
O filósofo Jean-Marie Muller (2007) atesta que apesar da celebridade a
nível mundial que cerca a figura de Gandhi, sua vida e obra ligada à não-violência é
desconhecida. Mendonça (2006) ainda observa que as ações políticas de Gandhi
ligadas ao satyagraha e a ahimsa, pela autenticidade em não recorrer à violência e a
ligação com preceitos religiosos e um certo orientalismo, é envolta em uma
atmosfera de misticismo que deturpa uma compreensão mais adequada às idéias e
ações do Mahatma. No entanto, também é notório que a atuação de Gandhi em prol
da liberdade do homem e do povo indiano deixou um legado que influenciou e ainda
influencia ações políticas e humanitárias de várias pessoas e instituições ao redor do
mundo além de debates sobre seus ideais – principalmente como alternativa aos
problemas sociais de nossa contemporaneidade.
Neste sentido, a análise da Não-Violência em Gandhi, e pós-Gandhi,
relaciona-se com a perspectiva ética em que a estratégia não-violenta se expressa
na resolução pacífica dos conflitos e na seara das relações humanas (MULLER,
2007).
Sobre discussão em referência a ontologia humana, Gandhi apregoa que
a vida não tem outro sentido, ou objetivo, senão a busca pela verdade que se
encontra dentro do próprio homem e não deve ser buscada fora dele. Para tanto,
deve-se prestar atenção a uma “voz suave e serena” que fala dentro de cada um de
nós, uma voz que é a única capaz de nos guiar no caminho da verdade, “juiz
supremo da legitimidade de cada ato e de cada pensamento (voz da consciência)”,
tendo como resultado o autogoverno de nossa vida (MULLER, 2007).
Este autogoverno é a chave para o homem assumir sua autonomia, pois,
seguindo a “voz da consciência” promulgamos as nossas próprias leis que orientam
nossos pensamentos, palavras e ações, sem submetermo-nos a qualquer
autoridade externa, seja religiosa, social ou política (MULLER, 2007).
Nessa obediência a própria lei, Gandhi reconhece que erros e enganos
podem acontecer, no entanto, é só correndo o risco de errar que chegaremos à
verdade, pois, a persistência no erro não está em tentar e fracassar, mas sim, em
prometer obediência a uma autoridade exterior. E se a busca da verdade
eventualmente pode acarretar em erro, então, não devemos impor nossa verdade ao
58
outro, neste sentido, em nossa caminhada devemos respeitar o princípio da
alteridade e da tolerância:
Aquele que busca a verdade deve convencer-se de que está sempre a caminho e nunca conseguirá alcançar o fim do caminho. A verdade que ele percebe é fragmentária, relativa, parcial e, logo, imperfeita. Por isso, o homem não deve nunca querer impor sua verdade aos outros. Segundo Gandhi, “a regra de ouro de nossa conduta é a tolerância mútua”. [...]. A verdade que Gandhi procura não se situa na esfera das idéias abstratas, mas encontra-se firmada em atitudes concretas. Considerando que o homem é essencialmente um ser de relação, o que se mostra vital é a verdade de sua relação com o outro. Em outras palavras, a verdade do homem não reside tão-só na retidão de suas idéias como também na integridade da relação que mantém com o outro [...]. A verdade não se encontra no homem considerado em sua individualidade, mas na relação com o outro, numa relação que respeite a verdade do outro (MULLER, 2007, p.199).
Dessa forma, a Não-Violência, para Gandhi, é o fundamento da busca da
verdade:
Gandhi está convicto de que a exigência de veracidade é inseparável da exigência de não-violência: “Sem a não-violência, não é possível procurar e encontrar a verdade. A não-violência e a verdade encontram-se tão estreitamente entrelaçadas que é praticamente impossível distinguir e separá-las uma das outra. São como duas faces da mesma moeda, ou melhor, de um disco metálico liso e sem nenhuma ranhura. Quem poderá dizer qual o verso ou o reverso? No entanto, a não-violência é o meio, e a verdade é o fim. Meios para serem meios devem sempre estar ao nosso alcance, de modo que a não-violência é nosso supremo dever” (MULLER, 2007, p. 200).
Em contraponto a parte animal do homem que corresponde à violência, a
Não-Violência corresponde à parte espiritual de nossa natureza. Segundo Gandhi,
para realizar sua humanidade o homem deve esforçar-se em cumprir a Não-
Violência em pensamento e ação para com o outro, sendo assim, a verdade é
indissociável do pensamento justo e da ação justa, portanto, a busca pela verdade
não tem por objetivo último compreender aquilo que é verdadeiro, mas o
cumprimento do bem: “A verdade, em suma, não é teórica, mas ética. O que é
essencial para o homem não é ter razão, mas ser bom” (MULLER, 2007, p. 201).
Sendo assim, abster-se do mal e da violência contra todo qualquer ser vivo é a
primeira exigência da verdade.
59
Fazer o bem, em Gandhi assume várias dimensões do comportamento
humano: agir, pensar e sentir. Huberto Rohdem sintetiza o princípio da Não-
Violência em quatro pontos:
1.Não fazer violência material a ninguém, matando-o ou ferindo-o; 2. Que se deviam abster também de qualquer violência verbal, não falando mal dos opressores britânicos; 3. Nem sequer deviam permitir violência mental, pensando mal de seus inimigos; 4. Nem mesmo deveriam abrigar em seu coração um resquício de violência emocional, odiando secretamente os ingleses (ROHDEN, 2004, p. 26).
Verdade, amor e tolerância são valores estreitamente ligados á Não-
Violência, mas Gandhi destaca outra virtude fundamental ao homem forte e não-
violento: a intrepidez. Para Gandhi, a força reside na ausência de temor, isso é
indispensável para aquele que deseja lutar contra a injustiça. Sem medo, o homem
não achará necessidade de se proteger empunhando uma arma, por exemplo
(MULLER, 2007).
O medo maior a ser dominado por aquele que escolhe a Não-Violência é
o da morte, visto que, ao recusar matar, o adepto da não-violência corre o risco de
ser morto. Muller (2007) destaca que para Gandhi a superação do medo da morte
acede o homem a liberdade, pois, liberta-o do seu desejo de violência (a eliminação
do outro). Neste caso, a morte não é tida como uma aceitação passiva à violência,
mas sim, como uma forma de resistência, visto que, o não-violento morre por resistir
à violência que o agride, além do mais, uma resposta não-violenta a um ato violento
pode surpreender o agressor já que este esperava um revide e, também, pode
desconcertá-lo e finalmente desarmá-lo através da percepção de que não vale à
pena matar aquele que acolhe bem a morte.
Muller (2007) adverte que apesar de alguns críticos associarem a Não-
Violência a um discurso religioso, já que Gandhi sempre a relacionava a Deus – e
por isso as críticas – o gandhiano francês, no entanto, observa que para além de
uma referência estritamente espiritual a Não-Violência tem por reduto a razão, pois,
Gandhi não era contrário a ciência e as inovações tecnológicas, o que ele advertia
era a intenção e os motivos subjacentes a iniciativas científicas e tecnológicas:
Pensar que “a verdade é Deus” implica num posicionamento intelectual e espiritual totalmente diferente, pois nesse caso a verdade não se deixa conhecer pelo homem por uma revelação vinda do exterior, mas por uma exigência interior, expressa pela “vos suave e serena” de sua consciência,
60
ou seja, pelos ditames da razão. É, portanto, a razão que conduz Gandhi a descoberta da exigência da não-violência”. Ele não hesita em afirmar que “a razão é um outro nome da não-violência” Com isso, Gandhi afirma o primado da razão sobe a religião e entende que lhe cabe autonomia de avaliar a verdade dos textos sagrados segundo as exigências de sua consciência [...] “Recuso qualquer doutrina religiosa que não esteja em consonância com a razão e que se oponha à moral”. [...] “Nunca devemos pactuar com o erro, mesmo quando apoiado em textos sagrados” (MULLER, 2007, p. 205).
Sendo assim, a imagem que Gandhi constitui de Deus é próxima ao
primado da razão, pois, conjuga-se com a noção de verdade:
De acordo com Gandhi, “Deus não é uma pessoa”, mas “uma força de vida que permanece imutável e sustenta todos os seres”. Assim, o Deus que ele venera não tem nome nem rosto. “Não vi Deus”, confessa ele, “e não o conheço. [...] Não disponho de nenhuma palavra para caracterizar minha crença em deus”. Enfim, para Gandhi, Deus é a verdade que se encontra no âmago do ser humano. Com isso, acaba por substituir a afirmação religiosa “Deus é a verdade” pela expressão “A verdade é Deus” (MULLER, 2007, p. 205).
Para Gandhi, o ponto de apoio da resistência não-violenta é o poder do
sofrimento daquele que se mantêm fiel à verdade e recusa ser cúmplice do mal.
Este poder alicerça-se na paciência e compaixão do não-violento para com o
adversário, pois, por meio da resistência não-violenta não se busca coagir os
adversários, mas sim, obter sua adesão pela aceitação do sofrimento já que
reconhece-se a bondade inerente à natureza humana:
Ao contrário da violência, a resistência não-violenta deixa ao adversário um espaço em que tem a possibilidade de tomar consciência da injustiça pela qual é responsável e decidir livremente modificar seu comportamento. O sofrimento daquele que escolheu não revidar golpe por golpe pode efetivamente falar mais alto ao coração do adversário e desarmá-lo. Qualquer homem pode converter-se e desviar-se do mal. A não-violência permite a conversão do adversário, e, mais que isso, favorece-a e facilita-a, mas não tem o poder de impô-la (MULLER, 2007, p. 209).
A Não-Violência caracteriza-se por ter uma dimensão prática – alguns
estudiosos, e o próprio Gandhi, reconhecem que a resolução não-violenta de
conflitos nasceu de uma necessidade prática frente aos conflitos políticos entre a
Índia e o Império Britânico. Portanto, é encarada como uma estratégia de resolução
de conflitos levada a cabo por Gandhi no campo político e considerada um meio
técnico eficaz tal como foi empreendida para a independência da Índia (MULLER,
61
2007). E como medir a eficácia da não-violência, como mensurar se um conflito foi
resolvido de forma não-violenta?
A respeito disso Gandhi afirma: “Pode garantir-se que um conflito foi solucionado segundo os princípios da não-violência se não deixa nenhum rancor entre os inimigos e os converte em amigos”. Isto revela uma ousadia intelectual que amplia nosso entendimento da condição humana, ao mesmo tempo que promove a criação de um número maior de alianças para fortalecer o tecido social sobre bases de convivência confiável que, por sua vez, abrem para a Paz (DISKIN, 2007, p. 1)
A política em Gandhi tem como eixos principais a verdade e a Não-
Violência, esta última tida por um método de ação política junto às massas por meio
da resistência ativa. De maneira geral, Mendonça (2006) assim caracteriza a ação
política (inovadora) construída pelo Mahatma:
Deste modo o padrão tradicional de ação política seria rompido por Gandhi, na medida em que para ele os fins eram condicionados pelos meios na mesma medida em que considerava o futuro como contido no presente. Para isto renunciou a quaisquer métodos conspirativos contra o adversário. Isto transformou suas batalhas contra o governo inglês em combates rituais nos quais as regras eram conhecidas de ambos os lados. Esta relação extraordinária entre meios e fins era correlata à idéia subjacente à satyagraha de que o processo e não os resultados era o mais importante. A experiência da verdade implica na renúncia aos frutos da ação e focaliza a sua atenção nos princípios éticos do agir político. Não há planos rigorosos a seguir, nem teologias e finalismos, mas fundamentalmente o momento presente [...]. A não-violência é um combate espiritual (e nesse sentido indissociada da Verdade) e político cujas armas são o Contato com o adversário, a Não-Cooperação e a Desobediência Civil (MENDONÇA, 2006, p. 10).
Em se tratando da ação política de Gandhi, não podemos deixar de citar o
episódio que ficou mundialmente conhecido como a “Marcha do Sal”, um ato
político-simbólico – característico de Gandhi – que desafiou o Império Britânico por
meio da desobediência civil pacífica.
Em 1930, o governo britânico da Índia promulgou o monopólio do sal, o
que obrigava cada indiano a comprar o seu sal dos agentes do governo, por um
preço 24 vezes mais alto do que o normalmente praticado no comércio. Inumeráveis
minas de sal, pequenas e grandes, foram fechadas por ordem do governo, e ainda,
os indianos não podiam extrair o sal do Oceano Índico que banha grande extensão
da Índia (ROHDEN, 2004).
62
Em princípios de 1930, Gandhi resolveu insurgir-se conta a injusta lei de
monopólio do sal, empregando o mesmo método de ahimsa utilizado na África do
Sul. Entretanto, antes de tomar uma atitude mais “desafiadora”, o Mahatma
escreveu uma carta ao vice-rei da Índia, solicitando encarecidamente a revogação
da infame lei. Apesar da apreciação da carta pelo do vice-rei, Gandhi não foi
atendido, então, colocou em prática sua tática política:
Assim, Gandhi resolveu executar o plano. Iria marchar à praia do mar e iniciar os trabalhos da extração do sal e oferecê-lo ao povo da Índia, livre de impostos. O governo se veria obrigado a intervir e, desse modo, atrairia a atenção do mundo, despertando as nações para a injustiça da qual a Índia estava sendo vítima. Gandhi tinha perfeita noção dos sacrifícios e do perigo que os aguardavam, a ele e aos outros satyagrahis que resolvessem aderir espontaneamente ao movimento de desobediência civil. Dias antes do início da marcha associaram-se ao grande líder 79 homens, a elite espiritual do ashram, que se declararam dispostos a tomar sobre si, livremente, todos e quaisquer sacrifícios, inclusive prisão e morte. Gandhi lhes fez ver o arriscado da sua resolução; eles, porém, permaneceram firmes e prometeram evitar qualquer ato de violência material, verbal e mental – isto é, se absteriam de fazer mal, dizer mal e mesmo pensar mal de seus inimigos e carrascos, fossem quais fossem as injustiças que tivessem de sofrer (ROHDEN, 2004, p. 55).
No dia 5 de abril de 1930, após vinte e cinco dias de marcha, às praias do
mar, num local chamado Dandi, às 4h30 da manhã, depois de uma devota mediação
espiritual, começaram a extrair sal das águas do oceano. A lei estava violada, a
revolta contra o monopólio do sal iniciada. Dentro de poucos dias, 50 mil pessoas,
homens, mulheres e crianças, extraiam sal do mar que ofereciam gratuitamente, ou,
vendiam a preços módicos e sem impostos (ROHDEN, 2004).
Não tardou a ofensiva do governo britânico contra os rebeldes pacíficos.
Em pouco tempo, 60 mil indianos, entre eles Gandhi, estavam presos e/ou sendo
espancados pela Índia afora. O mundo acompanhou este acontecimento observando
duas condutas: a crueldade da repressão britânica e a resistência pacífica dos
satyagrahis opondo a benevolência à violência, derrotando o ódio pelo amor. Esse
episódio veiculado pela imprensa por todo o mundo foi considerado o primórdio da
queda do Império Britânico na Índia, pois, mostrou à humanidade a tirania dos
ingleses em suas colônias e, mais ainda, a forma como os indianos estavam
reagindo à violência através da Não-Violência, conduta que sensibilizou o mundo e
angariou vários simpatizantes de todas as nacionalidades e credos à causa do
Mahatma (ROHDEN, 2004).
63
A resistência política não-violenta empreitada por Gandhi em relação ao
Império Britânico é uma forma de mostrar o seu caráter realista. Neste sentido, na
busca pela justiça faz-se necessário observar o extremo cuidado da relação entre o
fim e os meios, por mais que o ideal de justiça seja plenamente justificável como
objetivo final, Gandhi ressalta que os meios justos é que levarão de fato a um final
justo:
“Por mais clara”, afirma Gandhi, “que seja a definição do objetivo que queremos alcançar e nosso desejo de conseguir chegar lá, não bastam para nos indicar o caminho enquanto não determinarmos ou não utilizarmos os meios necessários. Por isso, tive sobretudo o cuidado de preservar esses meios e desenvolver sua aplicação. [...] Creio que avançaremos rumo ao objetivo na exata medida da lisura de nossos meios”. Os meios utilizados dever ser coerentes com o fim almejado: “Os meios são como a semente e, o fim, a árvore. A relação é tão inevitável entre o fim e os meios como entre a árvore e a semente. [...] Colhemos exatamente aquilo que semeamos (MULLER, 2007, p. 214).
A Não-Violência no campo da política é mais que um princípio espiritual,
filosófico e moral, trata-se de um princípio estratégico de ação política. Ao invés de
se recorrer à força das armas, a resistência não-violenta recorre ao princípio de não-
cooperação. Este princípio tem como objetivo nem tanto converter o adversário, mas
sim, exercer pressão sobre ele e assim foi a atitude do povo indiano para com o
domínio inglês:
A recusa a cooperar com a injustiça é, ao mesmo tempo, uma exigência ética que obriga o indivíduo não ser cúmplice do mal e um princípio estratégico que lhe permite lutar contra a injustiça. O cidadão não poderia pretextar a coerção da lei para justificar sua cooperação com a injustiça. “A desobediência civil é um direito imprescritível de qualquer cidadão. Não poderia renunciar a ele sem deixar de ser um homem. [...] Não dar continuidade à desobediência civil seria aprisionar a consciência”. A exigência da consciência deve estar acima da imposição da lei, pois “a lei da maioria nada tem a dizer quando é a consciência que deve se pronunciar”. A virtude maior do cidadão não é a obediência, mas a responsabilidade [...]. (MULLER, 2007, p. 215).
Gandhi confiava na coerção da ação não-violenta. Se o povo se mantiver
coeso, mesmo frente ao ataque militar do adversário, a ação não-violenta
empreitada ao sistema opressor (e não a(s) pessoa(s), indivíduo, responsável pela
opressão) resultará na conversão (e não na eliminação) do adversário (MULLER,
2007).
Para Gandhi, o regime político compatível com o princípio da Não-
Violência é a Democracia, pois, nele a concepção do espaço público é um campo
64
marcado pela eticidade onde há a possibilidade de se estabelecer nexos entre o
público e o privado, o cotidiano e o excepcional, o interindividual e o social, que
podem ser unidos através da ética como um instrumento do agir para a
transformação do mundo (MENDONÇA, 2006, 2003, 2001).
No entanto, Gandhi não vê na democracia formal ocidental o modelo
ideal, pois, não foi por meios democráticos que a Inglaterra se apoderou e governou
a Índia. O Mahatma também critica os métodos de obtenção de poder empregados
na Revolução Francesa e na Revolução Russa – luta armada. Para ele, a
democracia que imaginava para a Índia não deveria ser construída com a violência
da luta armada, mas sim, com o poder da não-cooperação, o que levará ao
autogoverno pelo povo:
Gandhi espera demonstrar, assim, que “a verdadeira independência não virá da tomada de poder por alguns, mas do poder que todos terão de se contrapor aos abusos de autoridade. Em outras palavras, deveremos chegar à independência inculcando nas massas a convicção de que têm a possibilidade de controlar o exercício da autoridade e mantê-lo dentro de seus limites” [...] “A independência deve começar pela base. Assim cada aldeia será uma república”. [...] A principal condição exigida para que uma sociedade seja governada pela lei da não-violência é que seja constituída, em sua maioria, por cidadãos que tenham voluntariamente optado pela não-violência como norteadora do comportamento pessoal, social e político. Gandhi entende que esta condição é extremamente difícil para se tornar real. Por isso, considera irrealista pensar que um governo possa tornar-se completamente não violento. “hoje”, afirma Gandhi em 1940, “não posso conceber semelhante idade do ouro. Mas acredito na possibilidade de uma sociedade em que a não-violência seja predominante. Trabalho para isso” (MULLER, 2007, p. 230)
Ravindra Varma (2002) observa que Gandhi também tinha preocupação
quanto às organizações que geram poder, para o Mahatma, as instituições de poder
deveriam não beneficiar uns poucos, mas sim, funcionar em beneficio de todos sob
constante e eficaz vigilância e controle do povo (daí a preferência pela democracia
erigida sobre o satyagraha). Sendo assim, Gandhi preconizava: “a) a diminuição da
concentração de poder; b) o aumento do poder de resistir ao seu próprio abuso (por
meio do satyagraha – o compromisso com a verdade); c) uma atitude de fiel
depositário, por pare daqueles que detêm ou geram o poder (VARMA, 2002, p. 47).
Gandhi também via com receios as grandes organizações, pois o
gigantismo e o afã de crescimento desmedido, vide o campo econômico, levou a
construção de estruturas que concentram poder e dificultam as possibilidades de
controle e iniciativa. Sendo assim, uma governança participativa, transparente e
65
responsável teria que se libertar das amarras do gigantismo econômico e político. As
unidades associativas, para Gandhi, deveriam aprender com a lei que governa e
sustenta a família, primeira e mais fundamental unidade constitutiva da sociedade
onde a lei do amor permite a conciliação de interesses e forma-se pela base da
cooperação em benefício de todos (VARMA, 2002).
Discutidas as características da Não-Violência em relação a existência
humana, ética e política, passemos agora as análise das repercussão do ahimsa e
do movimento satyagraha.
3.3 O legado de Gandhi: mudanças e esperanças nas esferas da ética e da
política
A orientação de Gandhi ao mundo pode ser encarada sob uma
perspectiva pedagógica, pois, antes de combater a injustiça – tanto na esfera
microética quanto nas relações sociais constituídas na polis – é necessária uma
auto-educação que para Varma (2002) elencam-se em três passos:
1º) reconhecer que qualquer situação de violação de direitos se sustenta unicamente se há cooperação por parte do oprimido, ou seja, se aceita a opressão como fatalidade ou condição natural da existência; 2º) mudar a atitude interna de passividade, gerando respeito próprio, dignidade e coragem; 3º) determinação para deixar de obedecer e submeter-se, apesar das represálias que isso possa acarretar (VARMA, 2002, p. 12).
Para Varma (2002), a experiência de vida de Mahatma Gandhi ensinou
que o binômio satyagraha/ahimsa – ater-se à verdade e a não-violência – constitui o
fundamento sobre os quais se constrói qualquer mudança pessoal ou social.
A pedagogia de Gandhi ainda prevê que a resolução dos conflitos não
deve fincar-se na eliminação ou destruição do opressor, o propósito que deve
nortear a estratégia de resolução pacifica dos conflitos tem de resultar no
fortalecimento e dignificação de ambas as partes, visto que, a preocupação
fundamental de Gandhi era o ser humano como membro de uma espécie única
(VARMA, 2002).
66
Varma (2002) considera a Não-Violência como um valor, já que Gandhi
ao ser interpelado sobre o seu significado relacionava-a ao amor, sentimento que o
Mahatma interpretava como uma forma de responsabilidade de resistir (resistir
quando a pessoa que você ama está fazendo algo errado, não cooperando com esta
ação equivocada). Outro valor relacionado à pedagogia de Gandhi é a simplicidade
que nos desperta para a percepção de que as condições materiais são apenas
meios. Atrelado a essa perspectiva, a prática do autocontrole é fundamental para
que se obtenha a simplicidade preconizada por Gandhi, para enfim, gozar-se de um
estado pleno de paz:
O autocontrole é necessário até para prolongar nossa existência física. É necessário também para nossa existência espiritual e mental. Como controlar? Sempre perguntando a si próprio; preciso mesmo disso? Precisando, querendo, desejando – não será que assim crio para mim uma situação na qual é mais difícil ter paz de espírito? Se desejo algo de modo ininterrupto, não terei essa paz. se quero tê-la, devo reduzir minhas necessidades. De outra forma, sempre dependerei dos outros. E, quanto mais depender de outra pessoa, menos serei capaz de encontrar a paz em mim. Essa é a simplicidade na qual Gandhi acreditava (VARMA, 2002, p. 35-36).
Já no campo macro das relações, Varma (2002) observa que a luta de
Gandhi teve uma caráter universal, por mais que tenha se concentrado na África do
Sul e na Índia, pois, direcionada a valores universais, suas campanhas estavam
ligadas ao que na modernidade chamamos de direitos humanos, ou seja, à
dignidade e igualdade entre os homens e uma nova ordem social, econômica e
política fundada no princípio da independência, liberdade e igualdade, dessa forma,
contrárias à discriminação racial e à exploração de camponeses e trabalhadores:
Deixamos nos absorver com facilidade pelos elementos novos, únicos, simbólicos e espetaculares das luas e movimentos que Gandhi liderou. Mas o que ele próprio salientou, repetidas vezes, foi o verdadeiro significado dessas lutas. Percebia todos os movimentos que encabeçou como meios de apresentar um conjunto de valores, sobre os quais deveriam ser reconstruídas atitudes individuais, relações sociais e instituições. Via-os como meios alternativos de luta por uma nova sociedade. Grandes pensadores daquela época, como Leon Tolstoi e Romain Rolland, logo perceberam que as batalhas travadas por Gandhi na África do Sul – e depois na Índia –, eram de imenso significado para toda a humanidade (VARMA, 2002, p. 42-43).
Johan Galtung (2003) defende que a luta política de Gandhi teve um
caráter mundial originada em uma experiência global da realidade social apoiada em
67
uma visão de totalidade da realidade. Este autor destaca que essa visão de
mudança em uma totalidade poderia levar a uma política totalitária, no entanto,
Galtung observa que alguns princípios religiosos incidiram de forma determinante na
concepção de ação política do Mahatma, fato que preservou o caráter de totalidade
da política de Gandhi sem que ela findasse em um regime totalitário:
Nesse ponto, Gandhi foi provavelmente guiado pela filosofia hindu. Nela, o princípio holográfico desempenha um papel fundamental. Quem buscar de modo simplista as quatro principais metas hindus, dharma (dever), artha (as posses), kama (prazer) e moksha (liberação), se for no encalço de cada uma isoladamente não obterá nem mesmo aquela que procura. É muito melhor ir aos poucos, gradualmente, com as quatro – de modo que aquilo que se ganha com uma possa ser usado para facilitar o progresso com as outras -, do que tentar mergulhar de cabeça em uma delas, esperando que sua compreensão pavimente o caminho para as demais. Gandhi era um revolucionário nesse segundo sentido, hindu-oriental, e não no primeiro, cristão-ocidental, no qual se espera que muito se origine de um só fator [...]. Caminhando vagarosamente – e em muitas trilhas – [...] muitas coisas não aconteceram automaticamente, na onda de independência política. Portanto, uma das principais implicações da concepção total de Gandhi – sua visão holográfica – é precisamente a de que ela na teve de se tornar totalitária. E assim é porque ela não presume a necessidade da mudança total, em todas as dimensões de uma só vez, nem em só uma delas na esperança de que o resto venha de modo automático. Gandhi foi um revolucionário multidimensional, gradualista, evolucionário. Uma combinação rara: sincrônico, mas gradual (GALUNG, 2003, p. 52-53).
A ação política não-violenta empregada por Gandhi é tida por Mendonça
(2003) como uma ruptura com a política maquiavélica tradicional, baseada na razão
instrumental, na mentira e na manipulação. Os resultados de uma política baseada
na Não-Violência e Cultura de Paz são lentos e acompanhados de derrotas, mas, o
fracasso contém a esperança de que podemos transformar e avançar. Fruto desta
perspectiva não-utopica, é a descendência e os resultados que Vaclav Havel, na
Revolução de Praga; Martin Luther King Jr., na luta pelos direitos da comunidade
negra nos Estados Unidos; e Nelson Mandela, na luta contra o aparheid na África do
Sul, obtiveram com a construção de outros caminhos para se pensar a polis em
nosso século.
Ravindra Varma considera que a paz por meio da Não-Violência é um
projeto, um compromisso (urgente) pela sobrevivência da espécie humana:
[...] a tarefa colossal de construir a paz não pode ser completada sem um compromisso proporcional. Não pode ser conseguida por meio de ritos de tributo ao pacifismo. Obteremos sucesso e resultados apenas se trabalharmos com a consciência de que nossa sobrevivência depende da
68
paz, do sentimento de que o caminho para ela passa por um compromisso consciente – em pensamento e ação – com a não-violência, e pela busca de nossos interesses pessoais, bem como dos sociais e globais. Teremos sucesso, de fato, se percebermos que apenas a não-violência e o amor têm o poder de unir, de nos manter juntos, para que possamos viver e prosperar em comum. Nosso compromisso com a não-violência e com o amor é também o compromisso com nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie única, nos degraus mais altos da escala evolutiva (VARMA, 2002, p. 89).
Compartilhamos da mesma proposta, sendo assim, tentamos um esforço
nesse sentido e articulamos a proposta de Cultura de Paz e Não-Violência por meio
do Ensino Religioso.
4 O ENSINO RELIGIOSO COMO POSSIBILIDADE PARA O FOMENTO DA
CULTURA DE PAZ E NÃO-VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS
Não há educação que não seja recíproca Não se é educador à partida
Tornamo-nos educadores educando o outro
Gabriel Marcel
Este capítulo trata da relação entre os pressupostos do Ensino Religioso
– expressos pela atual LDB 9394/96 e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Religioso (PCN‟S) – e o fomento da Cultura de Paz e Não-Violência através
da educação.
Através de um breve histórico das legislações e normatizações do Ensino
Religioso no Brasil (e seus desdobramentos) avaliamos que a atual diretriz para
essa disciplina insere-se no debate da constituição de uma educação para valores.
Analisando reflexões e experiências de organizações e profissionais
ligados ao Ensino Religioso, elaboramos nossa própria proposta tendo como foco
central para a possibilidade de se construir a Cultura de Paz por meio do Ensino
Religioso a experiência de vida de Mahatma Gandhi com a Não-Violência, e sua
conexão com os conteúdos para o Ensino Religioso relacionados nos PCN‟S desta
disciplina.
69
4.1 Ensino Religioso no Brasil: um breve histórico
Desde os tempos imperiais até hoje as discussões sobre o Ensino
Religioso no Brasil perpassam por três pontos principais: a permanência ou não
como disciplina regular do currículo; a identidade desta disciplina e dos seus
conteúdos e a formação do professor de Ensino Religioso, fato que pode ser
mensurado através das normatizações da disciplina ao longo de nossa história
(CASSEB, 2009).
Todas essas questões envolvem interesses debatidos na esfera política,
onde de um lado há os defensores do Estado laico – que apregoam a retirada do
Ensino Religioso das escolas -, e do outro, aqueles que defendem o Ensino
Religioso como componente indispensável da formação cidadã e moral dos
brasileiros, e ainda, os que buscam uma integração destas duas perspectivas
(CASSEB, 2009).
No regime de padroado vigente durante o período colonial e imperial do
Brasil, a Escola tinha por meta a formação de valores em uma tradição religiosa: a
da Igreja Católica Apostólica Romana. Sendo assim, o Ensino Religioso deste
período, desenvolvido nas poucas instituições educacionais existentes, era em sua
maioria ministrado por religiosos (DEL PRIORE, 2002). Portanto, no período da
Monarquia Constitucional (1823-1889) onde o texto da Carta Magna de 1824
mantinha a Religião Católica como a Religião oficial do império, o Ensino Religioso
era desenvolvido como meio de evangelização dos gentios e catequese dos negros
(aparelho ideológico), em concordância com os acordos estabelecidos entre o Sumo
Pontífice e o Monarca de Portugal (FONAPER, 2006).
Na implantação do Regime Republicano (1890-1930) – com forte
influência do Positivismo – aspectos da vida social como a educação, o matrimônio e
o enterro (cemitério) eram de competência do Estado, um Estado livre da Igreja
onde esta poderia ter liberdade de culto, no entanto, fora da escola e em local
próprio. Pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de
fevereiro 1891, o Ensino Religioso deveria estar sob responsabilidade dos ministros
de cada confissão religiosa a ser efetivada em seus templos (OLIVEIRA, 2007). Tal
proposta não agradou o episcopado que mesmo em face da educação de caráter
70
laico manteve o Ensino Religioso sob fidelidade das orientações do catolicismo
(FONAPER, 2006).
Durante o período de transição (1930-1937) no decreto conhecido como
Independência da República, de 30 de abril de 1931, por conta da Reforma
Francisco Campos, o ensino da religião é admitido como facultativo de acordo com a
confissão do aluno e dos interesses da família sendo que a organização dos
programas e as escolhas dos livros ficam a cargo dos ministros dos respectivos
cultos (OLIVEIRA, 2007).
A Constituição de 16 de julho de 1934, no artigo 153, torna obrigatória a
oferta do Ensino Religioso nas escolas do país em horários normais e de acordo
com a confissão religiosa do aluno; a freqüência por parte dos estudantes tem
caráter facultativo (OLIVEIRA, 2007). De acordo com o Fórum Nacional Permanente
para o Ensino Religioso (FONAPER, 2006) esta é a lei referencial para as
discussões dos diversos aspectos do Ensino Religioso no país desde 1934 até a
LDB vigente (9394/96).
No período do Estado Novo (1937-1945) com a efetivação da Reforma
Francisco Campos, o artigo 133 da Constituição de 1937 retira a obrigatoriedade do
Ensino Religioso das escolas do país. Tal premissa teve forte influência do
Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova – os escolanovistas eram contra a inclusão
do Ensino Religioso por considerarem os princípios da laicidade, obrigatoriedade e
gratuidade do ensino público (FONAPER, 2006).
Em 1941, o projeto de Lei Orgânica deste ano propôs uma cisão entre
culto religioso e as aulas de Ensino Religioso. Esta medida veio atender as
reivindicações da Igreja Católica aproximando-a do Estado, já que no período do
governo de Getúlio Vargas as aulas de Religião foram canceladas: “O argumento
utilizado apoiava-se no papel da religião como ação moderadora na sociedade, pois
lhe cabia o ensino de valores e atitudes cristãs que contribuiriam para a paz e para a
tranqüilidade social” (OLIVEIRA, 2007. p. 52).
No terceiro período republicano (1946-1964), em 1961, foi promulgada a
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 4024/61, que no
artigo 97 versava sobre o Ensino Religioso.
Esta disciplina volta a ser inserida nos horários normais da escola, sendo
de matricula facultativa para os alunos e respeitando a confissão religiosa destes
sem a determinação de um número mínimo para a formação de classe. As aulas
71
deveriam ser ministradas por representantes da autoridade religiosa em sem ônus
para os cofres públicos:
Art. 97. O Ensino Religioso constitui disciplina dos horários normais das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado sem ônus para os cofres públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável. § 1. A formação de classe para o Ensino Religioso independe de número mínimo de alunos. § 2. O registro dos professores de Ensino Religioso será realizado perante a autoridade religiosa respectiva (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 4.024/61. In: SAVIANI, 1996. p. 3).
Em 1964, no quarto período republicano, o governo militar através de um
golpe armado depôs o presidente constitucional João Goulart, e para implementar o
regime autoritário da ditadura foi necessário revogar e alterar dispositivos da
legislação sobre a educação (SAVIANI, 1996). Sendo assim, em 1971 foi
promulgada a Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2ª Graus, de nº
5.692/71, que em seu artigo 7º, parágrafo único – sem revogar totalmente a LDB de
1961 – repete o dispositivo da Carta Magna de 1968 e Emenda Constitucional nº
1/69, reinserindo o Ensino Religioso nos horários regulares compondo a área de
estudos de Moral e Cívica, Artes e Educação Física, no intuito de formar alunos
voltados ao civismo e a moral concernentes ao regime militar (OLIVEIRA, 2007):
“Art. 7 [...] Parágrafo único – O Ensino Religioso de matrícula facultativa constituirá
disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de primeiro e segundo
graus” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Lei 5.692/71).
Durante as décadas de 80 e 90, o Brasil, já imerso no âmbito da
redemocratização, passa por um processo de rupturas com as concepções político-
sociais e culturais da época, gerando incertezas e possibilidades quanto aos vários
aspectos da sociedade brasileira. Neste cerne, a educação e o Ensino Religioso
voltam a ser pontos de novas discussões e polêmicas (FONAPER, 2006).
No contexto do início das discussões para a Constituinte, em 1985, à
instalação do FONAPER, em 1995, o Ensino Religioso passa por várias discussões
entre professores, estudiosos, pesquisadores da área, sistemas de ensino,
universidades, representantes de diversas tradições religiosas, políticos, enfim, a
sociedade civil como um todo atenta para a natureza, permanência ou não, e
identidade do Ensino Religioso nas escolas brasileiras (FONAPER, 2006).
72
Na Constituição Federal de 1988 – em vigor, através do artigo 210,
parágrafo 1º do Capítulo III da Ordem Social, lê-se que: “O ensino religioso, de
matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental”:
A inclusão desse dispositivo deu-se com uma significativa mobilização nacional, resultando na segunda maior emenda, em número de assinaturas, apresentada ao Congresso Constituinte. Em todo o país há grandes esforços pela renovação do conceito de Ensino Religioso, da sua prática pedagógica, da definição de seus conteúdos, natureza e metodologia adequada ao universo escolar (FONAPER, 2006. p. 18).
No dia 20 de dezembro de 1996, foi promulgada a LDB 9.394/96,
denominada também de “Lei Darcy Ribeiro”. Esta lei inseriu o Ensino Religioso no
contexto global da educação, preconizando o respeito à diversidade cultural-religiosa
do Brasil. Porém, manteve-se o Ensino Religioso como disciplina que não se
reverteria em ônus para o Estado, fato este que provocou protestos e mudanças
posteriores:
Art. 33 § 3º O Ensino Religioso, de matricula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de educação básica, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter [...]. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DESPORTO. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394/96. In: JUNQUEIRA, 2007. p. 37).
Finalmente, no dia 22 de julho de 1997, foi promulgada a Lei 9.475, que
alterou o artigo 33 da LDB 9394/96 retirando o termo “sendo oferecido, sem ônus
para os cofres públicos” e dando outros dispositivos:
Art. 33 O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de Educação Básica, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º - Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do Ensino Religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º - Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei 9.475 [22 de julho de 1997, que dá nova redação ao art. 33 da Lei (9.394/96) de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]. In: JUNQUEIRA, 2007. p. 45).
73
Com a Lei 9475/97, o Ensino Religioso no Brasil passa a ter as seguintes
características (CASSEB, 2009):
A disciplina é considerada como parte integrante da formação do cidadão;
A não permanência do Ensino Religioso confessional e interconfessional nas
escolas públicas;
A disciplina deve ser oferecida e ministrada nos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental;
Deve ser assegurado o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil;
São vedadas quaisquer formas de proselitismo;
Cabe aos sistemas regionais a regulamentação dos procedimentos para a
definição dos conteúdos e das normas para habilitação e admissão dos
professores.
A partir da Lei 9475/97, o Conselho Nacional de Educação, por meio da
resolução 02/98, estabelece que a disciplina deve ser integrada no conceito de área
do conhecimento, definindo-se norteadores e estruturas de leitura e interpretação da
realidade essencial para garantir a possibilidade de participação autônoma do
cidadão na construção de seus referenciais religiosos (OLIVEIRA, 2007).
As várias propostas para a normatização do Ensino Religioso ainda
fazem-se presentes nas salas de aula de nosso país. As perspectivas confessionais,
intercofessionais e as pautadas no cientificismo encontram espaço nos sistemas
educacionais caracterizando modelos de Ensino Religioso, refletindo assim, ao
mesmo tempo, heranças do período confessional e as novas propostas de respeito à
pluralidade cultural e religiosa do Brasil (CASSEB, 2009).
De acordo com João Décio Passos (2007), os modelos catequético,
teológico e da ciências da religião apresentam-se como práticas concretas e
referenciais para se discutir a fundamentação epistemológica das propensões do
Ensino Religioso no Brasil. Sua análise tem como parâmetro os fundamentos
teóricos e metodológicos de onde decorrem conteúdos, posturas políticas e didáticas
na relação professor-aluno e no ensino-aprendizagem.
74
Para o autor, os modelos refletem a historicidade das regulamentações do
Ensino Religioso e os conflitos de ordem política que permearam, e ainda estão
presentes, na definição da identidade desta disciplina:
Podemos dizer que os três modelos têm sua concretização numa certa seqüência cronológica. O modelo catequético é o mais antigo; está relacionado, sobretudo, a contextos em que a religião gozava de hegemonia na sociedade, embora ainda sobreviva em muitas práticas atuais que continuam apostando nessa hegemonia, utilizando-se, por sua vez, de métodos modernos. Ele é seguido do modelo teológico que se constrói num esforço de diálogo com a sociedade plural e secularizada e sobre bases antropológicas. O último modelo, ainda em construção, situa-se no âmbito das Ciências da Religião e fornece referências teóricas e metodológicas para o estudo e o ensino da religião como disciplina autônoma e plenamente inserida nos currículos escolares (PASSOS, 2007. p. 54).
O modelo catequético é preconizado entre as Igrejas cristãs (Católica e
Protestantes) e tem como prática escolar a catequese dos alunos voltada para a
formação das idéias corretas e verdadeiras, em oposição às idéias falsas. Esse
modelo busca reconquistar a hegemonia de outrora das confissões religiosas na
sociedade moderna (PASSOS, 2007). Tem por características:
O MODELO CATEQUÉTICO
Cosmovisão unirreligiosa
Contexto político aliança Igreja-Estado
Fonte conteúdos doutrinais
Método doutrinação
Afinidade escola tradicional
Objetivo expansão das Igrejas
Responsabilidade confissões religiosas
Riscos proselitismo e intolerância
FONTE: PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São
Paulo: Paulinas. 1 ed. 2007. p. 59.
Esse modelo é o implantado, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro
pela Lei nº 3.459/2000 – advindo de Igrejas cristãs evangélicas –, do Deputado
Carlos Dias, sancionado pelo governador Anthony Garotinho, em 14 de setembro de
2000. Tem caráter confessional e é obrigatoriamente parte da grade curricular e de
matrícula facultativa (PASSOS, 2007).
75
Outro exemplo parte da iniciativa da Igreja Católica em São Paulo, como
se pode ver na chamada publicada no jornal O São Paulo, de 12 de abril de 2006: “A
Pastoral Regional do Ensino Religioso realizará encontro anual de educador e
agentes de pastoral educativos, visando à implantação e à dinamização de ensino
religioso confessional católico nas escolas estaduais e municipais...” (PASSOS,
2007).
O modelo teológico tem por premissa superar a prática catequética indo a
uma perspectiva que considera a religião como tendo caráter universal, ou seja, é
uma dimensão do ser humano, e sendo assim, é um valor a ser educado. Nesse
modelo, considera-se a religião como fator imponderável para a formação integral do
ser humano, oferecendo aos homens referências de valores universais e morais
(PASSOS, 2007).
A ação pedagógica deste modelo está pautada sobre fundamentos
antropológicos e teológicos, no entanto, Décio Passos (2007) considera que se a
responsabilidade dos conteúdos ainda recai sobre as confissões religiosas este
modelo pode fatalmente reproduzir – de forma velada – o modelo catequético nas
escolas: “Mesmo embasado nessa antropologia e na convicção do respeito às
diversidades, o risco desse modelo afigura ser o de uma catequização disfarçada,
não tanto pelos seus conteúdos, mas pela responsabilidade ainda delegada às
confissões religiosas” (PASSOS, 2007. p. 64). O modelo teológico tem por
características:
O MODELO TEOLÓGICO
Cosmovisão plurirreligiosa
Contexto político sociedade secularizada
Fonte antropologia, teologia do pluralismo
Método indução
Afinidade escola nova
Objetivo formação religiosa dos cidadãos
Responsabilidade confissões religiosas
Riscos catequese disfarçada
FONTE: PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São
Paulo: Paulinas. 1 ed. 2007. p. 63.
76
A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) é uma das
entidades civis que entende que a formação religiosa deve ser efetivada não só nas
comunidades, mas também nas escolas, respeitando as confissões dos alunos
(PASSOS, 2007). Portanto, o Ensino Religioso deve ser ofertado pelo Estado como
forma de assegurar a formação de valores ao cidadão:
Toda a ação educativa se situa num contexto filosófico e de valores [...]. Toda proposta de educação é também uma proposta de valores, de um tipo de homem e de um tipo de sociedade [...] um processo de humanização, expressão de um projeto utópico, o homem novo e a nova sociedade, que impulsiona para a transformação do mundo de opressão (CNBB. Estudos da CNBB n. 41. Para uma pastoral da educação. In: PASSOS, 2007. p. 62).
Em nome de uma autonomia epistemológica e pedagógica – no intuito de
romper com os dois modelos anteriores – o modelo das ciências da religião advêm
das perspectivas da comunidade científica, dos sistemas de ensino e da própria
escola. Neste modelo, o ensino da religião não é encarado como uma atividade
cientificamente neutra, mas, deve ser interpretado como área de conhecimento,
sendo assim, caracterizado na intencionalidade educativa (PASSOS, 2007). Tem por
características:
O MODELO DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Cosmovisão transreligiosa
Contexto político sociedade secularizada
Fonte Ciências da Religião
Método indução
Afinidade epistemologia atual
Objetivo educação do cidadão
Responsabilidade comunidade científica e do Estado
Riscos neutralidade científica
FONTE: PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São
Paulo: Paulinas. 1 ed. 2007. p. 66.
Esta proposta de modelo é defendida (e definida) pelo FONAPER. Décio
Passos (2007) comenta a visão de Ensino Religioso dessa entidade:
77
O conhecimento da religião faz parte da educação geral e contribui com a formação completa do cidadão, devendo, assim, estar sob responsabilidade dos sistemas de ensino e submetido às mesmas exigências das demais áreas do saber que compõem os currículos escolares. As Ciências da Religião podem oferecer base teórica e metodológica para a abordagem da dimensão religiosa em seus diversos aspectos e manifestações, articulando-a de forma integrada com a discussão sobre a educação (PASSOS, 2007. p. 65).
O autor atesta que o modelo das ciências da religião – na tarefa política
de retirar o Ensino Religioso do campo de negociação das confissões religiosas e do
Estado – terá muitas dificuldades em romper com as estruturas confessionais e
interconfessionais ainda hoje remanescentes.
4.2 Cultura de Paz e Não-Violência nas escolas: relatos de experiências no
Ensino Religioso
O fomento de uma Cultura de Paz e Não-Violência nas escolas perpassa
por um corolário de iniciativas que abrangem a revisão dos conteúdos,
metodologias, prática docente, espaço físico, livros didáticos etc. para que estes
promovam e educação baseada em valores. Neste sentido, Cristina Von (2003)
indica algumas ações que a Escola e os atores sociais que dela fazem parte podem
implementar.
A Escola, por exemplo, pode promover atividades em grupo (envolvendo
alunos, professores e demais funcionários), para que os participantes entrem em
contato com o hábito de tomar decisões em grupo com a participação efetiva dos
envolvidos no processo, para que também possam experimentar formas de
organizações democráticas dentro de uma visão de cidadania planetária (VON,
2003).
Os professores podem incentivar os alunos a refletir sobe o futuro
(possível, provável e desejável) e mostrar como as pessoas, individual e
coletivamente, podem influenciá-lo tendo responsabilidade nos seus atos,
relacionando a reflexão com temas mundiais e locais, tratando de temas delicados
com sensibilidade e incentivar o aprendizado como um processo contínuo (VON,
2003).
78
Em relação às atividades que envolvam os princípios da Não-Violência,
Von (2003, p. 19) destaca algumas atividades que a escola pode promover quanto a
identificação de atitudes que dizem respeito à:
Como evitar conflitos e garantir que todos tenham tratamento igual
e justo.
As alternativas para a resolução pacífica de confrontos: diálogo,
negociação, diplomacia, intermediação etc.
As regras e os princípios que garantem a convivência em
sociedade (na família, em classe, na escola, na comunidade, no
país, no mundo etc.)
O que representa ser um cidadão brasileiro e o que representa ser
um “cidadão do mundo” ou “cidadão global”.
Os símbolos da paz.
Como a cultua de paz está presente na música e nas artes.
Em consonância com as prerrogativas supracitadas, o Instituto Vivendo
Valores na Educação (VIVE) desenvolveu um programa educacional, sob a
coordenação da psicopedagoga norte-americana Diane Tillman, voltado para a
criação de uma “atmosfera de valores” nas salas de aula frente ao quadro de
violência vivenciado nas escolas e na sociedade em geral. Para tanto, um dos
princípios da Não-Violência, o autoconhecimento (tanto do aluno quanto dos
funcionários) é postulado como ferramenta de promoção dos valores nas escolas:
Com a inclusão do estudo de valores, de maneira formal e informal, nos currículos, haverá tempo para este trabalho de alcance. É o passo inicial Do autoconhecimento, que conduzirá à transformação para a melhoria dos relacionamentos em todos os níveis, tornando as aulas mais atrativas e a escola um rico laboratório de vivências positivas, onde crianças e jovens desenvolverão à luz dos pensamentos e bons sentimentos (TILLMAN 2007, p. 1)
Um dos programas do VIVE é voltado para a formação de professores e
orientadores capacitados para a abordagem dos valores nas escolas. Sob aspectos
de uma postura não-violenta, esse programa prescreve as qualidades para um bom
orientador (TILLMAN, 2007, p. 2-3-4-5).
79
AMOR: O orientador deverá assimilar o amor por todas as pessoas com as quais trabalha. Para isto é necessário observá-las naquilo que têm de melhor, especial e único. [...]. Quando o orientador consegue criar um ambiente verdadeiramente acolhedor e positivo, todos produzirão e se realizarão com seu trabalho. A atenção deve ser dada de forma individual, mas sem preferência. A simples maneira de dirigir o olhar é significativa. Olhe para todos, igualmente, enquanto fala. Cada um deles se sentirá querido e respeitado.
PACIÊNCIA: [...]. O orientador deverá se imbuir desta percepção e encarar seu trabalho, com aqueles grupos de pessoas, como uma escultura que, passo a passo, vai se formando, com a elaboração coletiva. Cada um, por certo, terá seu ritmo de atuação e isso faz parte da beleza. Não ansiar por resultados imediatos mas a todo momento valorizar cada parte que vai ser concluída e não olhar o que falta fazer. Paciência tem muito haver com amor.
DETERMINAÇÃO: [...]. Determinação significa levar adiante, acreditar, investir e valorizar tudo. Está, intimamente, ligada à paciência. Quando há o claro reconhecimento do valor, da meta, não desistimos, mesmo que sejam necessários reparos, afim que continuemos. [...]. A determinação nos capacita a alcançar o que almejamos mas, para isto, é necessário exercitarmos a percepção do valor e, até mesmo, o senso da economia de recursos, o que economiza trabalho. Você, como orientador, terá uma boa chance de exercitar-se neste principio de valor, no decorrer do ano de aplicação do projeto, desde que mantenha o pique e a confiança no trabalho, até o final do ano.
AUTOCONFIANÇA: Confiar em si é a base para confiar nos outros, inspirando-os a confiarem em terceiros. A autoconfiança surge, naturalmente, quando há o trabalho verdadeiro do cultivo de valores. Confiamos mais nas pessoas virtuosas e, com base no mesmo principio, confiaremos mais em nós, à medida em que formos melhores. [...].Quando há autoconfiança, o investimento se faz na medida certa, o que contribui grandemente para o sucesso de um empreendimento. Mesmo que o sucesso externo não aconteça, há o ganho da autosatisfação: o que era ser feito, foi feito. Não existirão culpas ou remorsos. O orientador precisará desta habilidade para inspirar que outros invistam corretamente. Se seguir a visão de suas próprias qualidades, será fácil alcançar autoconfiança.
DISCRIÇÃO: [...].A introversão é um estado de prazer consigo mesmo. Aquele que é introvertido aprecia o silêncio seu e dos outros, não é fechado- é autocentrado. A introversão induz ao equilíbrio. É uma das práticas das pessoas que praticam exercícios de interiorização e meditação. Os introvertidos são discretos. Sabem agitar os outros, exibir-se, não é uma atitude favorável para o convívio. Onde quer que estejam, só irradiam suavidade. A discrição não se dá apenas no plano subjetivo mas, também, no físico. Na medida do possível o orientador deveria usar roupas discretas e simples a fim de não chamar a atenção para o corpo.
SINCERIDADE: Aqueles que conseguem unidade em pensamentos, palavras e ações demonstram sinceridade, que não se resume a dizer ao outro o que julgamos dele mas acreditar na verdade. Se praticamos valores, entendemos que nosso coração deve estar em tudo que fazemos, isto é, pulsando sinceridade. No ocidente, intelectualizamos a vida e perdemos o contado com o simples. Nosso intelecto se tornou complicado, pesado. Precisamos reaprender as lições da sinceridade. O orientador deverá ser sincero, mas nunca amargo. Compreender e agir, buscando o equilíbrio entre o intelecto e o coração. Quando o pensamento vai em direção oposta ao nosso coração, aquilo que fazemos perde o sentido. Fazer as coisas com honestidade e sinceridade significa não se preocupar com o sucesso ou reconhecimento; é o fazer pelo simples prazer da realização do ato. Entrar inteiro na proposta, visando somente o benefício comum, com pureza completa de intenções.
80
ENTUSIASMO: Palavra de origem grega. Significa estar preenchido da energia divina. Nos dias de hoje, desanimo e desconfiança são onipresentes. Falta essa energia circulando, conduto de bons sentimentos, bons pensamentos sobre tudo e todos. Assim como o corpo precisa de comida para viver, uma idéia precisa ser alimentada. O entusiasmo é força vibrante, viva, que contagia e nos anima a trabalhar com prazer. Para alguém se manter na condição de entusiasta é preciso que aprenda a agir independente das situações e estímulos externos. É um fenômeno extraordinário a arte de viver. A maravilha é a consciência, não as situações ou coisas. Aqueles que vivem em harmonia desenvolvem as tarefas do cotidiano com prazer. Há neles, um sorriso natural e um brilho nos olhos, que resulta de sua luz interior. O entusiasmo nasce de dentro para fora e se fortalece na seiva da confiança. Durante as reuniões você, no papel de orientador, deverá manter-se atento. Seu brilho íntimo deve ser forte. Dele dependerá a beleza do trabalho.
RESPONSABILIDADE: [...]. Existe um principio básico da vida que se chama “lei do carma”. Ensina que tudo que fazemos retorna a nós, na mesma proporção. Significa: colhemos o que plantamos. [...]. Responsabilidade é a habilidade de responder pelo que assumimos. È a coragem de aceitar e se comprometer. Como fruto, haverá realização. O orientador é o líder e, sem dúvida, sua conduta se torna um modelo. Estar consciente de sua influência sobre o grupo, e administrar suas ações de forma a gerar beneficio, é o seu papel e uma expressão de responsabilidade. Antes de agir, perguntar-se: se todos agissem como estou agindo, qual seria o resultado?
AUTOCONTROLE: Um bom orientador não deve se deixar abalar, emocionalmente, pelo comportamento dos outros, durante a reunião, por mais desagradável ou agradável que seja. Deve, isto sim, manter-se na posição de observador, ciente da neutralidade do seu papel. Isto inspirará segurança ao grupo. É inadmissível que se envolva em questões particulares com membros do grupo. Autocontrole significa maturidade e equilíbrio. Quando cultivamos a vida interior e sentimentos prazer em “estar conosco” é fácil obter autocontrole, porque podemos recorrer às nossas “raízes de força”. Mas, se nossa vida é pautada somente na exterioridade, ficamos fragilizados, perdemos o autocontrole. Se observarmos a qualidade dos nossos pensamentos e não deixamos levar pelas situações externas, sejam elas positivas ou negativas, o sentimento do bem nos dominará. Ganhamos autorespeito e o respeito dos outros, também. Aquele que tem o poder do autocontrole, projeta dignidade, que eleva a todos e os ajuda a exercitar seu lado bom. Autocontrole se dá em pensamentos, palavras e atos.
A partir de experiências junto ao VIVE, Michael Becker (2008) tece
reflexões e propostas sobre a educação de valores no Ensino (inter) Religioso:
Tendo em vista o contexto da sociedade pluralista e globalizada, o Ensino Religioso pode contribuir para uma cultura de paz, justamente porque a especificidade do seu campo de saber permite uma visão da religião que gostaríamos de chamar de preventiva, contra os fundamentalismos religiosos que tanto assolam as relações humanas e que contribuem para a alienação do ser humano, até o ponto de lançar mão de medidas de violência em nome da religião. Num outro sentido, essa tarefa poderia ser assumida em uma nova ótica no contexto da discussão sobre a mudança de paradigma no Ensino Religioso como disciplina regular [...] (BECKER, 2008, p. 223).
81
A mudança de paradigma a que se refere Becker (2008) é a atual LDB
9394/96 que determina que o Ensino Religioso na escola pública deixe de ter caráter
confessional e adquira caráter inter-religioso, sendo assim, para Becker a atual LDB
viabiliza transmitir o conhecimento do fenômeno religioso nas diversas tradições
religiosas, tendo como um dos eixos centrais a fenomenologia das tradições
religiosas que é a existência de códigos éticos comparáveis entre si. Para tanto,
Becker defende que o professor de Ensino Religioso deva ter competências
necessárias, que seriam o diálogo e o respeito da pluralidade religiosa como valor,
atreladas a uma competência comunicativa e dialogal:
Sendo assim, o Ensino Religioso representa uma possibilidade autêntica de preparar os cidadãos para lidar com as múltiplas facetas da sociedade pós-moderna, inclusive de combater fundamentalismo abertos ou velados, que nascem como reação ao novo, das fragmentadas referências pós-modernas. Cremos que o Ensino Religioso possui como especificidade primordial esse potencial de ser aliado na luta conta a alienação do ser humano a favor de uma cultura de paz (BECKER, 2008, p. 226).
Becker (2008) ainda propõe algumas sugestões voltadas para uma
pedagogia dialógica no Ensino Religioso:
Visitar representantes e templos das diferentes religiões e
confissões do lugar, para diminuir as barreiras de preconceitos
constituídas devido ao desconhecimento mútuo.
Criar um espaço físico e psicológico de cuidado e acolhida: o
desinteresse do estudante se modifica quando professores e
estudantes sentem-se parte de um único grupo. Se a criança se vê
acolhida, a maneira de agir é modificada.
Estimular questões voltadas à crítica da realidade, por meio de
estudos comprometidos com sua transformação;
Utilizar novas linguagens – concursos, festivais, teatro, música,
dança, cultura em geral – para atrair os jovens;
Abrir o espaço físico da escola para promover atividades voltadas
para a comunidade nos horários vagos e nos fins de semana;
Ampliar o tratamento dos temas, incluindo auto-estima, afetividade,
prazer.
82
Na relação entre Cultura de Paz e Ensino Religioso, Elaine de Sousa
(2008) propõe a abordagem da Espiritualidade:
Nesta perspectiva, acreditamos na possibilidade de coexistência das visões de mundo espiritual e científica. A razão, juntamente com o espírito, compõe o objeto da aprendizagem humano, por isso, para a educação trabalhar um homem integral não se pode ignorar nem a racionalidade, nem a espiritualidade. No seio do embate proposto encontra-se a percepção do indivíduo [...]. Notamos que, com a necessidade de trabalhar a espiritualidade no indivíduo, mais precisamente a partir da segunda metade do século XX, os educadores contemporâneos procuram resgatar valores e incentivar os alunos quanto sua capacidade intelectual, emocional, social e espiritual (DE SOUSA, 2008, p. 231-232).
De Sousa (2008) ressalta que os PCN‟S do Ensino Religioso e o
FONAPER, indicam que o Ensino da Religião deve pautar-se em pressupostos que
propicie um aprendizado baseado na Espiritualidade.
Através da sua experiência em Fortaleza, De Sousa (2008) identificou
duas grandes dificuldades em abordar cultura de paz e espiritualidade no Ensino
Religioso: 1ª) falta de bibliografia direcionada para esse assunto; 2ª) escassez de
profissionais qualificados que atendam à demanda necessária para o ensino em
questão39. Há ainda a questão de os relacionamentos entre professor x aluno e
aluno x aluno cada vez mais serem representados por atos de desrespeito e
autoritarismo, esquecendo-se valores, afetividade, diálogo. Sendo assim, é
importante reforçar iniciativas que promovam um Ensino Religioso que trabalhe a
pluralidade e a Espiritualidade para construção de uma Cultura de Paz:
O ensino religioso não deverá colocar uma só religião ou credo como sendo a pilastra única e superior da interpretação da realidade. A religião associada a outras esferas como moral, família, estado e educação, pode trazer grandes benefícios para a formação sociocultural das nossas gerações, contribuindo com a diminuição dos altos índices de violência existentes atualmente, dentro e fora das escolas [...]. Apesar de todas as dificuldades encontradas atualmente, acreditamos na possibilidade de um ensino religioso voltado para a produção de um homem holístico, buscando caminhos para o seu bem-estar social e espiritual [...] (DE SOUSA, 2008, p. 238).
39
De acordo com o Instituto de Estudos da Religião (ISER), coordenado pelo antropólogo Emerson Giumbelli, no seu projeto Mapeamento do ensino religioso no Brasil: definições normativas e conteúdos curriculares, através de recente pesquisa publicada em seu site: <www.iser.org.br> - estes são problemas identificados à nível nacional, inclusive, com dados coletados no Estado do Pará que, também, indica estes problemas no Ensino Religiosos deste Estado.
83
No encalço destas prerrogativas, expomos a seguir nossas experiências
na conexão da Cultura de Paz e Não-Violência com o Ensino Religioso, tendo como
foco de nossas iniciativas a vida e obra de Mahatma Gandhi.
4.3 Gandhi, Não-Violência e Ensino Religioso: discussões e propostas
A partir do que foi delineado sobre Mahatma Gandhi, Não-Violência, e a
proposta de um Ensino Religioso voltado a promoção da Cultura de Paz, faremos
uma reflexão sobre algumas experiências que tivemos a partir de nosso estágio
supervisionado em Ensino Religioso40 e no curso de formação de professores para
Cultura de Paz e Não-Violência nas Escolas pelo projeto de extensão universitária
Peregrinos da Paz41. Para tanto, tomamos como base de elaboração das aulas os
PCN‟S do Ensino Religioso elaborado pelo FONAPER.
Os PCN‟S para o Ensino Religioso (FONAPER, 2006) apontam quatro
eixos norteadores para o trabalho dos conteúdos nesta disciplina, são eles: culturas
e tradições religiosas (e suas inter-relações); teologias (estudo da concepção do
transcendente); textos sagrados e tradições orais (significado da palavra sagrada no
tempo e no espaço); ritos (entendimento das práticas celebrativas); e ethos (vivência
crítica e utópica da ética humana a partir das tradições religiosas). Estes eixos
devem ser abordados de forma não proselitista. Constitui-se assim, o Ensino
Religioso como terreno fértil para a aplicação de filosofias para a paz.
Na apresentação dos PCN‟S chama-nos atenção a descrição do perfil do
profissional do Ensino Religioso: um profissional de educação sensível à pluralidade,
consciente da complexidade sociocultural da questão religiosa e que garanta a
liberdade do educando sem proselitismo; premissa fundamental frente à diversidade
cultural do Brasil e uma sociedade mundial cada vez mais pluralista em termos de
40
Este estágio decorreu nos anos letivos de 2008 e 2009 na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Tiradentes, localizada na Rua dos Mundurucus, bairro de Batista Campos, em Belém. Trabalhamos junto a turmas de 5ª série. 41 Relatamos dois momentos deste curso. O primeiro foi o mini-curso Vivendo Valores na Educação:
Cultura de Paz e Não-Violência nas Escolas, ministrado na XIV Semana Acadêmica do Centro de Ciências Sociais e Educação (CCSE) da Universidade do Estado do Pará (UEPA), no período de 30 de junho de 2009 a 02 de julho de 2009. O segundo foi o curso Falando de Paz: educação, valores e diálogo entre os homens e a natureza, realizado nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro no município de Tailândia (PA). Nos dois cursos, trabalhamos na capacitação de professores.
84
Religião. Tal prerrogativa exige um exercício de compreensão e respeito mútuo
entre professor e aluno. Esta prática pode ser ela mesma um instrumento de
trabalho de valores fomentando um diálogo – ouvir para compreender – afastando
preconceitos, intolerâncias e fanatismos: “Em um diálogo não há a tentativa de fazer
prevalecer um ponto de vista particular, mas a de ampliar a compreensão de todos
os envolvidos”: David Bohm.
O capítulo 1 dos PCN‟S – Elementos Históricos do Ensino Religioso –
trata de uma abordagem geral sobre o retrospecto do Ensino Religioso no Brasil. Em
detrimento do ensino da religião predominante de outrora – Catolicismo – o estudo
das Religiões nas escolas brasileiras deve ser uma disciplina centrada na
antropologia religiosa. Em se tratando de uma perspectiva antropológica, é
fundamental falarmos da produção cultural do homem para explicar também suas
inquietações a respeito do Transcendente e do Imanente, dessa forma, cada cultura
tem seu modo particular de estruturar e manter sua representação religiosa, por
isso, uma reflexão crítica sobre as diversas manifestações religiosas de diversas e
distintas sociedades, pautada na alteridade, contribui definitivamente para a
construção da paz:
Básico para a construção da paz na sociedade é a humildade para reconhecer que a verdade não é monopólio da própria fé religiosa ou política. E, no Ensino Religioso, pelo espírito de reverência às crenças alheias (e não só pela tolerância), desencadeia-se o profundo respeito mútuo que pode conduzir à paz (FONAPER, 2006, p. 20).
A partir dessas considerações, o professor de Ensino Religioso, através
da prática da alteridade, levará o educando a compreender e respeitar as diversas
manifestações religiosas que o cercam tecendo uma relação do tipo EU-TU, já que
distintas perspectivas religiosas fazem parte da totalidade da existência humana.
O capítulo 2 dos PCN‟S – Critérios Para Organização e Seleção de
Conteúdo e Seus Pressupostos Didáticos – sistematiza um bloco de conteúdos que
devem ser abordados no Ensino Religioso brasileiro, a saber: Culturas e Religiões;
Escrituras Sagradas; Teologias; Ritos; Ethos. O tratamento didático destes
conteúdos tem por objetivo fazer com que o aluno levando em conta sua formação
cultural e religiosa possa se aprofundar na complexidade e na pluralidade dos
assuntos religiosos, visto que:
85
Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar as diferentes culturas e grupos que a constituem. Como a convivência entre grupos diferenciados é marcada pelo preconceito, um dos grandes desafios da Escola é conhecer e valorizar a trajetória particular dos grupos que compõem a sociedade brasileira (FONAPER, 2006, p. 39).
Conhecendo as minúcias e particularidades das manifestações religiosas,
o aluno toma para si um mecanismo fundamental para a construção da Não-
Violência já que pode afastar-se de uma gama de preconceitos. O primeiro passo
para a Não-Violência, de acordo com Gandhi, é a não colaboração com tudo o que é
humilhante, e para isso é necessário a construção de significados em detrimento do
preconceito religioso. Assim, ao aluno possibilita-se a construção do significado da
simbologia religiosa a partir de suas tradições e das reflexões propostas em sala de
aula, não mais recorrendo a preconceitos quando da análise de religiões diferentes
da sua, mas sim, recorre-se ao principio da alteridade salientado por Paul Ricoeur.
O capítulo 3 dos PCNS – Ensino Religioso nos Ciclos – versa sobre a
caracterização; objetivo; encaminhamentos para avaliação da aprendizagem; bloco
de conteúdos e tratamento didático nos 4 ciclos. Estes ciclos tratam do
desenvolvimento e da aplicação do Ensino Religioso aos alunos sempre levando em
consideração valores e práticas fundamentais para a construção da Cultura de Paz,
tais como: compreensão das diferenças religiosas; alteridade; liberdade de
exteriorização de suas idéias; respeito; solidariedade; diálogo; reflexão; formação de
uma consciência moral e o conhecimento do conjunto de valores que permeiam
cada tradição religiosa. Sendo assim, os PCN‟S do Ensino Religioso configura-se
como um propício instrumento no trabalho de valores com os jovens nas escolas de
nosso país.
Em relação as nossas experiências, no eixo “Cultura e Tradições
Religiosas” abordamos o conteúdo “Filosofia da Tradição Religiosa: a idéia do
Transcendente, na visão tradicional e atual”. O objetivo foi abordar uma visão
impessoal de Deus, contextualizada à imagem de Deus em Mahatma Gandhi que se
relaciona à Verdade. Para tanto, utilizamos a metodologia de paticipação ativa dos
alunos, por meio da manifestação dos mesmos direcionada por tarjas com diferentes
concepções de Deus42.
42
Aula ministrada no mini-curso de capacitação de professores realizado na XIV Semana Acadêmica do CCSE.
86
Primeiro, fizemos uma exposição da imagem pessoal que Deus tem nas
religiões monoteístas (visão tradicional). Em seguida, expomos que em religiões
orientais politeístas, como o hinduísmo, Deus se apresenta de formas distintas
(avatares e reencarnações).
Compreendendo em um primeiro momento que dependendo da tradição
religiosa, Deus apresenta-se e tem significados distintos, expomos por meio de
tarjas, que foram entregues uma para cada aluno, a concepção de Gandhi de que a
Verdade é Deus43 – expressa em frases do Mahatma. Dessa forma, apresentamos
uma outra concepção de Deus, ou seja, uma imagem impessoal.
Observamos que para Gandhi, a Verdade e Deus, por serem impessoais,
encontram-se em cada um de nós, sendo assim, pela interpretação de Gandhi sobre
Deus e fazendo relação com a Não-Violência, ressaltamos que toda vez que
agredimos alguém, na verdade, também estamos agredindo a Deus, já que Deus
está em cada um de nós, e é por isso que Gandhi resolvia seus conflitos não
pegando em armas e atitudes agressivas para machucar o outro, mas sim, por meio
da Não-Violência já que em seu adversário havia a presença de Deus, e por
conseguinte, do homem que com ele conflitava.
Como conclusão, pedimos para que os alunos fizessem um exercício de
percepção. Pedimos que quando eles sentissem vontade de agredir alguém seja
com pensamentos, palavras ou violência física, pensassem primeiro que no seu
adversário existia a presença de Deus, e daí percebessem a sensação que
experimentavam com essa prática de reflexão.
No eixo “Escrituras Sagradas e/ou Tradições Orais”, trabalhamos o
conteúdo “Exegese: a análise e a hermenêutica atualizadas dos textos sagrados”. O
objetivo desta aula foi suscitar a percepção de que as escrituras sagradas e
tradições orais não tem interpretações “certas” e “erradas”. O que se considera como
certo e errado depende do grupo ou da referência a quem o adepto de determinada
tradição se filia – vide a pluralidade de ordens na Igreja Católica e as distintas igrejas
pentecostais e neo-pentecostais.
Nesta aula abordamos como texto sagrado o Bhagavad Gita.
Contextualizamos o Gita como o livro sagrado para os hindus, em seguida, similar a
metodologia empregada na aula supracitada, distribuímos tarjas, uma para cada
43
Ver apêndices.
87
aluno, contendo dois versos do Gita cada. De um lado da tarja, um verso que fizesse
referencia ao combate retratado no Gita, do outro, uma frase de Gandhi sobre o
Gita44.
Pedimos para que os alunos lessem por primeiro as frases relacionadas à
descrição do combate, marcadas em vermelho, em seguida, que lessem as frases
de Gandhi, marcadas em azul.
Ao final da leitura das duas qualidades de frases, perguntamos aos
alunos se eles achavam que o Gita incentivava o combate ou não. Alguns acharam
que sim, outros, observando as frases de Gandhi, achavam que não. Ao final
perguntamos quem estaria certo.
Após as manifestações, explicamos que não existe “certo” e “errado”,
neste caso, a interpretação do livro sagrado depende de quem lê, ou melhor, dos
motivos e das intenções de quem lê.
Sendo assim, explicamos que o Gita, assim como a Bíblia, a Tora e o
Alcorão, foram usados por pessoas que queriam a guerra e diziam que em seus
livros sagrados os seu(s) Deus(es) aceitavam a guerra. Porém, mostramos que
apesar do Gita descrever uma batalha, a interpretação que Gandhi deu do livro não
foi a de uma justificativa para uma guerra; Gandhi dizia que há uma batalha sim,
mas essa batalha representada no Gita é a batalha interior – Arjuna como nossas
virtudes interiores, seus inimigos como as tentações exteriores, e Krishna como a
voz da consciência.
Sendo assim, ao final da aula pedimos para que os alunos prestassem
atenção nos seus conflitos, ou seja, em algo que os possa estar incomodando e que
por isso eles possam estar se sentido não muito bem (tal qual Arjuna). Ressaltamos
que se o conflito interno que possivelmente eles estejam vivendo fosse em relação a
uma pessoa, que procurassem conversar com ela ou com outra pessoa de confiança
sobre esse fato, pois, a lição que Gandhi aprendeu com esta interpretação do Gita
foi a de que para termos paz é necessário termos autocontrole, e a resolução de
conflitos, internos ou externos, é imprescindível para isso.
Também ressaltamos o principio de alteridade, onde conhecer as idéias
do Outro não significa concordar, portanto, podemos julgá-las como errada, mas,
sabendo que a interpretação do outro tem significado de verdade para ele, portanto,
44
Aula ministrada na Escola Tiradentes, para a 5ª série, turma A.
88
antes à condenação para se evitar a violência, faz-se necessário compreender a
opinião do Outro.
No eixo “Teologias” trabalhamos o conteúdo “Verdades de fé: o conjunto
de mitos, crenças e doutrinas que orientam a vida do fiel em cada tradição religiosa”.
O objetivo desta aula foi suscitar que o encontro com tradições religiosas diferentes
não significa uma oportunidade de violência, mas sim, de autoconhecimento em
relação a sua própria religiosidade e conhecimento, também, da religiosidade do
outro, já que em nossa sociedade globalizada o contato com religiões diferentes é
cada vez mais comum45.
Nesta aula abordamos especificamente a construção e o significado da
Não-Violência. Expomos o que é a Não-Violência a partir de Gandhi e como ela
orientou sua vida, através de exemplos compilados em sua autobiografia46.
Chamamos atenção para o fato de a Não-Violência ter se originado, entre
outros fatos, a partir do contato que Gandhi teve com duas tradições religiosas: o
hinduísmo, através do Gita; e o cristianismo através do Sermão da Montanha.
Após a exposição da Não-Violência e seus desdobramentos, ressaltamos
que pelo fato de Gandhi ter conhecido o cristianismo ele não deixou de ser hindu,
portanto, o conhecimento de uma outra verdade de fé não o fez desistir da sua, pelo
contrário, acrescentou um valor maior de admiração pelo hinduísmo e ainda
estimulou-o o princípio da alteridade: aprendeu a conviver em paz e admirar
pessoas que seguiam Jesus Cristo, o autor do Sermão da Montanha.
O exercício de conclusão foi uma narração ou dissertação sobre algum
episódio que tenha ocorrido na vida do aluno que remeta a um bom encontro com
uma pessoa que professe uma religião diferente.
No eixo “Ritos” trabalhamos o conteúdo “Rituais propiciatórios: que
constituem principalmente de orações, sacrifícios e purificações”. O objetivo desta
aula foi trabalhar a inteligência emocional por meio de meditações47.
Nesta aula, abordamos especificamente a meditação. A aula teve início
com a exposição do que é um rito, especificamente um rito de purificação. Para
tanto, tomamos Gandhi e a meditação como um ato de purificação.
45
Aula ministrada na Escola Tiradentes, para a 5ª série, turma B. 46
Ver apêndices. 47
Aula ministrada na Escola Tiradentes, para a 5ª série, turma C.
89
Utilizamos três meditações nesta aula, uma relacionada a elementos da
natureza, outra a bons sentimentos e valores, e a última relacionada a Deus.
Pedimos que os alunos seguissem o comando das meditações veiculadas em um
micro-sistem, e ao final, pedimos para que eles descrevessem como estavam se
sentindo – todos os alunos gostaram da atividade e inclusive queriam que
repetíssemos todas as aulas.
Ao final da aula, relatamos que Gandhi para manter-se sempre com bons
pensamentos, boas palavras e boas atitudes, meditava para reforçar seu
autoconhecimento.
No eixo “Ethos”, trabalhamos com o conteúdo “Alteridade: as orientações
para o relacionamento com o outro, permeado por valores”48. O objetivo desta aula
foi trabalhar a resolução de conflitos pessoais.
Nesta aula explicamos o que significa a alteridade e sua relação com a
percepção do Outro. Em seguida, fizemos um exercício prático de resolução de
conflitos baseado na percepção e no diálogo com o Outro por meio de material
didático elaborado pelo VIVE49.
Ressaltamos que a alteridade foi um dos princípios mais difundidos por
Gandhi, visto que, ele mesmo entendeu o que motivava a crueldade britânica no
trato com os indianos e sul-africanos era a falta de alteridade. Entendendo o Outro,
Gandhi conseguiu resolver a maioria, e o maior, de seus conflitos – a relação com os
imperialistas britânicos, no entanto, somente após a persistência na resolução de
seus conflitos internos.
48
Aula ministrada no curso de capacitação de professores realizado no município de Tailândia (PA). 49
Ver apêndices.
90
CONCLUSÃO
Quando comentamos o predomínio (e o perigo) da racionalidade
instrumental como veículo de opressão das massas e de obliteração e ofuscamento
do ser humano em relação ao Outro, Max Horkheimer e Theodor Adorno têm como
parâmetro os regimes totalitários insurgentes na Europa – nazismo, fascismo –
durante a Segunda Guerra Mundial. O ápice da barbárie implementada por esses
regimes pode ser sintetizado no extermínio de milhões de judeus e outros
segregados pelo nazismo no campo de concentração de Auschwitz, construído na
Polônia.
Hoje, talvez pareça exagero falar em uma barbárie de tamanha proporção
como a que ocorreu na Europa da segunda guerra, no entanto, gostaríamos de frisar
o que Martin Buber e a professora Kátia Mendonça nos chamam atenção quando
analisam as relações éticas e políticas de nossa contemporaneidade: a violência e a
barbárie de hoje não se apresentam somente de forma opulenta como na segunda
grande guerra, mas, também, talvez em sua face mais cruel, nos pequenos
detalhes, de forma tão sutil na esfera simbólica e política do nosso cotidiano que até
tomamos por “normal” comportamentos e atitudes que visam não à comunhão, mas
a exclusão e até mesmo a eliminação do Outro.
Frente a este cenário, uma Educação para valores e a formação do
caráter é a nossa fonte de esperança. Observamos que os autores que relacionam a
educação com a Cultura de Paz e Não-Violência, mesmo quando se referem a fatos
e exemplos particulares, na verdade, estão falando em uma educação universal –
que atinja todas as faixas etárias, todos os sexos, diversas nacionalidades e culturas
– e uma educação no seu sentido mais amplo – formal, não-formal e informal –
embora nossas discussões nesta pesquisa se concentraram na educação formal.
Porém, salientamos que mesmo no espaço da educação formal, como é o
ambiente para se lecionar o Ensino Religioso, as outras esferas da educação podem
e devem interagir umas com as outras, visto que, quando Martin Buber fala de uma
relação dialógica entre professor-aluno (palavras princípio Eu-Tu) ele tem
expectativas de que esse tipo de relação não fique confinado nas salas de aula;
pensa que o professor enquanto promotor do diálogo possa se tornar exemplo de
comportamento para o aluno para que o estudante procure desenvolver a relação
dialógica em sua família, comunidade, sociedade e junto aos Outros.
91
Buber, Mendonça e Maria Montessori defendem o trabalho da
Espiritualidade nas escolas. Para estes autores, não podemos negligencia esta
dimensão da existência humana, por mais que algumas pessoas não a relevem em
suas vidas, mas, a espiritualidade está presente na vida de outras pessoas e na
sociedade. Estes autores observam que a espiritualidade e a religiosidade devem
ser tratadas não a partir de uma verdade de fé que exclua, mas sim, como uma
dimensão fenomenológica da existência humana, que não pode ser expurgada ou
negligenciada do ambiente escolar, neste sentido, avaliamos que as diretrizes
vigentes hoje para o Ensino Religioso em nosso país permitem a abordagem da
espiritualidade e da religiosidade em sala de aula vedadas a quaisquer formas de
proselitismo, encarando-as como fenômeno da existência humana.
Para se trabalhar a paz e a não-violência na educação não temos uma
fórmula ou um manual que nos indique os passos a serem seguidos e os seus
resultados, mas, observamos que algumas “etapas” devem ser praticadas para que
nos leve a reflexão e ação para o fomento da paz, dessa forma, encadeamos os
autores que tratam de construir a paz.
Elie Wiesel fala em imaginar a paz, de fato, imaginar a paz está
relacionado a um dos pressupostos da Educação para o Século XXI proposta pela
UNESCO de se recordar de grandes vultos do ativismo pacífico, tal como foi
Mahatma Gandhi. Imaginar a paz, como bem pontua Wiesel, é tomar conhecimento
e refletir sobre “provas” concretas que a humanidade já nos deu de resolução de
conflitos, mostrando que a paz não é algo utópico ou onírico, mas sim possível e
algo real de se conquistar.
Umberto Eco nos fala da paz local como pressuposto para uma paz local.
Importante se pensar dessa forma, principalmente a nós que estamos aqui na
Amazônia, onde nossos problemas locais, estreitamente ligados aos ditames e
outros problemas locais, requerem soluções locais. O Ensino Religioso pode abrir
precedentes neste debate quando de aborda a religiosidade amazônica em seus
conteúdos.
Toda proposta tem um ponto de referência. A nossa proposta em
contextualizar o Ensino Religioso na promoção da Cultura de Paz e Não-Violência
através da educação tem em Mahatma Gandhi o seu ponto de partida.
A forma como desenvolvemos as considerações sobre Gandhi buscou
encadear suas experiências de vida na concepção e prática da Não-Violência.
92
Destacamos por primeiro, sua vivência em família; ressaltamos que a educação que
Gandhi recebeu no seio familiar – avô, pai, mãe, esposa, irmãos, amigos,
professores e pessoas mais experientes, foi de fundamental importância na sua
concepção do ahimsa.
As experiências de Gandhi na Inglaterra e na África do Sul foram
singulares no fomento da Não-Violência. Neste contexto, destacamos que o contato
com outras culturas e religiosidades diferentes do Hinduísmo, religião mater de
Gandhi, não o fez abandonar suas tradições, pelo contrário, o Mahatma sintetizou
aspectos correlatos entre o Hinduísmo e o Cristianismo, e ainda, de tradições como
o Judaísmo e o Islamismo em sua convivência com adeptos dessas tradições
religiosas, Gandhi ainda conheceu a Teosofia, fato este que o fez se aproximar mais
ainda da sua religiosidade. Chamamos atenção para esse aspecto porque o contato
com o Outro de diferentes tradições fez com que o Mahatma Gandhi não restringisse
sua mensagem de Não-Violência, ela abrange o ser humano em sua particular
multiplicidade, em uma clara demonstração do que deve ser o princípio de alteridade
posto neste trabalho através das considerações de Paul Ricoeur.
Gandhi foi educado e educou em família e em seu ashram, este processo
educacional se desdobrou na prática da auto-educação para o auto-controle em
Gandhi, o que nos mostra que a Não-Violência tem um viés pedagógico que permeia
todas as instâncias da educação – formal, não-formal, e informal – portanto, para
aqueles que querem desenvolver trabalhos com a Não-Violência nas escolas, fica a
mensagem de que o ahimsa não é apenas um conteúdo a ser ministrado, mas sim,
uma prática educacional dialógica em todas as esferas de nossas relações: para
educarmos em Não-Violência é preciso primeiro nos auto-educarmos nela, como já
dizia o próprio Gandhi.
As análises de Johan Galtung, Ravindra Varma, Jean-Marie Muller, Lia
Dinskin e Kátia Mendonça, sobre as repercussões da Não-Violência no foro da ética
e da política, ratificam a dimensão prática do ahimsa, mostrando que é plenamente
possível vivenciá-la e erigirmos comportamentos pautados na atitude não-violenta.
As iniciativas de fomento da Cultura de Paz e Não-Violência por meio da
Educação têm no Ensino Religioso espaço profícuo, pois, esta disciplina pela atual
LDB 9394/96 e pelos PCN‟S, preconiza atitudes tanto na postura do professor
quanto no conteúdo a partir de princípios estritamente relacionado à educação para
valores, tais quais a alteridade e o respeito pela religiosidade do Outro; princípios
93
estes que são fundamentais para a construção do cidadão planetário. Sendo assim,
no Ensino Religioso temos possibilidades concretas de contribuição para a formação
de uma cidadania planetária por meio da educação como demonstrado nas
experiências de profissionais e estudiosos do Ensino Religioso ligados ao programa
educacional do Instituto Vivendo Valores na Educação (VIVE).
No entanto, ressaltamos que o Ensino Religioso sob o paradigma das
ciências da religião, que é o paradigma concernente à LDB supracitada, ainda
precisa ser consolidado em nosso país. Para tanto, entendemos que as
universidades, tal como a Universidade do Estado do Pará (UEPA), e outras
instituições que coadunam com essa proposta, tomem iniciativa (sobretudo em
caráter de extensão) para a formação de docentes voltados a essa perspectiva.
Dessa forma, vemos que a formação do profissional do Ensino Religioso a partir da
visão pluralista e de alteridade preconizada pelo modelo das ciências da religião é
fundamental para a disseminação da Cultura de Paz e Não-Violência nas escolas.
Mahatma Gandhi tem a partir de sua vida e obra – e acreditamos que de
forma perene – expansiva e eloqüente influência nas sociedades de hoje, visto as
mais variadas iniciativas que tem como mote a Não-Violência, tais quais a da
Organização Palas Athenas; Organização Brahma Kumaris, Instituto Vivendo
Valores na Educação; Projeto de Extensão Universitária Peregrinos da Paz; e a
própria UNESCO, além de iniciativas individuais, como a nossa demonstrada em
nossa bem sucedida experiência em sala de aula, no Ensino Fundamental e na
formação de professores.
Enquanto houver barbárie e injustiça pelo mundo, Gandhi será referência
primordial para se achar uma saída para tal situação. O conhecimento do que o
Mahatma foi e sua repercussão na ação de outros ícones da Cultura de Paz e Não-
Violência é notório àqueles envolvidos na Educação que sintam a necessidade de
apontar esperanças e caminhos contrários ao da violência tão comum à juventude
de hoje.
Sendo assim, por meio das experiências e reflexões relatadas nesta
monografia, acreditamos que o Ensino Religioso pautado na alteridade a partir do
entendimento da Não-Violência – que se relaciona estreitamente à ética – tem muito
a contribuir para a construção de uma sociedade onde possamos ter respeito e
responsabilidade por aquele que nos torna humanos em totalidade: o Outro. É nisso
94
que acreditamos e é por isso que desejamos trabalhar como educador para o
caráter e valores universais, tais como a Responsabilidade e o Amor pelo Outro.
95
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99
APÊNDICE A – Exercício para resolução de conflitos50
Na resolução de conflitos é muito importante agirmos de forma assertiva. Esse modo de agir era empregado pelo indiano Mahatma Gandhi para convencer seus inimigos de que o bom diálogo pautado pelo respeito às idéias e sentimentos do Outro é a chave para o entendimento mútuo. Dessa forma, Gandhi resolvia seus
conflitos convertendo seus inimigos em novos amigos. A intenção de uma postura assertiva não é convencer o outro de “seu erro”, na
verdade, tem por objetivo resolver o conflito levando em consideração as opiniões dos envolvidos sempre buscando um ponto de equilíbrio entre ambos. Sendo assim, a assertividade tem as seguintes características: a) Fazer suas escolhas de acordo
com seus valores; b) Não é abrasiva, nem machuca; c) Firme e forte, mas com Amor; d) Considera a necessidade e o sentimento do Outro.
Então, vamos resolver conflitos?!
Resolução de conflitos – I Pense em alguém com quem você tem algum conflito
O que vocês têm em comum ou compartilham?
Qual aspecto do comportamento do outro faz você esquecer-se daquilo que
tem em comum?
Como você vê seu comportamento através dos olhos do outro considerando o
que vocês têm em comum?
O que você acha que precisa mudar para voltar a ver aquilo que têm em
comum antes do conflito?
50
Adaptado de: KUMARIS, Brahma. Superando a raiva, resolvendo conflitos. Fortaleza: Editora Brahma Kumaris, 2008.
100
APÊNDICE B – O que Gandhi pensava sobre Deus51 “Deus é amor e verdade. Está para além da palavra e do intelecto”. “Para mim, Deus é verdade e amor. Deus é ética e moral. Deus é coragem”. “Deus, que é amor espiritual e moral, ausência e medo, fonte de luz e vida, transcende a palavra e a razão. Conhece o íntimo dos nossos corações. O homem pode repelir a palavra de Deus, mas não pode impedir que Deus exista”. “Nós não somos. Só Deus é. Se queremos ser verdadeiramente, devemos fazer sempre Sua vontade. Deus é tudo em todos. Nós apenas zero”. “Deus, para ser Deus, deve governar o coração e transformá-lo. Deve expressar-Se nas mínimas ações de Seus fiéis”. “Acredito que Deus Se revela ao homem em cada dia. Mas nós somos surdos à Sua voz pequena e silenciosa”. “Somente podemos sentir Deus destacando-nos dos sentidos”. “A música divina está sempre dentro de nós, mas o rumor dos sentidos abafa essa música delicada”. “O que eu quero alcançar, o ideal que sempre almejei com sofreguidão... é conseguir o meu pleno desenvolvimento, ver Deus face a face, conseguir libertação do eu”. “Não considero exagerado nenhum sacrifício para ver Deus face a face. Toda a minha atividade, seja social, política, filantrópica ou ética, é dirigida para esse fim. Eu pertenço totalmente a Deus, e por isso não m preocupo com a minha situação atual”. “Não sou santo, mas sei que sou consagrado a Deus-Verdade, não obstante meus erros e minhas culpas. Não sou asceta; a minha vida é cheia de alegrias”. “Sei que se não lutar com o mal e contra o mal, mesmo à custa de vida, nunca conhecerei Deus”. “Bem depressa passarei do mundo da paz ao mundo dos conflitos. Quanto mais penso nisso mais desespero sinto. Nada posso fazer, mas Deus pode fazer tudo. Ó Deus, faz que eu seja um Teu instrumento, e serve-Te de mim segundo a Tua vontade. O homem não é nada”.
51
Adaptado de: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004.
101
“O meu grito chegará ao trono de Deus onipotente”. “Deus sempre ajuda aqueles que parecem abandonados”. “Esforço-me por ver Deus no serviço à humanidade, pois sei que Deus não está no céu nem na terra, e sim em cada um de nós”. “Temamos a Deus e não temeremos o homem”. “Sua bondade é infinita, embora em Seu nome se cometam imoralidades e atrocidades infinitas. Ele está sempre pronto a perdoar”. “No íntimo do meu coração existe uma permanente disputa com Deus: por que permite que tais coisas aconteçam? A minha não-violência parece quase impotente... nem Deus nem a não-violência são impotentes. A impotência está nos homens”. “Deus experimenta continuamente os Seus fiéis, mas nunca além dos limites do suportável. Ele guia e dá força suficiente para enfrentar as provas”. “Muitos se dobram à força física, mas aquele que tem Deus como único protetor não cederá nem à maior força desta terra”. “Tudo pertence a Deus; nada, absolutamente nada neste mundo é nosso. E então, por que temer? De que temer? Quando os meios são limpos, a presença de Deus, com Suas bênçãos, está garantida. E quando essas coisas vêm juntas, a derrota é impossível. Um satyagrahi, livre ou preso, é sempre um vitorioso”. “O tempo dos milagres não acabou. Com alguma fé em Deus e em Sua proteção estamos garantidos contra os sofrimentos insuportáveis. Aquele que resiste civicamente pode ter a certeza de que Deus o protegerá no momento difícil”. “Só quando o lutador está reduzido à impotência, quando chegou ao extremo limite da fraqueza e não vê senão trevas a seu redor é que Deus vem em seu auxílio. Quando um homem se sente mais humilhado que o pó de calca, então Deus socorre. Só aos fracos e abandonados é concedido o socorro de Deus”. “Na luta justa, Deus mesmo prepara as campanhas e guia as batalhas. Uma guerra pela justiça só pode ser feita em nome de Deus, só quando o satyagrahi se sente completamente indefeso, quando parece que está perdido na noite é que Deus chega e o salva”. “Tudo é possível, não graças ao nosso esforço, mas pela graça de Deus. A verdadeira independência é o nosso abandono em Deus”. “Os moinhos de Deus moem lentamente. A bondade anda a pé. A humanidade, dotada de inteligência para poder conhecer seu criador, esquece-O e deverá tornar-se uma para reencontrá-Lo”.
102
“Quando a lei suprema do amor for compreendida e sua prática se tornar universal, Deus reinará na terra como reina no céu. A terra e o céu estão em cada um de nós. Todavia conhecemos a terra e mantemo-nos alheios ao céu”. “Não conhecemos os caminhos de Deus. Se nos submetermos a Deus, Ele nos ajudará a fazer muitas coisas, mesmo sem nós sabermos”. “A única maneira possível de Deus se apresentar a um povo esfomeado e desempregado é o trabalho e a promessa de comida como salário”. “Pode-se falar de Deus quando se fez um bom almoço e se espera por outro ainda melhor amanhã. Mas é impossível aquecer-nos ao sol da luz de Deus quando milhares de esfomeados nos batem à porta”. “O caminho do Senhor é reservado aos fortes. Não é feito para os vis. Oferece-lhe a tua vida e toda a tua pessoa e depois, somente depois, benze-te no nome do Senhor”. “Deus está vivo no coração dos homens e deve estar vivo também no coração da sociedade. A sociedade deve repousar sobre a verdade e a não-violência, mas nada disso é possível sem uma fé que continue viva, quando todas as outras forças acabaram, uma fé que seja luz e abrace todos os aspectos da verdade. Fé que se fortifica no sangue dos mártires. Nenhuma religião subsiste sem sofrimento”.
103
APÊNDICE C – O que Gandhi pensava sobre a Verdade52
“A palavra satya (verdade) deriva de sat que quer dizer SER. É por isso que sat é, talvez, o nome mais importante de Deus. Dizer: “a verdade é Deus” é mais exato que dizer: “Deus é a verdade”. “Onde há verdade há verdadeiro conhecimento. O nome chit (conhecimento) é normalmente associado ao nome de Deus”. “Onde há conhecimento verdadeiro há sempre alegria. Como a verdade é eterna, assim a alegria que dela deriva é eterna”. “Por isso conhecemos Deus sob o nome de Sat – Chit – Ananda, ou seja, aquele que reúne em si a verdade, o conhecimento, a alegria”. “O caminho da verdade é a verdadeira bhakti (devoção). É o caminho que nos leva a Deus. Só o respeito à verdade justifica nossa vida”. “Eu vivo humildemente buscando a verdade. A verdade é, portanto, o meu único fim”. “Uma coisa lançou profundas raízes em mim: a convicção de que a moral é o fundamento das coisas, e a verdade, a substância de qualquer moral. A verdade tornou-se meu único objetivo. Ganhou importância a cada dia. E também a minha definição dela se foi constantemente ampliando”. “Só vê o espírito da verdade face a face, na sua universalidade e sua compenetração com todas as coisas, que é capaz de amar, como a si mesmo, também a mais mesquinha das criaturas”. “Minha devoção à verdade empurrou-me para a política; e posso dizer, sem a mínima hesitação, mas também com toda a humildade, que não entendem nada de religião aqueles que afirmam que ela nada tem a ver com a política”. “Alguma coisa dentro de mim me obriga a gritar minha agonia. Reconheci exatamente de que se trata. Aquela coisa que está em mim e não me engana nunca, diz-me agora: deves opor-te ao mundo inteiro, mesmo que tenhas de ficar só. Deves fixar o mundo nos olhos, mesmo que o mundo te veja com olhos rubros de sangue. Não temas. A verdade, essa pequena coisa tua que vive no coração, diz: deixa amigos, mulher, tudo, mas dá testemunho daquilo para que nasceste e pelo qual deves morrer”.
52
Adaptado de: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004.
104
“O culto obstinado da verdade ensinou-me, em toda a minha vida, a estimar a beleza do compromisso... Muitas vezes isso pôs em perigo a minha vida e decepcionou meus amigos”. “A verdade é dura como o diamante, e delicada como a flor do pessegueiro”. “Nunca fiz da coerência um totem. Sou seguidor da verdade e digo o que sinto e penso em dado momento sobre dado problema, sem me preocupar com o que porventura possa ter dito antes. Na minha busca da verdade já repudiei muitas idéias. O que me interessa é a minha disponibilidade em obedecer ao chamamento da verdade – meu Deus – de momento a momento”. “A minha preocupação não está em ser coerente com as minhas afirmações anteriores sobre determinado problema, mas em ser coerente com a verdade”. “A experiência convence-me de que um bem permanente não pode nunca ser o resultado da mentira e da violência. Nunca sacrificarei a verdade e o ahimsa (amor), nem pela liberdade de minha pátria”. “Posso ser uma pessoa desprezível, mas quando a verdade fala em mim, sou invencível”. “A verdade habita em todo o coração humano, e ali deve ser buscada. E é preciso deixarmo-nos guiar pela verdade, do modo que cada um vê. Ninguém em o direito de obrigar outrem a agir segundo a própria noção de verdade”. “Acredita-se geralmente que, para obedecer à lei da verdade, basta dizer a verdade. No nosso ashram devemos dar à palavra satya (verdade) um significado bem mais amplo. A verdade deve sempre manifestar-se em nós”. “E como se chega a esta verdade? À verdade chega-se com um obséquio total e uma indiferença absoluta acerca de qualquer outra vantagem que a vida possa oferecer”. “O que para um parece verdade, para outro pode parecer mentira. Mas não nos preocupemos com isso. Se nos empenharmos sinceramente na verdade, veremos que as diversas verdades são como folhas de uma árvore, que parecem diferentes mas que estão sempre na mesma árvore”. “Só quem possui um profundo sentido de humildade pode encontrar a verdade. Se querem nadar no alto oceano da verdade, devem reduzir-se a zero”. “O erro não se torna verdade por se difundir e multiplicar facilmente. Do mesmo modo a verdade não se torna erro pelo fato de ninguém a ver”. “Toda a verdade abstrata é sem valor se não estiver encarnada em homens que a representem e provam estar prontos a morrer por ela”.
105
APÊNDICE D – O que Gandhi pensava sobre o Amor53
“O Amor é a força mais abstrata, e também a mais potente, que há no mundo”. “O Amor e a verdade estão unidos entre si que é praticamente impossível separá-los. São como duas faces da mesma medalha”. “O Amor é o meio, a verdade é o fim. Se usarmos o meio, cedo ou tarde chegaremos ao fim, à verdade, a Deus”. “O ahimsa (amor) não é somente um estado negativo que consiste em não fazer o mal, mas também um estado positivo que consiste em amar, em fazer o bem a todos, inclusive a quem faz o mal”. “A verdadeira beleza, aquela que eu pretendo, está em fazer o bem em troca do mal”. “O meu amor não é exclusivo. Não posso amar os muçulmanos ou os hindus e odiar os ingleses”. “O verdadeiro amor é sincero e desinteressado. Não tenho medo de ser, por isso, minoria. O trabalho mais eficaz sempre foi feito por minorias”. “O ahimsa não é coisa tão fácil. É mais fácil dançar sobre uma corda que sobre o fio da ahimsa”. “As discordâncias em família são resolvidas, habitualmente, com a lei do amor”. “Creio que sou incapaz de odiar. Há pelo menos quarenta anos procuro amar todo mundo, recorrendo a uma longa disciplina baseada na oração”. “O teu inimigo se renderá n]ao quando sua força se esgotar, mas quando o teu coração se nega ao combate”. “Os homens são uma mistura de bom e mau, mas em que o bom prevalece”. “Nenhum homem é tão mau que não possa se auto-realizar”. “A fibra mais dura derrete-se no fogo do Amor. Se não se derrete, quer dizer que o amor não é suficientemente forte”. “O amor à verdade supõe a vontade de querer entender sempre o ponto de vista do adversário”.
53
Adaptado de: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004.
106
“A verdade não se defende fazendo sofrer o adversário, mas tomando sobre si o sofrimento”. “Só podemos vencer o adversário com o amor, nunca com o ódio”. “A única maneira de castigar quem se ama é sofrer em seu lugar”. “É o sofrimento, e só o sofrimento, que abre no homem a compreensão interior”. “A nossa natureza é propensa a vê no adversário só o mal, a atribuir-lhe sempre o mal, talvez até aquele que não existe. O mal que vemos nele depende quase sempre do nosso modo apressado e mesquinho de ver o homem”. “Não há ninguém no mundo que tenha caído tão baixo que não possa ser convertido ao amor. Isto deveria ser um artigo de fé para todo o satyagrahi. Um satyagrahi procurará sempre vencer o mal com o bem, a ira com o amor, a falsidade com a verdade, a violência com a não-violência. Não existe outro modo de purificar o mundo do mal”. “Unir a mais firme resistência ao mal com a maior benevolência para com o malfeitor”. “O homem vive livremente enquanto está pronto a morrer, se necessário, às mãos de seu irmão, mas nunca a matá-lo”. “Não devem permitir em vocês o mínimo pensamento contrário à caridade, inclusive em relação àquele que se considera seu inimigo”. “A única realidade a que aspiro é a verdade e a não-violência. Não pretendo absolutamente, e não aspiro de forma alguma, a uma personalidade super-humana. a minha carne é corruptível como a dos fracos, e corro o risco incessante de me enganar. Mas reconheço os meus erros”. “Cada um de nós tem um corpo, mas temos uma só alma. Os raios de sol são múltiplos, mas provêm da mesma fonte. Eu não posso separar-me de ninguém, mau ou bom”. “Quem pode julgar? Não saímos todos do mesmo tronco? Não é, porventura, necessário servir a cada um conforme as suas necessidades e ver Deus nele sob qualquer parecença?” “Foi sempre para mim um mistério o fato de alguns homens se sentirem satisfeitos com a humilhação de seu semelhante”. “A minha fé não é fingimento: é uma realidade mais real que a mesa em que escrevo. Deus pede-me para servir homens ardendo de ódio, embora eu seja o mais miserável de todos. Pede-me para que sirva até o sacrifício supremo”. “A minha natural inclinação para cuidar dos doentes transformou-se aos poucos em paixão; a tal ponto que muitas vezes fui obrigado a descuidar o meu trabalho...
107
Qualquer outra satisfação, qualquer outra ocupação empenhativa perde valor e se desfaz em nada perante o serviço prestado em espírito e alegria”. “Não é exagero, é verdade pura: em meus convívios com os camponeses encontrei-me face a face com Deus, com o ahimsa, com a verdade. Quando quero analisar o que me permite ter a clara percepção de tal idéia, não encontro outros motivos além de meu amor pelo povo”. “Quando a meu redor alguém morre de fome, a única preocupação que se apodera de mim é dar comida a esse faminto”. “Um coração que ora é instrumento indispensável, e o coração aprende a orar quando servimos os outros”. “O mundo está cansado de ódio”. “Não serei eu um instrumento de paz entre as nações?” “Bomba atômica? Teria coragem de a enfrentar com um ato de oração”.
108
APÊNDICE E – O que Gandhi pensava sobre a Não-Violência54
“A vida tem sentido quando estabelecemos o reino de Deus na terra, ou seja, quando tentamos substituir uma vida egoísta, nervosa, violenta e irracional por uma vida de amor, de fraternidade, de liberdade, e de raciocínio”. “A não-violência dos fortes é a força mais potente do mundo. A não-violência é a lei dos homens, a violência é a lei dos brutos”. “A não-violência é a mais alta qualidade da oração. A riqueza não pode consegui-la, a cólera foge dela, o orgulho devora-a, a gula e a luxúria ofuscam-na, a mentira esvazia-a, toda a pressa não justifica a compromete”. “Para tornar-se verdadeira força, a não-violência deve nascer do espírito”. “Existe a não-violência do fraco, do velhaco, mas dessa nunca resultará nada de bom”. “Não-violência não que dizer renúncia a toda forma de luta contra o mal. Pelo contrário. A não-violência, pelo menos como eu a concebo, é uma luta ainda mais ativa e real que a própria lei do talião, mas em plano moral”. “A não-violência não pode ser definida como um método passivo ou inativo. É um movimento bem mais ativo que outros que exigem o uso das armas. A verdade e a não-violência são, talvez, as forças mais ativas de que o mundo dispõe”. “Um satyagrahi conta exclusivamente com Deus, que é a ajuda dos indefesos... Sua força vem do íntimo, da fé em Deus. Deus torna-se seu escudo quando ele tiver deposto todas as armas terrenas”. “Creio que a não-violência é infinitamente superior à violência, e que o perdão é bem mais viril que o castigo... “Não sou um utópico: considero-me um idealista prático. A religião da não-violência não é apenas para os rishi e para os santos; é também para gente comum”. “A não-violência, em sua concepção dinâmica, significa sofrimento consciente. Não quer absolutamente dizer submissão humilde à vontade do malfeitor, mas um empenho, com todo o ânimo, contra o tirano. Assim, um só indivíduo, tendo como base esta nossa lei, pode desafiar os poderes de um império injusto para salvar a própria honra, a própria religião, a própria alma e adiantar as premissas para a queda e a regeneração daquele mesmo império”.
54
Adaptado de: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004.
109
“Este método pode parecer demorado, muito demorado, mas eu estou convencido de que é o mais rápido”. “Após meio século de experiências, sei que a humanidade não pode ser salva senão pela não-violência. Se bem entendi, é esta a lição central do cristianismo”. “A não-violência é o primeiro artigo da minha fé; e é também o último artigo de meu credo”. “Democracia e violência não podem coexistir. É blasfêmia dizer que a não-violência só pode ser praticada por indivíduos e não por nações compostas de indivíduos”. “Violência é sempre violência. A violência é sempre um pecado”. “Sei que me aventurando na não-violência exponho-me àquilo que justamente pode ser definido como risco louco; mas as vitórias da verdade nunca foram obtidas sem riscos, riscos muitas vezes de extrema gravidade”. “Estou ansioso, impaciente até, por demonstrar que não há outro remédio para os males da vida além da não-violência... Quando me tornar incapaz de fazer o mal e quando nada de soberbo ocupar, embora momentaneamente, o mundo dos meus pensamentos, então a minha não-violência moverá os corações dos homens. Não coloquei perante mim nem perante meus leitores um ideal impossível. É um direito natural do homem. Perdemos o Paraíso, mas foi só para reconquistá-lo. É preciso tempo, mas trata-se apenas de um grãozinho no céu completo do tempo”. “Justifico plenamente a não-violência e considero-a possível nas relações entre os homens e entre as nações; mas não se trata de uma renúncia à verdadeira luta contra a malvadez. Pelo contrário: a não-violência, como eu a entendo, é uma luz mais ativa e mais verdadeira que a vingança, que por sua natureza aumenta o mal”. “O mundo não é totalmente governado pela lógica; a própria vida envolve certa espécie de violência, e a nós nos compete escolher o caminho da violência menor”. “Quero um socialismo puro como um cristal. São precisos, portanto, meios puros como o cristal para consegui-lo. Meios impuros resultam num fim impuro. Não obteremos a igualdade entre o príncipe e o camponês cortando a cabeça do camponês. Cortar cabeças não pode equiparar quem dá trabalho a que é assalariado... Só os socialistas, sinceros, não-violentos e puros de coração conseguirão instaurar uma sociedade socialista na Índia e no Mundo”. “Da mentira e da violência nunca pode resultar um bem permanente”. “Procuro amassar completamente a ponta da espada do tirano: não ponho um aço mais afiado, e assim ludibrio sua esperança de ver-me oferecer uma resistência física. Encontrará em mim uma resistência de alma que escapa a seu cerco”. “Não devemos considerar ninguém como irrecuperável. Devemos procurar compreender a psicologia de quem faz o mal. Muitas vezes é vítima das circunstâncias. Com a paciência consegue-se conquistar alguém para a causa da justiça. Não devemos, além disso, esquecer que também o mal é alimentado com a
110
colaboração, querida ou não, do bem. Só a verdade se mantém por si só. Em última análise, devemos vencer o adversário isolando-o completamente e privando-o da nossa colaboração”. “A humanidade só pode ser salva pela não-violência, que é o ensinamento central do cristianismo”. “A força de um homem e de um povo está na não-violência. Experimentem”. “A única coisa que as nações do Ocidente ensinaram ao mundo, com as letras de fogo, foi que violência não leva nem à paz nem à felicidade. O culto da violência não tornou felizes, nem melhores, aqueles com quem entraram em contato”. “Devem renunciar à espada pois já compreenderam que ela é o símbolo não de sua força, mas de sua fraqueza. Não significa coragem”. “Devo confessar minha falência, não a da não-violência”.
111
ANEXO A – Trecho da carta de Gandhi ao vice-rei da Índia pedindo para revogar o monopólio sobre o sal55
Satyagaha Ashram
Sabarmati, 2 de março de 1930.
Querido amigo.
Antes de passar à desobediência civil e arriscar em passo que, durante
todos esses anos, tenho procurado evitar, quisera dirigir-me a V. Sª para ver se
encontro outra solução.
A minha palavra dada é absolutamente clara. Sou incapaz de fazer mal,
intencionalmente, a qualquer ser vivo, muito menos a meus semelhantes – nem
mesmo então quando estes me fizerem, a mim e aos meus, a maior injustiça.
Embora eu considere o domínio britânico um maldição, nem por isso tenho a
intenção de fazer mal a um único inglês, nem de violar qualquer interesse legítimo
que a Inglaterra possa ter na Índia.
As injustiças, que lhe expus alhures, estão sendo continuadas com o fim
de manter uma administração estrangeira, a qual é, provadamente, a mais
dispendiosa do mundo. Considere V. Sª, por exemplo, o seu ordenado pessoal;
importa em mais de 21.000 rupias mensais, sem contar diversos abonos diretos. O
primeiro-ministro inglês recebe 5.000 libras esterlinas por ano, o que, pelo câmbio
atual, são 5.400 rupias por mês, enquanto V. Sª recebe diariamente 700 rupias –
quando a média da renda diária do indiano é menos de 2 anás. O primeiro-ministro
de Londres recebe 180 rupias diariamente, quando a renda média do inglês é de 2
rupias diárias. De maneira que V. Sª recebe 5 mil vezes mais do que o indiano, na
média, enquanto o primeiro-ministro inglês recebe apenas 90 vezes mais do que
uma pessoa de nosso povo.
Genuflexo, suplico a V. Sª que medite sobre esse fato. Escolhi um
exemplo pessoal para ilustrar esta verdade. Grande demais é o respeito que tenho
para com V. Sª, como homem, para não querer melindrar os seus sentimentos. Sei
que V. Sª não gasta todo o seu ordenado – possivelmente, é ele empregado em
55
Fonte: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 54-55.
112
obras de beneficência. Mas o sistema que cria os preliminares para semelhante
estado de coisas tem de ser exterminado radicalmente.
O que vale do ordenado do vice-rei vale, em geral, da administração
como tal.
Essa não-violência seria manifestada pela desobediência civil, atitude, por
ora, restrita aos habitantes do Satyagraha Ashram, mas, finalmente, destinada a
abranger todos aqueles que preferirem aderir ao movimento dentro dos limites
nitidamente definidos.
Bem sei que, ao iniciar essa ação de não-violência, empreendo algo que
talvez se possa qualificar como uma temeridade de seriíssimo caráter. Mas a
Verdade jamais cantou vitória sem que alguém arriscasse algo de caráter seriíssimo.
A conversão de um povo que, consciente ou inconscientemente, explora
outro povo, muito mais numeroso e de cultura ainda inferior – bem vale esse passo
arriscado.
Escolhi deliberadamente a palavra “conversão” porque não é outra minha
ambição senão converter o povo inglês pela não-violência, a fim de que ele
enxergue a injustiça que está cometendo contra a Índia. Não é intenção minha fazer
mal algum a seu povo; quisera mesmo servi-lo, assim como sirvo ao meu próprio
povo.
Sou seu amigo sincero,
M. K. Gandhi.
113
ANEXO B – Do diário de Kasturbai, esposa de Gandhi56
Do conhecido livro Autobiografia de um Iogue, de Paramahansa
Yogananda, que foi amigo íntimo da família de Gandhi, transcreveremos os
seguintes tópicos duma espécie de diário de Kasturbai:
Eu te agradeço pelo privilégio de ter sido, pela vida inteira, tua
companheira e auxiliar.
Eu te agradeço pelo mais perfeito matrimônio do mundo, baseado não em
sexo, mas sim em brahmacharya.
Eu te agradeço por me teres considerado igual a ti, em tua obra pela
Índia.
Eu te agradeço por não seres daqueles maridos que gastam o seu tempo
em jogatinas, corridas, mulheres, bebedeiras e farras, cansados de esposas e filhos,
assim como as crianças se cansam dos brinquedos de sua infância.
Eu te agradeço por não seres daqueles maridos que empregam o seu
tempo para se tornarem ricos, explorando o trabalho alheio.
Como te sou grata porque puseste Deus e a pátria acima das tuas
ambições; porque tiveste a coragem de viver as tuas convicções e uma fé profunda
e integral em Deus. Como sou grata por um marido que pôs Deus e a pátria acima
de mim! Eu e sou grata pela tolerância que tiveste com as fraquezas da minha
mocidade, quando eu resmungava e me revoltava contra a mudança que fizeste em
nossa vida, fazendo-nos passar de tanto para tão pouco.
Quando criança, vivia eu na casa de teus pais; tua mãe era uma grande e
boa mulher; educou-me e ensinou-me a ser uma esposa boa e corajosa, e manter
amor e respeito para com seu filho, meu futuro esposo.
Quando, no decorrer dos anos, tu te tornaste o mais amado líder da Índia,
não tive nenhum dos temores que assaltam a mulher quando seu marido galga as
56
Fonte: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 141-142.
114
alturas da celebridade, como tantas vezes acontece em outros países; eu tinha a
certeza de que ainda a morte nos encontraria esposo e esposa.
Acrescenta Paramahansa Yogananda: “Quando alguém mencionava
Mahatma Gandhi como marido de Kasturbai, ela corrigia: “Gandhi é meu marido,
mas o Mahatma é meu guru” – isto é, seu mestre espiritual, ao qual ela obedecia
como humilde discípula, com perfeita docilidade.
Pelas mãos de Gandhi passavam anualmente cifras fabulosas para
libertação da Índia e para as obras de assistência social, e Kasturbai funcionava
como tesoureira; não usava jóias; tudo ia para a caixa do bem público. Os maridos
não queriam que suas esposas usassem jóias de valor quando iam às reuniões de
Gandhi, com medo de que a fascinante personalidade do Mahatma fizesse
desaparecer tudo no cofre do bem público.
Através da vida do grande líder místico e político da Índia se evidencia,
com irrefutável clareza, a verdade de que a autêntica “fascinação” nada tem que ver
com atributos físicos, que faltavam todos a Gandhi, mas que a força avassaladora
do homem superior irradia do seu centro invisível, quando esse centro da
consciência individual se acha em contato permanente e íntimo com a própria
Consciência Universal, com a Divindade, alma do Universo.
115
ANEXO C – Vinoba Bhave, o sucessor místico-agrário do místico-
político Mahatma Gandhi57
Quando um grande homem morre materialmente em um lugar, então é
que ele começa a viver espiritualmente por toda a parte.
É o que está acontecendo com Mahatma Gandhi. Assassinado
fisicamente em janeiro de 1948, vive ele espiritualmente na alma de milhões de
homens.
Vinoba Bhave prometera a Gandhi continuar a obra dele, em outro setor.
Depois de alcançada a libertação nacional pelo grande místico, em agosto de 1947,
faltava que alguém conquistasse, para essas centenas de milhões de indianos, a
emancipação econômica, que consistia, principalmente, na solução do doloroso
problema agrário. Um grupo de marajás e outros latifundiários monopolizaram a
maior parte das terras da Índia sem as fazerem produzir devidamente. Daí os
grandes flagelos de carestia e fome que assolavam periodicamente o país,
dizimando a população.
Aparece então um místico-agrário para continuar e completar a missão do
místico-político, dentro do mesmo espírito de total desinteresse e irresistível
benevolência.
Vinoba, esse esqueleto ambulante de 65 anos de idade, é um jovem
exuberante de dinamismo realizador, porque o espírito não tem idade. Já conseguira
de 250 mil proprietários a cessão de terras num total de 44 milhões de acres (cerca
de 1.619.000 hectares), que foram distribuídas gratuitamente a produção agrícola e
diminuindo o perigo da fome.
Pedimos vênia à revista Manchete para reproduzir a brilhante reportagem
que esta publicou, em 1959, sobre esse extraordinário homem e digno sucessor de
Mahatma Gandhi:
57
Fonte: ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 143-148.
116
“Venho saqueá-los com amor” – é o que costuma dizer o estranho líder
indiano, que procura tirar dos que têm para dar aos que não têm. Chamado
afetuosamente “o Babaji” (paizinho), esse homem magro, de pele bronzeada, rosto
sulcado, barbas brancas e vista cansada, que o obriga a usar óculos bifocais, é um
partidário antigo da satyagraha e da ahimsa. Por isso, foi com bons modos que ele
investiu contra os latifundiários da Índia, impondo-lhes uma reforma agrária sui
generis e que continua em marcha. Esse saqueador de terras é uma espécie de
Robin Hood moderno, sem arco e sem flechas, que nada quer para si, mas tudo
quer para o povo.
O novo Gandhi que surgiu na Índia tem arrastado verdadeiras multidões
com o prestígio de sua palavra e o exemplo de seu idealismo e de sua vida ascética.
Começou ele numa nova e importante revolução: a da terra. Como Gandhi, seus
meios de ação repelem qualquer violência, seu desejo é convencer e provocar, por
parte dos latifundiários, um movimento espontâneo que tenha como objetivo a
melhor distribuição e utilização da propriedade territorial. Esta, no seu entender, não
deve ser de alguns, mas de todos. É um vasto movimento de coletivização dos bens
básicos, sem nada de compulsório, baseado no consentimento que esse idealista
pretende obter de todos.
Parece algo de espantoso e inexeqüível?
Igualmente absurdo e aparentemente inexeqüível parecia ser o plano de
Mohandas K. Gandhi para libertar a Índia do guante imperialista da Inglaterra.
Resistência passiva58, braços cruzados contra metralhadoras, greve de fome, não-
cooperação, desobediência civil, tudo isso parecia ridículo diante do poderio
britânico. Mas, em verdade, Gandhi conhecia o seu povo e adotara uma atitude
política e filosófica que, fundada no estoicismo e nas virtudes ascéticas, de que era
o primeiro a dar provas, viria a ser o único instrumento eficaz contra os males do
colonialismo e a dureza desumana da ocupação britânica.
O novo Gandhi chama-se atualmente Vinoba Bhave. Nasceu a 11 de
setembro de 1895, em Gagode, cidade que fazia parte do progressista Estado de
Baroda, cujo opulento marajá, Gaekwar, desfrutava de vários palácios, cercado de
tal pompa que ao redor de um deles existiam, para guardá-lo, canhões de ouro e
prata! Do tesouro desse potentado nababesco fazia parte o famoso diamante
58
Apesar deste texto da revista Manchete referir-se às ações de Gandhi em prol da Índia como resistência passiva, o Mahatma enfatizava que a resistência não-violenta era de sobremaneira ativa.
117
brasileiro Estrela do Sul, um dos maiores do mundo. o pai do novo Gandhi foi
empregado do Departamento de Corantes de Buckingham Mills e, mais tarde,
funcionário público. Pretendia dar ao filho boa educação, para que ele se tornasse
um engenheiro e enriquecesse.
A riqueza e a terra devem ser de todos
Queria educá-lo bem, aproveitando a aptidão que revelava para a
matemática. Mas o jovem era um místico. Desprezava a riqueza. Não queria ser um
industrial, um magnata. Quando o pai o enviou para fazer o exame de admissão na
Universidade de Bombaim, arquitetou uma fuga. Foi para Benares, a cidade santa,
estudar o sânscrito e a interpretação das escrituras do hinduísmo. Aos 21 anos, já
dominava o sânscrito como um mestre, um pandit. Longe da influência paterna,
tornou-se um asceta. Viveu como um gire, como um mendigo. Banhou-se nas águas
do Ganges, submeteu-se aos rigores da autodisciplina e impôs tais privações a si
mesmo e aos seus companheiros, que um deles morreu de inanição.
No ano de 1916, produziu-se o mais importante acontecimento de sua
vida: travou conhecimento com Gandhi. O Mahatma tocou-lhe o nome, de Vinyak
Achary Narahari Bhave para Vinoba Bhave, que conserva em homenagem ao
mestre. Aderindo à causa de que Gandhi se tornou o extraordinário apóstolo, sofreu
por cinco vezes as agruras da prisão. Tímido, faz um esforço sobre si mesmo, para
bem desempenhar a missão que se impôs. Um dos seus amigos e admiradores
define-o assim: “É igual a um côco: temos de romper o invólucro para chegar à água
refrescante. Vinoba domina a arte de se esconder em si mesmo”. Depois de um
retiro espiritual ao lado de Gandhi, este procurou reconciliá-lo com os pais,
escrevendo-lhes: “Vinoba está comigo. Vitórias espirituais como as dele eu só as
consegui depois de muito esforço”. Fisicamente – embora não fisionomicamente –
Vinoba assemelha-se a Gandhi. Seu corpo já foi comparado a uma vara: fino e
resistente. Atormentado por uma úlcera crônica, é frágil de corpo, mas animado de
grande energia, de inextinguível flama interior. Gandhi reconheceu-lhe os predicados
de líder, quando o escolheu como o voluntário número 1 da resistência passiva, em
1940, e a Jawaharlal Nehru como o voluntário número 2. Este último revelou-se o
estadista de gênio que tomaria sobre os ombros a tarefa gigantesca de unificação da
118
Índia e de sua organização como país livre e soberano. Absorvido pelas tarefas de
natureza política, à frente de um partido que detém quase 45% dos sufrágios do
maior corpo eleitoral do mundo - a Índia tem 176 milhões de eleitores registrados –
Nehru deixou a Vinoba a sucessão do Mahatma, como líder sem posto oficial do
grande movimento de massas pelo qual a Índia poderá alcançar etapas novas no
desenvolvimento da revolução social empreendida há pouco mais de quarenta anos.
A campanha de Vinoba Bhave, conhecida como “Movimento Bhoodan59”,
tem como legenda esta frase: “A riqueza e a terra devem ser de todos”.
Para que se tenha idéia sobre a importância da sua campanha, basta
considerar a desproporção entre a população da Índia – 400 milhões de criaturas – e
a área agricultável, a terra fértil de onde deve sair o alimento para todos. Enquanto
nos Estados Unidos é de 2,3 acres por pessoa, na Rússia 1,3 acres, na Europa de 1
acre, na Índia é apenas de 0,6 de um acre por pessoa. O que Vinoba pretende é
acabar com a idéia de propriedade pessoal, de sorte que cada um possa ter o que
corresponda à sua capacidade e à sua necessidade. De cera forma, a mentalidade
indiana está preparada para essa revolução sem violência. Outrora, não existia ali o
conceito de propriedade privada. Desde tempos imemoriais, prevalecia o sistema de
trabalho comunitário, baseado na concepção de que a terra pertencia ao Estado e
de que a este devia caber, por isso, uma parte considerável dos produtos do solo.
Havia, em cada aldeia, ou comunidade, uma espécie de corporação de agricultores,
chefiada por um indivíduo, que era o responsável perante o fisco. Feita a colheita,
era a produção reunida, para que o zamindary ou coletor, separasse a terça parte,
correspondente ao Estado. O resto era, então, distribuído igualmente por todos.
Com a dominação inglesa n Índia, esses conceitos se alteraram passando a
predominar em largas áreas do país a noção de propriedade privada, tal como é
entendida em todo o mundo ocidental.
A idéia de Vinoba encontra, assim, uma base histórica. Uma de suas
intenções, ao alcançar tal campanha, é a de trabalhar no sentido de elevar o padrão
de existência do povo indiano. Em Bhoodan, os trabalhadores do campo já
constituíram o que foi sugestivamente denominado a “Primeira Célula Social da
Nação”. Ali não há industrialização e toda a vida emerge do solo. Vinoba pede aos
proprietários de terras que se coloquem na posição dos que têm por si apenas os
59
Bhoodan: do sânscrito, significa doação (www.peregrinosdapaz.ufpa.br).
119
braços, sem um só palmo de chão. E lhes diz: “Se levardes em conta os seus
sentimentos, não podereis deixar de distribuir com eles o que vos sobra. Esse deve
ser o vosso Dharma (religião). “O novo Gandhi diz que o primeiro passo é esse: se
compreendermos que tudo o que possuímos, em matéria de dinheiro, propriedade e
conforto, foi conquistado com a ajuda do braço alheio, com o esforço coletivo, não
hesitaremos em dividir o que nos sobra, com os outros. Por outro lado, se
contrairmos a obrigação de dividir os nossos bens com a coletividade, não podemos
pensar em adquiri-los pó meio de atividades anti-sociais. Uma aceitação sincera do
credo de Vinoba possivelmente porá fim a toda espécie de exploração, a todas as
formas de corrupção, suborno, mercado negro e outras práticas desonestas. Em
suma: ele quer colocar em primeiro lugar o homem. E só depois do homem, o
dinheiro. Se conseguir atingir tão alto e nobre objetivo, terá liberado uma grande
soma de energia para aumentar a produção da riqueza, não para o proveito de
poucos, mas de todos.
O novo Gandhi, embora sem ter, como o outro, sólida educação
universitária, possui aguda inteligência e extraordinária capacidade de armazenar
conhecimentos. Fala correntemente dezoito das numerosas línguas existentes na
Índia, das quais a dominante é o híndi, do grupo ariano, falada por 47% da
população. Além dessas, domina mais quatro idiomas estrangeiros: árabe, persa,
francês e inglês. Sua experiência poderá mudar a face da Índia rural, produtora de
cevada, milho, arroz, trigo, batata, fumo, chá, algodão, linhaça, amendoim, gergelim,
etc. A Índia luta contra obstáculos oferecidos pelas regiões áridas e desertas, por um
lado, e contra o flagelo das inundações e dos gafanhotos, nas terras de bom
rendimento agrícola. Essa experiência começou em 1951, com a doação, em
Telengana, de um trato de cerca de 300 hectares de terras férteis, por um
proprietário que, abrindo singular precedente, acedeu aos seus insistentes rogos.
Desde então continuou a fazer pedidos. Anda sempre a pé. Sua simplicidade e
maneiras francas conquistaram simpatia e confiança por toda parte. Como Gandhi,
nada quer para si. Contenta-se com o mínimo possível. Basta-lhe ter um lençol com
que cobrir a nudez e uma pequena tigela de coalhada com mel de abelha em cada
refeição. Quando é recebido pelos proprietários de terras, costuma dizer-lhes: “Sou
vosso filho, sou um membro de vossa família”. Seus apelos diretos quase nunca são
feitos em vão. No fim do ano de 1958, o Bhoodan Yagna – ou Missão da Terra
Doada – tinha recebido mais de 1.618.800 hectares quadrados de terra, doados por
120
250 mil grandes proprietários. Dessas doações, 22.663 hectares quadrados já foram
distribuídos a 14 mil famílias de agricultores. É interessante assinalar, além disso,
que 4.640 aldeias inteiras estão integradas no movimento, isto é, coletivizadas.
Além da terra, os lavradores estão recebendo fornecimento de sementes,
arados e outros implementos. E são, ainda, beneficiados por obras de irrigação,
financiadas pelo Sampattidan – palavra que significa ofertas sacrificiais de riquezas,
ou doações em dinheiro. Cada aderente ao Sampattidan assume com o novo
Gandhi o compromisso de doar uma parte de suas rendas ao movimento. Um dos
aspectos interessantes dessas doações é o de que devem corresponder a pelo
menos um sexto ou um quinto dos gastos do doador com a manutenção de sua
família. E, além de custear o material agrícola, obras de irrigação, etc., devem os
donativos também servir á divulgação dos princípios do movimento, por meio de
livros e panfletos. Vinoba Bhave é autor de um livro que já está publicado em doze
línguas indianas, com um total de mais de um milhão de exemplares. Ele afina
inteiramente com Gandhi quando proclama: “Há uma chama dentro de cada
indivíduo e não pode ser extinta ainda que o desejemos. O bem de cada indivíduo
está incluído no bem de todos”. Se a Índia o acompanhar na partilha voluntária dos
bens, a começar pelo solo, Vinoba Bhave terá realizado um dos feitos mais
extraordinários do nosso tempo. O que ele realizou em oito anos já lhe dá a estatura
de um grande líder. Ele é o novo Gandhi, esperança dos miseráveis, guia dos sem-
terra, líder pacífico de uma revolução sem paralelo.
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