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Gandhi - O despertar dos humilhados

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Reconheço que estou totalmente indefeso diante da violência quando ela é feita pelos nossos; e, enquanto ouço falar sobre ela, um médico tomando o meu pulso logo constataria a aceleração dos batimentos cardíacos do meu coração. Tenho necessidade de alguns instantes, consagrados à espera da ajuda de Deus, para que o meu coração recupere um ritmo normal. Sou incapaz de remediar essa debilidade. Eu a alimento. Essa emotividade me permite continuar sendo apto a servir e a guiar, a permanecer humilde e guardar a confiança em Deus. Somente Ele sabe quando estarei suficientemente contrariado e comovido, pelos nossos atos de violência, para que se justifique um jejum temporário ou permanente. É a última arma do satyagrahi contra aqueles a quem se ama. Mahatma Gandhi (1869 - 1948)

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GANDHI

O DESPERTAR DOS HUMILHADOS

São Paulo 2013

Jacques Attali

GANDHI

O DESPERTAR DOS HUMILHADOS

Biografia

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Attali, Jacques Gandhi : O despertar dos humilhados : biogra�a / Jacques Attali ; [tradução Sandra Guimarães]. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013.

Título original : Gândhî, ou L’éveil des humiliés : biographie. Bibliogra�a.

1. Estadistas - India - Biogra�a 2. Gandhi, Mahatma, 1869-1948 3. Índia - Política e governo - 1919-1947 I. Título. II. Título: O despertar dos humilhados : biogra�a.

12 -02480 CDD -923.2

Índices para catálogo sistemático:

1. Paci�stas : Índia : Biogra�a 923.2

World copyright © 2007 by Librairie Arthème FayardCopyright © 2013 by Novo Século

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Mateus Duque Erthal

Equipe Novo Século /Libro Design e Comunicação

Camila Gomes VictorinoLívia Miranda

2013IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO ÀNOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

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GANDHI - MIOLO final.pdf 1 26/06/2013 15:21:31

À Índia,com a minha admiração

“Marx edificou sua doutrina sobre certa filosofia da História. Mas que História? Aquela da Europa. Mas

o que é a Europa? Não é toda a humanidade.”Ho Chi Minh, maio de 1921

“É a lei do amor que governa a humanidade. Se a violência, isto é, o ódio, a tivesse governado, ela já

teria desaparecido há muito tempo.”Mohandas Gandhi, 13 de abril de 1940

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AGRADECIMENTOS

Este livro é o resultado de quatro anos de trabalho, de leituras, de via‑gens e encontros. Foi necessário, em particular, escolher entre versões dos mesmos fatos, por vezes contraditórias. Não há sequer um fato que não seja contado de cinco ou seis maneiras diferentes, situado em datas divergentes, pelas próprias testemunhas oculares. Foi necessário escolher datas e inter‑pretações. Assumo sozinho essas escolhas.

Fui benificiado por colaborações muito preciosas: na Índia, os professo‑res Prakash Shah, Prakash Patel, Haresh Shah, Xavier Bertrand e o professor Hemang Desai, que traduziu para mim os textos guzerates; nos Estados Unidos Shashi Tharoor; na França, Jane Auzenet e o Professor Prithwindra Mukherjee aceitaram reler meus manuscritos e responder, com uma paciên‑cia excepcional, às minhas questões mais precisas. Esse último, em particular, traduziu para mim textos bengalis e releu minhas provas com uma atenção pela qual lhe sou muito grato. Josseline Rivière preparou o caderno de fotos. Michel Desbois imaginou e confeccionou a capa do livro. Nathalie Reignier iniciou os preparativos para a produção deste livro. Rachida Azzouz, Murielle Clairet e Charlotte Duperray providenciaram a diagramação dos manuscri‑tos e da bibliografia. Meus agradecimentos a todos eles.

SUMÁRIO

O Raj Britânico .................................................................................... 13

CAPÍTULO I – Modh Vanik. 1869 ‑1888 ............................................ 24

CAPÍTULO II – Shatavadhani. 1888 ‑1893 ......................................... 43

CAPÍTULO III – Satyagraha. 1893 ‑1914 ............................................ 59

CAPÍTULO IV – Hind SwaRaj. 1914 ‑1930 ...................................... 139

CAPÍTULO V – Ahimsa. 1931 ‑1939 ................................................ 245

CAPÍTULO VI – Quit India! 1939 ‑1945 .......................................... 306

CAPÍTULO VII – He Rama! 1945 ‑1948 ........................................... 365

EPÍLOGO ......................................................................................... 428

BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 437

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O Raj Britânico

Nunca a violência foi mais ameaçadora e multiforme do que nos dias de hoje. Nunca as ações e as ideias de Mohandas Gandhi, que a combateu com um sorriso nos lábios e até a morte, foram mais atuais.

Poucas pessoas deixaram um traço tão forte na história humana, atra‑vessando com suavidade um século de barbárie, tentando racionalizar os piores monstros, fazendo do seu sacrifício um meio de conduzir os outros à introspecção, revelando que a humilhação é o verdadeiro motor da Histó‑ria, praticando a única utopia que permite a esperança na sobrevivência da espécie humana, a da tolerância e a da não violência. Sua ação transformou o século XX na Índia. Será preciso ouvi ‑lo para que a humanidade sobreviva ao século XXI.

Sua mensagem, ele gostava de dizer, era sua vida. E essa vida é, visivel‑mente, transparente. Porque sua paixão pela verdade o conduziu a divulgar, por meio de escritos quase cotidianos, a evolução do seu caráter, dos seus sentimentos, dos seus problemas, da sua doutrina, da sua ética, da sua prá‑tica, da sua estratégia, das suas diretrizes.

Ainda assim, Gandhi permanece um enigma apaixonante.Enquanto que alguns dos seus contemporâneos indianos como

Chandrasékhara Venkata Raman, que recebeu o prêmio Nobel de Física em 1930, Ramanuja, matemático genial da teoria dos números, ou Satyendranath Bose, que trabalhou com Einstein, foram gênios excepcionais, ele próprio não foi nem um teórico, nem um líder militar e nem mesmo um advogado brilhante. Como, então, esse homenzinho tímido – nascido em um meio modesto, em uma casta “honorável”, mas inferior aos brâmanes, sem gran‑des contatos – tornou ‑se o mestre moral de um país dentre os mais sofistica‑dos, mais hierarquizados e mais religiosos do mundo? Como esse homem de voz sufocada, incapaz de falar em público aos trinta anos, soube reunir, aos cinquenta, milhões de homens prontos a morrer por ele? Como ele ousou, em dezenas de ocasiões, colocar sua vida em jogo para forçar os outros a refletirem sobre suas próprias fraquezas? Como ele conseguiu se tornar o

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que realmente desejou ser? Como compreender aquele que aconselhava as vítimas do holocausto a aceitá ‑lo e a cumprimentarem com um “querido amigo” os carrascos? Como acreditar, enfim, naquele que, por vezes, dava a sensação de contradizer, na sua vida privada, os princípios que exigia que os outros respeitassem?

Suas incontáveis biografias, escritas durante sua vida e após sua morte, quase sempre, trazem muito pouca luz a todas essas questões: quase todas são obras de pessoas próximas que se mantiveram devotas ou de hagiógra‑fos que não procuravam por suas fraquezas, que não colocam suas ações suficientemente em perspectiva, raramente confrontando ‑o com os desafios do seu tempo que, no entanto, restituem ao seu pensamento uma trágica universalidade. Além disso, sua obra literária e jornalística – 50 mil páginas escritas, principalmente, em guzeráti – só foi disponiblizada muito tempo depois em inglês e, ainda mais tarde, em francês.

Mas também por uma outra razão que só me ocorreu ao escrever sobre ele: sua vida é uma resposta a uma humilhação. Primeiramente, a dos india‑nos da África do Sul face aos ingleses e aos bôeres, posteriormente, a dos intocáveis face aos outros hindus e, enfim, dos indianos face aos ingleses. Humilhações nas quais Gandhi encontrou a fonte da sua revolta, de sua filosofia, de suas vitórias; humilhações universais que nos concernem mais do que nunca.

Esta é, portanto, definitivamente, a principal razão de ser desta bio‑grafia: narrar a história fabulosa de um homem cujo inacreditável destino moderniza a força motriz essencial da história humana: nem o lucro nem a luta de classe, mas o belo e bom despertar dos humilhados.

Por muito tempo, o ocidente recusou, a todos esses povos colonizados, chamados “primitivos” ou “bárbaros”, o status de humanos. Eles são, hoje, vistos como ameaças. Eles são, na realidade, promessas. O destino deles mostra também que, se a luta dos povos pela liberdade não se inscrever num quadro de ética e de metafísica, se a batalha para modificar os outros não começar por uma luta de todos os instantes para modificar a si mesmo, corre ‑se um grande risco de conduzir apenas a uma mudança de liderança.

Esta é a principal mensagem de Gandhi: para parar verdadeiramente de ser humilhado, é preciso primeiramente parar de humilhar. É preciso

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modificar a forma de se relacionar com o outro. Como diz de uma outra maneira e de forma sublime um dos cantos de Tagore que Gandhi ado‑rava escutar: “Meu incenso não exala nenhum perfume enquanto eu não o queimo; / minha lâmpada não ilumina enquanto eu não a acendo”.151 Em outras palavras, a humillhação é a faísca que dá ao humilhado o desejo de se encontrar; se ele não o faz, ele não tem outro futuro que não seja o de tornar ‑se, ele mesmo, um carrasco.

*

Mais do que qualquer outro país, a Índia foi humilhada. Mais do que qualquer outro subcontinente, este está, hoje, em situação de influenciar o futuro do mundo. Mais do que qualquer outro ser humano, o indiano de hoje – quer ele viva na Índia, no Paquistão ou em Bangladesh, quer ele seja engenheiro no Vale Silício ou imame em um subúrbio de Manchester – representa e representará um papel na História. E isso não surpreende: depois de dois séculos de dominação britânica, que sucedeu a dois outros de dominação mongólica, os herdeiros de Gandhi terão, de uma forma ou de outra, sua revanche econômica, política, cultural e militar sobre todas as humilhações das quais foram vítimas.

Um homem frágil e sorridente fez com que tomassem consciência da sua dignidade e alçou ‑os ao mais alto de si mesmos. Seu destino traz a marca de nosso passado, nosso futuro trará a marca de sua história.

Antes de encontrá ‑lo, convém fixar o cenário: a colonização das Índias pelos britânicos foi, antes de tudo, como quase todas as outras aventuras coloniais, relacionada a uma questão financeira. Ela foi, em seguida, uma questão política. Enfim – e somente enfim – uma questão civilizatória.

Primeiramente, uma questão econômica. No início do século XVIII, a Índia, em igualdade de condições com a China, estava no primeiro patamar da economia mundial, com 22% da renda do planeta. A partir do final do século XVIII, os mercadores ingleses passaram a controlar Calcutá e os centros econômicos do Bengala, com a preocupação de fazê ‑lo de tal forma que essa colonização não custasse nada à Coroa. Dessa maneira, a Índia pagou, ela mesma, sua própria submissão, tornando ‑se, ao mesmo tempo, um reservatório de tropas e de matérias ‑primas e um mercado para os produtos

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ingleses. Na realidade, enquanto a América do Norte (Estados Unidos e Canadá), a África do Sul e a Austrália foram, desde o início, terras de colo‑nização, a Grã ‑Bretanha, aterrorizada pelo tamanho da população indiana, enviou à Índia apenas militares, funcionários e mercadores. Nem mesmo – ou muito poucos – missionários cristãos foram mandados ao país. Homens solitários lá faziam fortuna e retornavam à Inglaterra para gastá ‑la, onde, por vezes, compravam uma circunscrição com o dinheiro adquirido no Império. Os casamentos inter ‑raciais ocorreram, ao menos, até a chegada, em 1830, dos primeiros fishing fleets, ou seja, dos navios que transportavam mulheres inglesas que lá iam “pescar um marido”. Diferentemente do que aconteceu nas colônias francesas, as colônias inglesas deram vida a uma burguesia local forte e se apoiaram nela.

Tudo começa em 1757 quando um extraordinário aventureiro inglês, Robert Clive, entra em Calcutá, faz um acordo com o nababo de Bengala para voltar ‑se contra os franceses, e tomar ‑lhes Chandannagar; e depois trai seu aliado bengali, esmagando ‑o na batalha de Plassey e expulsando, igual‑mente, os holandeses da região. Sua ambição não era a de estabelecer uma presença política, mas sim uma companhia comercial privada, a Compa‑nhia das Índias Orientais. Em 1763, o tratado de Paris, assinado sem que os soldados de Luís XV tenham sofrido derrota em campo, deixa para a Companhia Francesa das Índias apenas cinco feitorias. Um ano mais tarde, Clive, transformado em governador e comandante ‑chefe, após quatro anos de ausência, toma o poder econômico em toda Bengala, deixando para o nababo apenas o poder político e judiciário. Bengala torna ‑se, assim, a pri‑meira implantação inglesa durável sobre o subcontinente; a administração permanece mongol, as leis continuam islâmicas e a língua dos funcioná‑rios continua sendo o persa. Clive contenta ‑se em assegurar o domínio dos impostos e do comércio: o primeiro funcionário indiano sob o controle britânico é o coletor de impostos gerais. Em seguida, ele faz um acordo com os responsáveis pela coleta do imposto imobiliário para o imperador mon‑gol, os zamindare, e consegue a devoção dos proprietários de terras; poste‑riormente, assume, de forma progressiva, o controle do comércio exterior, constituindo o Império da Companhia, o Company Raj, no qual somente os britânicos ocupavam cargos de responsabilidade.

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Em 1774, Clive, que se tornara imensamente rico, acusado de cor‑rupção (“Meu Deus, responde a seus acusadores, eu estou surpreso com minha própria moderação!”) e muito doente, suicida ‑se em Londres. O Raj1 se apropria então – de um após o outro – dos monopólios, tão rentáveis quanto impopulares, do sal e do chá. Em seguida, os ingleses fazem de todo o subcontinente um dos principais mercados para a indústria têxtil de Lancashire. Exploram as minas de carvão de Bihar e de Orissa e desenvolvem culturas de exportação, como a do chá, asfixiando a agricultura alimentar, a indústria e o artesanato. Na metade do século XIX, para organizar o enca‑minhamento rápido desses produtos de exportação em direção aos portos, o Raj constrói uma malha ferroviária de mais de 60 mil quilômetros. No total, por volta de 1850, a Índia produz, a preços baixos, gêneros alimentícios e matérias ‑primas para o mercado britânico e compra – a preços elevados – os produtos primários da indústria britânica.

Consequência: 7 grandes períodos de fome, na primeira metade do século XIX e 24, na segunda80. Em 1869, quando Gandhi nasce, a situação é tão trágica que os homens dos distritos mais pobres de Madras e de Ben‑gala começam a emigrar em direção aos Estados Unidos, às Antilhas, ao Peru, à Reunião, às Ilhas Maurício, à Madagáscar e à África do Sul, onde eles se alugam como escravos para plantadores ingleses e bôeres instalados em vastas terras virgens, ideais para o chá, o café e o açúcar. Nós encontraremos Gandhi em local semelhante em breve.

A colonização das Índias é, em seguida, uma questão política. Em 1784, William Pitt, Primeiro ‑ministro em Londres, coloca a Companhia sob a auto‑ridade de um Conselho de Controle. Um pouco mais tarde, em Calcutá, Lorde Cornwallis, governador geral, reorganiza a administração de Bengala, anglicizando ‑a. Um dos seus primeiros gestos consiste em interditar o porte de armas. No Sul, Sir Thomas Munro o imita, assumindo, em primeiro lugar, o controle dos impostos. No Oeste, Sir Elphinstone age de maneira semelhante, permitindo, entretanto, que os príncipes preservassem seus pri‑vilégios, suas armas e seus palácios. No Norte, Sir Charles Metcalfe assume

1 A palavra Râj em hindustâni significa reino. O termo Raj britânico ou Índia britânica é uma denominação não oficial usada para designar a área geográfica na qual predominou o domínio colonial britânico sobre o subcontinente indiano (N.T.).

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todos os poderes, deixando uma aparência de autonomia nas vilas. Em Calcutá, elevada a capital do Raj, um governador geral substitui o Grão Mongol; ele se apropria de suas pompas e de seus palácios, firma trata‑dos de aliança com centenas de príncipes do subcontinente submetidos à supervisão do “poder suserano” (Paramount Power) do Raj. Um “resi‑dente” britânico pode intervir, a seu bel ‑prazer, na gestão interna de cada um desses principados, que não podem negociar diretamente, nem com as potências estrangeiras, nem mesmo entre si. Em 1805, alguns milhares de funcionários e de soldados britânicos impõem, assim, sua autoridade a mais de 150 milhões de indianos, apoiando ‑se em um exército de 155 mil homens9: soldados ingleses, mas, sobretudo, os cipaios (do hindi sipâhi para “soldado”) do Bengala; as altas castas do Awadh fornecem tropas de elite da mesma forma que faziam para o Grão Mongol.

Pouco a pouco, o governador geral domina os mercadores da Compa‑nhia, assistido, a partir de 1833, por um Conselho Legislativo composto exclusivamente por oficiais britânicos9. Em 1835, aparecem as primeiras escolas britânicas, inicialmente reservadas às raras crianças dos trabalhado‑res expatriados e às das elites principescas e mercantis. Os primeiros india‑nos diplomados nas três universidades instituídas nos anos 1850, em Calcutá, Madras e Bombaim, muito raramente têm acesso às altas esferas da adminis‑tração do país, que permanecem, quase exclusivamente, britânicas. Poucos indianos fazem carreira em Londres68.

Em maio de 1857 (no mesmo momento que a França começa a guerra na África contra o Império Toutcouleur e ocupa o Cantão), o exército bri‑tânico decide obrigar os cipaios, na maioria muçulmanos, a atravessarem o mar para servir na Birmânia e lhes impõe o uso de um novo fuzil, cujos car‑tuchos eram untados com gordura animal; eles se revoltam, levando consigo proprietários de terras, camponeses, cidadãos de Awadh e da Índia central. Ocupam até mesmo Deli, cidade, então, tornada secundária após ter sido a capital dos Grãos Mongóis. Em Cawnpore2, quatrocentos ingleses (dentre eles mulheres e crianças) foram massacrados. Em represália, o governador geral, Lorde Canning (denominado por zombaria “Canning, o Clemente”),

2 Atual Kanpur (N.T.).

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extermina a família do imperador mongol, príncipe muçulmano e, com a ajuda dos príncipes hinduístas, sufoca a revolta. Como dirá o historiador William Rushbrook: os Estados principescos constituem, a partir de agora, “uma rede de fortalezas aliadas em território disputado50”.

Fica claro, para os ingleses, que a Índia se tornou, neste momento, uma colônia política, e não mais apenas um balcão de mercadorias. Em 2 de agosto de 1858 (no mesmo momento em que se fomenta na China o que se chama às vezes de a Segunda Guerra do Ópio, abrindo novas portas para a França, os Estados Unidos e a Grã ‑Bretanha), a Companhia das Índias é abolida por um primeiro Gouvernment of India Act, transmitindo os seus poderes a um vice ‑rei, nomeado por cinco anos. Ele dirige os funcionários locais, rodeados por um “grande grupo” de agentes de alto nível – o Serviço Civil Indiano (ICS) – os quais são recrutados por concurso, a partir de um programa combinando cultura geral, línguas locais e senso de comando, depois de passarem três anos em Hailesbury, em um estabelecimento criado especialmente para esse fim. Esse serviço, o qual abrigará, progressivamente, alguns indianos com cargos importantes, irá se revelar como extremamente sólido e eficaz, capaz de resistir a todos os ataques, até o dia da independência9. Ele será conhecido por um nome significativo: o corpete de ferro.

Dois terços do subcontinente são, então, divididos em dez províncias (Assam, Bengala, Bihar, Bombaim, Províncias Centrais, Madras, Frontei‑ras do Noroeste, Orissa, Punjab e Sind), cada uma delas dirigida por um “governador”, e outras seis (Ajmer Merwara, Ilhas Andamã e Nicobar, Balu‑quistão, Coorg, Deli, Panth ‑Pilyouda) sob a autoridade direta de um “alto comissário”; nessas zonas sob administração direta, os britânicos se apoiam nos notáveis tradicionais, os zamindares e os jagirdares68. O outro terço do continente, dividido em 565 estados, ficou sob o controle de reis e marajás hindus e siques, nababos e begumes muçulmanos, todos príncipes ainda hereditários, que prestam juramento de fidelidade à Coroa britânica; dentre os mais importantes, os estados de Jaipur, Gwalior, Hyderabad, Mysore, Jammu e Caxemira, dentre os quais os ingleses habilmente atiçam os anta‑gonismos. Em 1861, um Conselho [legislativo] do Raj e os conselhos consulti‑vos provinciais são abertos a alguns raros notáveis indianos escolhidos pelo vice ‑rei68. Esse sistema corresponde, ao mesmo tempo, à concepção inglesa

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de democracia censitária e à concepção indiana do Estado protetor com um sistema de castas imanente.

Um organismo central, o Survey of India, suprime, pelo menos virtual‑mente, as fronteiras interiores entre essas entidades, para inventar uma Índia abstrata, britânica, e que se tornará, pouco a pouco, uma realidade para os próprios indianos6. Em Londres, um secretário de Estado da Índia e uma administração, o Indian Office, controlam o conjunto.

A colonização é enfim uma questão civilizatória. Ora, para os ingleses, existe, evidentemente, apenas uma civilização, a sua, a defender mais do que promover: não se trata propriamente de trazer para as populações locais os “benefícios” do british way of life; a Índia é, para os ingleses (da mesma forma que a África para os franceses), apenas uma moldura em que se pode fixar a grandiosidade da sua “civilização”, a qual não se relaciona àqueles “sub ‑homens”. E mesmo que a primeira metade do século XIX conduza os ingleses a interditar, por princípio, o sacrifício ritual das viúvas e a com‑bater – também por princípio – os bandos que matam em nome da deusa Kali, ninguém, em Londres, considera os indianos como seres humanos dignos de possuírem os mesmos direitos que os ingleses. Ninguém igual‑mente se interessa pela fabulosa pluralidade da sua cultura, da sua literatura, das suas religiões, da sua história, da sua filosofia e de suas artes. Se certos oficiais ingleses aprendem algumas de suas línguas é, em geral, para melhor vigiá ‑los. A maior parte dos britânicos que ali vive e trabalha se isola em alo‑jamentos e clubes, onde eles reproduzem, o mais próximo possível, o modo de vida londrino. Quer‑se ir à Índia para fazer fortuna, mas ninguém, ou quase ninguém, deseja ali morrer.

Alguns ingleses se inquietam com essa possibilidade. Deste modo, desde o começo do século XIX, Thomas Munro nota que, se a Índia foi invadida e governada, durante mais de sete séculos, por conquistadores vindos do Nor‑deste, frequentemente mais violentos e cruéis que os britânicos, ela nunca foi tão humilhada quanto neste momento. Alguns audaciosos, dentre os administradores britânicos, apaixonam ‑se pelo país. Outros chegam mesmo a indignar ‑se ao ver 95% dos habitantes do subcontinente suportarem uma vida mais que miserável, em povoados imutáveis, nos quais cada um exerce uma função correspondente à sua casta, produzindo com dificuldade os

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bens necessários à sobrevivência: para se alimentar, das vacas sagradas pro‑vém o leite; para se vestir, o algodão, confeccionado pelas mulheres, fornece os tecidos. Outros, mais raros ainda, ousam pensar que o povo – um dia – assimilará o espírito das instituições britânicas, que a Índia se tornará uma democracia e que não terá mais necessidade deles. Em 1838, um deles, que se tornará famoso, o jovem Charles Trevelyan, escreve com mais de um século de antecedência:

É da natureza das coisas que a ligação existente entre dois países tão distantes um do outro não seja para sempre: nenhuma política, por mais voluntarista que seja, poderá impedir os nativos de acabar por encontrar a sua independência. [...] Formados por nós e dotados do nosso saber e das nossas instituições políticas, a Índia permanecerá o mais fiel monu‑mento da benevolência britânica.50

Em 1869, ano do nascimento de Gandhi, os ingleses não desejavam enxergar que a Índia era um extraordinário mosaico de civilizações e de culturas: hinduísta, zoroastrista, cristã, judaica, budista, muçulmana, persa etc., que ali vivem mais de 230 milhões de habitantes, falando 179 línguas e 544 dialetos, sobre 4.112 milhões de quilômetros quadrados entre a barreira do Himalaia e os oceanos. Eles também não veem que, apesar deles e contra eles, alguns símbolos começam a unificar esse quebra ‑cabeças. Não se trata de uma língua (lá são faladas centenas), nem de uma cultura (lá cultivam ‑se milhares), nem de uma religião (contam ‑se ali algumas dezenas) e nem mesmo da vaca, que exclui os muçulmanos, mas sim da multiplicidade de peregrinações, que levam milhões de pessoas a atravessar, permanentemente, o continente, e da vasta mitologia que os alimenta, em particular, a divin‑dade mais recente e mais sagrada do panteão hindu, a Bharat Mata: a “Mãe Índia6”. Para promover essa nova consciência de si, uma burguesia e uma elite produzidas pela colonização britânica opõem ‑se aos que saqueiam e humilham a Índia. Eles são industriais, jornalistas e, sobretudo, advogados e religiosos. Os ingleses não percebem que está começando a nascer, dessa forma, um orgulho de ser indiano, que se alimenta do ódio ao colonizador: para que a Índia contribua em qualquer coisa para o mundo – pensam os

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jovens – é preciso, em primeiro lugar, que ela se desembarace da tutela e da influência do Ocidente, e que ela reencontre sua identidade no seu fabuloso passado, no seu esplendor multiforme.

Como sempre, o humilhado se descobre na humilhação. Na primeira fileira, conduzindo ‑o, ontem e amanhã, Mohandas Gandhi.

*

Por todas essas razões, eu desejei contar aqui as inacreditáveis reper‑cussões de sua vida e de sua doutrina. Não como bajulador e – menos ainda – como inimigo: eu desejei compreender como esse jovem advo‑gado fracassado se tornou um dos homens mais importantes da história da humanidade; como esse jovem mundano se transformou em um santo laico; como esse anglófilo se tornou ferozmente antiocidental; como mil derrotas se converteram em triunfo para ele; como Mohandas se tornou Gandhi. Para consegui ‑lo, foi ‑me necessário – e será necessário ao leitor – interessar ‑me por culturas, filosofias, estratégias e mentalidades que nos são a priori radi‑calmente exóticas; penetrar em um universo, em uma forma de pensar o mundo e conceitos muito diferentes dos nossos; em particular, conseguir compreender por que o poder e a razão, tão positivamente estimados no Ocidente, estão classificados, para Gandhi e tantos outros indianos do seu tempo, dentre os piores defeitos.

Eu narrarei, quase dia após dia, a extraordinária fabricação de Gandhi por ele mesmo, subdividindo sua vida em sete partes em torno de sete con‑ceitos essenciais para ele.

Para reconstruir sua juventude, falarei dos Modh Vanik, nome da casta na qual ele nasceu, em 1869. Para descrever a tomada de consciência da sua identidade, falarei de Shatavadhani, fabuloso guru que mudou o seu olhar sobre o mundo, em 1891, após o retorno dos estudos em Londres. Para tor‑nar compreensível o seu primeiro combate na África do Sul, onde viveu de 1893 a 1914, falarei do Satyagraha, palavra que ele inventou para designar uma forma extremamente original de desobediência civil. Para seguir sua busca da identidade indiana, que elaborou de 1914 a 1930, falarei do Hind SwaRaj ou “autodomínio” para a Índia. Em seguida, quando foi confrontado

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com o aumento da violência pelo mundo, de 1931 a 1939, falarei da sua Ahimsa, “a não violência absoluta”, indo até o sacrifício final. Narrarei como, justamente no meio de uma guerra contra as ditaduras, lançou aos ingleses um estranho apelo para que deixassem a Índia: Quit India!, que não impe‑diu a divisão do subcontinente, em 15 de agosto de 1947, e seu assassinato, em 30 de janeiro de 1948, murmurando o mantra hindu do He Rama!

Compreenderemos, então, que não há nada de mais universal do que esta vida tão inacreditável, tão sofisticada, tão torturada, tão martirizada, tão intensa, e que ela ajuda todo e qualquer indivíduo a responder a única questão que vale: é possível encontrar ‑se a si mesmo?