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Estudo comparativo das representações urbanas em Almeida Garret e Dalton Trevisan Roberto Nicolato 1 Resumo Este artigo busca revelar as similitudes existentes nas representações sociais de duas obras literárias: Viagens na minha terra, de Almeida Garret, e Em busca de Curitiba perdida, de Dalton Trevisan. Embora produzidos em épocas e espaços urbanos diversos, os dois livros mais assemelham do que se diferenciam. Se a comparação não pode ser medida no nível temático e da linguagem, há um mesmo e enfático direcionamento quanto às preocupações políticas e estéticas, em Dalton e Garret , a respeito de uma cidade (Curitiba) e de um pais (Portugal), num momento de grandes transformações históricas. 1 Roberto Nicolato é mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. É professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba.

Garret e dalton

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Estudo comparativo das representações urbanas em Almeida Garret e Dalton Trevisan

Roberto Nicolato1

Resumo

Este artigo busca revelar as similitudes existentes nas representações sociais de duas

obras literárias: Viagens na minha terra, de Almeida Garret, e Em busca de Curitiba

perdida, de Dalton Trevisan. Embora produzidos em épocas e espaços urbanos diversos, os

dois livros mais assemelham do que se diferenciam. Se a comparação não pode ser medida

no nível temático e da linguagem, há um mesmo e enfático direcionamento quanto às

preocupações políticas e estéticas, em Dalton e Garret , a respeito de uma cidade (Curitiba)

e de um pais (Portugal), num momento de grandes transformações históricas.

Palavras –Chave

Literatura - Curitiba e Portugal – Estudo das representações

1 Roberto Nicolato é mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. É professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba.

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo realizar um estudo comparativo entre as obras

Viagens na Minha Terra (GARRET, 2003), de Almeida Garret, e Em Busca de Curitiba

perdida (TREVISAN, 1992), de Dalton Trevisan. Escritos em diferentes épocas, os dois

livros se assemelham em alguns aspectos e procedimentos, que são de grande relevância

para se compreender a relação do sujeito com a realidade imediata, tanto no sentido da

ficção quanto da crítica social.

As similitudes entre as duas obras ocorrem menos no nível da linguagem e da

temática que em torno de preocupações políticas e estéticas e de foco narrativo

assemelhados, no contexto do que poderíamos denominar de modernidade. Assim, entre

outras funções, analisa a noção de sujeito que pensa a sua cidade e o seu país, no caso de

Dalton Trevisan e Almeida Garret, respectivamente, num dado momento histórico marcado

por profundas transformações políticas, urbanísticas e culturais.

Num primeiro momento, a análise busca revelar aspectos gerais de Em busca de

Curitiba perdida e Viagens na minha terra, e de que maneira os dados biográficos dos

autores são representativos para a compreensão dos textos (muitos deles no formato da

crônica), além de evidenciar o que está em jogo nas discussões das temáticas apresentadas.

A seguir, a linha de raciocínio recai sobre questões relativas ao foco narrativo,

embora sem perder de vista a preocupação maior das obras que é a de refletir sobre uma

fase específica da história de uma cidade e um país. Neste sentido, cabe notar o papel que

cumpre na economia da obra as interlocuções, a ironia e os diferentes formatos de texto

(crônicas de viagens e de cunho social, poemas em prosa, e novela). Para finalizar, este

estudo aborda a maneira como Dalton Trevisan e Almeida Garret se inserem no contexto

das tradições e da modernidade, tendo como zonas de fraturas os episódios posteriores à

Guerra Civil em Portugal e as reformas urbanas em Curitiba. Nos dois casos, em

proeminência uma firme preocupação em preservar a memória, como pressuposto básico

para assegurar a identidade cultural da coletividade.

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2 AQUELE PAÍS, ESTA CIDADE

Antes de buscarmos uma comparação mais específica dos pontos de maior

convergência, é preciso, no entanto, situar Viagens na Minha Terra e Em busca de Curitiba

perdida, dentro do contexto histórico e político em que estão inseridos. Afinal, os dois

livros trazem em comum além da afirmação ou, melhor, da consolidação de um projeto

estético, a necessidade de pensar a cidade ou um país num momento de importantes

transformações nas práticas políticas, culturais e urbanas.

Viagens na Minha Terra se configura tendo como pano de fundo o panorama

político instaurado em Portugal, que vai da Revolução Francesa aos anos de 1840,

assumindo papel de grande relevância as invasões francesas em solo português e as lutas

liberais. A guerra civil, que durou dois anos (até 1834), transformou de forma significativa

a estrutura sócio-política de Portugal, empurrando o país para uma nova fase: a da

sociedade liberal, constitucional e capitalista.

A obra de Garret começou a ser publicada em forma de folhetim, em agosto de

1843, na Revista Universal Lisbonense, dirigida por Castilho, sendo interrompida por

algum tempo – conforme se leva a crer por motivos de censura -, e posteriormente

retomada, pelos meados de 1845. Garrett havia sido convidado pelo amigo Passos Manuel,

em carta de 6 de julho de 1843, para visitar Santarém e desta pequena viagem – pequena na

quilometragem, mas incomensurável no aspecto cultural – resultou uma das mais

importantes obras do período romântico português.

Em busca de Curitiba perdida surge mais de um século depois, precisamente em

1992, um ano antes do aniversário de 300 anos de Curitiba, momento em que as esferas do

poder público local capitaliza o resultado advindo das transformações urbanísticas iniciadas

em 1970, cujo projeto mudou ou aperfeiçoou o traçado iniciado pelo Plano Agache, e

buscou oferecer à cidade infra-estrutura necessária para suportar o crescimento econômico,

demográfico e das demandas sociais nos anos que se seguiram.

A antologia de Dalton Trevisan vai reunir contos e os chamados textos híbridos, que

se aproximam da crônica e da poesia em prosa, extraídos de diferentes obras anteriores do

autor. Na mesma coletânea, são revelados outros escritos, trazendo impresso o ineditismo,

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num discurso bastante colado aos acontecimentos, inclusive, em consonância um tanto

direta com o momento histórico em que a cidade se via envolvida.

A multiplicidade dessa coletânea carrega consigo a dicção de um autor ainda jovem,

representado pela crônica “Em busca de Curitiba”, cuja primeira publicação data de 1945,

no número 6 da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan. O texto tinha como título

original “minha cidade” e ao longo dos anos foi várias vezes refeito. Apesar de ainda

restrito ao universo da província, Dalton Trevisan figurava, naquela época, como um

intelectual atuante no universo literário cultural da capital paranaense.

A publicação do livro Em busca de Curitiba perdida, às vésperas das

comemorações dos 300 anos da cidade, se dá no momento em que Dalton já está se

estabeleceu como grande contista nacional. O discurso silencioso, no entanto, não o

impedirá de marcar posição no contexto da efeméride, com uma voz dissonante que emerge

nesse projeto editorial em que se articulam novas representações (tanto no campo estético

como político e simbólico), tendo como principal personagem uma cidade em franco

processo de transformação.

Quanto a Almeida Garret, quando escreveu Viagens na Minha Terra, já havia

servido ao governo como Encarregado de Negócios de Portugal em Bruxelas, na Bélgica, e

tinha sido indicado a propor um plano para a criação de um teatro nacional, embora acabe

passando para a oposição por não concordar com o Ministério Costa Cabral e com a

restauração da Carta Constitucional de D. Pedro. Garret, na verdade, defendia uma reforma

da Carta que se mostrasse mais afeiçoada aos ideais defendidos na Revolução de Setembro

(1836) e na Constituinte de 1838.

Esta atitude custaria ao escritor e político a perda de dois importantes cargos que

ocupava: o de Inspetor Geral dos Teatros e Espetáculos Nacionais e Cronista-mor do Reino,

que mais tarde seriam recuperados ao voltar a colaborar com o governo. De soldado do

liberalismo nos idos da guerra civil, chefiada por Dom Pedro em 1832, Garret, com o

passar dos anos, adotará uma posição de maior prudência ou, como afirma José-Augusto

França, em O Romantismo em Portugal, mais confusa, assaz religiosa, se comparada com a

de Herculano, no que se refere ao liberalismo. (FRANÇA, 1993, pág. 76)

Para Almeida Garret, a ordem e a religião, conforme revela França, vão constituir as

suas coordenadas permanentes, assim como a defesa de uma monarquia representativa

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(1993, pág. 78). Isto talvez explique o posicionamento do autor em Viagens na Minha

Terra com respeito à necessidade de preservar a memória e os bens culturais e artísticos de

Portugal, vilipendiados em decorrência das transformações políticas vivenciadas pelo país.

A bem da verdade, em Viagens..., Garret se mostrará contrário tanto em relação aos

excessos do liberalismo materialista, representado pela figura do barão, como em relação ao

clero conservador, que terá no personagem Frei Dinis a sua principal representação.

De defensor do ensino público, da liberdade e igualdade, mas com ordem em 1837,

ao fato de se ligar, 1853, a uma situação de centro-direita que o fará ministro e visconde, a

história política de Garret é, no mínimo, mais incoerente que a literária, cujo projeto tem

como um dos principais desafios discutir de maneira inovadora a pátria portuguesa no

século XIX. “O que desde Garret a estrutura no seu âmago, é o projeto novo de

problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência individual,

com a realidade específica e autônoma que é a Pátria” (LOURENÇO, 1988, pág. 80).

Na produção literária anterior à do autor de Viagens na minha terra, conforme

assevera Eduardo Lourenço, a nação Portugal ainda não havia sido apreendida como

“realidade histórica”, uma vez que “era vivida sem autêntica interioridade” (1988, p.81). “A

partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o

núcleo de pulsão literária determinante” (1988, p. 80), atesta o autor ao fazer uma viagem

sobre o destino histórico-místico de Portugal do romantismo ao modernismo de Fernando

Pessoa.

Se na base das preocupações de Garret está ancorada a noção de pátria e nação, em

conformidade com o espírito romântico, em Dalton Trevisan as discussões sobre as

transformações urbanísticas vivenciadas por Curitiba se fundam a partir de um projeto que

visa pensar a cidade, tanto em termos políticos (especialmente com relação às

transformações urbanísticas) como estéticos. Em especial, na medida em que Em busca de

Curitiba perdida é editada durante a fase de preparativos para a festa dos 300 anos da

capital paranaense.

Nesta coletânea, o autor mostra uma nova possibilidade de compreender as

mudanças ocorridas em Curitiba, num momento em que as várias instâncias e camadas

sociais da cidade conjugam um mesmo discurso, qual seja, o da administração municipal,

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ao referir insistentemente a cidade, nos meios de comunicação, como detentora dos títulos

de “cidade modelo” e “capital ecológica”.

Com certeza, pode-se afirmar que dois textos, “Em busca de Curitiba”, que

abre o livro de título homônimo, e “Curitiba revisitada”, que encerra o volume lançado em

1992, dão a medida certa da representatividade da obra de Dalton Trevisan no contexto

dessas comemorações municipais. No primeiro, ou melhor nessa crônica que com o passar

dos anos ganhou um tom memorialístico, Dalton Trevisan demarca o seu território, seu

domínio no plano estético e político, a partir de personagens e espaços “eleitos” , num

movimento de negação e afirmação:

“Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina

da Escola Normal, do Gigi, que é o maior pidão e nada não ganha (a

mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi) (…)”.

(TREVISAN, 1992, p.7)

“Não, a do Museu Paranaense com o esqueleto do

Pithecanthropus erectus, mas do Templo das Musas, com os versos

dourados de Pitágoras(…)”. (1992, p. 8)

Dalton também se coloca como o intelectual que busca refletir sobre as contradições

do seu tempo, e do momento histórico em que esta inserida a cidade. Desta forma, nesse

inventário reatualizado, que se traduz numa espécie de memorial do que deve ser lembrado

(conforme já demonstrado em outro trabalho de minha autoria)2, ele continuará negando o

discurso de determinadas instâncias relacionadas com o poder, que poderíamos caracterizar

como a Curitiba oficial (a dos administradores e elite intelectual), em prol da Curitiba

humana, povoada de loucos, rufiões, prostitutas, colonos, normalistas de gravatinha,

neopitagóricos, soldados do fogo, entre outros”.

2 Algumas discussões importantes deste trabalho estão contidas na dissertação de mestrado de minha autoria, intitulada LITERATURA E CIDADE: Análise do espaço urbano em Dalton Trevisan, de 2002. Elas foram utilizadas de maneira a contribuir com a abordagem e adaptadas ao objetivo que se presta à composição do texto.

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Na verdade, também não há como dissociar a crônica “Em busca de Curitiba

Perdida” do desejo de uma geração liderada por Dalton Trevisan, -- e que teve a revista

Joaquim como veículo de divulgação de suas idéias – de criar no Paraná um movimento de

renovação nas artes e na literatura em contraposição aos ideais reacionários e conservadores

do movimento paranista e também simbolista, este capitaneado no Paraná pelo poeta

Emiliano Perneta.

“Sob este ângulo é que o texto “minha cidade” deve ser analisado: qual seja, a partir

de um movimento que pretende romper com o passadismo, instaurar novas idéias, o que vai

desencadear numa nova maneira de olhar a cidade” (NICOLATO, 2002, p.15). Assim,

Dalton vai cantar nos seus contos a cidade das criaturas comuns, quando não humildes,

conforme o ensaio “Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan”, escrito pelo

crítico Wilson Martins na Revista Joaquim de número 14:

É notável a fascinação que essa pobre fauna exerce sobre o contista:

e tudo exclusiva e rigorosamente debaixo de um interesse de análise

psicológica, de conhecimento do homem, pois o sr. Dalton Trevisan

não é político, ou, pelo menos, não pretende fazer de sua arte um

veículo de intenções políticas.”

Merece destaque o fato do texto “minha cidade” ter sido republicado (já com novos

formatos e diferentes títulos) em pelo menos dois momentos marcantes, na história do

Paraná e de Curitiba, sempre com o propósito de marcar posição e afirmar a cidade

provinciana, a cidade da memória: em 1953, por ocasião das comemorações do I

Centenário de Emancipação do Paraná e, em 1992, durante os preparativos do aniversário

dos 300 anos da cidade.

O fato de republicá-lo novamente, mesmo que alguns de seus sintagmas possam ter

significação mais datada, ou seja, para o momento em que foi escrito na década de 40,

demonstra a necessidade de Dalton de não só reafirmar seu posicionamento sobre questões

de ordem estética e política (não no sentido partidário) como também a sua cidade no plano

da memória que necessita ser preservada em meio a um turbilhão de mudanças que alteram

a fisionomia da sua cidade.

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E no momento em que das comemorações dos 300 anos deriva um discurso oficial

de dimensão unívoca, Dalton Trevisan irá reunir ainda na coletânea Em busca de Curitiba

Perdida uma série de textos, até então inéditos, alguns deles com uma visão contrária à do

discurso predominante e visando a recuperação da memória da cidade, como “Que fim

levou o vampiro de Curitiba?”, “Cartinha a um velho poeta”, “Cartinha a um velho

prosador” e “Curitiba revisitada”.

Estes textos que são carregados de ironia - e nos quais o narrador faz uma crítica

nada velada a personagens da igreja, da literatura e da administração municipal – deveriam

ser agrupados num outro livro a ser publicado com o título Os sete segredos de Curitiba,

conforme indicação do autor no final de cada texto. Eles acabaram integrando em 1994 o

livro Dinorá: novos mistérios.

Diferente de “Em busca de Curitiba perdida”, o poema em prosa “Curitiba

revisitada”, por exemplo, versa sobre temas mais datados na medida em que representa, em

tom de crítica, as transformações urbanísticas mais recentes sofridas por Curitiba, conforme

atesta já no começo: “Que fim ò Cara você deu à minha cidade/ a outra sem casa demais

sem carros demais sem gente demais(...) (TREVISAN, 1992, p.85). É importante notar que

a letra “C”, do termo “cara” é utilizada em caixa alta, numa referência direta do autor ao

governo municipal.

Embora “Curitiba revisitada” aponte para uma crítica mais direcionada numa

determinada circunstância histórica, a dissonância em Dalton abarca valor mais amplo. Isto

porque, a natureza do seu discurso revela-se contrária, sobretudo, às mudanças que põem

xeque as redes de sociabilidades estabelecidas e à perda da medida da cidade, independente

dos grupos políticos que estão no poder.

Já a preocupação nacionalista que perpassa o espírito romântico funciona como um

leitmotiv, com um motivo central na obra de Garret. O poema longo e narrativo, “Camões”,

considerado evento fundador do romantismo em terras portuguesas (embora carregando

algo de clássico em sua estrutura) versa não apenas sobre a morte e o amor impossível,

como também acentua a valorização do herói como indivíduo, colocando em debate todas

as contradições nas relações entre o poeta português e a pátria. Um exemplo são as

constantes referências à ingratidão, da qual Garret também se considerava uma vítima.

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Garret também transitou pela esfera do romance histórico ao trazer à tona discussões

sobre acontecimentos e símbolos históricos de uma região de Portugal, a cidade do Porto,

em O Arco de Santana, e a temática da moral no procedimento “exemplar” de Frei Luiz de

Souza, ao atear fogo à sua propriedade contra a possibilidade de vê-la ocupada pelos

ingleses.

3 ROTAS DE VIAGEM

Tanto no projeto de Garret quanto de Dalton Trevisan, as reflexões sobre a pátria e a

cidade são permeadas por dois tipos de narrador que assumem diferentes vozes discursivas,

e que transitam entre realidade e a ficção. Em se tratando de Viagens na minha terra, se nos

textos que se aproximam da crônica, social e de viagem, o narrador se mostra em primeira

pessoa do plural – num trajeto em que inclui não apenas os companheiros de viagem, mas

também o leitor –, no que é considerado novela aparece em terceira pessoa, num

distanciamento que é válido somente para a história de caráter romântico.

Em Viagens na Minha Terra, Garret apresenta ao leitor uma crônica de viagem, em

que se articulam memória e digressões, além de uma novela romântica. Na obra, a

narrativa se desdobra em dois tempos distintos, retratando, primeiro, a viagem do

cronista/autor por um período de dez dias à região de Santarém, onde pôde, decepcionado,

ver e sentir de perto as marcas impingidas pela destruição material e cultural causadas

durante os anos da Guerra Civil.

Noutro tempo, mais distendido, tem-se a narrativa com ares de ficção, constituindo-

se numa pequena novela atravessada, no nível sentimental, pelo amor romântico e

impossível entre Joaninha (apelidada de “a menina dos olhos verdes” ou “a menina dos

rouxinóis”) e o primo Carlos; em termos políticos, por momentos decisivos da guerra civil

empreendida por Dom Pedro e seus partidários, no intuito de reaver o trono português,

ocupado por Dom Miguel, de feições absolutistas e mais conservadoras.

No livro de Almeida Garret, primeiramente irrompe a figura do narrador-autor

como cronista social, numa viagem “real”, de Lisboa a Santarém, cujo início integra o

relato do próprio narrador: “São 17 deste mês de julho, ano de graça de 1843, uma segunda-

feira, dia sem nota e de boa estréia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar

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para o Terreiro do Paço. Cheguei muito a horas, envergonhei os meus madrugadores dos

meus companheiros de viagem(...) Partimos.” (GARRET, 2003, p.12). A viagem de Garret

a Santarém seria concluída em 26 daquele mês.

Já de início, o narrador dá a antever que o conhecimento real está associado ao ato,

não balizado somente pela razão, mas também pela experiência concreta. Assim, a narrativa

passa a se configurar a partir de uma interação entre o eu e o espaço em que os fatos

históricos e o imaginário se sucedem: “Vou nada menos que a Santarém; e protesto que de

quanto vir e ouvir, de quanto ou pensar e sentir há de se fazer crônica. Era uma idéia vaga,

mais desejo que tenção, que eu tinha há muito, de ir conhecer as ricas várzeas desse

Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental de nossas vilas”. (2003,

p.12)

Nesta época, Garret já havia sido reeleito deputado (em 1842, pela Estremadura).

Era defensor do catolicismo contra os excessos do liberalismo materialista, mas por outro

lado combatia “o perigoso” domínio dos padres, especialmente os de linhagem

conservadora. Já havia escrito o Alfageme de Santarém, Um Auto de Gil Vicente e Frei Luis

de Souza. (2003, p. 263).

A viagem de Garret é marcada pela narração, e principalmente pelas digressões

sobre literatura, política, filosofia, entre outras, sustentadas através da linguagem da

crônica, desse gênero híbrido formado pela literatura e jornalismo, conjugado no tempo

presente, e cuja matéria-prima está ancorada no que se pode caracterizar como efêmero e

circunstancial.

Como em toda crônica, o narrador de Viagem na minha terra vai estabelecer juízos

de valor neste confronto direto de suas preferências cultural e intelectual com a realidade

imediata em que se depara. Partindo da concepção de “progresso”, termo que se constitui a

base das principais discussões concernentes ao século XIX, Garret vai se valer da

comparação como argumento para estabelecer de um lado os “espiritualistas” e de outro os

“materialistas”, anunciando-os, de pronto, como personagens centrais de um dos grandes

momentos da história de Portugal.

O primeiro terá como representação a figura de Dom Quixote, do clássico romance

espanhol de Miguel de Cervantes, e, por extensão, a ala dos padres conservadores, e o

segundo o fiel escudeiro Sancho Pancho, cuja caricatura recai sobre os barões que, na

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esfera do poder monárquico, vão substituir os aristocratas amigos do rei (como na

seqüência do livro, aos leitores será dado a saber).

A bem da verdade, a comparação entre personagens, idéias e situações que marcarão

o velho e novo, tendo como ponto de referência os episódios posteriores ao da Guerra Civil,

vão constituir a própria essência da interlocução que o narrador irá manter com o leitor de

Viagens na minha terra. No fundo, o que estará em jogo nesta conversa é a necessidade de

fazer com que o leitor não perca o fio da meada, pontuada por uma série de reflexões cujo

objetivo final é pensar a pátria, seja no campo político, tecnológico ou cultural.

E, assim, já no começo do livro, após definir os novos personagens da cena política,

o narrador em tom de ironia (marca que vai caracterizar a parte inicial do enunciado) ditará

o rumo de suas pequenas andanças geográficas e intelectuais: “Ora nesta minha viagem

Tejoarriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor

entendesse agora. Tomarei cuidado lembrar de vem em quando, porque receio muito que se

esqueça”. (2003, p. 19).

Nessa interlocução o autor-cronista assumirá o papel de guia, em meio a uma

narrativa que se quer emaranhada e fragmentada pelas diferentes combinações de gêneros.

Para seguir a viagem de Garret, é necessário então ter muita paciência, conforme observa o

narrador bem mais adiante: “Neste despropositado e inclassificável livro das minhas

Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações de tal

modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão

embaraçada meada”. (2003, p. 173).

Paciência para unir os fios do discurso de uma narrativa marcada pela expolição,

argumento já utilizado na antiguidade e que, segundo Philipe Breton citando a definição do

autor de Rhétorique à Herrenius, “consiste em se deter sobre um mesmo ponto, ao mesmo

tempo que se dá a impressão de exprimir idéias sempre diferentes”. (BRETON, 1999,

p.105). Esse recurso em Garret se amplia, para reforçar ao longo do enunciado a

representação das figuras dos personagens barão e clero conservador, apresentadas em toda

a sua complexidade social e humana.

Mas nessa embaraçada meada, é necessário ainda desfazer intrincados fios, tanto o

mais que são representados por considerações de toda ordem, por um arco de digressões

que vão desde pensar as obras de autores da literatura clássica e portuguesa, passando pela

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discussão filosófica da natureza do homem, até a necessidade de preservar os valores

culturais e a memória do país.

Outro recurso utilizado por Garret na composição de Viagens na minha terra é a

ironia, cuja definição compreende o contraste entre uma realidade e uma aparência, na

medida em que “(...) todos mais ou menos plausivelmente afirmam estar dizendo ou

fazendo alguma coisa, enquanto na realidade transmitem uma mensagem totalmente

diferente”. (MUECKE, 1995, p.52).

Um bom exemplo, nessa direção, é a própria viagem de Garret, a começar pelo

percurso escolhido, cujo caminho se projeta para a outra margem, inversa àquela

empreendida pelos grandes navegadores portugueses, ao desbravar o oceano na conquista

do novo mundo. O cronista, por sua vez, fará uma viagem mais modesta, de poucos

quilômetros, seguindo o Rio Tejo em direção ao interior de Portugal:

“A ousadia do narrador é imensa: substitui a grandeza épica pela

paz bucólica, a praia ocidental pela Lisboa oriental, a Lisboa

burguesa pela Lisboa popular, o “grande oceano por achar” pelo

“pequeno mar mediterrâneo” e a epopeia do mar pela tradição da

terra nessa porta de saída da cidade que tem mais belezas nas suas

hortas e nas suas árvores que a aridez monumental de Belém”.

CERDEIRA, 2003, p.247).

Na realidade, o narrador fará uma viagem rudimentar no revés da direção do

“progresso”, e porque não dizer, de natureza romântica, num bom percurso no lombo de

uma mula, sem pressa de chegada, e não sem uma boa pitada de humor: “Ao chão estive eu

para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para Azambuja o nosso cômodo

veículo, e diante de mim, a enfezada mulinha asneira, que – ai, triste! – tinha de ser o meu

transporte de ali até Santarém. (GARRET, 2003, p. 37).

Em outras passagens, o cronista irá ironizar o gosto da gente de Lisboa pelas

viagens, ou seja, toda uma gente que passa a vida entre o Chiado, a rua do Ouro e o teatro

S. Carlos, e a ideologia do progresso que começava a instalar com força na ideologia

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apregoada pela nova ordem político-social. “Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de

pó de pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Ícaro,

para andar, a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e

grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos”.

(2003, p.25).

De certa maneira, no decorrer de Viagens na minha terra, a ironia aos

poucos vai se misturando à crítica social, ao desapontamento do autor que depara com o

patrimônio natural e cultural vilipendiado pós-guerra civil, e um bom exemplo está na

chegada ao Pinhal da Azambuja: “Este é o Pinhal da Azambuja? Não pode ser. Esta, aquela

antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico? E eu que, em

pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro Malas Artes, que logo em imaginação, lhe

não pudesse a cena aqui perto!..(...) Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão..

(2003, p. 33).

Ao mesmo tempo, o discurso enunciado pelo cronista aponta, de maneira

subjacente, para a necessidade de reconstruir um passado em ruínas e resgatar determinados

valores seculares que deveriam continuar sustentando a estrutura identitária da nação, e que

haviam sido esquecidos, até mesmo profanados pelos novos donos do poder. Assim, a

viagem de Garret é no sentido da presentificação da memória, do resgate dos contos

populares e monásticos, do respeito ao patrimônio histórico e dos heróis populares.

O desapontamento do autor se evidencia ainda mais na medida em que o cronista

não conseguirá descobrir a morada do Alfageme de Santarém, em que se depara com uma

Santarém em ruínas e com a profanação do túmulo de el-rei Fernando, entre outras

conseqüências da nova ordem que se instalou após a guerra civil e da qual o próprio o autor

participou ativamente. Garret a esta altura acredita na religião como formadora da alma e

da cultura do povo português, embora exerça duras críticas à ala da igreja ligada ao regime

absolutista.

Desta forma, aponta novamente sua crítica aos barões, que ele denomina de os

vendilhões do templo. “Em Portugal, não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa

sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante,

devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas

profanadas de tudo o que elevava o espírito...” (2003, p. 222).

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Mas já pela metade desta obra múltipla e complexa, o narrador, nos apresenta uma

pequena história de ficção romântica, que ajuda a compreender um pouco as contradições

daquele período na história de Portugal e o que estava em jogo no cenário político e

econômico da época. O segundo narrador de Viagens na minha terra, de natureza

dramática, ficcional, discorrerá sobre uma história de amor (envolvendo os personagens da

casa do vale) iniciada em 1832 e tendo como pano de fundo a luta entre os exércitos de

Dom Pedro e Dom Miguel, em plena Guerra Civil.

Dom Miguel havia entrado em cena em 1828, aclamado rei de Portugal, depois de

ter-se casado com D. Maria, filha de Dom Pedro. Mas o partido da pequena rainha sentiu-se

traído, uma vez que Portugal voltou a adotar o regime absolutista. Após haver abdicado do

trono em favor da filha, Dom Pedro vai para a Europa, organiza um exército na tentativa de

reconquistar o reino perdido.

Dom Pedro desembarca nas proximidades da cidade do Porto, em 1832, com apenas

7.500 homens e após dois anos de sangrentas batalhas sairá vitorioso em cima de um

exército de 80 mil homens conduzido por Dom Miguel. Garret, juntamente com Alexandre

Herculano, integra essa expedição militar. Com Mousinho da Silveira, trabalha na

elaboração das leis do novo governo. Em 1933 vai para Paris e depois do fim da guerra

civil (Dom Miguel é derrotado em Évora) retorna a Portugal.

Será a partir do capítulo 11, que entrará em cena a pequena novela de caráter

romântico, narrada em terceira pessoa, tendo como protagonista a figura de Carlos (herói

romântico e revolucionário), da inocente Joaninha, da avó Dona Francisca e de frei Dinis.

A interlocução passa, no entanto, a se dar com o público formado pelas leitoras, o que

demonstra que, para Garret, os assuntos considerados mais sérios, quando assumia o tom da

crônica e da crítica social, deveriam ser direcionados aos homens: “Anda assim, belas e

amáveis leitoras, entendemo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem

aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e

singela, sinceramente contada e sem pretensão”. (2003, p. 66).

De filósofo, que garante não ter sido, numa das sínteses que anuncia o capítulo 11, o

autor passa a incorporar nesta pequena novela a figura do poeta, que se dá ao direito de

enamorar-se, e assim construir uma narrativa, cuja natureza da trama é perpassada pelo

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sentido de culpa e pelo destino trágico, bem aos moldes do que se caracteriza o espírito

romântico.

O fato é que as digressões continuam, mesmo que em menos aparições, guiando o

texto de natureza ficcional, pois que o drama vivenciado por Carlos não está relacionado

apenas aos seus instintos amorosos, a suas normas e valores perante o código dos amantes.

Ele está, mais do que isso, intimamente relacionado com os conflitos de ordem político-

social vigentes em Portugal da década de 30, do século XIX.

Carlos vai trair os seus dois sustentáculos (a posição de amante e revolucionário), e

que o fizeram herói romântico, para se integrar a uma nova fase, que resultaria em

profundas mudanças na história de Portugal. Indiferente a tudo, Carlos irá se transformar

num barão, figura abominada pelo narrador-cronista, em suas digressões. Mais uma vez, a

narrativa em forma de crônica e a novela romanesca estarão se tangenciando no diálogo

final entre o narrador e Frei Dinis.

O caráter de Carlos já havia sido posto em discussão entre o narrador e um

companheiro de viagem sobre o fato de o herói amar, ao mesmo tempo, duas mulheres (a

prima Joaninha e a inglesa Georgina). Ali vem apenas a confirmação final de que o

narrador já havia dito sobre a configuração dos heróis nos dramas românticos: diante da

nova realidade social, eles morrem ou se transformam em monstros, corrompidos pela

sociedade, como Carlos. Embora Carlos, ao ser elevado a essa nova esfera social, deixará

de ser herói para se integrar à nova sociedade. E para Joaninha, a menina dos olhos verdes

da inocência, esse mundo corrompido pelo dinheiro e a ganância só lhe reservará a morte.

É importante ressaltar que no final de Viagens na minha terra os dois tempos da

narrativa – marcados pela presente viagem do autor a Santarém e pela reconstrução dos

episódios da Guerra Civil – assim como dois gêneros utilizados (novela e crônica), se

tangenciam na medida em que se dá o encontro hipotético entre o narrador e o personagem

Frei Dinis na casa do Vale. E neste diálogo, uma fala do religioso, que representa o

conservadorismo, mostra-se reveladora: (...)Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não

tiveram menos. Erramos ambos”. (2003, p.250).

Mas segundo Lélia Parreira Duarte, “a história de Carlos e Joaninha e outras que se

incluem na narrativa não parecem importar tanto quanto o aproveitamento das

oportunidades que o texto oferece para as digressões(...) para a desmistificação de certezas

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com relação à história e outras supostas verdades. Garret mostra nas viagens que a verdade

é sempre uma construção que depende de retóricas e dialéticas – exercícios de linguagem –

para se afirmar”. (DUARTE, 2003, p.152).

Já na coletânea Em busca de Curitiba perdida, Dalton Trevisan também apresenta

um narrador sob o ponto de vista da ficção, bem próximo do processo discursivo, como

acontece nos contos, e outro em diálogo com a vertente memorialista e com as questões

mais atuais da sociedade, numa aproximação com a crônica. Será esse distanciamento da

situação ficcional que permitirá um caráter opinativo nos textos considerados híbridos.

O autor lançará um olhar reflexivo sobre a cidade, situando-a em dois tempos

(embora não revelados às claras), na medida em que irá resgatar e republicar um texto

como “Em busca de Curitiba perdida”, escrito na década de 40, ao mesmo tempo em que

estará editando, de maneira inédita, outro texto mais atual, como o poema em prosa

“Curitiba revisitada”, por ocasião dos preparativos dos 300 anos da cidade.

No primeiro, o autor fará uma viagem (sem sair do lugar, diga-se de passagem) ao

universo da cidade, e, de pronto, vai eleger espaços e personagens de sua preferência,

inscritos numa espécie de inventário pessoal. A Curitiba que o narrador “viaja” é a capital

paranaense dos anos 40 e 50, quando a população não passava de 350 mil habitantes, época

em que era comum o footing na rua XV de Novembro e nos cinemas. “Para as pessoas que

viveram os anos 50 em Curitiba, não seria difícil perceber o quanto e como a cidade foi

transformada”, diz Antônio Cesar de Almeida Santos, em Memórias e Cidade”. (SANTOS,

1999).

Além disso, o que torna o texto “Em busca de Curitiba Perdida” bastante revelador

ao ser republicado nas proximidades dos festejos dos 300 anos não será a visão saudosista e

romântica da cidade nas décadas de 40 e 50. Na verdade, o que está em jogo neste caso é

uma questão ideológica e intelectual, qual seja, a divisão que o autor estabelece entre duas

instâncias - a dos espaços marginais e das pessoas comuns e os espaços ditos “oficiais”,

relacionados ao poder seja ele político (não no sentido partidário) ou cultural – e a sua

preferência pela primeira.

Esta compreensão, no entanto, se torna mais completa quando se tem a leitura de

todos os textos híbridos que compõem o livro lançado em 1992, sobretudo a narrativa

“Curitiba revisitada”, onde há críticas à Curitiba “enjoadinha” e “para inglês ver” dos anos

Page 17: Garret e dalton

90. O desapontamento é o mesmo verificado em Garret, mas aqui noutra direção, não mais

no âmbito de um país, mas de uma cidade, cuja paisagem se revela desfigurada como

conseqüência das muitas transformações urbanísticas.

Se em Garret a interlocução assume o papel de guia, num jogo que visa oferecer

caminhos para compreensão de um texto múltiplo, mas interdependente, e que num

processo continuum leva o leitor a desembaraçar o fio da meada, em Dalton a interlocução

é mais especificamente de caráter irônico. Mesmo porque diferentemente da obra do

escritor português, Em busca de Curitiba perdida é estruturada como uma coletânea de

textos autônomos, de diferentes épocas, embora em suas relações possam apontar para

significações em comum.

Em Dalton Trevisan, a ironia vai acompanhar todo o discurso e essa marca, no que

tange como contraponto à visão positiva da cidade, propalada principalmente nos meios de

comunicação, é bastante evidenciada no próprio lançamento de Em busca de Curitiba

perdida, em 1992, no auge dos preparativos para a comemoração dos 300 anos de Curitiba,

que ocorreu em 29 de março de 1993.

O conceito de ironia se aplica com justeza à publicação já na primeira página de Em

Busca de Curitiba Perdida — antes mesmo da folha de rosto (em que está o título, editora e

autor da obra) —, do “Hino Oficial de Curitiba”, instituído em 11.05.67, e que tem letra de

Ciro Silva e música de Bento Mossurunga.

Essa atitude demonstra, já de início, que o livro Em busca de Curitiba perdida teria

o propósito de desconstruir o discurso positivo dos festejos dos 300 anos; afinal de contas o

que se verá nos textos a seguir não será a imagem do narrador alçando vôo nas asas de uma

cidade descrita como jardim de rosa e de luz, como nos mostra o “Hino Oficial de

Curitiba”.

Será, no entanto, em “Curitiba revisitada” (uma citação de “Lisbon Revisited” de

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa) que o autor fará uma crítica

mais incisiva à cidade que perdeu a medida, colocando em xeque os títulos de “cidade

modelo” (“ai da cólera que espuma os teus urbanistas/ apostam na corrida de rato dos

malditos carros/suprimindo o sinal e a vez do pedestre(...) ( GARRET, 1992, p.87) ou de

“capital ecológica” (“não me venham de terrorismo ecológico/ você que defende a baleia

Page 18: Garret e dalton

corcunda do pólo sul/cobre os muros de pegadas do besteirol tatibitate/grande protetor da

minhoca verde dos Andes(...)”. (1992, p.87).

Quanto aos textos de caráter mais ficcionais, se em Garret mesmo na novela

romântica o narrador se apresenta em perspectiva crítica, em Dalton os personagens são

revelados em sua incomunicabilidade, em suas relações afetivas marcadas pelo sistema

patriarcal predominante nas décadas de 40 e 50.

Na realidade, o que vai diferir Dalton dos novelistas clássicos será a intenção de

transformar a pessoa comum num herói, mesmo que às avessas, e assim retratar o que está

em jogo nas rede de sociabilidades no espaço público e privado num momento específico

da história de Curitiba. Embora esses “heróis” do cotidiano ganhem voz na estrutura

narrativa, nota-se que eles são revelados em sua condição, sem qualquer olhar de

complacência.

4 TRADIÇÃO E MODERNIDADE

Tanto em Viagens na minha terra como na obra Em busca de Curitiba perdida há

uma preocupação em resgatar ou pelo menos buscar a manutenção de valores e tradições

culturais numa sociedade em rápida transformação. Em Garret, o que está em jogo são as

mudanças provocadas pelo progresso, pelo materialismo advindo da implantação do

sistema liberal; em Dalton as reformas urbanísticas que mudaram a paisagem e as redes

sociabilidades na capital paranaense.

Em sua receita de como escrever um romance, Garret em tom de ironia e com

desfaçatez revela o que importa num livro como Viagens...: “Cuidas que vamos estudar a

história, a natureza, os monumentos, a pintura, os sepulcros, os edifícios, as memórias da

época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e

situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isto é trabalho

difícil, longo, delicado (...).” (GARRET, 2003, p. 34).

Será justamente este o rumo que tomará o autor nessa viagem, em que tentará

reafirmar ou até mesmo resgatar a história de Portugal, através dos contos e personagens

populares, e da valorização da memória dos nobres, além de passar a limpo sua filiação à

Page 19: Garret e dalton

história da literatura, desde os clássicos. E neste contexto de respeito pelas tradições do

povo, o desapontamento de Garret será ainda maior quando da chegada a Santarém.

Ali, o que o narrador irá encontrar é uma cidade completamente destruída, túmulos

de reis profanados, e heróis esquecidos, entre eles o Alfageme de Santarém. “Nada

pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou

menos anacronismo, uma leva base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do

célebre cutileiro-profeta, que a história herdou das crônicas romanescas, e hoje o romance

outra vez reclama da história” (2003, p.203). Isto sem falar no desmantelamento do sistema

educacional português e do gosto duvidoso que se instaurou no campo da arte.

Vale destacar que no século XIX, enquanto a Inglaterra estava às voltas com a

Revolução Industrial, Portugal ainda se configurava como um país pobre, sem indústria,

ainda ignorando a máquina a vapor, e com um sistema medieval de propriedade. Mas após

o período de Guerra Civil, entraria numa nova fase de transformações tecnológicas, o que

podia se antever na macadamização das vias de transporte e na implantação de um sistema

ferroviário.

Conforme revela nota de referência, na altura em que Garret escrevia Viagens na

minha terra o governo português tomava medidas para abrir o primeiro caminho de ferro,

inaugurado em 1856. O ceticismo do autor quanto à implantação das novas tecnologias é

reforçado no final do livro ao mesmo em que novamente vai dirigir duras críticas à classe

dos barões: “Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura,

porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal!” (2003,

p.251).

Conforme define Elena Losada Soler, o romântico é um homem cindido, e com ele

começa a dispersão do eu na multiplicidade. “Entre as muitas cisões ocupa um lugar fucral

a que o dilacera entre os restos do sonho arcádico e a realidade de um futuro que o afasta da

natureza, aquilo que Garret definiu como o Adão Natural versus o Adão social”. (SOLER,

2003, p. 184).

Para a autora, o personagem Carlos de Viagens na minha terra é construído desde o

início como uma espécie de alter ego do autor, no que tem de múltiplo e contraditório

principalmente no relacionamento afetivo. Quanto às suas posições políticas, embora o

Page 20: Garret e dalton

Garret tenha investido o tempo todo contra a classe dos barões, mais tarde não se furtará em

receber o título de visconde.

Por outro lado, essa mesma tese da multiplicidade encontra ressonância no projeto

estético de Garret, nos procedimentos de composição utilizados no romance Viagens..., pois

que a combinação de diferentes gêneros, inclusive a ocorrência de uma novela dentro de

uma crônica de viagem e social, assim como as diferentes perspectivas da narrativa e

interlocuções com o leitor demonstram um forte diálogo com a modernidade.

Neste sentido, a coletânea Em busca de Curitiba perdida também aponta para a

direção das técnicas mais modernas de composição textual. Da mesma forma, o sujeito que

pensa a cidade e a voz manifestada nos textos híbridos vêm marcados pela contradição,

como a própria essência da modernidade. Os textos enunciam a dicção de um sujeito que

nega, a certa altura, as sucessivas transformações urbanas que vão pôr em xeque a noção de

identidade e de pertencimento dos indivíduos no convívio social.

Dalton também vai buscar preservar o passado, mas não tão remoto, visto que

pretende presentificar na memória a sua Curitiba dos anos 40 e 50. Mas não se pode

afirmar que o autor é contra o sujeito moderno. Mesmo porque a construção do seu projeto

literário, que se insurge contra o modelo simbolista, assim como o enredo e personagens em

sua obra, se nutrem da natureza da própria modernidade e no que ela carrega, em si, de

paradoxal.

Isto posto, o espaço da cidade é visto em seu aspecto positivo como ponto de

aglomeração, de sociabilidades. Assim como Baudelaire, Dalton compõe um discurso

marcado pelo lirismo para representar o universo de personagens que circulam pelas ruas

da cidade. E vai mais além, ao trazer também para a sua ficção as mazelas da união

conjugal e a incomunicabilidade que permeiam as relações no universo sacrossanto do lar.

Enquanto Baudelaire vai compor a sua lírica a partir do cortejo heróico dos dândis,

flâneurs, apaches, lésbicas, proletários e prostitutas da Paris da segunda metade do século

19, Dalton Trevisan vai “cantar” a realidade dos indivíduos dos bairros periféricos, das

diversões populares, que freqüentam os bares e “inferninhos” de uma Curitiba provinciana,

em fase de transformação.

Em Baudelaire assim como em Dalton, a natureza desse espaço, que começa a

sofrer bruscas mudanças, vai se refletir, a partir de um determinado momento, num eu

Page 21: Garret e dalton

cindido, que antevê um futuro menos glorioso para a cidade, e que nos permite pensar na

modernidade tardia, representada pelo esvaziamento e a degradação das áreas centrais, da

rua apenas como ponto de passagem do automóvel, das aglomerações humanas reduzidas

aos condomínios fechados e aos shoppings-centers.

Essa contradição da modernidade, em Baudelaire, aparece com muita clareza no

poema “O cisne”, no qual o poeta utiliza-se da metáfora do cisne — que no lugar de uma

antiga fonte vai se deparar com “ásperas lajes” — para bem caracterizar o processo de

modernização da velha Paris. “Fecundou-me de súbito a fértil memória, /Quando eu

cruzava a passo o novo Carrossel. Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/Depressa

muda mais que um coração infiel.” BAUDELAIRE, 1985, p.325).

Assim como em Baudelaire, as transformações urbanas da cidade, a certa altura,

também vão afetar, sobremaneira a ficção de DT. Mas esse posicionamento contra o que se

poderia chamar de modernidade tardia se revela em DT principalmente nos textos híbridos,

uma vez que nos contos predomina o espaço da cidade em seu aspecto positivo, no sentido

da aglomeração e da possibilidade do convívio social intenso, para o bem e para mal, entre

os personagens.

A exceção nos contos, no entanto, fica por conta de textos como “Cemitério de

elefantes” e “Uma vela para Dario”, onde se denuncia a degradação do espaço como

organizador da vida do sujeito. Nos textos híbridos, aquele que mais representa o eu

cindido do narrador frente às súbitas transformações da cidade é “Curitiba revisitada”.

Nesse texto, DT vai denunciar o espaço urbano apenas como ponto de passagem, a partir da

abertura de novas ruas e o aumento da velocidade dos veículos que cruzam a cidade.

Como diz Richard Sennett, em Carne e pedra, o espaço urbano, na

contemporaneidade, é marcado pela experiência da velocidade, do corpo que se move

passivamente para destinos descontínuos e fragmentados. “O espaço tornou-se um lugar de

passagem, medido pela facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele”.

(SENNETT, 2001, p.17)

Sennett continua, observando um fenômeno que compreende as redes de

sociabilidades nos novos tempos:

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A massa de corpos que antes aglomerava-se nos centros urbanos

hoje está dispersa, reunindo-se em pólos comerciais, mais

preocupada em consumir do que com qualquer outro propósito mais

complexo, político ou comunitário. Presentemente, a multidão

sente-se ameaçada pela presença de outros seres humanos que

destoam de suas intenções. (2001, p.17).

A verdade é que a partir da década de 60, do século passado, Curitiba experimentou

um acelerado crescimento, perdeu a medida da província e, nela, o narrador não se vê, não

mais se identifica. O mesmo ocorrerá com Garret ao vivenciar uma viagem onde a perda

da memória coloca em xeque a própria noção de identidade anunciada pelos novos tempos.

REFERÊNCIAS

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MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um

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TREVISAN, Dalton. Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 1992.

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Brasil Diferente, Imprensa Oficial do Paraná, 2000.