gazeta-28-03

Embed Size (px)

Citation preview

Gazeta de

FsicaSociedade Portuguesa de FsicaEINSTEIN E A DESCRIO UNIFICADA DA NATUREZAOrfeu Bertolami e Jorge Pramos

LIVRO BRANCO DA FSICA E DA QUMICA - OPINIES DOS ESTUDANTES 2003Anabela Martins e Dcio Martins

"SABEMOS HOJE MENOS SOBRE O CREBRO DO QUE SABAMOS SOBRE TOMOS NO SCULO XIX"Entrevista a Anthony Leggett, Prmio Nobel da Fsica em 2003

Volume 28 | Fascculo 3 | 2005 | Publicao Trimestral | 5,00

GAZETA DE FSICA VOL. 28 FASC. 3, 2005 DIRECTOR Carlos Fiolhais DIRECTORAS ADJUNTAS Constana Providncia e Luclia Brito EDITORA Paula Alexandra Almeida CORRESPONDENTES Paulo Crawford (Lisboa), Joaquim Santos (Coimbra) e Joo Pedro Arajo (Porto) COLABORAM AINDA NESTE NMERO Anabela Martins, Carlos Portela, Dcio Martins, Fernando Nogueira, Jorge Pramos, Jos Antnio Paixo, Manuel Fiolhais, Orfeu Bertolami, Patricia Fasca, Pedro Patrcioio, Sandra Costa. SECRETARIADO Maria Jos Couceiro (Lisboa) e Cristina Silva (Coimbra) DESIGN MediaPrimer - Tecnologias e Sistemas Multimdia Lda Rua Simes de Castro, 132, 1 Esq. 3000-387 Coimbra E-mail [email protected] PR-IMPRESSO E IMPRESSO Carvalho & Simes, Artes Grficas, Lda Estrada da Beira 479 / Anexo 3030-173 Coimbra TIRAGEM 1800 exemplares PREOS Nmero avulso 5,00 (inclui IVA). Assinatura anual 15,00 (inclui IVA). A assinatura grtis para os scios da SPF. PROPRIEDADE DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE FSICA ADMINISTRAO E REDACO Avenida da Repblica 37-4 1050-187 Lisboa Tel 217 993 665 Fax 217 952 349 E-mail [email protected] ISSN 0396-3561 REGISTO DGCS n 107280 de 13.05.80 DEPSITO LEGAL n 51419/91 PUBLICAO TRIMESTRALA Gazeta da Fsica publica artigos, com ndole de divulgao, considerados de interesse para estudantes, professores e investigadores em Fsica. Dever constituir tambm um espao de informao para as actividades da SPF, nomeadamente as suas Delegaes Regionais e divises Tcnicas. Os artigos podem ter ndole terica, experimental ou aplicada, visando promover o interesse dos jovens pelo estudo da Fsica, o intercmbio de ideias e experincias profissionais entre os que ensinam, investigam ou aplicam a Fsica. As opinies expressas pelos autores no representam necessariamente posies da SPF. Os manuscritos devem ser submetidos em duplicado, dactilografados em folhas A4 a dois espaos (mximo equivalente a 3500 palavras ou 17500 caracteres, incluindo figuras, sendo que uma figura corresponde em mdia a 140 palavras). Devero ter sempre um curto resumo, no excedendo 130 palavras. Deve(m) ser indicado(s) o(s) endereo(s) completo(s) das instituies dos autores, assim como o endereo electrnico para eventual contacto. Agradece-se o envio dos textos em disquete, de preferncia Word para PC. Os originais de figuras devem ser apresentados em folhas separadas, prontas para reproduo, e nos formatos electrnicos jpg, gif ou eps.

PUBLICAO SUBSIDIADA APOIO: Ministrio da Educao - Sistema de Incentivos Qualidade da Educao

NOTA DE ABERTURA

FSICA POR TODA A PARTE!NDICE ARTIGOS Os artigos desta edio abordam dois temas bem distintos. O primeiro, de ORFEU BERTOLAMI e JORGE PRAMOS, intitula-se "Einstein e a descrio unificada da Natureza". Mais uma abordagem vida e obra do fsico alemo no ano em se comemoram 100 anos sobre a publicao dos seus primeiros trabalhos. O segundo artigo da autoria de ANABELA MARTINS e DCIO MARTINS, e faz uma anlise dos resultados expressos no Livro Branco da Fsica e da Qumica - Opinies dos Estudantes 2003. Para ler e reflectir sobre o que pensam os alunos acerca do ensino da Fsica. Este nmero inclui ainda uma entrevista de Patrcia Fasca e Pedro Patrcio a ANTHONY LEGGETT, Prmio Nobel da Fsica em 2003, especialista de fsica terica das baixas temperaturas e famoso pelos seus trabalhos sobre a superfluidez do hlio. Na seco Fsica em Portugal, o destaque vai para a conferncia O Terramoto de 1755: Impactos Histricos que se realiza em Novembro, em Lisboa. Quanto seco Fsica no Mundo noticia-se a deciso de construir em Frana o primeiro reactor nuclear de fuso, ITER (International Thermonuclear Experimental Reactor). Sada-se a obteno por Portugal de uma medalha de bronze nas Olimpadas Internacionais de Fsica que decorreram em Salamanca, Espanha. Jos Diogo Fernandes, o premiado, tem 18 anos e prepara-se para iniciar o curso de Fsica na Universidade do Porto. A GAZETA falou com ele sobre o seu percurso acadmico e as suas expectativas. Na seco Ensino, pode-se aprender a transformar uma caixinha de filmes num fogueto. um texto retirado de um livro a sair brevemente: Cincia a Brincar 4: Descobre o Cu!, da autoria de CONSTANA PROVIDNCIA, NUNO CRATO, MANUEL PAIVA e CARLOS FIOLHAIS. Destaque tambm para a reflexo de CARLOS PORTELA sobre os exames nacionais de Fsica. Recomendamos ainda a leitura das seces Livros e Multimdia, onde poder ficar a par das novidades editoriais, Cartas dos Leitores, com comentrios muito pertinentes, e 2005 - Ano Internacional da Fsica, sobre as mais recentes actividades comemorativas do annus mirabilis de Albert Einstein. Boa Leitura!

EINSTEIN E A DESCRIO UNIFICADA DA NATUREZA Orfeu Bertolami e Jorge Pramos

4

LIVRO BRANCO DA FSICA E DA QUMICA - OPINIES 12 DOS ESTUDANTES 2003 Anabela Martins e Dcio R. Martins

ENTREVISTA "SABEMOS HOJE MENOS SOBRE O CREBRO DO QUE SABAMOS SOBRE TOMOS NO SCULO XIX" Entrevista a Anthony Leggett, Prmio Nobel da Fsica em 2003

18

NOTCIAS FSICA NO MUNDO FSICA EM PORTUGAL

24 28

SECES ENSINO DA FSICA OLIMPADAS DE FSICA LIVROS E MULTIMDIA CARTAS DOS LEITORES 2005 - ANO INTERNACIONAL DA FSICA

32 35 39 44 46

Independentemente dos mritos ou falhas dos seus esforos, a busca da soluo dos problemas mais profundos da fsica na unificao das interaces fundamentais uma das marcas mais caractersticas do gnio de Einstein e, certamente, um legado fundamental.

EINSTEIN E A UNIFICADA DA

Suponhamos que, toldados pelo aborrecimento, deixamos uma sala de concerto enquanto a orquestra continua a tocar. Cada instrumento soar-nos- mais grave. E, se as pernas o permitissem e nos deslocssemos mais depressa que a velocidade do som no ar, cerca de 340 metros por segundo? Deixaramos de ouvir a orquestra, afastando-nos das ondas sonoras que dela se propagam. E se nos evadssemos a uma velocidade superior da luz, cerca de trezentos mil quilmetros por segundo, deixaramos de ver a orquestra? E, do mesmo modo, o mundo circundante, cuja informao nos alcana como luz? Este foi um dos muitos problemas com os quais se entreteve o jovem Einstein. Nascido na poca urea da fsica clssica, Albert desde cedo se debruou sobre as noes bsicas inerentes a todas as conquistas tcnicas e de clculo que os herdeiros de Newton, Descartes e Laplace haviam alcanado: o espao/onde e o tempo/quando. E fazia-o com aquilo que qualquer jovem possui: a curiosidade. O seu referencial teve como origem a cidade alem de Ulm, na Baviera. O seu relgio bateu o primeiro instante em 14 de Maro de 1879. E se pouco tinha a acrescentar a estas coordenadas, interrogava-se sobre a validade dos fenmenos habituais num Universo to vasto quanto as perguntas que nos reserva. A sua famlia juntava-se a tantas outras duma crescente classe mdia, incentivada pela industrializao da Alemanha imperial. O pai, Hermann Einstein, vendia material electroqumico e o seu tio Jakob patenteou um motor elctrico que, embora engenhoso, no o foi ao ponto de competir com os das grandes companhias do ramo. J a me, Pauline, ne Koch, era dotada de um esprito contempla-

ORFEU BERTOLAMI E JORGE PRAMOS Instituto Superior Tcnico - Departamento de Fsica Av. Rovisco Pais, 1 1049-001 Lisboa [email protected] [email protected]

ARTIGO

DESCRIO A NATUREZA

tivo e artstico. Pode-se especular que, em alguma medida, estas influncias levariam Einstein a debruar-se sobre questes fsicas seguindo um critrio mais esttico do que tcnico - sem descurar, contudo, as mincias matemticas.Movimento browniano

Incapaz de se moldar segundo a tradio educacional alem da poca, livrescamente estril e de disciplina militar, o jovem Albert acabou por se licenciar pela Escola Politcnica Helvtica (ETH) em Zurique, corria o ano de 1900. No ano seguinte, saudou o dealbar do sculo como cidado suo, depois de ter abdicado da cidadania alem. Alm do choque intelectual entre a rigidez do pas de origem e o seu esprito irrequieto, as pouco auspiciosas perspectivas de futuro para um judeu na Alemanha de ento, tero certamente desempenhado um papel importante na sua deciso. Falhou na obteno do desejado lugar de professor auxiliar na ETH e, para sobreviver, foi para Berna onde, graas interveno do pai de um colega, se tornou funcionrio de anlise de patentes de terceira classe - a categoria mais modesta - na Repartio Federal de Patentes. Os colegas e superiores desde logo notaram a sua argcia e capacidade de identificar o essencial duma inveno. No entanto, a sua evoluo na profisso no foi particularmente notvel - faltava-lhe a paixo, que o jovem funcionrio encontrava na elaborao de novas ideias em fsica terica. Entre 1901 e 1904 publicou cinco artigos sobre a termodinmica e sua fundamentao estatstica. Trabalho vlido, mas insuficiente para lhe dar uma reputao slida e, consequentemente, um lugar universitrio. No entanto, destaque-se que, no relativo isolamento em que labutou, conseguiu redescobrir resultados semelhantes aos do grande fsico norte-americano, Josiah Willard Gibbs (1839-1903). Sem o saber!

O ano de 1905 foi o seu annus mirabilis, publicando quatro artigos que revolucionaram a fsica. Ainda neste ano, submeteu um quinto artigo e obteve o doutoramento pela ETH. Foi para celebrar o centenrio deste grande marco intelectual da humanidade que se decidiu, sob os auspcios da ONU, declarar 2005 o Ano Internacional da Fsica. Naqueles artigos, Einstein resolve quatro questes. Comea com a origem do efeito fotoelctrico, a dependncia da energia dos electres emitidos por superfcies metlicas com a frequncia da luz incidente. Prossegue com a explicao do movimento browniano, a deslocao errtica de partculas suspensas numa soluo devida coliso com molculas de gua. Descoberto pelo botnico escocs Robert Brown em 1827, a explicao do fenmeno termina a querela filosfica sobre a existncia real de tomos, at ento inobservveis directa ou indirectamente. Apresenta a seguir a teoria da relatividade restrita e remata demonstrando a equivalncia entre a massa m de um corpo e a energia E nele armazenada: a clebre equao E = mc2 , sendo c a velocidade da luz no vcuo, consequncia daquela teoria. A ideia segundo a qual a energia dos electres depende da frequncia da luz incidente, fundamental para a compreenso do efeito fotoelctrico, pode ser explicada pela arrojada hiptese dos quanta, formulada pelo fsico alemo Max Planck (1858 - 1947) em 1900, de acordo com a qual a luz composta por corpsculos, os fotes, com energia proporcional sua frequncia. Esta hiptese,

GAZETA DE FSICA

5

EINSTEIN E A DESCRIO UNIFICADA DA NATUREZA

que o prprio Planck encarou apenas como uma interpretao matemtica conveniente, mas desprovida de significado fsico, vai contra a tendncia da poca: de facto, as equaes do electromagnetismo, obtidas por James Clerk Maxwell (1831 - 1879), estabeleciam que a luz resultava da oscilao acoplada do campo elctrico com o magntico - uma onda electromagntica. A hiptese corpuscular da luz tinha tido a seu favor um dos pais da fsica, o ingls Isaac Newton (1642 - 1727), que defendera que as leis da reflexo da luz indicavam a sua natureza corpuscular. Ao renovar esta perspectiva, Einstein abriu caminho noo de dualidade onda-partcula. Este conceito foi central na revoluo introduzida pela mecnica quntica, ao atribuir s partculas microscpicas comportamentos ondulatrios. Em 1921, a explicao do efeito fotoelctrico deu a Einstein o Prmio Nobel da Fsica. A teoria da relatividade restrita veio resolver outra importante crise da fsica clssica. A mecnica newtoniana e a teoria electromagntica de Maxwell comungavam de uma propriedade tida como imperativa: a existncia de leis fsicas independentes do sistema de referncia. Recordemos que as chamadas transformaes de Galileu relacionam classicamente as posies medidas em dois referenciais com velocidade relativa constante. As equaes da mecnica newtoniana so invariantes para esta transformao. Contudo, a sua aplicao s equaes de Maxwell no as deixa invariantes. Ao invs, estas equaes unificadoras das cincias da electricidade e do magnetismo, so invariantes para as chamadas transformaes de FitzGerald-Lorentz, devidas a George Francis FitzGerald (1851 - 1901) e Anton Hendrik Lorentz (1853 - 1928), as quais relacionam as coordenadas (x,y,z,t) e (x',y',z',t') de dois referenciais de inrcia K e K', de eixos paralelos e o segundo animado de velocidade v segundo o eixo dos xx em relao ao primeiro (ver figura), atravs de

Do mesmo modo, negou que a ltima equao fosse apenas um conveniente artifcio matemtico, e compreendeu que o tempo, como o espao, relativo. Adoptou, pois, estas transformaes e generalizou a mecnica de Newton. Para tal, baseou-se em dois postulados que a seguir se referem. A mecnica de Newton supunha que as leis do movimento eram as mesmas em qualquer referencial inercial, mas a relatividade restrita estendeu esta invarincia a toda a fsica, da mecnica ao electromagnetismo, da fsica estatstica nuclear, etc. Einstein sups tambm que a velocidade da luz no vcuo, c, constante e tem o mesmo valor independentemente da velocidade da fonte emissora ou do observador. Destes postulados surgiram implicaes que, luz da mecnica de Newton, so paradoxais. Refira-se um exemplo: sendo a informao sobre acontecimentos transmitida pela luz a uma velocidade finita, a noo de simultaneidade depende do sistema de referncia, ou seja, acontecimentos simultneos num referencial no o so noutro. Einstein tinha como mtodo o recurso a experincias conceptuais (gedankenexperiment) para explorar as consequncias das suas propostas. Deste modo, concluiu tambm que comprimentos e intervalos de tempo no so iguais quando observados de sistemas de referncia diferentes. Comparando as medies de um observador em repouso com as de outro em movimento, mostrou que os comprimentos surgem contrados, enquanto que os intervalos de tempo so dilatados. Tal resulta das velocidades relativas dos observadores, dependendo estes efeitos do quadrado da razo entre a velocidade de deslocamento e a velocidade da luz, como se observa nas transformaes de Lorentz. Dadas as velocidades presentes na vida quotidiana, estas correces so habitualmente desprezveis: recupera-se a noo de simultaneidade absoluta, as transformaes de Galileu e outras implicaes clssicas. No entanto, so relevantes, por exemplo, para o clculo da posio e velocidade com o auxlio do sistema de navegao por satlite GPS (Global Positioning System), ou o projecto europeu Galileu. O mrito de Einstein residiu em compreender as limitaes

6

GAZETA DE FSICA

x' = y '= y z '= z t'=

x vt 1v2/c2(1)

t xv / c2 . 1v2/c2

Einstein abandonou a linha que defendia que a divergncia entre estas e as transformaes de Galileu se devia a um hipottico "vento do ter", fluido intangvel que suportaria a propagao das ondas electromagnticas.

ARTIGO

do senso comum, que surge assim claramente distinto da inteligncia pura. Onde esta gil e objectiva, aquele baseia-se frequentemente em concepes ad hoc e em extrapolaes falaciosas. Do ponto de vista matemtico, a relatividade restrita trata o espao e o tempo em moldes semelhantes. Assim, natural a sua unificao numa nica entidade, o continuum espao-tempo. Abandona-se a descrio separada do "onde" espacial e do "quando" temporal, em abono de uma localizao de pontos no espao-tempo: os acontecimentos. Esta formulao ultrapassa a mera convenincia ou apelo esttico, j que a introduo de uma medida de distncia entre acontecimentos do espao-tempo permite formular um critrio para a sua causalidade ou independncia. Como de esperar, a distncia definida como invariante para diferentes observadores: embora espao, tempo e espao-tempo sejam relativos, o nexo causal entre eventos nico e inequvoco. Matematicamente, tal exprime-se pela generalizao do habitual intervalo infinitesimal num espao euclideano a trs dimenses:

beleceu a invarincia das leis da fsica para referenciais inerciais, o passo seguinte passava pela generalizao para referenciais acelerados. Dez anos depois, Einstein alcanou a desejada generalizao da relatividade restrita. Para construir esta teoria da relatividade geral, Einstein observou que, na vizinhana de um dado ponto, os efeitos de um campo gravitacional so equivalentes aos observados num referencial acelerado. Este o Princpio de Equivalncia, que incorpora a igualdade da massa gravitacional e inercial de um corpo. Tal j havia sido compreendido por Newton, e atribui-se a sua verificao experimental a Galileu (1564 - 1642), ao observar que duas massas distintas caam com a mesma acelerao da torre de Pisa. Apoiado neste princpio, Einstein argumentou que, uma vez que um raio de luz curvado num referencial acelerado, ento o mesmo dever acontecer num campo gravitacional. Tal foi confirmado em 1919 durante a observao de estrelas de referncia no eclipse solar de 29 de Maio, por expedies de astrnomos britnicos que se deslocaram ilha do Prncipe e a Sobral no Brasil. A confirmao da sua teoria catapultou Einstein para a fama mundial, tornando-o num cone pblico. Segundo a teoria da relatividade geral, a gravitao uma consequncia da geometria do espao-tempo. Sendo influenciado pela matria, espera-se que o espao-tempo no seja absoluto e imutvel, mas curvo. Esta curvatura pode ser entendida recorrendo soma dos ngulos de um tringulo: igual a 180 graus se se desenhar o tringulo numa superfcie plana. No entanto, um tringulo com dois vrtices situados no equador e outro num plo terrestre apresenta uma soma de ngulos internos claramente superior a 180 graus. Por fora desta lgica, Einstein foi levado a concluir que a mtrica do espao-tempo uma varivel dinmica, influenciada pela matria. Ao propagar-se num espao-tempo curvo, a luz deflectida na vizinhana de corpos massivos e o movimento dos corpos celestes determinado por essa curvatura. Na generalizao da sua teoria, Einstein reescreveu o intervalo invariante

| d r |2 = dx 2 + dy 2 + dz 2 = ij dx i dx j , (2)i, j

ds 2 = c 2 dt 2 + | d r |2 = dx dx ,

(3)

ds 2 = g dx dx ,

(4)

onde uma matriz diagonal de entradas (-1,1,1,1). Alm das coordenadas espaciais, surge tambm a coordenada temporal x 0 = ct , somando-se agora os ndices {,} de zero a trs. Note-se que esta ltima coordenada tem dimenso de comprimento, por consistncia com as coordenadas espaciais. Esta definio corresponde a ds2 = 0. Este intervalo invariante em qualquer referencial de inrcia, isto , a distncia quadri-dimensional entre dois acontecimentos no muda. Tal pode ser verificado pela substituio directa das equaes (1) na expresso (3). Concluda a construo da relatividade restrita, que esta-

em que g uma nova quantidade dinmica, a mtrica uma matriz 4 x 4 simtrica. A relatividade restrita, correspondendo ao caso de um espao-tempo esttico e plano, um caso particular desta teoria, com uma mtrica de coeficientes constantes, dita de Minkovski1, g = = diag(-1,1,1,1). No caso geral, os coeficientes da mtrica dependem da posio no espao-tempo. A mtrica a grandeza fundamental da relatividade geral, e deve ser relacionada com a distribuio de matria. Aps um intenso esforo de formulao matemtica, Einstein obteve a famosa equao homnima que relaciona a geo-

GAZETA DE FSICA

onde x1 = x, x2 = y e x3 = z e o somatrio percorre os ndices i e j de um a trs. O smbolo ij o chamado delta de Kronecker, igual a um quando i = j e zero no caso contrrio (correspondendo, portanto, matriz identidade 3 x 3). Por convenincia, empregaremos a partir daqui a chamada notao de Einstein, onde se omite o smbolo de somatrio. Este encontra-se subentendido sempre que duas quantidades apresentarem ndices repetidos em sub e em super-escrito. Assim, o intervalo infinitesimal euclideano 2 2 2 2 i j (2) l-se | d r | = dx + dy + dz = ij dx dx . Notando que, depois de um intervalo de tempo t, uma frente de onda emitida isotropicamente cobre uma esfera de equao x2 + y2 + z2 = r2 , onde r = ct, define-se o intervalo infinitesimal

7

EINSTEIN E A DESCRIO UNIFICADA DA NATUREZA

metria do espao-tempo com o seu contedo energtico, sob a forma

no avano do perilio do planeta Mercrio foram testes essenciais para a validao da teoria de Einstein. Naturalmente, qualquer nova teoria tem de se harmonizar convenientemente com o paradigma anterior, no regime onde este apresente uma eficcia indubitvel na descrio dos fenmenos. Assim, a relatividade geral tem o seu limite newtoniano, isto , coincide com a descrio clssica da gravitao, quando as velocidades envolvidas so muito menores que a da luz e os campos gravticos so "fracos". Neste limite, a equao de Einstein coincide com a equao de Poisson para o potencial gravtico,

1 8 G R g R = 4 T , 2 c

(5)

sendo R o tensor de Ricci e R o escalar de curvatura. Ambos so quantidades dadas em termos de combinaes no-lineares de segundas derivadas da mtrica, obtidas do chamado tensor de Riemann R . Este definido por (6) 2 2 1 2 g g 2 g g + R = 2 x x x x x x x x + g onde se introduziram os chamados smbolos de Christoffel,

2 = 4 G ,

(8)

donde resulta que a componente temporal da mtrica, g00, varia proporcionalmente ao potencial gravitacional clssico , segundo

=

1 g g g g + 2 x x x

. (7)

g 00 = 1

2 . c2

(9)

Um tensor de Riemann no-nulo indica que o espao-tempo curvo. Claramente, a relatividade restrita implica R = 0 (um espao-tempo plano), j que a mtrica utilizada nesta teoria constante e, como tal, tem derivadas parciais nulas.

Como de esperar, na ausncia de gravidade, o respectivo potencial zero e a mtrica dinmica g coincide com a mtrica que define o intervalo invariante na relatividade restrita. A teoria da relatividade geral, permite que se descreva o Universo como um todo. Einstein concluiu que a relatividade geral, enquanto teoria global do espao-tempo, era (e, por enquanto, ) a melhor teoria cosmolgica, isto , a mais apta a descrever a evoluo e estado actual do Cosmos. Assim, em 1917, escreveu um dos artigos fundadores da cosmologia relativista, onde argumentou que a equao fundamental da relatividade geral deve ser modificada para garantir um universo esttico. Nascia assim o chamado termo cosmolgico ou constante cosmolgica , responsvel pela fora universal repulsiva que contrabalanaria a atraco mtua dos corpos. Quase trezentos anos antes, Newton havia concludo, ao especular sobre a estrutura do Universo, que uma fora repulsiva era necessria para a estabilidade do Universo. Matematicamente, tal manifestou-se na alterao da equao de Einstein segundo

Curvatura do Espao-Tempo

8

No segundo membro da equao de Einstein (5) ,T o chamado tensor energia-momento, representando a distribuio de matria e energia (matria fluida, poeira, energia electromagntica, etc.) em cada ponto. As incgnitas desta equao de Einstein so em geral as dez componentes independentes da mtrica. Uma vez obtidas, estas especificam o movimento livre de uma partcula ou da luz, isto , as geodsicas correspondentes. Na relatividade restrita estas geodsicas so rectilneas, exprimindo o facto de o espao-tempo ser plano. Na relatividade geral tal pode no suceder: o espao-tempo , em geral, curvo. Salta vista a complexidade da teoria e a necessidade da sua comprovao experimental, de modo a justificar a sua superioridade relativamente gravitao newtoniana. A previso exacta do ngulo de deflexo da luz na vizinhana do Sol, verificada durante o eclipse total de 1919 e a explicao do excesso de 43 segundos de arco

GAZETA DE FSICA

1 8 G R g R g = 4 T , 2 c

(10)

onde se nota que o sinal negativo no termo cosmolgico lhe confere carcter repulsivo. Com ou sem constante cosmolgica, a cosmologia nasceu dos esforos para encontrar solues para a equao de Einstein. Sendo isotrpico e homogneo, o Universo assemelha-se a um fluido; assim, o tensor energia-momento, que descreve o contedo de

ARTIGO

matria, dado por uma matriz diagonal de entradas (, p, p, p), sendo a densidade do Universo e p a presso. Como se sabe, o preconceito filosfico de um universo esttico cedo se revelaria injustificado. No final da dcada de 1920, o astrnomo norte-americano Edwin Powell Hubble (1889-1953) descobriu que o universo est em expanso, pelo que a constante cosmolgica ad-hoc se tornava desnecessria. Contudo, a fsica de hoje considera este termo no-nulo, devido a um acumular de provas e indicaes nesse sentido, oriundas do mundo da fsica de partculas e, mais recentemente, de observaes astronmicas e de interpretaes cosmolgicas, que apontam para um aumento da velocidade de expanso do Universo devido a uma fora desconhecida de natureza repulsiva. A inconsistncia dos valores desta constante, estimados atravs da fsica das partculas e calculados por meio da cosmologia um dos problemas mais candentes da fsica contempornea e revela a profundidade do pensamento de Einstein.

verso. Introduzindo a mtrica RW na equao de Einstein obtemos a chamada equao diferencial de Friedmann, com a evoluo temporal do factor de escala a(t) como incgnita. A sua resoluo re-vela que este factor aumenta com o tempo, apoiando a descoberta de Hubble de um universo em expanso. Uma interpretao da actual taxa de expanso indica que o universo ter cerca de quatorze milhes de anos. Atravs destas consideraes, Lematre concluiu em 1927 que, algures no passado, o factor de escala foi nulo; daqui se segue que o Universo teve origem numa singularidade, quando o seu volume foi nulo e as grandezas fsicas infinitas. Nascia assim a teoria do Big Bang, o momento primordial a que tudo se seguiu. A par com a relatividade geral, a mecnica quntica outro pilar fundamental do conhecimento fsico do sculo XX. Einstein um dos fundadores desta teoria fsica, graas explicao do efeito fotoelctrico, compreenso do processo de emisso estimulada que meio sculo depois deu origem aos lasers, e generalizao dos mtodos estatsticos desenvolvidos em 1924 pelo fsico indiano Satyendranath Bose (1894 - 1974). No entanto, exprimiu as suas reservas sobre a aleatoriedade intrnseca da mecnica quntica. Ao exclamar que, "Deus no joga dados!", Einstein declarou a sua insatisfao com o desenvolvimento conceptual e hermenutico do formalismo quntico que, segundo a sua intuio, era apenas uma soluo tempo-rria para descrever processos microscpicos. Desta feita, a razo no parece ter estado do seu lado, dados os sucessos e aplicaes da teoria quntica. No obstante o seu cepticismo, no se limitou a crticas superficiais e estreis, estando o seu trabalho expresso no bem conhecido artigo que, j em Princeton, escreveu com os discpulos Boris Podolski e Nathan Rosen (1909 - 1995), em 1935, e que contm elementos essenciais para a compreenso dos aspectos mais profundos da mecnica quntica. Nas ltimas dcadas da sua vida, Einstein dedicou a sua actividade cientfica tentativa de unificar a gravitao com o electromagnetismo. Cptico relativamente mecnica quntica, tinha a convico de que a unificao daquelas duas foras permitiria uma compreenso mais profunda da estrutura da matria e acabaria por responder s lacunas que julgava existirem na teoria quntica. No atingiu o objectivo proposto, pois faltou-lhe incluir a fora fraca, que a moderna teoria de campos unifica com a electromagntica, atravs do chamado modelo padro das interaces fundamentais, desenvolvido por Sheldon Glashow, Abdus Salam (1926 - 1996) e Steve Weinberg nos anos sessenta do sculo passado e tambm a fora forte, que mantm coesos os ncleos atmicos. Esboou contudo, valiosas metodologias seguidas pelas geraes seguintes. De entre estas, destacam-se aspectos matemticos da ideia proposta pelo fsico Theodor Kaluza (1885 - 1954), segundo o qual o espao-tempo

O Universo em expanso acelarada

Na busca de uma soluo para a mtrica no contexto cosmolgico, nos anos vinte, o abade belga Georges Lematre (1894 - 1966), o russo Alexander Friedmann (1888 - 1925), o norte-americano Howard Percy Robertson (1903 - 1961) e o ingls Arthur Geoffrey Walker (1909 - 2001) obtiveram nos seus estudos resultados que se podem resumir na chamada mtrica RW, iniciais dos dois ltimos:

ds 2 = dt 2 a (t ) | dr |2 ,

(11)

Esta engloba o chamado princpio cosmolgico, que de um modo simplificado afirma a equivalncia entre observadores situados em diferentes regies do Universo, ou seja, que este deve ser visto de forma semelhante independentemente da posio do observador. O factor de escala a(t) presente na mtrica (11) d-nos uma medida da dimenso do Uni-

GAZETA DE FSICA

9

EINSTEIN E A DESCRIO UNIFICADA DA NATUREZA

necessrio para a unificao da gravitao com o electromagnetismo deveria ser penta-dimensional, e tambm os esforos para dotar a mtrica de uma componente antissimtrica. Nesta fase da sua vida, em contraste com o passado, Einstein colaborou directamente com numerosos discpulos: com Jakob Grommer, Leopold Infeld, Bonesh Hoffmann, Walter Mayer, Peter Bergmann e Bruria Kaufman estudou o problema da unificao dos campos, e com Ernst Gabor Straus a consistncia da mtrica de um objecto compacto com a envolvente cosmolgica. Independentemente dos mritos ou falhas dos seus esforos, a busca da soluo dos problemas mais profundos da fsica na unificao das interaces fundamentais uma das marcas mais caractersticas do gnio de Einstein e, certamente, um legado fundamental. este esprito "romntico", almejando a soluo completa dos problemas, que norteia esforos hodiernos, como a teoria das cordas qunticas. Outro aspecto marcante da personalidade de Einstein foi o seu envolvimento cvico. Em Outubro de 1914, um conjunto de intelectuais e acadmicos alemes pronunciou-se a favor da invaso da Blgica pela Alemanha a quatro de Agosto, no chamado Manifesto dos 93. Ento com trinta e cinco anos, Einstein e o professor de Fisiologia da Universidade de Berlim George Nicolai escreveram no mesmo ano um documento clamando pela paz e repudiando o manifesto. Esta oposio valeu-lhe a hostilidade de muitos colegas, incluindo Max Planck. Muitos anos mais tarde, j exilado nos Estados Unidos, Einstein alertou o presidente Roosevelt para o perigo da apropriao do urnio em posse da Blgica e da Checoslovquia pela Alemanha nazi. Nessa carta de Agosto de 1939, aconselhava-o a desenvolver esforos para acelerar a investigao americana sobre a fisso nuclear. Em 1945, escreveu novamente ao presidente Roosevelt, desta vez para se manifestar contrrio utilizao das armas nucleares entretanto desenvolvidas. Infelizmente, Roosevelt faleceu antes de receber a carta e, o seu sucessor Harry Truman no a teve em considerao. At 1955, ano da sua morte, Einstein procurou sensibilizar a opinio mundial para a necessidade de se evitar a corrida s armas nucleares, cujo desenlace poderia aniquilar a espcie humana. O sionismo foi outra causa que sempre lhe foi muito cara. Era-lhe claro que Israel s poderia garantir a sua existncia respeitando o direito dos palestinianos a um estado independente. Em 1952, o primeiro-ministro Ben Gurion convidou-o a assumir a presidncia do recm-criado estado judaico, com a devida aprovao do parlamento israelita, o Knesset. Einstein declinou o convite, alegando inpcia em questes de Estado, mas declarou ter ficado comovido com a proposta.

No final do sculo XX, a revista norte-americana Time elegeu-o como a figura mais marcante daquele sculo. No deixa de ser significativo que a segunda figura mais votada tenha sido o estadista que, segundo o prprio Einstein, "representou a mais elevada concepo das relaes humanas na esfera poltica" - Mahatma Gandhi.

BIBLIOGRAFIA Albert Einstein, The Meaning of Relativity, Chapman and Hall, Bristol, 1922. H.A. Lorentz, A. Einstein e H. Minkowski, O Princpio da Relatividade, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1978. Albert Einstein, Notas Autobiogrficas, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982. Albert Einstein e Leopold Infeld, A Evoluo da Fsica, Livros do Brasil, Lisboa. Albert Einstein, Ideas and Opinions, Laurel Edition, New York, 1973. Sigmund Freud e Albert Einstein, Porqu a Guerra? Reflexes sobre o destino do Mundo, Edies 70, Lisboa, 1997. The Born-Einstein Letters 1916 - 1955, Macmillan Press, New York, 2005. Ronald W. Clark., Einstein: The Life and Times, Avon Books, New York, 1971. Michael White and John Gribbin, Einstein: A Life in Science, Simon & Schuster, London, 1993. Leopold Infeld, Albert Einstein, Publicaes Europa -Amrica, Lisboa, 1961. General Relativity: An Einstein Centenary, Eds. S.W. Hawking, W. Israel, Cambridge University Press, Cambridge, 1979.

GAZETA DE FSICA

10

ARTIGO

Eduardo Lage, "O centenrio do quantum de luz", Gazeta de Fsica Vol. 28-1, 2005. Steven Weinberg, Gravitation and Cosmology: Principles and Applications of the General Theory of Relativity, John Wiley & Sons, New York, 1972. Jorge Dias de Deus, Viagens no Espao-Tempo, Gradiva, Lisboa, 1998. Joo Manuel Resina Rodrigues, Introduo teoria da relatividade restrita, IST Press, Lisboa, 1998. Maria da Conceio Bento e Orfeu Bertolami, Supercordas e a unificao das interaces fundamentais da Natureza, Futuro, Outubro de 1988. Orfeu Bertolami, O Livro das Escolhas Csmicas, Gradiva, Lisboa, 2005, (no prelo).

NOTAS Hermann Minkovski (1864 - 1909), matemtico russo, professor de Einstein na ETH e responsvel pela formulao quadri-dimensional da Relatividade Restrita.1

Na sequncia do Livro Branco da Fsica e da Qumica - Opinies dos Professores - Diagnstico 2000, Recomendaes 2002, e com o patrocnio das Sociedades Portuguesas de Fsica e de Qumica e o apoio da Fundao Calouste Gulbenkian, os autores decidiram recolher as opinies sobre a aprendizagem da Fsica e da Qumica de 7900 estudantes dos 9., 11. e 12. anos dos Ensinos Bsico (EB) e Secundrio (ES), comparando-as com as dos professores.

LIVRO BRANCO E DA QUMICA DOS ESTUDANT

INTRODUO Na sequncia do Livro Branco da Fsica e da Qumica Opinies dos Professores - Diagnstico 2000, Recomendaes 2002, e com o patrocnio das Sociedades Portuguesas de Fsica e de Qumica e o apoio da Fundao Calouste Gulbenkian, os autores decidiram recolher as opinies sobre a aprendizagem da Fsica e da Qumica de 7900 estudantes dos 9., 11. e 12. anos dos Ensinos Bsico (EB) e Secundrio (ES), comparando-as com as dos professores. As opinies sobre o 12. ano foram recolhidas numa amostra de 781 estudantes que frequentavam as disciplinas de Fsica e Qumica do primeiro ano de 9 instituies de Ensino Superior (ESup). Dos estudantes inquiridos, 53% eram do sexo feminino e 47% do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 12 e os 38 anos. A mdia de idades dos estudantes do EB era de 15,0 anos, do ES de 16,8 anos, e do ESup de 19,5 anos. O estudo, que abrangeu todo o territrio nacional continental, abordou alguns aspectos relacionados com a aprendizagem da Fsica e Qumica e teve como primeiro objectivo identificar o interesse, a motivao e as causas do desinteresse e desmotivao para o estudo da Fsica e da Qumica, desde o EB at final do ES, intenes de prosseguimento de estudos e de cursos no ES (9. ano) e ESup (11. ano), metodologias de ensino com que os estudantes aprendem melhor, perspectivas sobre actividades experimentais e perspectivas

ANABELA MARTINS Escola Secundria D. Pedro V Estrada das Laranjeiras, 122 1660-136 Lisboa [email protected] DCIO R. MARTINS Departamento de Fsica Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade de Coimbra Rua Larga 3004-516 Coimbra [email protected]

ARTIGO

DA FSICA - OPINIES TES 2003

sobre programas e avaliao. Em segundo lugar pretendeu-se comparar as opinies de estudantes e professores.

USO DE FONTES DE INFORMAO CIENTFICA E TECNOLGICA Segundo o estudo, percentagens elevadas dos estudantes nunca, ou raramente, utilizam fontes de informao cientfica e tecnolgica - como, por exemplo, consultar informao cientfica usando o computador (Internet) e ler livros de divulgao cientfica -, sendo a televiso o meio de informao preferido. Apenas uma percentagem relativamente baixa o faz de forma regular. J os estudantes do ESup evidenciam uma maior tendncia para procurar fontes diversificadas de divulgao cientfica e tecnolgica. Verificou se tambm um progressivo aumento de interesse dos estudantes pela informao disponibilizada pelos diversos meios ao longo da sua escolaridade. Tanto no 9. como no 11. ano e no ESup, os rapazes acedem mais s fontes de divulgao cientfica do que as raparigas.

INTENO DE PROSSEGUIMENTO DE ESTUDOS Apenas uma maioria relativa dos estudantes do 9 ano (58%) manifestou a inteno de prosseguir os estudos em cursos gerais do ES, dos quais, cerca de metade optar pela rea das disciplinas cientfico-naturais. Entre os estudantes do 11 ano, 84% pretendiam prosseguir estudos no ESup e, destes, 90% manifestaram a inteno de prosseguir os estudos nas Universidades e 10% nos Institutos Politcnicos. A percentagem de raparigas do 9. e 11. anos que manifestou a inteno de continuar os estudos no ES e no ESup era significativamente superior dos rapazes. Apenas 30% dos estudantes do 11. ano pretendiam prosseguir os estudos em cursos de engenharia, enquanto 38% preferia a rea de sade. Considerando que o 1. agrupamento (cientfico-naturais) representa pouco mais de 50% dos estudantes do ES, infere-se que menos de 15% da populao estudantil deste escalo etrio admitiu prosseguir estudos na rea das tecnologias. Esta estimativa deixa antever que, face ao elevado nmero de cursos nesta rea, existentes nas Universidades e Institutos Politcnicos, haver uma baixa da procura pelos estudantes. Este dado no deixa de ser extremamente preocupante para um pas com um grande atraso tecnolgico.

HBITOS DE ESTUDO E OCUPAO DO TEMPO Menos de 25% dos estudantes inquiridos estuda com regularidade, medida que os assuntos de Fsica e Qumica so leccionados. A maioria estuda preferencialmente antes dos testes de avaliao e dependendo da dificuldade do assunto. Este padro predominante nos rapazes, isto , as raparigas estudam com maior regularidade do que os rapazes, tendncia esta que se acentua do 9. para o 11.

GAZETA DE FSICA

13

LIVRO BRANCO DA FSICA E DA QUMICA - OPINIES DOS ESTUDANTES 2003

ano. Apenas 18% dos rapazes reconheceram estudar com regularidade e mais de 40% afirmaram que s estudavam nas vsperas das provas. Uma percentagem elevada de estudantes dos 9 e 11 anos ocupa mais de duas horas por dia em actividades diversas como ver televiso, praticar uma modalidade desportiva, jogar no computador e em explicaes. Mais de 80% dos estudantes dos EB e ES passam duas horas ou mais por dia a ver televiso e aproximadamente 50% praticam desporto. Verifica-se um aumento significativo do nmero de horas ocupadas com explicaes pelos estudantes do 11. ano relativamente aos do 9. ano e tambm no trajecto casa-escola-casa. Os rapazes passam mais horas fora da escola com actividades desportivas e jogos de computador do que as raparigas e estas ocupam mais o seu tempo a aprender uma lngua estrangeira e recorrem mais a explicaes do que os rapazes.

Para os estudantes do ESup, as razes mais indicadas para justificar a sua no opo por Fsica ou Qumica no 12. ano foram o facto de estas disciplinas no serem especficas para o curso superior que pretendiam seguir e de a classificao final nelas obtida poder vir a condicionar o acesso ao Ensino Superior. Em relao Fsica foram ainda referidos outros argumentos: o elevado insucesso escolar desta disciplina no exame nacional poder comprometer o ingresso nas primeiras opes dos candidatos; a formao obtida em Fsica ou Qumica no ser fundamental para o curso que pretendem frequentar; a escola que frequentaram no teve turmas para essas disciplinas nesse ano de escolaridade; nos anos anteriores no foram motivados pelos professores, sobretudo na Fsica. Tambm a preparao obtida nestas reas cientficas at ao 11. ano foi considerada pelos estudantes pouco adequada para obter um bom aproveitamento escolar no 12. ano. A no opo por Fsica e/ou Qumica no 12. ano parece no estar relacionada com a falta de interesse pelos temas leccionados, mas sim pelos critrios de ingresso no Ensino Superior, o que poder ser a principal causa do afastamento dos estudantes do 12. ano, sobretudo da Fsica. Assim, esta situao poder agravar se com a actual reviso curricular do ES, que passou a considerar opcional a disciplina de Fsica e Qumica, a partir do 10. ano. Neste contexto, restar aos estudantes a nica possibilidade de frequentarem a disciplina de Biologia, no 12. ano, caso tenham optado, no 10. ano, pela disciplina de Cincias da Terra e da Vida. Os dados obtidos neste estudo fazem prever percentagens muito elevadas de estudantes nestas condies. A maior motivao dos estudantes para as Cincias da Terra e da Vida, at ao 11. ano, e para a Biologia, no 12. ano, agravada pelos critrios definidos pelas Universidades e Institutos Politcnicos e ainda pelas determinaes do Ministrio da Educao tero certamente repercusses muito nefastas no futuro imediato no ensino e aprendizagem da Fsica e da Qumica. Pode inferir-se que a menor frequncia da disciplina de Fsica no 12. ano, relativamente a outras disciplinas cientficas foi artificialmente introduzida no sistema educativo pelos critrios de ingresso no Ensino Superior, definidos pela generalidade das Universidades e Institutos Politcnicos. Esta situao agravou-se nos ltimos anos, uma vez que algumas instituies de ensino que ainda exigiam a Fsica deixaram de o fazer, face necessidade de terem uma maior procura dos respectivos cursos. Os factores de motivao para o estudo da Fsica e Qumica aumentam ao longo da escolaridade. No entanto, os motivos da desmotivao diminuem na transio do 9 para o 11 ano, voltando, contudo, a aumentar na transio do 11. para o 12. ano.

OPINIO SOBRE OS MANUAIS ESCOLARES Os manuais escolares de Fsica e de Qumica utilizados nos EB e ES foram considerados razoveis ou bons por mais de 83% dos estudantes, embora esta opinio fosse progressivamente menos favorvel ao longo da escolaridade (7% no EB, 11% no ES e 17% no ESup consideraram os manuais maus ou muito maus). Apenas 5% dos estudantes do ESup atriburam a classificao de muito bom aos manuais de Fsica e Qumica que tinham utilizado no ES.

MOTIVAO PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA E INTERESSE PELA CINCIA A motivao para o estudo da Fsica e da Qumica no se revelou muito elevada entre os estudantes dos 9 e 11 anos (Fsica - 38% e Qumica - 49%), aumentando ligeiramente para os alunos que j frequentavam o Ensino Superior (Fsica - 49% e Qumica - 53%). Os estudantes manifestaram menor motivao para o estudo da Fsica do que para o estudo da Matemtica. As Cincias da Terra e da Vida (10 e 11 ano) e a Biologia (12 ano) so as disciplinas que mais motivam os estudantes e os rapazes esto mais motivados para o estudo da Fsica, enquanto as raparigas se mostram mais motivadas para estudar Biologia, Qumica e Matemtica. As principais razes da falta de motivao para o estudo da Fsica e da Qumica dos estudantes dos EB e ES so a natureza difcil das matrias, as caractersticas dos manuais utilizados, a dependncia destas cincias em relao Matemtica e as dificuldades de aplicao dos conhecimentos na resoluo de problemas. Qualquer uma destas razes mais acentuada em relao Fsica.

GAZETA DE FSICA

14

ARTIGO

Alguns comentrios dos estudantes que estavam a frequentar o primeiro ano do ESup reforaram a convico de que atravs de uma interveno adequada dos diversos agentes educativos, incluindo as ordens profissionais e sociedades cientficas, seria possvel estimular mais estudantes para o estudo quer da Fsica, quer da Qumica, em determinadas fases cruciais do seu percurso escolar. Exemplos desses comentrios dos estudantes referiam a necessidade dos conhecimentos de Fsica nos cursos que esto a frequentar; lamentavam o facto de no terem dado um maior desenvolvimento no estudo daquela disciplina durante o ES; consideravam (os estudantes que frequentaram a disciplina no 12 ano) ter tido maior facilidade na compreenso das aulas no ESup, o que, associado realizao de mais actividades prticas, lhes permitiu um melhor relacionamento da teoria com a prtica, sendo sentida a necessidade do estudo da Fsica no 12. ano. Dos resultados deste estudo infere-se que a "falta de inte-resse" dos estudantes pela Fsica e Qumica, principalmente na transio para o 12. ano, pode ser aparente, isto , aquilo que se considera como falta de interesse pode ser apenas a falta de motivao para o estudo, decorrente de um conjunto de critrios que, nos ltimos anos, tm vindo a condicionar o ingresso no Ensino Superior. Saliente-se que a percentagem de estudantes do primeiro ano do ESup que declararam no se sentirem motivados, durante o 12 ano, para o estudo da Matemtica, inferior de Fsica e de Qumica, apesar do insucesso naquela disciplina ser bastante elevado.

A tendncia para uma auto-avaliao global mais positiva acentua-se ligeiramente nos estudantes que j concluram o 12. ano, embora considerem fraco o seu desenvolvimento global relativamente rea da Fsica. Cerca de 81% dos estudantes consideram possuir conhecimentos suficientes e bons em Matemtica, destacando como aspectos mais desenvolvidos as suas competncias para a resoluo de problemas, a capacidade de aplicar conhecimentos a novas situaes e a autonomia na aprendizagem. Os resultados obtidos pelos estudantes do 12. ano nos exames nacionais de Matemtica, Fsica e Qumica contrariam esta auto-avaliao do desenvolvimento global. Os estudantes que obtiveram melhores classificaes na disciplina de Fsica e Qumica avaliaram melhor o seu desenvolvimento global, sobretudo nos conhecimentos matemticos, capacidade de resoluo de problemas, aplicao de conhecimentos a novas situaes e autonomia na aprendizagem. Mesmo nas componentes relacionadas com a capacidade de resoluo de problemas e a aplicao de conhecimentos a novas situaes, os estudantes com melhores classificaes naquela disciplina consideraram-se mais bem desenvolvidos do que os estudantes que obtiveram melhores classificaes na disciplina de Matemtica. Os estudantes do 11. ano com melhores classificaes na disciplina de Matemtica consideram as suas competncias na resoluo de problemas apenas ligeiramente mais desenvolvidas do que os estudantes com melhores classificaes na disciplina de Fsica e Qumica.

AUTO-AVALIAO DO DESENVOLVIMENTO GLOBAL Os estudantes dos trs nveis de ensino consideraram como bom e muito bom o seu desenvolvimento global. Os resultados revelam conscincia da sua progresso na aquisio de conhecimentos e desenvolvimento de competncias desde o 9 ano at ao 12. Deve salientar-se a opinio comum entre os estudantes de todos os nveis de ensino, traduzida na forte correlao entre os conhecimentos matemticos, a capacidade de resoluo de problemas e a capacidade de raciocnio, mas os estudantes do 11 ano avaliaram o seu desenvolvimento global de forma menos positiva nos conhecimentos matemticos, na resoluo de problemas, na aplicao de conhecimentos a novas situaes e no pensamento crtico. De um modo geral, os rapazes atribuem melhores classificaes s diversas componentes do seu desenvolvimento global. As componentes onde as raparigas se auto-avaliaram melhor so o domnio da lngua portuguesa, autonomia na aprendizagem e mtodos e hbitos de estudo. Os estudantes do ES reconhecem que os seus hbitos de estudo e os conhecimentos matemticos so menos desenvolvidos.

OPINIO SOBRE AS ACTIVIDADES EXPERIMENTAIS De um modo geral, os estudantes consideram as estratgias de ensino centradas no professor mais eficazes para a sua aprendizagem. As que referem como mais adequadas para aprender so a reviso da matria na vspera dos testes e a resoluo de exerccios; seguem-se a explicao do professor, preferencialmente acompanhada de demons-

GAZETA DE FSICA

15

LIVRO BRANCO DA FSICA E DA QUMICA - OPINIES DOS ESTUDANTES 2003

traes experimentais, o estudo em casa e a realizao de experincias em pequenos grupos de estudantes.

Enquanto os rapazes valorizam mais as actividades que envolvem a utilizao do computador e a participao em actividades experimentais, as raparigas preferem estratgias de ensino centradas no professor, como a resoluo de exerccios, a explicao do professor, seguida do estudo individual em casa e das demonstraes experimentais feitas pelo professor. Ao contrrio dos rapazes, a elaborao de relatrios e a planificao de actividades experimentais no se encontram entre as estratgias de ensino mais valorizadas pelas raparigas. Ao confrontarmos a elevada percentagem dos estudantes deste estudo que gostam de realizar actividades experimentais com as respostas dos professores (Martins et al., 2002, pp. 107 131 e 129) sobre a frequncia de realizao daquele tipo de actividades, somos levados a concluir que o ensino experimental que se pratica nas disciplinas de Fsica e Qumica no corresponde, em geral, nem ao preconizado nos programas nem s expectativas e interesses dos estudantes. Com efeito, apenas cerca de 27% dos professores do ES e 21% do EB declararam no estudo concludo em 2002 realizar este tipo de actividades nas suas aulas. Recorde-se que neste estudo tambm estavam includos os professores que leccionavam as disciplinas de Tcnicas Laboratoriais de Fsica e Qumica, bem como os professores do Curso Tecnolgico de Qumica. De acordo com dados da investigao educativa (Hofstein et Lunetta, 2004), vivemos numa era marcada por um enorme desenvolvimento de novos recursos tecnolgicos e novos padres de ensino. Neste contexto ressalta deste estudo a importncia e a necessidade de um ensino mais experimental e competitivo que possa atrair os estudantes para o estudo das cincias.

Durante a realizao de actividades experimentais, os procedimentos cientficos preferidos pela maioria dos estudantes so conhecimentos declarativos ou factuais considerados, simultaneamente, os menos difceis. Os procedimentos considerados mais difceis pelos estudantes so o desenvolvimento de generalizaes, a explicao de relaes e a formulao de questes para investigar. A dificuldade manifestada pelos estudantes em todos os processos experimentais, em geral, diminui bastante ao longo da escolaridade. Porm, os estudantes do 11. ano so os que consideram mais difcil a comunicao escrita e oral de resultados, a formulao de questes para pesquisar, o desenvolvimento de generalizaes e a explicao de relaes. No entanto, este o ano onde parece haver maior adeso dos estudantes maioria dos procedimentos de trabalho cientfico, o que poder relacionar-se com a maior frequncia de realizao de actividades experimentais consentneas com as necessidades de aprendizagem e interesses dos estudantes. Globalmente conclui-se que os estudantes, mesmo os mais motivados e com melhores classificaes, gostam mais de processos de trabalho cientfico considerados conhecimento declarativo ou factual (saber a informao - Tennyson, 1995) como, por exemplo, executar/realizar uma experincia, manipular materiais e equipamento, observar, medir e registar dados, descrever procedimentos experimentais e comunicar resultados escrita e oralmente (s na Qumica). Os estudantes com melhores classificaes em Fsica e Qumica tambm se mostram motivados para os procedimentos considerados conhecimento procedimental e conceptual (saber como, quando e porqu usar a informao - Tennyson, 1995), como, por exemplo, formular hipteses para testar, prever resultados, explicar relaes, formular e responder a novas questes baseadas na investigao realizada e aplicar tcnicas laboratoriais na resoluo de novos problemas ou situaes experimentais. Os rapazes afirmaram gostar mais de actividades experimentais que envolvem conhecimentos procedimentais e contextuais, enquanto as raparigas preferem procedimentos experimentais que envolvem conhecimentos declarativos ou factuais. No estudo com professores (Martins et al, 2002, p.137), 96% dos docentes consideram que os procedimentos associados ao trabalho experimental mais difceis para os estudantes so a explicao de relaes, a formulao de novas questes baseadas na investigao e de hipteses para serem testadas, as decises acerca de tcnicas de investigao, a previso de resultados e o desenvolvimento de generalizaes. Relativamente a este aspecto, parece existir alguma concordncia entre a percepo dos professores e dos estudantes sobre as dificuldades do trabalho experimental.

GAZETA DE FSICA

16

ARTIGO

As principais razes do sucesso nas actividades experimentais de Fsica e de Qumica so a melhor compreenso da teoria e a explicao adequada pelo docente da teoria antes e depois da experincia. No entanto, a ordenao desses indicadores ligeiramente diferente entre o EB e o ES, e tambm entre a Qumica e a Fsica, porque, provavelmente, por um lado, o tipo de ensino experimental diferente nos dois nveis de escolaridade e, por outro lado, realizam-se actividades experimentais em Qumica com mais frequncia do que em Fsica. Enquanto para os estudantes do 9 ano, a obteno de bons resultados no trabalho experimental em Fsica, isto , resultados previstos/iguais aos dos livros, o principal indicador de sucesso, para os estudantes do 11 ano e ESup o sucesso das actividades experimentais est mais relacionado com a melhor compreenso da teoria. Esta diferena evidencia uma evoluo da percepo dos estudantes sobre um dos papis mais importantes do trabalho experimental desde o EB at final do ES. Os estudantes do 9 ano, ao considerarem muito importante a obteno de resultados iguais aos que so apresentados nos livros, denotam uma concepo de ensino bastante orientada e reprodutiva. Ter bons resultados significa que o "livro est certo" e que a cincia aquilo que "o professor ensina".

As sociedades actuais, marcadas pelo desenvolvimento cientfico e tecnolgico, pressupem uma participao informada que depende, quase sempre, do conhecimento cientfico. Alm disso, muitos daqueles estudantes podero prosseguir estudos em Escolas Superiores de Educao, optando pela docncia no primeiro ciclo do EB. A interrupo prematura da formao cientfica destes docentes ter, certamente, consequncias gravosas na qualidade do ensino da Matemtica e do Estudo do Meio, tradicionalmente subvalorizadas neste nvel de ensino. So bem conhecidos os graves problemas relacionados com o ensino e aprendizagem da Matemtica e a quase inexistncia do ensino de cincias nos primeiros anos da escolaridade bsica. Os primeiros contactos com os conceitos das cincias fsico-naturais so, na prtica, relegados para o segundo ciclo do EB, onde a Fsica no raras vezes ignorada, originando uma lacuna muito grave. Por outro lado, o facto da disciplina de Fsica e Qumica ser opcional nos actuais currculos do ES ir contribuir para um desinteresse e desmotivao ainda maiores dos estudantes em relao ao estudo da Fsica e da Qumica.

BIBLIOGRAFIA CONCLUSO Este estudo, alm de apresentar uma avaliao feita pelos estudantes de diversos aspectos relacionados com o ensino e a aprendizagem da Fsica e da Qumica, levantou novas questes decorrentes das opinies expressas. Estas opinies no podem deixar de ser tidas em conta quando se pretende uma interveno eficaz da comunidade educativa na concretizao das mudanas desejadas no ensino da Fsica e da Qumica. A interveno pedaggica e as reformas educativas s podero ter alguma eficcia se houver um melhor conhecimento do processo, sob pena de se introduzirem reformas que iro agravar os problemas existentes. Para finalizar, pensamos que se deve promover uma interveno em reas que ajudem os professores a melhor compreender como devem ser usados os recursos laboratoriais, a avaliar o trabalho dos estudantes no laboratrio e saber como as actividades experimentais podem ser usadas para atingir os objectivos educativos pretendidos. O sistema educativo deve contribuir para a literacia cientfica de modo que a formao nestas reas no termine no fim da escolaridade bsica. Recorde-se que apenas 58% dos estudantes do 9 ano pretende prosseguir estudos nos cursos gerais do ES e, destes, apenas cerca de 50% desejam continuar os seus estudos na rea das cincias. Hofstein A. et Lunetta, V. N., "The Laboratory in Science Education: Foundations for the Twenty First Century", Science Education, 88, 2004, pp. 28-54. www.interscience.wiley.com. Martins, A., Malaquias, I., Martins, D., Fiza, E., Silva, M. M., Neves, M., Soares, R., Campos, A. C., Lopes, J. M., Livro Branco da Fsica e da Qumica - Diagnstico 2000 Recomendaes 2002. Sociedade Portuguesa de Fsica e Sociedade Portuguesa de Qumica, Editorial Minerva, Aveiro. Martins, A. et all., Livro Branco da Fsica e da Qumica - Opinio dos Alunos 2003, Sociedade Portuguesa de Fsica e Sociedade Portuguesa de Qumica, Lisboa, 2005 Tennyson, R. D., "Concept Learning: Teaching and Assessing", in L. W. Anderson (Ed.), International Encyclopedia of Teaching and Teacher Education, Elsevier Science Ltd., Oxford, 1995, pp. 457-463.

GAZETA DE FSICA

17

Anthony J. Leggett professor de Fsica na Universidade de Illinois (Estados Unidos da Amrica), onde est desde 1983. mundialmente conhecido como especialista de fsica terica das baixas temperaturas e, pelo seu trabalho pioneiro sobre a superfluidez, recebeu o Prmio Nobel da Fsica de 2003. Tivemos oportunidade de o entrevistar durante uma visita recente a Portugal, a convite do Centro de Fsica Terica e Computacional da Universidade de Lisboa. Anthony Leggett apresentou em Lisboa duas palestras: "Testing the limits of quantum mechanics: motivation, state of play, prospects" e "Introduction to high energy low temperature physics".

Entrevista a Anthony Leggett

"SABEMOS HOJE MENOS S

DO QUE SABAMOS SOBR SCULO XIX"

PATRCIA FASCA1 E PEDRO PATRCIO1,21

Centro de Fsica Terica e Computacional da Universidade de Lisboa Av. Prof. Gama Pinto, 2 1649-003 Lisboa

2

Instituto Superior de Engenharia de Lisboa Rua Conselheiro Emdio Navarro 1 1950-062 Lisboa [email protected] [email protected] Edio de P. A. Almeida [email protected]

P - Depois de terminar um curso superior em estudos clssicos . em Oxford, no Balliol College, decidiu comear um novo curso em cincias. Porqu? E por que razo escolheu fsica? R. - Provavelmente foi por no ter muita imaginao. Naquela altura a vida acadmica pareceu-me a escolha mais natural. Em Estudos Clssicos concentrei-me sobretudo na Filosofia, que sempre me interessou. Mas quando comecei a pensar seriamente em fazer uma carreira acadmica nessa rea apercebi-me que no era bem aquilo que eu queria. Comecei ento a perguntar a mim prprio qual seria a razo exacta pela qual no a queria e, mais uma vez, a minha falta de imaginao levou-me a pensar que essa razo no teria a ver com a vida acadmica, mas sim com a prpria Filosofia. Quanto mais pensava nisso mais sentia que o que diferenciava um bom de um mau trabalho em Filosofia dependia muito do uso das palavras ou das frases mais adequadas e de determinados exemplos que se escolhessem... Pareceu-me que era tudo muito subjectivo. E onde me sinto realmente confortvel numa rea de estudo onde, de certa forma, a Natureza nos diga se o que fizemos est certo ou errado. Nessa altura, sabia muito pouco de fsica, mas tinha tido alguns relances: estudei alguns problemas nas fronteiras da fsica. Lembro-me, por exemplo, de que durante os meus estudos clssicos analisei o paradoxo de Zeno... Tinha uma vaga ideia sobre o que era a fsica e pareceu-me que seria uma rea onde me sentiria bem.

OBRE O CREBRO TOMOS NO

P. - Tinha vinte anos nessa altura... R. - Sim, quando tive de fazer esta escolha tinha vinte anos. P. - Sentiu que o que aprendeu com os estudos clssicos teve utilidade na sua carreira cientfica? R. - Num certo sentido, penso que foi til, particularmente a Filosofia. Penso que algum que faa um curso de Filosofia Analtica - tenho conscincia de que a palavra Filosofia tem significados diferentes em diferentes partes do mundo, mas na tradio anglo-saxnica a Filosofia uma cincia muito analtica -, ficar mais consciente das suposies que faz no seu trabalho. Por isso, considero que um dos benefcios que tive foi o de estar muito mais consciente das suposies implcitas do meu trabalho. P - Pensa que a sua preparao anterior em estudos clssicos . o influenciou nas suas pesquisas sobre os fundamentos conceptuais da mecnica quntica? R. - Sim, certamente. Para dizer a verdade, nos primeiros anos em que fiz fsica no estive particularmente interessado nos fundamentos da mecnica quntica. Mas depois tive um colega na Universidade de Sussex, Brian Easlea, que se foi interessando pela histria das cincias e pelos estudos sociais. Foi ele que me deu umas lies sobre o problema da medida em mecnica quntica e creio que foi isso que me persuadiu de que esses assuntos eram algo sobre o qual valia a pena pensar. Foi provavelmente no fim dos anos 60 que comecei a reflectir sobre estas

questes, mas no consegui fazer nada durante os dez anos seguintes. O meu primeiro artigo sobre os fundamentos da mecnica quntica s foi publicado em 1980. P. - No habitual, no Reino Unido, ou mesmo nos EUA, quando se ensina mecnica quntica, chamar a ateno para estes problemas conceptuais R. - Durante toda uma gerao, eu diria, desde o fim dos anos 30 at ao incio dos anos 70, o assunto foi quase tabu nos pases anglo-saxnicos. interessante notar que na Europa do Sul esse nunca foi um tema tabu. As pessoas estiveram sempre interessadas. P. - Por que que ficou em Oxford e decidiu trabalhar em fsica do estado slido durante o seu doutoramento? R. - Estava mais ou menos convencido de que, por causa do meu percurso pouco comum, seria muito difcil encontrar uma outra universidade, alm da de Oxford, que me aceitasse como aluno de estudos ps-graduados. Por que que optei por estudar o estado slido? Bem, em primeiro lugar, j tinha decidido, desde muito cedo, que queria fazer fsica terica. Tive algum contacto com a fsica experimental durante a licenciatura, mas no gostei muito. Penso que nasci para ser terico. A questo seguinte tem a ver com as reas fortes da fsica terica em Oxford. A resposta : fsica nuclear a baixas energias, fsica das altas energias, e matria condensada. Havia muito pouco de cosmologia.

GAZETA DE FSICA

19

ENTREVISTA A ANTHONY LEGGETT

Eu tinha a impresso de que na fsica nuclear a baixas energias no se passava nada de espectacular. A informao que tive - estvamos no princpio de 1964 quando tive de fazer a escolha -, foi de que a fsica das altas energias estava estagnada e que nada de transcendente se passava. claro que apenas uns meses mais tarde tivemos a Eightfold Way! Penso que, se tivesse feito a minha escolha no ano seguinte, provavelmente teria ido para fsica de partculas. Mas acabei na matria condensada. Quanto escolha do meu supervisor? Bom, ele foi o nico que me aceitou como aluno... P. - Quando que se interessou pelo trabalho que foi reconhecido em 2003 com o Prmio Nobel, nomeadamente, sobre as fases do lquido superfluido hlio-3? R. - O meu doutoramento teve duas partes. Uma delas estava relacionada com a interaco de fones no hlio-4 lquido, e portanto no tinha muito a ver com os trabalhos do Prmio Nobel. A segunda parte correspondia a um estudo no contexto da teoria de Fermi-Landau. Em 1961, quando comecei o doutoramento, a teoria de Fermi-Landau, publicada em 1957, ainda no estava muito divulgada no Ocidente, essencialmente devido aos atrasos com tradues. Eu conhecia-a graas a um dos muitos conselhos preciosos dados pelo meu supervisor, Dick ter Haar, no incio do meu doutoramento: devia saber russo suficiente para conseguir ler os artigos originais! Pude, por isso, ler todos os trabalhos sobre a teoria de Fermi-Landau logo que foram publicados. Fiquei de tal maneira impressionado com a teoria que a segunda parte da minha tese de doutoramento foi sobre o diagrama de fases do hlio-3 e hlio-4. Naquela altura, o diagrama de fases de misturas de hlio-3 e hlio-4 tinha sido apenas explorado para temperaturas relativamente altas. Sabia-se que havia uma separao de fases, mas no se sabia como ocorria a baixas temperaturas. P. - Qual poder ser a importncia do hlio-3 superfluido? R. - De um ponto de vista prtico imediato o hlio-3 superfluido provavelmente o sistema mais intil jamais descoberto. No entanto, de um ponto de vista indirecto, muito importante porque talvez seja o sistema fsico mais complexo que compreendemos de uma forma quantitativa. Percebemos pelo menos uma grande parte do que se passa com o hlio-3 superfluido. Alguns dos fenmenos que acontecem so muito interessantes e quase nicos - alguns so anlogos a fenmenos doutros sistemas com aplicaes prticas mais directas, por exemplo os supercondutores de altas temperaturas. Penso que justo dizer que, ao tentarmos compreender as propriedades do hlio-3 superfluido, geramos um grande spin-off para compreender outros sistemas. Por exemplo, podemos aplicar algumas das ideias ali desenvolvidas na fsica de partculas ou no estudo do princpio do Universo... P - Durante o seu percurso teve oportunidade de fazer inves. tigao no mundo inteiro, incluindo o Japo e o Gana. Quer comentar o impacto das diferenas culturais e cientficas na cincia e na investigao cientfica feita em stios to diferentes? R. - Penso que esse impacto no assim to grande como se julga. Bom, obviamente, no Gana seria impossvel fazer investigao experimental e impossvel fazer 90% de

investigao terica. E a razo que para a investigao experimental no tinham equipamento e para a investigao terica no tinham revistas cientficas. E, por isso, quando estive no Gana, confesso que no fiz muita investigao, mas a que fiz foi deliberadamente em assuntos to obscuros que no precisava de aprender ou conhecer a literatura existente. No Japo, tudo muito organizado, como na Alemanha. H um certo nmero de professores e cada um tem o seu laboratrio. Estes laboratrios so, de certo modo, domnios feudais, e basicamente o professor decide sobre quem l trabalha. Ele acaba por ter influncia na carreira das pessoas mesmo depois de sarem de l. Por isso, existe uma forte tendncia para as pessoas trabalharem na rea do professor mais velho, no se aventurando em problemas demasiado distantes, e em particular em ideias que o professor no aprove. H um certo grau de conformidade forado pelo sistema. Mas tenho de admitir que existia naquela altura, e ainda hoje existe muita e boa investigao independente feita no Japo. P. - Pode falar-nos sobre outro dos seus interesses de investigao, nomeadamente as teorias e as experincias que testam os limites da mecnica quntica? Qual o estado da arte nesta rea? Pensa que a prxima gerao de experincias vai permitir observar falhas da nossa compreenso da mecnica quntica? R. - Sim, algo que tenho tentado fazer desde h vinte e cinco anos. Publiquei o meu primeiro artigo sobre o assunto em 1980. Uma das sugestes explcitas que fiz foi a de observar os efeitos da sobreposio de diferentes estados de fluxo numa montagem com rf-SQUIDs. Se tivermo dois anis SQUID, temos dois estados quase degenerados.

GAZETA DE FSICA

20

Montagem de 3 SQUIDS para monitorizar a actividade cerebral

ENTREVISTA

Num deles a corrente flui no sentido directo com uma amplitude de alguns micro amperes, e no outro no sentido contrrio. A ideia era a seguinte: poderemos montar uma experincia para observar efeitos de interferncia quntica entre estes dois estados? Naquela altura, a reaco que obtive da maioria das pessoas ligadas s medies qunticas foi a de que essa experincia no faria sentido j que era dado como certo e sabido que, a partir do momento em que se atinge o nvel macroscpico, a descoerncia vai aniquilar qualquer efeito quntico. Tivemos de lutar duramente contra estas objeces e fizemos uma srie de artigos muito tcnicos sobre o assunto nos anos 80. Foi ento que surgiu, como que vinda do nada, a computao quntica, algo que no tnhamos previsto. A consequncia disto foi que estas experincias que estavam a ser feitas com dificuldade por nunca terem tido um grande apoio financeiro, poderiam agora passar a ser financiadas no mbito de projectos de computao quntica. Nos ltimos cinco anos, um nmero considervel destas experincias comearam a ser feitas, e o que irnico que os investigadores que apareceram nesta rea nos anos 1990 queixam-se de que o grau de coerncia nos factores qunticos destes SQUIDs baixo. Mas, nos anos 80, a maior parte dos investigadores no acreditavam de todo nessa possibilidade. engraado! P. - H uma citao do matemtico Arnold que diz que "os nicos clculos computacionais que vale a pena fazer so aqueles que do uma resposta surpreendente". Para si qual o papel das simulaes na fsica? R. - Basicamente penso que nos permitem testar um bom nmero de ideias qualitativas e para as quais gostaramos de saber exactamente at que ponto so boas quantitativamente. No meu domnio de especializao, posso encontrar um bom exemplo no caso do hlio-4 lquido. Houve vrias ideias extremamente frutuosas que foram surgindo de pessoas como Landau, Bogoliubov e outros. Alguns investigadores, como o meu colega David Ceperley, da Universidade de Illinois, mostraram que se podiam utilizar tcnicas computacionais para obter nmeros, gerar o espectro de hlio-4 e compar-lo com as experincias, por exemplo, da densidade do fluido em funo da temperatura, e ver at que ponto que se obtinha um bom acordo. Penso que se obtiveram resultados muito satisfatrios. E penso tambm que isto algo que no poderia ter sido feito analiticamente. P. - O que pensa da investigao interdisciplinar? R. - Creio que a interdisciplinaridade um conceito que tem sido demasiado vendido. Penso que a interdisciplinaridade no um tipo de "molho" onde se misturam muitos ingredientes e que de alguma maneira o melhoram. Se quisermos tratar um problema que requer o saber especfico de um certo nmero de disciplinas, isso tornar-se- bvio. o que se verifica claramente no domnio dos supercondutores a altas temperaturas. A partir do momento em que estes materiais apareceram, verificou-se que eram precisos fsicos, qumicos, cientistas de materiais, etc., todos em colaborao, e isso foi o que aconteceu. A interdisciplinaridade surgiu como uma consequncia natural e esta a forma correcta para

as coisas acontecerem. Pensem num problema. Ser preciso uma abordagem interdisciplinar para o resolver? Ento devem procurar-se as pessoas certas para o fazer. No vale a pena ser interdisciplinar s por ser! No faz sentido! P. - Existem muitos fsicos a trabalhar fora das tradicionais reas da fsica (em biologia, economia e cincias sociais). O que pensa disto? R. - Certamente algo que vale a pena fazer, mas... Se algum vem, por exemplo, da rea da mecnica estatstica, tenta encontrar no domnio da biologia um problema que parece resolvel com o tipo de tcnicas utilizadas em mecnica estatstica. ptimo, resolve-se o problema, publicam-se vrios artigos sobre o assunto, e depois descobre-se que os bilogos no esto interessados naquele trabalho. No um problema importante. Portanto, creio que necessrio, para algum que queira entrar num novo ramo da cincia, falar com os investigadores que esto nessa rea h j alguns anos, e tentar perceber quais so os problemas mais significativos. Provavelmente, no sero os problemas para os quais se podero utilizar os mtodos habituais da fsica. No entanto, pode ser que se tenha algum tipo de conhecimento de base, que nos permita olhar para estes problemas de uma forma diferente. P. - Do seu ponto de vista, quais so as grandes reas da investigao cientfica hoje em dia? R. - Em fsica, penso que a cosmologia, claramente, e sempre foi, uma rea de fronteira fascinante. Tambm diria que em algumas reas da fsica das partculas se est mais ou menos por definio nas fronteiras daquilo que se sabe. Mas tambm devo referir a teoria da matria condensada. Creio que na rea da fsica a baixas temperaturas ou na fsica da matria condensada, os desafios so um pouco diferentes, e esto relacionados com a descoberta de novos tipos de fases organizadas. Fomos muitas vezes bem sucedidos ao faz-lo. verdade que ningum previu o hlio superfluido, ningum previu o efeito de Hall quntico. No entanto, previu-se o hlio-3 superfluido, pelo menos at certo ponto. Mas creio que no houve nada de to qualitativamente novo e que tivesse sido previsto com tanta antecedncia como o laser. O laser foi uma previso espectacular de algo que ningum tinha observado na Natureza. Penso que nunca fomos bem sucedidos em descobrir o que quer que fosse aos apalpes, tropeando no escuro. Penso que o desafio ser tentar pensar onde se podero descobrir novos tipos de comportamento. Tenho a certeza de que se encontram por a, algures... Isto no que diz respeito fsica. Fora da fsica, claro que h muitas reas, biologia, psicologia... Vejo com particular interesse os estudos do crebro que tentam, de certo modo, unificar princpios fsicos e biolgicos. Escusado ser dizer que estes estudos podem ter uma importncia enorme no nosso dia-a-dia. uma rea cientfica de extrema importncia.

GAZETA DE FSICA

21

ENTREVISTA A ANTHONY LEGGETT

P - Diz-se frequentemente que a Biologia a cincia do futuro . R. - Eu diria que a nossa compreenso do funcionamento do crebro actualmente no certamente melhor, , na verdade provavelmente pior, do que foi a nossa compreenso da matria a nvel atmico no final do sculo XIX. Portanto, parece-me perfeitamente concebvel que o sculo XXI traga a esse domnio o mesmo tipo de revoluo a que assistimos na Fsica do sculo XX. E o desafio , no mnimo to grande. Na verdade, acrescentaria ainda algo que talvez vos v chocar: penso que no ser nenhuma desonra para os fsicos estudar o que chamamos fenmenos paranormais. Associados a estes fenmenos h uma variedade de coisas que vo desde as experincias onde se tentam adivinhar as cartas at s especulaes sobre a vida para alm da morte. bvio que em muitas destas actividades h grande charlatanismo, iluses pessoais, mas isso no quer dizer que no haja nada por trs. Devemos recordar que, no sculo XV, havia muitos trabalhos em alquimia. A maior parte era um disparate, mas por detrs de alguns deles revelou-se o corao do que hoje a Qumica. No considero por isso inconcebvel que alguns dos fenmenos que hoje tratamos como fico, completamente paranormais, revelem uma verdadeira base cientfica. Em particular, os fenmenos que exclumos no por causa do primeiro princpio da termodinmica mas por causa do segundo princpio. P. - Numa entrevista recente, de Gennes tambm se mostrou apaixonado pela rea das neurocincias. R. - Creio que quase nica porque combina uma extrema e imediata relevncia humana com um grande e importante desafio cientfico. P. - Na ltima dcada, na Europa, os interesses dos estudantes tm-se afastado das cincias duras, e em particular da fsica. Considera que este afastamento um problema? assim nos EUA? R. - Sim, temos seguramente problemas semelhantes nos EUA. Eu diria que na Universidade de Illinois, metade dos alunos acaba com notas muito fracas. Uma grande parte destes alunos usa a fsica como uma via para obter um diploma em cincias de computadores. Pessoalmente, eu no me sinto to preocupado como alguns dos meus colegas, porque de certo modo penso que prefervel ter uma comunidade de fsicos pequena, mas onde todos se sintam motivados, do que ter uma grande comunidade onde a grande maioria no est motivada e no muito boa. Por isso, no me sinto to desiludido como alguns dos meus colegas. Se olharmos para isto de um ponto de vista puramente material, ento claro, se no h estudantes, no h financiamento para a investigao. Mas, mesmo assim, tal no bem verdade, porque a maior parte do nosso financiamento no vem do Estado. P. - H um provrbio chins que diz: "Se ouves, esquecers; se vs, lembrar-te-s; se fizeres, compreenders". Na investigao, faz-se, seguramente. Neste contexto, qual deve ser o papel do ensino? R. - claro que, pelo menos a um nvel superior, o ensino no pode substituir a investigao feita pelo aluno. Diria que o papel do ensino simplesmente abrir os olhos para um conjunto diferente de questes.

Pessoalmente, quando comecei o meu percurso em Oxford, a ideia de que um aluno tinha de ser exposto a aulas de fsica era ainda recente. Na verdade, penso que frequentei o primeiro ano em que tivemos de fazer exames escritos. Havia disciplinas antes, mas nunca tinha havido exames, ou eram opcionais. A julgar pelo que se seguiu, no tenho a certeza de que tenha sido boa ideia introduzir exames. O problema, particularmente em Inglaterra, era que, se no se fizessem exames, os estudantes sentar-se-iam num canto, concentrando-se apenas na sua rea muito especfica durante trs ou quatro anos, no fazendo nada para alm disso. No contexto ingls, as disciplinas, as aulas e o esforo para passar os exames tm de facto um papel importante. Nos EUA esse sistema ir certamente acabar por chegar. Talvez no faa mal expor os alunos a isso. No final o diploma do Ensino Superior tem de passar por uma tese final. P - medida que a cincia se torna cada vez mais especializa. da, difcil para os alunos obterem uma compreenso razovel de uma investigao especfica antes de sarem da universidade. Qual ser a melhor preparao para os futuros cientistas? Ainda uma educao mais generalista (cincia e arte), ou uma especializao rpida (matemtica e fsica)? R. - Este tem sido o debate nos EUA. Sinto que o sistema actual da Amrica do Norte est essencialmente correcto. Durante a licenciatura, um grande nmero de pessoas passam 50% do seu tempo a estudar fsica, e outros 50% a estudar outras coisas: literatura, histria, etc.. Creio que no um mau sistema. No que diz respeito fsica, necessrio saber exactamente quo especializado se deve ser. Obviamente quem quiser ter um diploma em fsica tem que ter um grau de competncia decente em assuntos bsicos como termodinmica, mecnica, estatstica, electromagnetismo ou mecnica quntica. Mas, depois disso, a questo mais complicada. A proposta que foi agora aprovada, na Universidade de Illinois, foi a de que os estudantes possam ter um diploma em Fsica inteiramente base de disciplinas genricas formais, sem nunca terem de olhar para a fsica com profundidade numa rea particular. Acho que uma ideia desastrosa e opus-me a ela quando surgiu. No interessa que o diploma universitrio abranja todos os domnios da fsica. Mas penso que importante para os estudantes no fazerem apenas disciplinas bsicas e abstractas, cursos sobre mecnica quntica, teoria electromagntica, ou mecnica estatstica, mas que possam passar algum tempo pelo menos a tentar aplicar estas ideias numa rea especfica da fsica. Eu era partidrio da proposta de que deveriam fazer uma disciplina em fsica das partculas ou em biofsica. Deveriam ter alguma rea concreta para aplicar as ideias de base. P. - Se voltasse a 1960, e estivesse a acabar o seu diploma em estudos clssicos em Oxford, voltaria a fazer um curso superior em fsica? R. - Possivelmente, mas penso que, sabendo o que sei hoje, faria mais facilmente algo em neurocincias. Creio verdadeiramente que no sculo XXI este ser considerado o domnio da cincia mais fascinante. A fsica teve progressos recentes substanciais, mas no ser olhada com o mesmo grau de fascnio.

GAZETA DE FSICA

22

Reactor de fuso nuclear vai ser construdo em Frana Prmios da Sociedade Europeia de Fsica Estudante holands descobre manuscrito de Einstein Unio Astronmica Internacional edita guia de regras astronmicas Sir Joseph Rotblat (1908-2005) Conferncia sobre Matria Condensada A revoluo do livre acesso

FSICA NO MUNDO

REACTOR DE FUSO NUCLEAR VAI SER CONSTRUDO EM FRANA

O Reactor Experimental Termonuclear Internacional (ITER, na sigla inglesa) vai ser construdo em Frana. A deciso foi tomada recentemente, em Moscovo, entre os seis membros do consrcio que vai gerir o projecto oramentado em cerca de 10 mil milhes de euros e que dever estar concludo dentro de 10 anos. A Unio Europeia, a Rssia e a China, de um lado, e os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japo, por outro, chegaram finalmente a acordo, aps um longo impasse entre o apoio a Rokkasho-mura, no Japo, e Cadarache, no sul de Frana. O projecto ITER, que vai gerar quatro mil postos de trabalho, ser o maior investimento de cooperao cientfica internacional a seguir Estao Espacial Internacional. Os custos deste investimento sero suportados pela Unio Europeia, atravs do Programa-Quadro de Investigao, e pelos restantes pases participantes.A "Gazeta" agradece aos seus leitores sugestes de notcias do mundo da Fsica. [email protected]

O ITER produzir energia com base nos mesmos processos fsicos que

NOTCIAS

PRMIOS DA SOCIEDADE EUROPEIA DE FSICA O Prmio de Fsica de Partculas e de Altas Energias 2005, da Sociedade Europeia de Fsica, foi atribudo ao alemo Heinrich Wahl durante uma Conferncia Internacional de Fsica que decorreu em Lisboa, em Julho passado. Heinrich Wahl foi laureado pelas suas experincias na rea da fora nuclear fraca, especificamente o estudo da assimetria entre a matria e a anti-matria. O Prmio para Jovem Fsico galardoou o cientista francs Mathieu de Naurois, e a Medalha Gribov foi atribuda a Matias Zaldarriaga, ambos por trabalhos de investigao na rea da astronomia. O Prmio de Divulgao Cientfica laureou David Barney e Peter Kalmus pela investigao na rea da fsica de partculas e sua divulgao junto do pblico.

Fotografias de alta resoluo deste manuscrito de 16 pginas e a descrio da descoberta do estudante podem ser consultadas na Internet no stio do Instituto Lorentz em http://www.lorentz.leidenuniv.nl. A condensao de Bose-Einstein ocorre quando um gs arrefecido a temperaturas de cerca de - 273 graus Celsius, o que faz com que os tomos retenham a menor quantidade possvel de energia e se comportem de forma ordenada, at se aglutinarem num objecto denso que actua com uma nica partcula. Um fenmeno parecido com o que acontece com as borras do caf quando a chvena arrefece. Em 1995, os norte-americanos Eric A. Cornell e Carl E. Weiman e o alemo Wolfgang Ketterle conseguiram reproduzir e observar o fenmeno com rubdio gasoso, o que lhes valeu o prmio Nobel da Fsica em 2001.

ocorrem no interior do Sol e de outras estrelas. Ter como objectivo criar condies para a fuso de ncleos de tomos leves (deutrio e trtio) originando tomos de hlio, mais pesados. Neste processo libertada uma elevada quantidade de energia. Usado na bomba de hidrognio na dcada de 1950, este fenmeno ser agora utilizado com fins pacficos para construir a primeira central de produo de energia por fuso nuclear. H mais de 40 anos que Cadarache possui um centro de investigao de energia nuclear, local agora escolhido para instalar o ITER. Considerado um dos maiores centros de investigao civil na rea da energia nuclear na Europa, Cadarache localiza-se a 70 quilmetros de Marselha, num espao com 1600 hectares, rodeado de vegetao. A delegao da Unio Europeia integra o fsico portugus Carlos Varandas, membro da direco do Acordo Europeu de Desenvolvimento de Fuso, cujo objectivo principal participar na elaborao do projecto final deste reactor experimental de fuso. Quem quiser saber mais sobre este assunto, poder consultar os stios http://www.educacao.te.pt, que disponibiliza um dossier sobre fuso nuclear, http://www.cfn.ist.utl.pt, do Centro de Fuso Nuclear, ou o prprio stio do ITER, http://www.iter.org.

ESTUDANTE HOLANDS DESCOBRE MANUSCRITO DE EINSTEIN Um estudante de mestrado, Rowdy Boeyink, encontrou nos arquivos da Universidade de Leiden, Holanda, um manuscrito esquecido de Albert Einstein com alto valor cientfico e histrico. O documento, escrito em alemo e datado de Dezembro de 1924, apresenta um dos ltimos xitos da carreira do fsico: a previso terica de um estado da matria ento ignorado e descoberto 70 anos mais tarde, o condensado de Bose-Einstein. O manuscrito, que contm numerosas notas pessoais e sublinhados do autor, corresponde ao artigo "Teoria quntica do gs ideal monoatmico", publicado em Janeiro de 1925, em Berlim, e est includo numa srie de documentos legados universidade pelo fsico Paul Ehrenfest.

UNIO ASTRONMICA INTERNACIONAL EDITA GUIA DE REGRAS ASTRONMICAS Depois do anncio recente da descoberta de um dcimo planeta do sistema solar, a Unio Astronmica Internacional (UAI) quer, de uma vez por todas, definir o que um planeta.

GAZETA DE FSICA

25

FSICA NO MUNDO

A inteno surgiu depois da descoberta de 2003 UB313, que se estima que tenha um dimetro equivalente a 1,5 vezes o de Pluto. A descoberta do 2003 UB313 serviu de motivao para a UAI, que est h anos a tentar chegar a um consenso sobre as caractersticas que identificam um corpo celeste como sendo um planeta. Segundo a revista Nature, a UAI deve anunciar em breve as concluses do grupo que estudou a questo. Dependente das regras a anunciar est o destino de Pluto, descoberto em 1930. Devido sua pequena dimenso, rbita no circular e inclinada em relao aos outros planetas, Pluto muito atpico, mas manteve sempre o estatuto planetrio. No entanto, se Pluto e 2003 UB313 vierem de facto a ser considerados planetas, tambm muitos outros objectos celestes podem reclamar esta classificao, entre eles o Sedna, um dos objectos encontrados na Cintura de Kuiper, um local nos confins do sistema solar onde existem muitos corpos estranhos. A polmica surgiu depois da descoberta, por astrnomos norte-americanos, do que consideraram ser o dcimo planeta do sistema solar, maior que Pluto e a 14,5 mil milhes de quilmetros do Sol. Aquando da revelao da descoberta, em Julho passado, Michael Brown, um cientista do Instituto de Tecnologia da Califrnia (Caltech), afirmou que aquele era o primeiro corpo descoberto no sistema solar que maior que Pluto. O planeta foi baptizado provisoriamente como 2003-UB313 e foi descoberto em Janeiro atravs do Telescpio Samuel Oschin, no observatrio de Monte Palomar, situado na Califrnia. Ainda de acordo com os astrnomos responsveis pela descoberta, o 2003UB313 um membro tpico do cin-

turo de asterides Kuiper. O novo planeta j tinha sido fotografado no dia 31 de Outubro de 2003, mas estava muito distante e s foi possvel determinar o seu movimento atravs da anlise de novas imagens, em Janeiro deste ano.

itinerante sobre a bomba atmica, naquele que foi o primeiro grande esforo para elucidar o pblico sobre as potencialidades militares e pacficas da energia nuclear. Entre 1957 e 1973 foi secretriogeral das Conferncias Pugwash sobre Cincia e Relaes Internacionais que reuniram acadmicos e figuras pblicas influentes, concentrando-se na reduo do perigo de um conflito armado e na busca de solues internacionais para os problemas globais. Foi co-fundador e membro da direco do Instituto Internacional de Investigao para a Paz de Estocolmo e desempenhou dezenas de outros cargos pblicos, tendo inclusive sido membro da direco da Organizao Mundial de Sade, responsvel pela elaborao de relatrios sobre os efeitos da guerra nuclear na sade. Foi autor de mais de 200 publicaes, incluindo 20 livros.

SIR JOSEPH ROTBLAT (1908-2005)

Faleceu recentemente Sir Joseph Rotblat, fsico e vencedor do Prmio Nobel da Paz em 1995, "pelos seus esforos para diminuir o papel das armas nucleares na poltica internacional e, a longo prazo, para eliminar essas armas". Joseph Rotblat nasceu em Varsvia, Polnia, em 1908, e era cidado britnico desde 1946. Era doutorado em Fsica pela Universidade de Varsvia, e possua vrios graus de universidades inglesas. Quando rebentou a II Grande Guerra, Joseph Rotblat era director do Instituto de Fsica Atmica da Universidade Livre da Polnia. Mudou-se ento para Inglaterra, e entre 1939 e 1944 trabalhou na bomba atmica na Universidade de Liverpool e em Los Alamos, EUA. Em 1955 assinou o manifesto Russell-Einstein e esteve presente na conferncia de imprensa que o tornou pblico. Mais tarde, em 1959, organizou uma exposio

CONFERNCIA SOBRE MATRIA CONDENSADA Vai realizar-se em Dresden, Alemanha, a 21. Conferncia do Departamento de Matria Condensada da Sociedade Europeia de Fsica, em conjunto com o encontro de Primavera do departamento homlogo da Sociedade Alem de Fsica. A conferncia decorrer de 26 a 31 de Maro de 2006 e ir abranger todas as reas da fsica da matria condensada. Toda a informao sobre esta reunio est disponvel no stio http://www.cmd21.org.

GAZETA DE FSICA

26

NOTCIAS

A REVOLUO DO LIVRE ACESSO Ken Peach Director do Departamento de Fsica de Partculas Rutherford Appleton Laboratory [email protected] Est em curso uma revoluo silenciosa que ir alterar o modo de publicar e aceder ao conhecimento cientfico. O livre acesso, possibilitado pelas novas tecnologias, trar benefcios enormes ao proporcionar o acesso sem custos resultantes da investigao. Os artigos cientficos publicados em jornais e revistas so tradicionalmente pagos atravs das assinaturas individuais e de bibliotecas, criando barreiras aos que no tm possibilidades econmicas para isso. O aumento constante dos custos de produo tradicional de edies em papel tal que muitas bibliotecas europeias e americanas - inclusive a biblioteca do CERN que um centro de excelncia para investigadores de todo o mundo - so incapazes de oferecer uma cobertura completa de todas as publicaes. Em 2003, a Declarao de Berlim sobre o livre acesso ao conhecimento das cincias e das humanidades foi apresentada numa reunio promovida pela Sociedade Max Planck. Seis meses depois, em Maio de 2004, numa reunio do CERN, foram tomadas as primeiras medidas com vista aplicao prtica da Declarao, com a sua assinatura e reconhecimento por 61 instituies de todo o