GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrópolis, Vozes, 1997. (1)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    1/17

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    2/17

    .~

    ~

    -

    Capftu o 4

    o senso comum omo urn sistemultur l

    I

    :-'Logo no inicio daquela colecao de jogos conceptuais e

    metaforas inesperadas a: que deu 0 nome de InuestigacoesPilosoficas, Wittgenstein com para a linguagem a uma cidade: ,.

    Nfio se preocupem com 0 faro de que umas linguagens

    rcduzidas que de tinha acabado de inventar com propositosdtdancos consistern 56 em Imperauvos. Se, per esta razao,quiserem dizcr que estao tncomplctas, perguntcm-se se poracaso nossa lingua e completa - se cstava completa antes qu ca simbolismo da quunlca c a notacaodo dlculo infinitesimalfossem a cla anexados; pais estes sao, par asslm dizer, as

    suburbios de nossa lingua. (E quantas casas qu ruas saoneccssarias par;.a que uma cidadc cornecc a ser uma cidade )

    Nessa lingua pode ser vista como uma cidadc aruiga: urnlabirinto de pequenas ruas e pracas, de casas velhas e novas,e de casas com extensoes construidas em varies pcriodos; etudo isso circundado por uma profusao de areas modernas,

    I

    com ruas regulates e (etas c casas uniforrnes.

    .:

    Se expandirmos esta rmagem para que abranja a culrura,poderiamos dizcr que, tradidonalmente, antropologos SCIll-pre consideraram a cidade como seu territorio, e que pas-

    seani.m par scus becos casualmente construidos, tenrandoelaborar algum tipo de mapa aproxirnado da realidade; e que

    1. L. Wittgenstein, Pbllosapbical inuestigations, trad . de G .I'.M . Anscotnbe, Novatorque , 1953, p. 8; a lt er ei I Ige ir amcmc a t raducao de Anscombc_lll /IJstlgl1l oes

    filos6ficas. Petr6polis, Vozes, 1996.J

    111

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    3/17

    s6 recenternenre cornecaram a se indagar como foram COllS-truidos 'esses suburbios que parecern estar se arnontoando

    cada vez rnais perto, qual seu relacionamento com a cidade

    velha (Sera que cresceram a partir dela? Sua criacao a. modi-

    ficou? Sera que, no final, vao absorve-la totalmentej) e comosera.a vida em lugares assim tao simetrlcos . A diferenca entreos tipos de sociedades que normalmente constituem 0 ob-

    jeto de estudo da antropologia, ou seja, as sociedades tradi-cionais, c aquelas onde os antropologos vivern, isto e , associedades rnodernas, sempre foi considerada uma questao .

    de rnaior ou mellor prlmitivismo. No entanto, essa dlferencapoderia ser expressa em terrnos do grau de dcsenvolvimentodos sistemas esquernatizados e organizados de pensamento

    e ac;ao - flsica, contraponto, existencialismo, cristianismo,engenharia, jurisprudencia, marxismo - urn elemento taoproeminente crrl nossa propria paisagem que nfio podemossequer imaginar urn mundo onde eJes, ou algo parecido comeles, nao cxista - sistemas esses que surgiram e se expandi-ram ao redor do emaranhado de praticas herdadas, crencasaceitas, [ufzos habituais , e ernocoes inatas, existentes ante-

    riormente .

    Sabemos, l: c laro, que em Tikopia au Timbuctu h apoucaquimica e menos calculo rnaternatico: e que a boLchevismo,

    a perspectiva cia ponto de fuga, -as doutriuas da uniaohipostatica, au dissertacoes sabre a problernatica mente-cor-po nao sao exatamente fenomenosuniversals. Apesar disso,relutamos - - e antrop61ogos saoparticularmente relutantes- em extrair destes fatos a conclusao de que aciencia, aideologia, a arte, a religiao, ou a filosofia, ou pelo rnenos asimpulsos a que e las servcm, nao sao propriedade cornum detoda a humanidade.

    Desta relutancia surgiu toda uma tradicao de argumen-

    tos cujo objetivo e provar que os povos mais simplesrealmente tern urn sentido do divino, urn interesse imparcial

    no conhecimento, urna nocao da forma legal, au uma apre-ciacao da beleza par si rnesma, ainda que essas qualidades

    2

    . .. .

    nao estejam engavetadas nos compartimentos culturais 01 -

    ganizados e estanques que conhecemos tiio bem.

    Asslm, Durkheim descobriu forrnas elernentares de vida. religiosa entre as aborigencs australianos; Boas, urn talento

    espontaneo para 0 desenho na costa do nO~'oeste; Levi-Strauss, lima ciencia concreta no Amazonas; Griaule, limaontologia simbolica em uma tribo da Africa

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    4/17

    entre os bosquimanos algumadessas coisas, quero voltar-rnepara uma dirnensao -da cultura que ' nao t normalmente

    co~siderada urn de seus cornpartimeritos organizados, comoacontece com estes setores rnais conhecidos da alma. Refl-ro-rne ao senso cornum' ...

    Haurn nurnero de razoes pelas quais tratar 0 sensocomurn como urn corpo organizado de pensamento delibe-

    rado, em vez de considera-lo como aquilo que qualquerpessoa que usa roupas e 'nao esta louco sabe, pede -kvar aalgumas conclusoes bastante uteis; entre essas, talvez a malsimportante seja que uma das caracteristlcas inerentes aopensamento que resulta do senso comum e justamente a denegar 0 que fol dito aeima, afirmando que suas opinioes

    foram resgatadas diretamente da experiencia e nao urnresultado de reflexoes deliberadas sobre esta. 0 saber que a

    , chuva rnolha e que, .portanto, c evemos nos proteger dela emalgum lugar coberto, ou que 0 fogo queima, eque, portanto,nao devemos brincar com fogo (rnanrendo-nos, por enquan-to, em nossa propria cultura) sac expandidos ate abrangerurn territ6rio gigantesco de coisas que sac consideradascomo certas e inegaveis, urn catalogo de realidades basicasda natureza e tao perempt6rias que.aem duvida, penetracao

    em quaiquer mente-rlesanuvtada 0 bastanre para absorve-las,No entanto, e obvioque isso nao e verdade. Ninguern, ou

    pelo menos ninguern cujo cerebra fundone bem, duvidaque a chuva molhe; mas podern existir pessoas que questio -nem a proposicao de que obrigatoriamenre devemos abri-gar-nos dela, e que achem que enfreritar os elementos e limaforma de fortalecer nos so carater - algo assirn como se andar

    na chuva sem chapeu fosse sinonimo de santidade. E, muitasvezes, a atracao que 0 brincar com 0 fogo exerce sobre certaspessoas e mais forte do que a certeza da dor que vira .. Areligiao baseia seus argurnentos na revelacao, a ciencia nametodologia, a ideoLogia na paixfio moral; os argumentos dosenso cornum, porem, nao se basciarn em coisa alguma, a

    n50 ser na vida como urn todo. 0 mundo e sua autoridade.

    114

    ..-~.-:

    , .,.'

    ''''

    _Aanalise do senso comurn, e nfio necessariamente seu'exercicio, deve, portanto, iniciar-se par urn processo em quese reforrnule esta distlncao esquecida, entreuma rneraapreensao da realidade feita casualmerue - OU seja hi 0 quefor que meramente e casualmcute apreendernos - e uma

    sabedoria coloquial.tcom pes no chao, que julga ou avaliaesta rcalidade .Quando dizemos que alguem dernonstrou tcr

    born scnso, querernos expressar algo mais que 0 sirnples farode que essa pessoa tern olhos e ouvidos; 0 que estamosaflrmando e que ela rnanteve sells olhos e ouvidos bcmabertos eutilizou ambos - ou pelo menos tentou utiliza-los

    - comcnterto, intehgencia, discernimento e reflexao previa,e que esse alguem e capaz de lidar com os problemascotidianos, de uma forma cotidiana, e com alguma efid.cia.Quando, por outro Iado, dizemos que a algucm lhc falta bornsense, nao queremos dizer que estc alguern c retard ado, ouque nao consegue entender que a chuva molha ou que 0fogo queima, mas sim que e 0 tipodepcssoa que conseguecomplicar ainda mais os problemas cotidianos que a vidacoloca a sua frente: sai de casa sem guarda-chuva em urn dia

    nublado; na vida, sofreu uma serie de qucimaduras quedeveria ter sido sabio 0 bastante para evitar e nao ter , deproprio, aticado as charnas que as causaram. 0 antonimo deuma pessoa que e capaz de captar as realidades .basicasatraves da experiencia e ,-como sugeri, urn deficiente . 0antonimo de uma pessoa que c capaz de chegar a conclusoessensatas a partir dessas mcsrnas realidades e urn tolo. E estaultima palavra tem menos relacao COIll 0 intclecto - em umadefinicao llmitada de intelecto - do que normalmcntc ima-

    ginamos. Como observou Saul Bellow, rcferindo-se a certasespecies de assess ores governamentais e de escritores radi-cais: O 'mundo esta cheio de idiotas COUl QIs altissimos ,

    A dissolucao analitica da premiss a tacita que da ao bornsenso sua autoridade - ou seja, aquela para a qual 0 bornsenso representa nada mais que ~ pura realidade - nao terncomo objetivo solapar esta autoridade, e sim, transferi-Ia. Seo horn sensa e urna interprctacao da realidade imediata, uma

    5

    1

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    5/17

    . .especie de polimento desta realidade, como 0 mito, a pintu-ra, a epistemologia, ou outras coisas sernelhantes, entao,como essas outras areas, sera tambern construido his torica-mente, e, portanto, sujeiro a padroes de jufzo hlstoricaruentedefinidos. Pode ser questionado, discutldo, aflrmado, desen-volvido, formalizado, observado, ate ensinado, e po de tam-bern variar dramaticamente de uma pessoa para outra, Emsurua, e urn sistema cultural, embora nem sempre muitointegrado, que se baseia nos mesmos argumentos em que sebaseiarn outros sistemas culturais sernelhantes. aqueles que. .os possuem tern total conviccao de seu valor e de suavalidade. Neste caso, como em tantos outros, as coisas terno significado que Ihes queremos dar .

    Aimportaucia de tude isso para a filosofia e ,obviamente,que 0 born sense, ou outro conceito similar,tornou-se umadas categorias-chave, talvez ate a categoria-chave, em urnample numero de sistemas filos6ficos modernos. Alias, po-demos ate afirmar que, desde a epoca de Platao e Socrates,o born senso ja era uma categoria importante nesses sistemas(onde sua funcao era dernonstrar sua propria inade-quabilidade) . Tanto a tradicao cartesiana como a de Lockedependiarn, de form as diferentes - de forrnas culturalmentediferentes - de doutrinas sabre 0 que era a u nao auto-evi-

    dente, se nao para mentes vernaculas, pelo rnenos paramentes livres . Neste seculo, porcrn, 0 conceito de born senso que nao foi cnsinado (como e as vezes clenominaclo) - istoe aquilo que 0 hornern eomum pensa quando livre dassoflsticacoes vaidosas dos estudiosos - quase tornou-se 0sujeito tematico da filosofia, ja que cantos outros conceitosfilosoflcos estao sendo absorvidos pela ciencia e pela poesia.A enfase que Wittgenstein , Austin e .Ryle dfio a linguagemcornurn; 0 desenvolvirnento da chamada fenornenologla docotidiano por Husserl, Schutz, Merleau-Ponty; a glorificacaodas decisoes pessoais, tomaclas no cotidiano ( n o meio ciavida'') do existcncialisrno europeu, a utilizacao da solucaodeproblernas atraves de comparacoes com a variedade decoisas que acontecern em urn jardim como paradigma da '

    ..116

    ~razao no pragmatismo americano - tudo isto reflete estatendencia a buscar as respostas para os misterios rnais pro-fundosda existencia na estrutura do - pensamento corriquei-ro, pe-rm-terra, trivial. A imagem de G .E . MOOl e,quandotcntou dernonstrar a realidade do mundo externo Ievantan-do uma das maos c dizendo isto e urn objeto fisico e dcpoislevantando a outra e dizendo isto e outro objeto fisico , n jiodeixa de ser, sern considerar dctalhes doutrinarios, aquelaque melhor resume grande parte da fllosofia ocidental rc-cente.

    Apesar de tel se tornado foeo de tanta e ta ~ intcnsaatencao, 0 s,enso cornum continua a ser, no entanto, umfenomcno que e prcsurnido, e nao analisaclo . Husserl, e.depois Schutz, trabalharam com as bases conceituais daexperiencia cotidiana, com a forma como construimos 0mundo que _habitamos biograftcamente, mas sern admitir adistincao entre esta eo que dr. Johnson fez quando chutouuma pedra para refutar Berkeley, ou 0 que fazia SherlockHolmes quando ponderou sobre urn cachorro silencioso nanoitc . Ryle, pelo menos, observou en passant que nao exihirnos born senso au falta de born senso quando usamosuma faca e urn garfo; (0 fazemos) quando conseguimos lidarcom um falso mendigo ou com urn problema rnecanico, sern

    ter as ferramentas adequadas. Mas, 0 conceito de bOI11senso normalmentc aceito e aquele que 0 ve como 0 tipode coisa que qualquer pessoa com born senso sabe , Umadeflnicao que., segundo suas proprias prcmissas, estariacoberta de born senso,

    A antropologia nos pode ser util aqui da mesma formaque e uti em outras situacoes: ao fornecer exemplos extra-ordinarios, ajuda asituar exernplos mais pr6ximos em umcontexte difercnte . Se observarmos a opiniao de pessoas que

    chcgam a conclusoes dlferentes dus nossas devido a vivenciaespedfica que tiveram, ou porque aprenderarn licoes dife-rentes com as surras que levaram na cscola da vida, logo nosdarernos conta d eque 0 senso comum e algo muito rnais

    117i ~

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    6/17

    problernatico e profunda do que parece quando 0 ponto deobservacao e um cafe parlsiense ou uma sala de professoresem Oxford : Como urn dos suburbios mais antigos da culturahuma~a- nao rnuito regular, n aomulto uniforrne, mas aindaassim ultrapassandoo labirinto de ruelas e pequcnas pracasem busca de uma forma rnenos casual de 'habitat' - 0 sensacomum rnosrra multo clararnenre 0 Impulse que serve debase para a construcao dos suburblos. urn desejo de tornaro mundo diferente,

    II

    Com esta perspectiva e nao com a que e normalnienteusada (a natureza e a funcao damagia), considerernos aquio conhecido trabalho 'de Bvans-Prrtchard sobre feiticariaentre os azandes . Segundo 0 que 0 proprio Pritchard afir-mou explicitamenre embora tudoindique que ninguem lhedeu muita atencao, a parte que realrnente lhc interessa do .sensa comum e seu papel como pano de fundo para 0desenvolvimento da felticaria. Uma deturpac;ao dos coned-tos azandianos de causalidade natural, au seja, 0 que leva aque, segundo a mer a experiencla de vida, sugere a existencla

    de urn outro tipo de causalidade - a que Pritchard chama demistica - que resume a conceito azandiano de feiricarla . Umafeiticarla que e, alias, bastante materlalisrn, envolvcndo, porexemplo, uma substancia acinzentada que estarla Iocalizadano ventre das pessoas.

    Tornernos como exemplo urn mcnino azandiano, que,segundo ele proprio, dell uma topada nurn toco de arvoree flcou com 0 dedo do pe infeccionado , a menino diz quefoi feiticaria, Bobagern , diz Evans-Pritchard, utilizando a

    sensa cornum de sua propria tradicao, voce nao teve foicuidado, tinha que olhar com mais . atencao aonde pisa.Mas eu olhei .aonde pisava , diz a garoto, e se eu ndo

    estioesse enfeiticado, teria uisto toco .Alern do rnais, cortesriunca ficam abertos tanto tempo, pelo contrario, fecham

    118

    ,'logo, pois os cortes sao assirn por natureza. Mas este infec-cionou, entao tern que ser feiticaria.

    Ou um oleiro de azande, Com grande habilidadc e expe-

    riencia, que, volta e meia, quando urn dos pores que estavafazendo caia e quebrava, exclamava: foi felticol Boba-gem ,diz Evans-Pritchard, que, como todo bOI11 etnografo,parece que nunca aprende: e clare que pates as vezesquebrarn quando estao sendofeitos; assim e a vida. Mas , .diz 0 olelro, eu escolhi 6 barro bemescolhldo, me esforceipara retirar todus as pedrinhas e a sujeira, trabalhei devagare 'com cuidado, e me abstive de ter relacoes sexuais na noireanterior. E ainda assim 0 pate quebrou. Que mais poderiaser, senao feiticaria? au, uma outra ocasiao, quando 0proprio Evans-Pritchard estava doentc - ou, em suas pro-prias palavras, sentia-se pouco saudavel - e se indagou emvoz alta, na presenca de alguns azandianos, se a causade scumal-estar nao teria sido as muitas bananas que comera. Edes: bobagem, banana nao faz mal, deve ter side feltlco.

    Assim, se o conteudo das crencas azandianas sobre feiti-~~.ria e ou nao mistico (e ja sugeri que essas crcncas meparecern mfsticas unicamenre porque nao creio nelas), elassao ut illzadas pclos azandianos de lima forma nada mlstlca- e sim como uma elaboracao e uma defesa das afirmacoes .reais da razao coloquial.Atras de todas essas reflexoes sobrededos do pe infeccionados, pates que ' sairam errado, eacidez estomacal, se estende a tcia de conceitos do sensocomum que os azandianos aparentemel1tc considcram real-mente verdadeiros: que cortes pequenos normalmenre cu-ram-se com rapidez; que pedras fazem com que 0 barrecozido quebre com facilidade; que a abstencao sexual e UUlpre-requisite para que 0 trabalho do oleiro seja bern sucedi-

    do; que andando por azande nao e aconsclhavel sonharacordado, porque a Lugar esta replete de tacos de arvores..pe como parte desta teia de prelnissas do born senso, e nao

    . gracas a alguma forma de metafisica primitiva, que 0 coned-to de feiticaria ganha sentido c adquire sua forca.Apesar de

    11 C)

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    7/17

    toda .esta conversa de voos noturnos como vaga- lumes, afeiticaria nao celebra uma ordem invisivel, e sim confirma

    uma outra ordcm, esta, extrema mente visivel .

    A voz da feiticaria sc eleva quando as expectativas co-muns faIham, quando 0 homem cornum de azande se con-fronta com anomalias ou contradlcoes . Pelo menos neste

    sentido, e1a e uma especie de variavcl testa-de-ferro nosistema de pensarnento do senso comum . Sern transccndereste sistema, ele 0 reforca , adicionando-lhe uma ideia queserve para qualquer ocasiao, e que atua para reassegurar aos

    azandianos que a sua reserva de lugares comuns e confiavele adequada, mesmo quando ~s aparencias morncntanea-

    mente demonstrem 0 contrario. Assirn, se alguern contrai

    lepra, a causa e feiticaria, a nfio ser que haja incesto nafamilia, pois todo 0 rnundo sabc que 0 incesto causa lepra.

    o adulterio, tarnbern, traz infelicidade . Urn hornem pode sermorto na guerra ou na caca, como resultado das infidelida-des-de sua esposa . Antes de partir para a guerra ou para uma

    cacada, um homern, se for sensato, pede a sua esposa que

    confesse 0 nome de seus arnantes . Se ela diz, honestamente,que nao tern ncnhum.amante e, mcsrno assim, de morre, acausa de sua morte foi, entao, algum fetrico - a nao ser, eclaro, que de tenha feito algurna outra coisa obviamenteerrada. Da mesma forma, ignorancia, estupldez au incom-

    petencia, definidos culturalmente, sac causas suficientes .para 0 fracasso aos olhos dos azaudianos. Se, ao examinar apore qucbrado, 0 oleiro encontra mesmo uma pedra nobarre, para de rcsmungar sobre feiticaria e comeca ~rcsmun-gar sobre sua propria negligencia - em vez de culpar ~

    feiticaria pelo fate de que apedra estava no barra. E quandourn oleiro sern experiencia quebra urn pote, a culpa sera dafalta de experiencia do ole iro, 0 que parecc bastante razoa-

    vel, e nab de alguma perversaoontologica da realidade .Neste contexte pelo menos, 0 grito de feitico funciona

    para as azande como 0 grito de Insba Allab funciona para

    alguns muculrnanos, ou 0 sinal da cruz para alguns cristaos:

    120

    . ; .

    , .menos como Lima forma de questionar as crencas maisimportautes - religiosas, filos6ficas, cicntillcas e morais - a

    respcito de como 0 mundo e construido Oll sobre 0 que e avida, e rnais como uma forma de fechar as olhos e ignorar

    as duvidas sabre estas crencas: lacrar a visao demundo queresulta do bom senso - aqucle tudo e 0 que e e nada mais ,como disse joseph Butler - para protege-la das duvidas que

    silo estimuladas pelas insuficiencias obvias desta visao . .

    Os ,azande , escreveu Evans-Pritchard, administramsuas atividades ecouomicas segundo urn conjunto de conhe- .

    cimentos, transmitidos de geracao em geracao, que abran-gem tanto a construcao e a artesanato, como a agricultura c

    a cac;a ,PossLlem,pol1anto, urn profundo conhecimento

    prance dos aspectos da natureza que se relaciouam com seubcm-estar. E bem verdade que este saber e ernpirico eincompleto, e que nao e transmitido atraves de qualquercnsino sistematico e sim pussado de uma geracao a outra,de uma forma lenta e casual, .durante a infancia e nos

    primeiros anos da maturidadc. Mesmo assim, este conheci-

    mento e suficiente para a execucao de tarefas diarias eemprcendimentos sazonais. jft que e esta conviccao que 0

    - homern cornurn tern, de que tern a controlc de tudo nao sode assuntos econornicos, que the da qualquer possibihdade

    de agir, ela deve ser protegida a qualquer custo: no caso dosazandc, a feincarla e Invocada para esconder fracassos; np -nosso caso, buscamos respaldo em , urna longa tradlcao defllosofia de botequim para comemorar sucessos. ja foi ditoem varias ocasioes quc em qualquer sociedade a manuten-C;iioda fc religiosa e uma tarefa problematica; e, se deixarmosde . lado as tcorias sobre a suposra espontaneidade dosinstintos religiosos dos primitivos , creioque esta afirma-c;ao e verdadeira. E igualrnente verdadeiro, no entanto, emuito menos cornerttado, 0 fato de que a manutencao da fe

    na confiabilidade dos axiomas e argumentos do bom senso

    nao emenos . problemitica. A artiInanha usada pelo dr.johnson para silenciar as duvidas sobre 0 born senso - e

    nao se Iala mais do assuntol - e, se pensarmos bern, quase

    121

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    8/17

    tao desesperada como a que Tertuliano usava para frear suasduvidasreligiosas: ;c1 edoquia impossible . Peiticaria naoe pior que nenhuma das outras duas . Os homens tampamos oriffcios nas barragens de suas crencas mais necessarias

    com 0 primeiro tipo de barco que encontrem.'Iudo isso se apresenta de uma forma mais drarnatica se,

    em vez de limitarmo-nos a observar uma unlca cultura emsua totalidade, observarmos varias culturas simu1taneamcn-te, concentrando-nos em umunlco problema. Um exemploexcelente deste tipo de abordagem encontra-se em urnartigo de Robert Edgerton, publicado em u numero antigo 'do American Ant~ropologist, sobre aquilo que hoje e cha-mado deintersexualidade, mas que e mals conhecido sob 0nome de hermafroditisrno.

    Se ha uma coisa qU ,e todosconsideram ser parte damanelra como 0 mundo csta organizado e 0 faro de que osseres humanos estao dividldos em do is unlcos sexosbiolo.gicos. E claro que tambem scadmlte que algumas pessoasem qualqucr lugar do rnundo - homossexuais, travestis, etc.- nao se cornportam de acordo com as expectativas do papelque lhes foi atribuido segundo seu sexo biologlco e, de .unstempos para ca, varias pessoas em nossa sociedade ja chega-

    ram ate a sugertrque papeis que se dlferenciam tanto naodeveriarn nem mesrno ser atribufdos a quem quer que seja.Mas rnesrno que uns prefiram gritar vive Ia difference eoutros a bas 1adifference , nao existe rnuita duvida quantaa existencia de uma diferenca, Avisao daquela menininha c iaestoria - que as pessoas nasccrn de dols tipos, sern enfeitesou com cnfettes - ..pode ter sido urna visao lamenravelmcnrenao-llbcrada. masparece bastante 6bvio que sua observacaofoi anatornicamente correta.

    Na verdadc, porern, e possfvel que a rnenina da estorianaQ tenha inspecionado uma amostra significativa. 0 g e n e -10 , nos scres hurnanos, nao e simplesmente uma variaveldicot6mica . Nern sequer e uma variavel continua, pois, sefosse, nossa vida . arnorosa seria ainda mais complicacla do

    2 2

    ..que ja e .Urn ruirnero bastanteextenso de seres humanossac clararnente intersexuais.,e em alguns a inrersexualidade -

    chega a tal ponto que eles apresentam os dois tipos degenitalia externa, au 0 crescimento'de seios ocorre em urnlndividuo com genitalia masculina, ou outras ocorrenciassernelhantes. Isso cria certos problemas para a biologia,problemas sobre os quais vem-se obtendo algum progressono mornento. Cria tambem alguns problemas para 0 bornsense, para a cede de concepcoes praticas e morais que foitecida ao redor de uma das rnais enraizadas das verdades.aparentes: masculinidade e feminilidade. Portanto, a inter-sexualidade e mais que uma surpresa empiric a; ela e urndesafio cultural.

    Urn desaflo que e enfrentado de arias maneiras. Osromanos, ' relata Edgerton, consideravam os infantes interse-xuais como seres amaldicoados pelos poderes supcrnatu-rais, e os eliminavam. Os gregos, como era seu costume,

    .tinham uma visao rnais aberta e, embora considerasscm estetipo de pessoa peculiar, atribuiarn sua existencia a mais umadessas coisas estranhas que acontccern e as deixava vivcrsuas vidas sern estigmas exagerados - afinal de contas, Her-mafrodito, 0 mho de Hermes eAfrodite, que se uniu em urn

    56 corpo com uma ninfa, tinha estabelecido urn preccdentebasrante importante. 0 artigo de Edgerton, na verdade, giraem torno de UIU contraste fascinante entre tres respostasbastante variadas ao fenomeno da inrcrsexualidade - a nor-te-arnericana, a dos navajo c adds poker (esta ultima, lima

    tribo do' Qucnia) - que sac examinadas em terrnos dasconcepcoes que 0 born senso desses povos contern, comrespeito ao genero dos sercs hurnanos e seu Lugarmals geralna natureza. Como de sugere, pessoas diferentes reagern deformas dif ercntes ao se confrontarern com indivfduos cujoscorpos sac sexualmente anomalos, mas nenhuma delaspode sirnplesmente ignorar a anomalia. Sc 0 objetivo emanter intactas as ideias herdadas sobre 0 que c normal enatural , algo deve ser dito sobre as cnormes divergencias

    2 3

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    9/17

    t,

    que existern entre as tres formas de lidar com a inrersexua.lidade.

    Os norte-~mericanos veern a intel'se.x:ualidade com urnscntimenro que so pode ser classificado Como horror. Comodiz Edgerton, as pessoas shegam a sentir nausea corn a meravisao da genitalia de um intersexual ou ate ao ouvir falarsobre iniersexualidade. Como urn enigma moral e legal ,Edgerton continua, existern 'poucos iguais . Um intersexualpode casar? 0 servico militar e relevante? Que scxo sera 'registrado na cerndao de nascimento? E possivel rnudar asexo desta pessoa de uma forma adcquadar E psicolo- .glcamente aconselhivel, ou mesmo viave], que urna pessoaque foi cnada como uma menina, de repente se torne urn

    . rrienino] Como e que um intersexual pode secomportar noschuveiros da escola, ou em banhos publicos, ou no namoro?Obviamentc, 0 senso cornum chegou ao limite de suasforcas . ..

    A reacao e ericorajar a inrersexual, norrnalrnenre comgrande veernencia e as vezes coin algo mais que isso, a ado tarurn dos dois papers, 0 masculino ou 0 feminino. Par issomuitos irrtersexuais passam por normals a vida inteira, um

    comportamento que exigc umsemnumero de estratagemascuidadosamente preparados . Outros buscam por sr rnesrnos .

    ou sac forcados a se submctere~n a operacoes que cord-gem suacondicao, pelo menos'cosmeticamentc, e se trans-formam emhomcns ou rmrlheres legftimos . Fora deesp'etactalos circenses, 56. perroitimos uma solucao para 0

    dilerna da intcrseXualidade, uma solucao que 0 intersexual '

    e forcado a adotar para acalrnar a sensibi1idade dos dcrnais. Todas as pessoas envolvidas , escreve Edgerton, de pais a

    . medicos, sao induzidas a descobrir em qual dos dois scxosnaturals 0 intersexualse encaixa de forma mais adequada, e

    a ajudar ao ambiguo, incongruo e enervante it a trans forrnar-

    se em urn ele ou em 'uma ela que seja pelo menos parcial-mente aceitavel . Em suma, se os fatos nao estfio a altura desuasexpectatlvas, mude os fatos, ou, se isto nao e possivcl,pelo mcnos disfarce-os ,

    124

    ~ .

    , . -

    e Ate aqui 0 que fazem os selvagens. Voltando-nos para osnavajo, entre os quais w. w.Hill fez um estudo sistematico dohermafroditismo, ;a em 1935, vemos que 0 quadro e bastan-te diferente . Para cles tambem, a intersexualidadc e anormal,e clare, mas, ao inves de provocar horror e nojo, evocaadrniracao e respeito. 0 intersexual e visto como alguern que 'recebcu uma beucao divma e que passa esta bencao paraoutras pessoas. Nao s6 sac respcltados, sfio praticamenteadorados , Eles sabem tudo , diz um dos inforrnautes de

    Hill, podern fazer tanto 0 trabalho de urn homern como 0de uma mulher , Acho que-quando des (os Intersexuats)desaparecerern, sed. 0 fim dos navajo. Outro informantedeclara: USenao existissem intcrsexuais, a riacao mudaria .Elcs sac respousaveis pOl' toda a riqueza cia nacao. Se nfio

    houvesse mais nenhum deles, os cavalos, os carneiros e osnavajo itarnbem desapareccriaru. Eles sao lideres, assim

    como 0 presidcnte Roosevelt . Diz urn terceiro informantc: Urn (intersexual) na cabana navaja traz boa SOl tC e riquezas .E muito irnportante pan a nacao tel ' um (Intersexual) porperm. E assim por diantc.

    o born senso dos navajo, portanto, v e a anomalia daintersexualidade - pois, como disse anterlormente, aos 0-

    lhos dos navajo 0 intersexual nao pareee menos anomalo

    que aos nossos olhos, pois a intersexualidade nao umaanornalia rnenor entre des - sob uma luz bastante diferentedaque1a sob a qual nos a vemos. A inrerpretacao da interse-xualidade, . nao como urn horror mas sim como urna benc;ii.o,concluz a uma serie de conecitos que, para nos, siio taoestranhos como 0 dizer que 0 adulterio causa acidentes na

    caca, ou que 0 incesto causa lepra. Para' a s navajo, noentanto, estes conceitos sac 0 tipo de coisa que qualquerpessoa com a cabeca no Ingar tem, obrigatorlamente, que

    acharcorrcto. Acredttam, por exernplo, que se ps genitals deurn animal intersexual (que tambern sac muiro valorizados)sac esfregados na cauda das ove1has e das cabras, e depoisnas narinas dos carneiros e dos bodes, 0 rebanho cresce e

    produz mais leite. Ou que pessoas intersexuais devem sel'

    .~ .

    25

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    10/17

    chefes de familia e tercontrole total sobre as propriedadesfamiliares, pois assim essas propriedades tambern aurnenta-rao . Muda-se umaspoucas .interpreta~6es sobre uns poucos.fatos curiosos, e rnuda-se, pelo menos neste caso, toda urna

    forma de pensaco Njio mais ayerigue-e-rcsolva, mas sim ad-mire-e-respeire,

    Fina1mente,a tribo do LesteAfricano, os pokot, tern aindauma terceira visao da intersexualidade .Como as norte.ameri- canos, nao valorizam as intersexuais: mas, como as navajo, naose ofend em ou ficam horrorizados com sua existencia , Consi-derarn-os, de uma forma bastante casual, como meres erros ,Sao como urn pote quebrado, imagern aparentemente rnuitopopular na Africa, Deus errou , dlzem eles, em vcz de aflrrnar

    que as deuses nos propiciaram urn presente maravilhoso 0\.1que estarnos diante de urn monstro inclassificavel .

    Os pokot -acharn que 0 intersexual e inutil - njio podereproduzn- e assirn aurnenrar a patrilineaddade como urnhomern normal, nem pode te ,r um dote como qualquermulher normal. Nern sequer pode se entregac aquilo que aspokot consideram a coisa que da rnaior prazer , 0 SCXo .Muitas vezes crianc;as intersexuais sao mortas, COll1 a mes~adespreocupacao com a qual se jogaria fora urn pote malfeito

    (microcefalicos,infantes sem membros, ou animals quenascam com deforrnacoes profundas tarnbem sao assassina-dos); outras vezes, com urnaatitude Igualmeute despr'cocu.pada, lhes perrnitem viver . A s vidas que Ievam .siid bastantedesgracadas, mas nao sao parias - simplesmente sao' ignora-dos ou solitarios, e tratados com it indiferenca com que setratam 'objetos, principalmente objetos malfeitos. Economi-camente falando, sua .situacao e rnelhor que a de um pokatnormal, pois nao sofrern as dernandas financeiras do paren-tesco que dreriam as riquezas, nem tern as dlstracoes da vidafamiliar que prejudicam 0 acumulo destas, Nessa linhagemsegmentar aparcntemente tipica, e e lll urn sistema ondeconta a riqueza da noiva, os intersexuals niio tern urn lugarespecfflco. Quem precis a dcles?

    26

    -T I\

    . j.

    .~:',

    .. .....~.

    ~

    Um dos casos considerados por Edgerton confessa ser 'profundamente infeliz, Bu s6 durrno, como e trabalho, Quemais posso fazer? Deus errou. Eurn outre diz: Deus me f ez.assim . Nao hi nada que eu possa fazer . Todos os outros

    podem viver como .um pokot . Eu nao sou um verdadeiropokot. Em urna sociedade onde 0 born senso estigmatiza,considerando ate um homern que tenha orgaos normals masnao tenha filhos como uma Qgura Iastimavel, e onde umamulher esteril nao chega a serconsiderada uma pessoa, avida de urn intersexual e .a propria imagern da futilidade. Elee inutil em uma sociedade que, considerando utll qualqu ercoisa que se relacione com gado, esposas e filhos, valoriza a utilidade ao extrerno.

    i :

    ; :

    Em suma, a provisao de certos dados nao significa quetodo 0 demais e mer a consequencia. 0 born scnso nao caquilo que uma mente livre de artificlalismo apreende cs-pontaneamenre; e.aquilo que uma mente replcta de prcssu-posicoes - a sexo e uma forca que desorgaruza, ou urn dom .que regenera,ou urn prazer prati~o. - conclui, Deus pode terfeito os intersexuais , mas 0 homern fez 0 resto.

    ~ .,..

    Isso nao e tudo, porem. 0 que 0 homem fez foi uma. .

    estoria autoritaria. Como 0 Rei Lear, ou 0 Novo Testamento,ou mecanica quantum, a bom senso e umaforma de explicaros fatos da vida que aftrma ter 0 poder de chegar ao amagodesses fatos '. Na verdade, e algo assim como urn adversari onatural das estorias mais sofisticadas, quando cssas existem,c, quando nao existern, das narrativas fantasmagoricas desonhos e mitos . Como uma estrurura para 0 pensamento,ou uma especie de pensamento, 0 born senso e tao autori-tario quanta qualquer outre: neuhuma rellgiiio e mais dog-matica, nenhuma ciencia mais arnbiciosa, nenhurna filosofiamais abrangentc, as tons que apresentam sao difercntcs, etambcm sao distintos os argumentos com os quais se justifi-cam, mas, como essas outras areas - ou como a arte e a

    27

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    11/17

    ideologia - 0 born senso tem a pretensao de ir alem da ilusaopara chegar a verdade, Oll, como costumarnos dizer, chegar , ~as coisas corno elas realrnente sao. Sernpre que um fil6sofodiz que algurna coisa e 'realmente real' , para citaf uma vezmais aquele moderno e f lmoso defensor do born sensei, G.E.Moore, voce pode estar realmente certo de que 0 que eledisse ser 'realmcnte real' nfio creal, real mente. Quando urnMoore, urn dr, Johnson, urn olciro azandiano, ou urn herrna-frodita pokot dizern que alguma coisa e real, flque certodeque eles estao falando serio.

    Eo pior e que sabernos multo bem disso. E precisamentenos tons - no tipo de sorn que suas observacoes expres-sam, ria visao do mundo que suas conclusoes refletern - queas diferencas do born senso devern ser procuradas. 0 con-ceito propriamente dito, como uma catcgoria fixa e ctiquc-tada, urn dominio semantico fechado, nj io e , obviamente,universal; no cntanto , assirn como a religiao, a arte, e asdernais disciplinasr.e rnais ou menos parte desta nossa formacotidiana de distinguir osgeneros da expressao cultural . E,como vimos, seu conteudo real, assim como 0 contcudo dareligifio, da arte e das dernais areas, varia tao radicalmentede um Iugar ou periodo para outros lugares ou periodos,que nao nos deixa muita esperanca de dcscobrir uma uni-

    forrnidade em sua definicao e contcudo, uma cstoria originalque seja scmpre repctida. S6 e possivel caracterizar transcul-turalrnenre 0 born sensa (ou qualquer urn dos outros gene-ros scme1hantes) isolando 0 que poderia ser chamado descus elementos estilfsticos, as rnarcas da atitude que lhc daseu cunho especlftco. Como a voz- da devoc;ao ; a voz dasanidadc soa de forma muito sernelhante, seja 0 que for quediga; a coisa que 0 saber cotidiano tern em cornum, ondequer que se manifeste, e 0 jeito irritante de saber c o tidianocom que e dito .' ,

    Como exatarnente formulae a especificidade destes ele-mentos estilisticos, dessas marcas da atirude, dessas variacoesde tonalidade - ou qu alquer outro nome que Ihcs queiramos

    128 .

    -.~

    29

    dar - e UJn tanto ou quanto problemauco, pois nao existeum vocabulario ja elaborado com 0

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    12/17

    adcquada, aparentemente. creern que a ferninilldade e amasculinidadeesgotam as categorias naturals que podemser atribuidas aos seres humanos rqualquer colsa enfre urn

    e outro e a escuridao, e uma of ens a a razao, .

    No entanto, ; ;J .naturalidade como uma das caracteristicas .dotipo de cstorias sobre a realldade a que danlOs o .norne

    de born scnso, po de set ' melhor apreciada em exemplos

    menos extraordinarios, Entre os aborigines australianos,para escolher aleatorlamentc urn exemplo entre muitos,

    todo urn conjunto de elementos da paisagern flsica - princi-palrnente cangurus, casuares, larvas de mariposa, e outras

    coisas semelhantes - sac considerados produtos das ativida-des de antepassados toternicos durante aquele tempo-fora-

    do-tempo qU ,e, em lngles, charna-se the dreaming [0 .

    sonhar] . Como observou Nancy Munn, na visao dos aborf-gines, ' esta . transformacao de antepassados humanos emelementos da natureza ocorre pelo menos de tres manciras.atraves da rnetamorfose proprlamente dita, quando 0 corpo

    de urn antepassado se transforma em urn objeto material;por impressao, ou seja, quando 0 antepassado deixa a marca de seu corpo ou de algum outro instrumento que usa; e par

    meio daquUo que ela chama de externalizacao, quando 0

    . antepassaclo retira algum objeto de seu proprio corpo e sedesfaz delco Assim, uma celina rochosa ou ate mcsrno uma

    . pedra podem ser considerados um autepassado .cristalizado( ele nao morreu , dizem os inforrnantes. apenas parou dese movimentar e 'tornou-se a nacao' ) j urn poco natural,' ou

    ate urn campo inteiro, podem ser a marca deixada pelas

    nadegas de urn ancestral que, passeaudo par ali, sentou-separa descansar exatamente naquele Lugar;e varies outros

    tipos de objetos materia is - cruzes de barbante ou pedacosde madeira de forma oval - foram desenhados par algumcanguru ou cobra primitivos com seus venires respectivos e deixados para tras quando esses continuararn seu cami-nho. Sern aprofundar-nos nos detalhes de todas cstas cren- .

    cas (que sac profundamcnte complexus), a mundo externocom que os aborigines se confrontam nao e nem uma .

    130

    ... . .

    ....

    ~ .~ ,

    realidade em branco, nern alguma especie complexa de

    abjeto me tafis1 comas sun 0 produto natural de eventos

    transn aturais. . . .

    o que demonstra este exemplo espedfico, aqui descritotao eUpticamente, ~ que a naturalidade que, como urnapropriedade modal, caracteriza 0 born senso, nao depende,

    ou pelo rnenos nao depende nccessariamente, daquilo que

    chamarfarnos de naturalismo fllosoflco - ou seja, a vlsaosegundo a qual njio existe nada no ceu ou na terra que naopossa ser lmaginado pela mente temporal. Na verdade, para

    os aborigines, bern assit~ como para as navajo, a naturalida-,de do mundo cotidiano e uma expressao direta, uma resul-tante de uma parte do ' ser a qual sc atribui urn con junto

    bastante diferente de quase-qualidades - grandiosidadc ,

    seriedade , misterio , diversidade''. Aos olhos aborigines,o faro de que os fenornenos naturals de seu mundo fisicosac 0 que restou das a

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    13/17

    hornern comum nao v e essa aflrrnacao como parte de umateoria cientifica articulada, e sim como urn pouco de horn -

    senso. Elepode ter ultrapassadoo estagio de alirnente 0resfriado para matar a febre de forne mas s6 chegou ate escove os dentes duas vezes ao dia e visite 0 dentista duasvezes por ano , Podemos argumentar.que 0 mesmo succdecom a arte - nao havia nevoeiro em Londres ate que Whistlelo pintou, e assim par diantc. A naturalidade que as conceitosdo born sense dao a seja la ao que for que eles dao natura-

    lidade - heber agua em corregos rapidos ernelhor que beber- agua em c6rregos lentos, ou nao fiear no meio de multidoes

    quando existe uma epidernia de gripe - pode depender deoutros tipos bem diferentes de vers6es estranhas sobre 0funcionamento das coisas (tambern, e claro, pode ndo serbern assim: a aflrmacao de que 0 homem tera problemasquando asandorinhas levantarn voo sera tanto mais persua-siva quanto maior for nossa experiencia de vida, e 0 tempoque tivermos para descobrlr como ela e terrivelrncnte verda-deira).

    Asegunda caracterfstica, praticabilidade , pode ser rnaisfacilmente observavel a olho nuque as outras em rninha lista, .porque, normalmente, quando dizernos que um individuo,uma acao, ou um projeto demonstrarn faLta de bom senso,

    o que queremos realmente dizer e que niio sac pr riticos . .0indivfduo, mais cedo ou mais tarde, vai tel' que despertarpara a realidade, a acao esta caminhando rapidamente parao fracasso e 0 projeto nao vai funcionar, Mas, justamenteporquc parece tao mais 6bvia, essa quase-qualidade e maissuscetivel de ser interpretada erroneamente:. Pais nfio setrata aqui de praticabilidade no scntido estritamente prag-matico de utilidade , mas sirn, em UIU sentido mais ample,aquilo que, na filosofia popular, seria chamado de sagacida-

    . de. Quando aconselhamos alguern a ser sensato , nossaI

    intencao nao e tanto dizer que .ele deve se tornar urn-utilitario, mas sim que ele deve ser rnais vivo : rnais pruden--te, mais equilibrado, nao perder a bola de-vista, uaocomprargato por lebre, nfio chegar multo perto de cavalos lentos au

    32

    .

    d emulheres rapidas, enfim, deix:ar que os mortos enterremas mortos,

    Como parte da discussao rnais ampla que mencionei

    auteriormente, sobre os invcntarios culturais de povos mais

    simples , existiu uma especie de debate sobre se primltivostem quaIquer interesse ern assuntos empiricos que nao serelacloncm, e nao se relacionem.de forma bastante dircta,

    com seus objetivos materiats imediatos . Esta e a visao - istoe, que des ndo tem interesse - bastanre aceita por Malinows-ki, e que Evans-Pritchard utiliza, em uma passagem. quedcliberadamente omiti :quando 0 citei acima, referindo-seaos azande. Eles tern um profundo conhecimento praticoda parte da natureza que se relaciona com seu bcm-estar .Quanto ao restantevnfio tem para eles nenhurn interessecientfflco ou apelo sentimental. Discordando desta afirrna-1;3.0, outros antropologos, dos quais Levi-Strauss e , se nao 0primeiro, pelo menos 0 mais enfatjco, argumentaram que prlmitivos , selvagens , au seja hi quaLfor 0 nome que lhcsdeem, elaboram e ate sisternatizarn conjuntos de conheci-

    mentes cmplricos que nao parecem ter qualqucr utilidadepratica para des. Algumas tribos das Filipinas conscguerndistinguir mais de seiscentos tipos de plantas, a que atribui-ram names, arnaioria das quais nao sao ~em utilizadas, nem

    utilizaveis, e algumas delas s6 sac encontradas rararnente.Os indios americanos do nordeste dos Estados Unidos e doCanada possuem uma taxonornia elaborada de especies derepteis q~e eles nao comem nern vendem. Alguns Indios dosudeste - os pueblanos - dcram nomes a todas as especies

    de arvores coniferas da regiao, sendo que amaior parte delassao tao semelhantes que mal se distinguern uma das outras,e nenhuma oferece qualquer lucro material aos indios. Os

    . pigmeus do Sudeste Asidtico sao capazes de distinguir ostipos de folha das quais sc nutrern mais de quinze especiesde morcegos diferentes. Em oposicao ao utllttananismoprimitivoda visao de Evans-Pritchard - aprenda rudo aquilo .

    cujo conhecimento Ihe traz algum lucro e deixe 0 restante

    pa~a a fetticaria - temos a visao inte1ectual primitiva de

    3 3

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    14/17

    Levi-Strauss - aprenda tudo que sua mente 0 induza aaprender e classifique este conhecimento em categorias. E :possivcl que repliquem , escreveu Levi-Strauss, q ue urnaciencia deste tipo (isto e classiflcacao botanica, observacoesherpetologicas, etc.j .pode nao ter um resultado multo pra-

    tico. A res posta para isso e que scu objetivo principal nao epraCi~o . Ela atende as demandas do inte1c :ctomais que, ou

    em vez de, a satisfacao de necessidades [materials].E quase certoque hoje existe urn consenso erntorno do

    argumento desenvolvido por Levi-Strauss ' que discorda davisao de Evans-P'ritcha~d - os primitives teminteresse em

    varias coisas que nao sao uteis nem para seus planos de vida,nero para seus estomagos, Porern, isto nao {;tudo 0 que s~tern a dizer sobre 0 assunto. Pois esses povos nao classificamaquelas plantas todas, nem distinguern tantas especies decobras ou categorizam urn mimero enorrne de tipos demorcegos, simplesmente porque sentem alguma palxao cog-nitiva avassaladora que emana das estruturas inatas localiza- .

    das no fundo de sua mente . Em urn meio ambiente povoado

    de arvores coniferas, cobras ou morcegos que comem folhas,

    e pratico saber tudo que se pode saber sobrearvores coni-feras, cobras ou morcegos que comern folhas, se]a este '

    conhecimento materialmente util no sentido exato da pala-vra ou nao, pois a praticabilidade de que falamos consisteprecisarnente neste tipo de conhecimento. A praticabilida-de do senso comurn, e tarnbern sua naturalidade sacqualidades que 0 proprio born senso outorga aos objetos c

    nao que os objetos outorgam ao born senso : Se, para nos,cxaminar urn programa de corrida de cavalos pode parecer

    uma atividade pratica e cacar borboletas nao, nao e porqueo primeiro e lillie 0 segundo nao oe; a razao e que 0primeiro e visto como resultado de urn esforco, ainda quemfnirno, que devera ser f eito para que possarnos saberexatamente 0 que e que; a segunda atividade, entretanto,por mais cncantadora que seja, naoexige maior esforco ,

    34

    Aterceira das quase-qualidades que 0 bom senso atribui

    a realidade, leveza , e, CO.lUb modestia em urn queijo,bastante diflcil de formular emtermos rnais explicitos. Sirn-plicidade , ou mesmov'literalidade podem servir tao bem

    quanta leveza , ou ate expressar melhor a ideia , pols trata-'se aqui daquela vocacaoque 0 born senso tern , para ver eapresentar este ou aquele assunto como se fossem exata-

    mente a que parecern ser, nem rnais nem menos. A frase deButler que citei acima - tudo e aquilo que e, e nenhurnaoutra coisa - 'expressa essaqualidade perfeitarnente . 0

    mundo e aquilo que uma pessoa bern desperta e sern rnuitascomplicacoes acha que e . Sobriedade, e nao surileza, realis-mo, e nao irnaginacao, sac as chaves para a sabedoria; os

    fatos que realmente importam na vida estao espalhados pela~ ' supcrflcie, e nao escondidos dlssimuladamente em suas

    profundezas. Nao e precise, e mais, e um erro fatal, llegar aobviedade do obvio, como fazem com tanra frequencia ospoetas, intelecru a is, padres e outros cornplicadores do mun -do por profissao. Como diz urn proverbio holandes, a ver-

    dade e tao simples como a agua clara.

    Alern disso, como os filosofos exageradamcnte sutis deMoore que tinham discussoes profundas sobrc a realidade,

    us antropologos frequenterneute constrocrn complexidadesconceuuais que des rnesmos passarn adiantc como se fos -sem fates culturais, pela simples razao de que nfioentende-ram que muito do que lhes tiuha sido dito por seus

    inforrnantes, ainda que soasse estranho a seus ouvidos edu -cados, era literal . Alguns dos bcns mais irnportantes no

    111Undonao estao escondldos sob uma mascara de aparenciaenganosa, nem sao coisas que dccluzimos grac;asa sugestoesdlscretas ou declfrarnos pOl meio de sinais equivocos. Acre

    .dita-se que des estejarn bem ali, onde pedras, maos, cana -lhas e trifingulos cr6ticos estfio, invisfveis apenas paraaqueles que sao inteligentes . Leva-se algum tempo (ou pelo

    menos eu level algum tempo) para cntendcr que, quandorodos os membros da familia de um rnenino javanes m e

    di z lam' que de tinha caido de uma more c quebrado a

    35

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    15/17

    perna, porque seu avo, ja falecido, 0 tinha puxado, ja que afamilia tinha esquecido de curnprir uma obrigacao ritual que

    era devida a este avo, para des, aquilo era 0 comeco, C? meloe 0 fim do assunro, era exatamente 0 que des achavam que

    tinha acontecido, era tudo que eles achavam que .tinhaacontecid,o , e ficararn perplexes com 0 fato de eu estar

    p erplexo per cles nao dernonstrarem a rnenor perplexidade.

    E quando, em Java, depots de escutar uma estorla longa e ..complicada coritadapor urna camponesa velhae analfabeta~ urn tipo classlco se e que existem tipos classicos - sobre 0papel que a cobra do dia desernpenha quando os javaneses

    . querern saber se e ou nao aconselhavel viajar, dar uma festa,ou contrair matrimonio (a est6ria era , na verdade, uma serie

    .

    de relatos deliciosos sobre as tragcdias que haviarn ocorrldo- carruagens que virararn, tumoresque apareccram, fortu-nas qu e s e dissolveram - quando tinham ignorado a cobra)perguntei como era essa cobra do dia, ' e 0 que ouvi fOi: Naoseja bobo a genre nao pode ver a terca -feira, pode? , come-cei a perceber que ate as coisas que sac evidentes 56 SaDevident es aos olhos dos que as cstao vendo. A frase 0mundo se divide em fatos pode tel hi seus defeitos como

    . um slogan filos6fico au urn credo cientffico; mas c grafica-mente exato, como um epitome da leveza - simplicidade , Iiteralidade - que 0 bom sensa imprime a experiencta.

    Quanto a nao-metodicidade , a outra qualidade a qualtambern nao demos urn nome la multo adequado que oseonceitos resultantes do born senso atribuem ao mundo,esta serve sirnulraneani.ente aos prazeres da inconsistencia -tao reais para toclos os seres humanosque nao sejam cxage-radamente academicos (como disse Emerson: uma consis-tencia descabida e 0 dernonio das mentes pequenas ; ou,nas palavras de Whitman : Eu me contradigo, portanto, eume-eonsradigo. Contenho as rnultid6cs ) - e aqueles outros

    . prazeres sernelhantes, tarnbem sentidos por todos as ho-mens a nfio ser os cxageradarnente obsessives, que ternorigem na diversidade insubmissa da vida ( 0 mundo esta

    replete de urn numero de coisas , ' :A ,vida eum raio de coisas

    3 6

    . _ . uma atras das outras ; Se voce acha que entendeu a situa- :cao, isso s6 prova que ,voce esta mal informado ) . 0 saberdo bom senso e , descarada e ostensivamente, ad boc. Vemna forma de epigramas, proverbios, obiter dicta piadas,relatos, contes morals -:- uma rnistura de dita~ gnomicos - e

    naoem doutrinas formals, tcoriasaxiomaticas, .ou dogmasarquitetonicosvSilone disse em algum lugar que os campo-

    neses do sul da Italia passarn a vida Intercarnbiando prover-bios como se estes fossem .presentes valiosos . Asforrnas em .

    que 0 born senso se apresenta, em outras part e s do mundo,

    varia: ditos esplrituosos mais trabalhados, como ala Wllde,versos dldaticos a LaPope, au f:ibulas com animals a LaFontaine: e entre os classicos chineses, talvezfossem citacoesernbalsamadas . Seja Ii quaLfora forma em que se apresen-

    tern, nfio e sua consistencia interna que os torna recornen-daveis, mas precisamente 0 extreme oposto: Antes quecases, que fazes mas Dells ajuda a quem cedo madru-

    . ga ; Remenda pano, e dura urn ano remenda outra neze dura urn. mes mas 0 que se leua dessa oida 0 que secome e 0 que se bebe e assirn par diante . Alias, e .nestamaneira sentcnciosa de falar - que, em certo scntido, e afonna paradigmatica da sabedorla popular - que a nao-me-todicldade do bom senso se destaca mais vividarnente.

    Corne exernplo, considere 0 seguinte feixe de proverbios

    Ba-Ha que extrai de Paul Radin (que, por sua vez, as extraiude Smith and Dale):

    Cresca e entfio conheceras as coisasdo mundo .Irrite seus medicos e asdoencas sairiiorindo .A vac a prodlga jogou fora seu proprio rabo .E a luena prudeute que vivernaistempo.o deus que fala ganha a carne .Voce .pode se lavar, mas isso nfio quer dizer que voce vaideixar de ser escravo.Quando a mulher de urn chefe rouba, ela culpa 05 escravos .E ma isfacil construir comuma bruxado quecom lima pessoade linguafalsa, pols este destrol a comunldade.Ii mclhor ajudar um homem que esra lutando do que urnhornernfaminto, pols .este hao tern nenhuma graudao,

    . : ~

    37

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    16/17

    E assirn per ~iante. E urn tipo de po t-pourri de conceitosdiscrepantes - que, como os anteriores, nao sac necessa-

    . dame rite, nem mesmo norrnalmente, express os como . pro-verbios - que, em geral, nao socaracterizam os sistemas do

    born senso como tambem, e principalmente; os tarnal?capazes de captar a enortnevaricdade dos tiposde vida que

    exlstem no mundo. Alias,os proprios Ba-Ila tern urn prover-bio que expressa jusramente isso: ~ sabedoria sai de urnmorro de formigas .

    A ultima quase-qualidade ~ ultima aqui, mas certamentenao na vida real- a acessibilidade surge como uma conse- 'quencia 16gicadas outras na medida em que estas saoreconhecidas, Acessibilldade e simplesmente a presuncao,na verdade a insistencia, de que qualquer pessoa, com suasfaculdades razoavelmente intaetas, pode captar as condus6esdo born sensa, e, se estas forem apresentadas de umamaneira suficientemcnte verossirnel, ate mesmo adota-las. Eclaro que hi uma tendencia a que se considcre algumaspessoas - geralmente as rnals velhos, algumas yezes ossofredores, ocasionalrnente aqucles que sac simples mentegrandiloquentes - mais sabias que outras, naquele tipo desabedoria do ja passel por tudo lsso , Por Dutro lado, dlz-se

    das criancas, e, com bastante frequencia, das rnulheres, eainda, dcpendendo dotipo de sociedade, dasvarlas especiesde menos privilcgiados, que sao menos sabias que as outraspessoas. A isso acresccnta-se a explicacao de que sao cria-turns emoclonais''. Apesar dessas atribuic;6es, ' nao sc podedizer que existam cspecialistas em born sense reconhecidoscomo tal. Todos acham que sio peritos no assunto. Sendocornurn, 0 born senso esta aberto para todos: e propricdadegeral de, pelo menos - como dirlamos - todos as cidadaosestavels.

    Na verdade, seu tom e ate antiespecialista, se nao forantiintelectual, rejeitamos, e pelo que tenho observado,outras pessoas tambem rejeitam, qualquer reivindlcacaoexplicita de poderes especiais nesta area. Paraeste saber nao .

    138

    , .

    s.

    '.

    existe qualquer conhecimento esoterico , nern tecnicas espe-ciais e talentos especfficos, e pouco Q U nenhum treinarnento

    especializado, a nao ser aquilo que, de forma mais ou menosredundante, chamamos de experiencia, e, de forma mais ou

    menosrnisteriosa, de maturidade. Para expressa-lo de outramaneira, 0 bom sensa representa o rnundocorno urn mundofamillar, que todos podem e devem reconhecer; e ondetodos 'sao,ou deveriam ser, independentes. 'Para viver na-queles suburbios que chamamos de fisica,ou islarnisrno, oudireito, au rmisica, ou socialismo, e precise satisfazer algu-mas exigencias, e nern todas as casas estabelecem 0 rnesrnotipo de imposicao. Para viver nesse semi-suburbto que sechama bom senso, onde todas as casas sao sans Jat;on,prccisamos unicamente - como se dizia em au tras epocas _estar em jufzo perfeito e ter uma consciencia pratica, deacordo com a definlcao que as cidades de pensamento clinguagem espedficos, de onde somas cidadaos, deem aessas virtu des tfio Iaudavels.

    IV

    Como comecamos este capitulo com uma pictografia deruas sem safda e avenidas, extraida de Wittgenstein, serabastante apropriado terrninarcorn uma outra, que e aindamais resumida: Vemos uma estrada reta a nossa frcnte, mase claro que nao podemos utiliza-la pois esta permanenre-

    Z mente fechada .

    Se quiscrrnos demonstrar , ou mesmo sugerir (que c tudoo que me foi possivel fazer) que 0 born senso e urn sistemacultural, e que ele possui uma ordem unica, passfvcl de serdescoberta ernpiricamente e forrnulada conceptualrnente,nao 0 faremos atraves de uma sisternatizacao de seu conteu-do, pois este e profundarnente heterogeneo, nao 56 nasvarias sociedades, como em uma mesma sociedade - asabedoria de urn morro de forrnigas. 'Iarnbem nao sera viavcl

    2 . Wittgenstein, Pbilosopbical Investigations, p . 117.

    3 9

  • 8/10/2019 GEERTZ, Clifford, O Senso Comum Como Sistema Cultural. in. O Saber Local, Novos Estudos Em Antropologia Interpretativa, Petrpolis, Vozes, 1997. (1)

    17/17

    esbocar algum tipo de estrutura 16gica que seria adotadapelo senso comum onde quer que este se aprescnte, poisessa nao existe . Nem sequer poderemos elaborar urn suma -

    rio de conc1us6es substantivas a que 0 senso cornum sernpre

    nos faz chegar , pois neste caso tampouco existe urn padrao,

    o unico procedirnento que nos resta, portanto, codetomarmos 0 desvio especiflco de evocar 0 sorn e os variestons que sac gcralmente reconhecidos como pertencentesao sense. cornum, aqueLa ruazinha paralela que nos leva a

    construir predicados metaforicos - nocoes aproximadas,como a de leveza - para podermos lembrar as pessoas ,aquilo que ja sabern. Mudando a imagem, o .senso cornurntern algo assim como a sindrorne dos objetos invisiveis: estaotao obviamente diante dos nossos cilhos, que e impossivelcncontra-los .

    Para nos, a c ie nc ia, a a rte, a id eo lo gia ,0 d ire ito , a r elig ia o ,a tecnologia, a rnatematica, e, hoje em dia, ate a etica e aepistemologia sao tao frcquenternente considerados gene-ros da expressao cultural, que isso nos leva a indagar (e aindagar, e a indagar) ate que _ ponto as povos as possuern e,se as possuem, qual e a forma que tomam, e, dada esta forma,como podem iluminar a versao que temos desses generos .

    .0 mesmo nao acontece com 0 senso comum. Este nosparece ser aquilo que resta quando todos os tipos maisarticulados de sistemas simb6licos esgotaram suas tarefas,au aquilo gue sobra da razao quando suas facanhas matssofistlcadas sac postas de lado. as se isto 11aO e verdade, esee capaz de distinguir giz de quei]o, au uma tomada eletricade urn focinha suino, au seu proprio anus de seu cotovelo(a .capacidade 'de ser pe-na-terra poderia ser outra quase - 'qualidade atribufda ao scnso comum) tambem forem consl-derados talentos tao positivos, ainda que njio tao grandlosos ,corno .o ser capaz de apreciar motetes, acompanhar urn

    argumento loglco, manter urn contrato formal, ou dernolir~ a capitalisma- todos estes dependentes de tradicoes de

    pcnsamento e sensibilidade claboradas - entao a investi-

    gacao comparativa da habilidade natural de evitarrnos as

    4

    . ...p',:

    .II

    a - .imposicoes de contradicoes grosseiras, inconsistencias pal-paveis, e obvias falsificacoes (segundo a definicao de sensocomum da Hlstoria Secreta da Uniuersidade de Oxford ,publicada em 1726) deveria ser cultivada de uma forma mais

    . deliberada .

    :1 Para a antropologia, tal iniciativa paden significar novasformas de examinarproblernas antigos, principalmente osque se relacionam com a maneira como a cultura e articuladae fundida, e uma mudanca (que alias teve inicio h abastantetempo) que a distaneie de expllcacoes funcianalistas sabreos mecanismas dos quais dependern a s socicdades, e aaproxime de metodos que a auxiliem a interpretar as formasde vida existentes nos varies tipos de sociedade. Para afllosofla, no entanto, as efcitos podern ser inais series, pais

    possivelmentc afetarfio urn conceitusemi-examlnado quelhee multo caro. Aquila que, para a antropologia, a maismatrelra dasdisciplinas, seria apenas a mals recente em umalonga serie de mudancas de enfoque, para a filosofla, adisciplina que rnais se assernelha a urn porco-espinho, po-

    dera significar urn abalo total .

    l41