10
Genealogia da Malandragem O brasileiro sempre tem um "jeitinho" para tudo. Saiba que relação existe entre a peculiar malandragem do brasileiro e a construção da Ética e da moral na visão de nietzsche Por João E. Neto Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política. É curioso, no entanto, que boa parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos

Genealogia da Malandragem - site-carlos.s3.amazonaws.com · ... paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos. Ao contrário dos personagens malandros de nossa história,

Embed Size (px)

Citation preview

Genealogia da MalandragemO brasileiro sempre tem um "jeitinho" para tudo. Saiba que relação existe entre a peculiar malandragem do brasileiro e a

construção da Ética e da moral na visão de nietzsche

Por João E. Neto

Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada

acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política. É curioso, no entanto, que boa

parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios

que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao

jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais

tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos

Ao contrário dos personagens malandros de nossa

história, geralmente matutos desprivilegiados, Zeca,

de Caminho das Índias (Globo), é um garoto de classe

média que, apoiado por seus pais, usa sua

malandragem não por sobrevivência, mas para

perturbar os outros e com a certeza de impunidade

políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem.

Claro que a desonestidade não é uma exclusividade nacional. Mas é

interessante ressaltar a peculiaridade brasileira na admissão das

"categorias" jeitinho e malandragem como elementos paradigmáticos à

ação "moral". No nosso país, curiosamente, exaltam-se, ao mesmo tempo,

dois tipos aparentemente incompatíveis: o honesto e o malandro. Nesse

sentido, como bem observou o antropólogo Renato da Silva Queiroz, a

cultura brasileira é permeada por uma ambiguidade ética em que termos

como "honesto", "corrupto", "esperto", "otário", "malandro" e "mané" se

misturam num confuso caldeirão moral. Esse caráter peculiar de nossa

sociedade exige-nos alguns questionamentos: o que levou a cultura

brasileira a essa ambiguidade moral? O que fez que nossa sociedade

cultivasse certa glorificação da malandragem? E mais: será que essa

exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para o Brasil? Ela tem

contribuído para o engrandecimento de nossa cultura ou para sua

degeneração?

No final do século XIX, o filósofo Friedrich Nietzsche se propõe a realizar

uma crítica dos valores morais e, com isso, inaugura o seu procedimento

genealógico. Rompendo com a tradição metafísico-religiosa que considera

os valores como sendo eternos, universais e imutáveis, o pensador alemão

passa a pensá-los por um viés histórico. Ou seja, no entender de

Nietzsche, os juízos de valor, antes concebidos como absolutos, teriam

sido, na verdade, criados numa determinada época e a partir de uma

cultura específica. Tomando como ponto de partida essa perspectiva, o

pensador alemão enxergou a necessidade de realizar um exame acerca das condições históricas por meio das quais os valores

foram engendrados. E coloca as seguintes questões: de que forma esses paradigmas morais teriam sido gerados? Por quais

povos e em que época? Em que condições se desenvolveram e se modificaram? Para efetivar essa investigação, Nietzsche põe

a seu serviço os recursos da História, da Filologia, e da Fisiologia. Apesar disso, ao recorrer a essas disciplinas, o filósofo não

assume o papel de um cientista positivista, que busca fatos históricos, fisiológicos ou antropológicos. Nietzsche está longe de

ser um pensador, que se pretende isento e "objetivo". Para ele, a investigação genealógica já é um procedimento que se realiza

a partir de uma determinada perspectiva valorativa. Sua análise deve ser entendida como uma hipótese interpretativa que tem

como pano de fundo o referencial das ciências, mas não como um método científico que se embasa em fatos.

Essa exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para

o Brasil? Ela tem contribuído para engrandecer nossa

cultura ou para degenerá-la?

A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM

Em 1970, o crítico literário Antônio Candido publicou Dialética da malandragem, uma referência obrigatória para

qualquer estudo filosófico que aborde o tema da malandragem brasileira. O trabalho, um ensaio sobre Memórias

de um Sargento de Milícias - romance publicado em 1854 por manuel Antônio de Almeida (1831-1861) -, toma o

personagem principal do livro, Leonardo Pataca Filho, como o primeiro malandro da literatura brasileira.

mostrando que Leonardo transita, cotidianamente, entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas,

Cândido afirma que esse romance, já no século XiX, retrata - retrospectivamente - a ambiguidade ética da

sociedade brasileira, na época de Dom joão Vi. A desarmonia entre as instituições ético-legais e as práticas

sociais efetivas não seria novidade: "Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões de

hemisférios e esta subversão final de valores. (...) É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas

Memórias é sugestiva. (...) manifesta (...) o jogo dialético da ordem e da desordem". (A título de curiosidade, é

bom lembrar que, em 1946, época em que a difamação de Nietzsche estava em seu apogeu, o mesmo Antônio

Cândido publicou o ensaio O Portador, um dos primeiros textos a apontar a necessidade de se recuperar o

pensa-mento nietzschiano).

SUSPENSÃO DOS VALORES

O procedimento genealógico, no entanto, não se restringe apenas a essa

pesquisa das origens dos valores, pois, com o seu "método", o filósofo propõe,

simultaneamente, uma avaliação desses mesmos juízos de valores. Assim, ele

nos interroga, também, acerca do "valor desses valores". Em Para a genealogia

O deputado Fernando Gabeira, (PV) que

admitiu ter usado sua cota de passagens

aéreas de forma irregular

O deputado João Paulo Cunha (PT),

interrogado por acusações de pertencer ao

esquema do mensalão

Bezerra da Silva, autor da letra da música

M alandro é M alandro e M ané é M ané. No Brasil,

a malandragem ganhou valor positivo como

traço de personalidade. É como se de um lado

estivessem os malandros e, de outro, os

"manés"

da moral, livro publicado em 1887, Nietzsche usa seu procedimento, por

exemplo, para examinar a dicotomia ocidental entre os valores "bem x mal".

Considerando esses referenciais como fruto da criação humana, o filósofo

questiona até que ponto eles têm sido benéficos à nossa civilização: "Sob que

condições o homem inventou para si os juízos de valor 'bom' e 'mau'? Que valor

têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São

indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário,

revela-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida? (...) O próprio valor

destes valores deverá ser colocado em questão" a partir do critério vida.

Se, por um lado, Nietzsche considera que os referenciais éticos são sempre

relativos a uma cultura específica e, por essa razão, não podem constituir um

critério absoluto de avaliação, por outro lado, ele necessitou de um novo critério

pelo qual pudesse avaliar os valores. Nietzsche precisava de um valor que

estivesse além de toda perspectiva moral e que servisse, ao mesmo tempo,

como referência para julgar qualquer moral.

"Jeitinho brasileiro" e "malandragem" na Política

Brasileiro, que é malandro, sempre dá um jeitinho de lucrar. Quem está no poder, rondado pelas oportunidades de

usar a influência do cargo para ganhar algo por fora, tem usado e abusado desta "ética frouxa" que nossa cultura da

malandragem estimula. A seguir, alguns escândalos políticos brasileiros, do presente e do passado, que bem ilustram

esse hábito de tentar levar vantagem.

Farra das passagens aéreas

O escândalo das passagens aéreas explodiu quando um site tornou

público que parlamentares estavam usando suas cotas mensais de

passagens aéreas cedidas pelo estado para promover viagens de turismo

- até ao exterior - a familiares e amigos.

Nada no regimento especificava que era proibido doar as passagens a

terceiros, apenas o bom-senso e a Ética. Como brasileiro sempre dá um

jeitinho de sair lucrando, os parlamentares, aproveitando a brecha na lei,

estavam financiando viagens de familiares e amigos, viajando a passeio,

etc.

O esquema foi além da simples malandragem e virou desvio de verba: assessores passaram a repassar a sobra do

mês para agências de viagem, que vendiam bilhetes para pessoas comuns, pagavam com o crédito da Câmara e

dividiam com os assessores o dinheiro dado por quem adquiriu a passagem.

O escândalo fez muitos parlamentares devolverem o dinheiro gasto em passagens não usadas a trabalho e o

Congresso rever o regimento a respeito das viagens aéreas.

Compra de votos pelo "mensalão"

A maior crise política sofrida pelo governo do presidente Lula ficou

conhecida como "mensalão" e está ligada a um suposto esquema de

compra de votos de parlamentares. Deputados receberiam uma espécie

de mesada para votar a favor de projetos de interesse do Poder executivo.

no governo, o jeitinho era o seguinte: pagar para ganhar votos favoráveis e

evitar problemas.

A suposta venda de voto, que deu origem à crise foi só o estopim para a

descoberta de uma série de outros escândalos de corrupção

relacionados ao "mensalão", como o caso Celso Daniel, o escândalo dos

Correios, o dos Bingos e do banco Opportunity, que acabou associado

ao esquema do "valerioduto".

Cartão corporativo

Que tal um cartão em que a fatura no final do mês fica por conta do

Governo? O escândalo dos cartões corporativos foi motivado pelo uso

indevido de um cartão criado para pagar despesas pequenas e urgentes

Matilde Ribeiro (PT)

Ex-presidente Fernando Collor de Mello

"Mordomia" quase oficial

No governo militar de ernesto Geisel (1974-1979), quando a censura e a

repressão apenas começavam a arrefecer, o jornalista ricardo Kotscho

escreveu uma matéria descrendo as "mordomias" de que desfrutavam

tecnocratas e militares no governo. A certeza de impunidade era tanta

que tais mordomias, como longas listas de comes e bebes para

residências oficiais, compras de flores e de peças de decoração,

distribuição de dividendos em empresas estatais deficitárias e salários

astronômicos, eram publicadas no Diário Oficial, conta o próprio

jornalista, no livro Do golpe ao planalto.

Ernesto Geisel, durante jantar oferecido a

Jimmy Carter, em1978

de funcionários do governo em missões de trabalho, mas foram

descobertas compras de ursos de pelúcia, reformas de mesa de sinuca e

até pagamentos de diárias no hotel Copacabana Palace. Alguns mais

malandros, usavam a estratégia de sacar o dinheiro e pagar em espécie,

assim não deixavam vestígios da ilegalidade, a menos que fossem

investigados - e foram. As primeiras denúncias levaram à demissão da

Ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, do PT, a

pessoa que mais realizou gastos com o cartão em 2007.

Impeachment de Collor

A renúncia, em 29 de

dezembro de 1992, do então

presidente Fernando Collor de mello para evitar seu impeachment faz

parte daquele que talvez tenha sido o maior escândalo político brasileiro.

Apesar de ter renunciado, o processo teve seguimento e Collor foi

condenado à perda do mandato e à inelegibilidade por oito anos. Nunca

antes um político da América Latina havia sido deposto do cargo por

impeachment.

Foi aberta uma Comissão Parlamentar de inquérito (CPI) que descobriu

que o presidente e familiares haviam tido despesas pessoais pagas com

o dinheiro recolhido ilegalmente pelo "esquema PC", que envolvia uma

rede de "laranjas" e de "contas fantasmas". A reforma da Casa da Dinda

(residência de Collor em Brasília) e um carro Fiat Eelba foram tidos como exemplos de bens e serviços pagos com

dinheiro do esquema ilícito. Tais descobertas serviram de base para a abertura do processo de impeachment.

No entender de Nietzsche, esse paradigma seria a vida. Vejamos como argumenta o pensador em Crepúsculo dos ídolos: "É

preciso estender ao máximo as mãos e fazer uma tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da

vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo um objeto da disputa, e não juiz; e

não por um morto, por outro motivo". Nesse sentido, a vida seria um critério de avaliação impossível de ser avaliado, pois

qualquer avaliação sempre se dá por meio de uma determinada perspectiva inserida na vida.

Ao examinar o desenvolvimento histórico da civilização ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que os fundamentos morais

que têm norteado o Ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva negadora da vida e do mundo terreno. Isso porque

Moradores da periferia do Distrito Federal aguardam

atendimento médico. Existe a hipótese de o jeitinho

ter surgido como estratégia de sobrevivência a uma

realidade dura e de desamparo por parte do Estado.

Seria um drible às adversidades

Do embate entre a necessidade de v ida e a lei (ou v alores

morais) surge a malandragem. A v enda de CDs piratas é um

exemplo. Apesar de ir contra a Ética formalizada, esse

comércio é disseminado e encontra muitas justificativ as

a Ética ocidental - fundada nos pilares do cristianismo e platonismo - teria como referência moral os valores concebidos a partir

de um além. Em ambas as perspectivas fundadoras existiria uma predileção a um mundo extraterreno em detrimento do mundo

terreno. No caso do cristianismo, a esperança de redenção no reino de deus teria provocado a negação da vida e do mundo

terreno.

Para Nietzsche, os fundamentos morais que têm norteado o

ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva

negadora da vida e do mundo terreno

O platonismo, por sua vez, ao conceber o mundo das ideias como o

âmbito da verdade e da eternidade, teria considerado o mundo terreno

como aparente e transitório e, por essa razão, inferior. O procedimento

genealógico nos propõe uma forma de investigação filosófica que, além de

indagar pela procedência histórica dos valores morais, realiza também um

julgamento desses valores.

Colocando a vida como o critério avaliador, a

"genealogia" pergunta: qual o papel dos

paradigmas morais vigentes? Eles servem para

conservar e engrandecer a vida? Ou promovem

sua decadência? Nesse sentido, se adotarmos o

procedimento genealógico como referência

metodológica, teremos que pensar o fenômeno da

malandragem como resultado de processos

histórico-culturais. Indo além, poderíamos

questionar até que ponto ele tem sido favorável ao

engrandecimento e conservação da vida.

Nas Ciências Sociais há quem entenda o surgimento do jeitinho e da malandragem como consequência

da imposição de uma cultura legal e formalista proveniente da monarquia portuguesa e da igreja

católica. Não sendo um resultado legítimo da construção popular, as instituições ético-legais abririam

espaço à transgressão. Por outro lado, há também quem enxergue a raiz da "malemolência" brasileira

no nosso caráter cultural mestiço.

HERANÇA DE TRADIÇÕES

Por sermos um amálgama de diversas tradições,

não teríamos conseguido fixar uma ética coesa.

Além dessas teses, diversas outras são

apontadas como causa da malandragem

tupiniquim: a colonização voltada à exploração, a

imposição do formalismo legal como herança do

direito latino e, até mesmo, a miscigenação

biológica. Apesar dessa heterogeneidade de

hipóteses, um elemento comum permeia boa

parte dos estudos: a noção de que o jeitinho, a

malandragem e congêneres surgem como uma

espécie de "mecanismo de adaptação às

situações perversas da sociedade brasileira",

como ressaltou a antropóloga Lívia Barbosa, em

seu livro O jeitinho brasileiro.

Seguindo essa pista fornecida pelas Ciências

Sociais, podemos arriscar uma hipótese genealógica para essas "atitudes desviantes": produto de uma

combinação entre a árdua condição social e o histórico desamparo do poder público, o jeitinho e a

malandragem constituiriam um instrumento de sobrevivência. Assim, essas transgressões seriam uma

espécie de infração aceitável socialmente que, na maioria das vezes, justificar-se-ia, ou por uma

facilidade em relação aos trâmites burocráticos das instituições oficiais, ou por uma necessidade

resultante da dura realidade socioeconômica brasileira. Em ambos os casos, essas violações ético-

legais seriam uma espécie de "drible" nas adversidades da vida num país, historicamente, repleto de

desigualdades. Tomando esse raciocínio como premissa, podemos dizer que, no Brasil, burlar as regras

morais e legais foi algo que se impôs como forma de adaptação ao "ambiente hostil". O brasileiro

precisou ser malandro para sobreviver numa sociedade cruel e de enorme abandono do poder público. A

Há uma série de teorias sobre o que deu origem ao jeitinho

brasileiro. Uma delas o atribui à nossa formação mestiça,

com contribuições culturais div ersas, o que teria nos

impedido de fixar uma Ética coesa

origem e fundamento mais remoto da malandragem foi a conservação da vida: a vida se impôs perante

as leis e os costumes éticos formalizados, fazendo as circunstâncias efetivas se sobreporem à moral

vigente.

O brasileiro precisou ser malandro para sobreviver numa

sociedade cruel e de enorme abandono do poder público

Fazer uma fotocópia "clandestina" de um livro - do

ponto de vista da Ética formalizada - seria algo

reprovável e até mesmo ilegal, porém esta prática

é uma das mais comuns em muitas universidades

brasileiras. Apesar de se tratar de algo desviante

de uma Ética tradicionalmente instituída, essa

atitude não é difícil de ser justificada. No Brasil,

onde o investimento em Educação é ainda

escasso, e acesso aos livros de qualidade é muito

limitado, os estudantes - em sua grande maioria

com restrições econômicas - são obrigados a

recorrer a meios extraoficiais. Além desse

exemplo, poderíamos citar diversas outras

situações em que as condições efetivas da vida no

Brasil se impõem ao "formalismo" ético.

A mãe que fura a fila do atendimento médico de

um sistema de saúde saturado para salvar o filho;

o morador de uma comunidade carente que faz

uma "gambiarra" (ligação clandestina com a rede elétrica) por não ter acesso econômico aos meios

legais de distribuição de energia elétrica; o motorista que avança o sinal vermelho à noite para não ser

assaltado; ou mesmo um saque de alimentos a um caminhão tombado na estrada.

Mas não se trata de justificar,aqui, uma transgressão generalizada. Como foi dito anteriormente, essa

posição assume a "conservação da vida" como fundamento originário desse tipo de burla, mas - é

necessário ressaltar - isso não significa dizer que, ainda hoje, a "vida" continue sendo o único

referencial criador para toda atitude de infração à legalidade e ao costume ético tradicional.

APOLOGIA À MALANDRAGEM

Com o desenrolar histórico, a própria transgressão teria se transformado em uma espécie de modelo

"ético". A antropóloga Lívia Barbosa vai nessa mesma direção: "de drama social do cotidiano [o jeitinho

brasileiro] passou a elemento da identidade social. (...) de simples mecanismo adaptativo, reflexo de

nossas condições de subdesenvolvimento, o jeitinho se transformou em elemento paradigmático de

nossa identidade (...)".

Se até o momento defendemos que a conservação da vida foi o ponto de

partida para o surgimento do jeitinho e da malandragem, agora, além

desse fundamento, um fator derivado - também impulsionador e

potencializador da transgressão - teria surgido no desenrolar histórico-

cultural do Brasil: a apologia da malandragem.

O que queremos dizer é que a exaltação do tipo esperto - aquele que

sempre se dá bem e leva vantagem em tudo - ou a glorificação do

malandro seria resultado de processos culturais. O tipo esperto teria

passado a ser admirado como um vitorioso na luta pela vida.

A partir disso, o malandro passa a ser visto como exemplo a ser seguido,

torna-se um referencial para o "dever ser" e se transforma em um

"paradigma ético paralelo". Assim, a malandragem - que, de início, foi

impulsionada pelas imposições de conservação da vida - se converteu em

referência para si mesma. Tornando-se uma espécie de categoria ético-

metafísica, ela se transformou em valor moral e passou a ser norteada por

si mesma. A malandragem se transfigurou em modelo ético para a própria

malandragem.

E ao tornar-se um valor, a malandragem passou a ser compreendida como

uma espécie de essência biológica. Ou seja, se transformou em caráter

inerente e distintivo de certos indivíduos. De um lado, teríamos a "espécie"

dos malandros e, do outro, a dos "manés" - lembremos da clássica

tautologia, tantas vezes cantada pelo sambista Bezerra da Silva:

"malandro é malandro e mané é mané".

Histórias infantis são repletas de lições morais. Para

Nietzsche, v alores como "bom" e "mau" não existem por si,

foram criados historicamente. Ele defende que cada um

decida sua moral - um raciocínio que daria espaço à

malandragem

Dom João VI e Carlota Joaquina. Outra teoria

sobre a origem do jeitinho brasileiro é de que ele

resultou da cultura legal e formalista v inda da

monarquia portuguesa e do catolicismo. É uma

desarmonia entre as instituições ético-legais e a

v ida prática

Conforme esse raciocínio, a "Filosofia ética da malandragem", por incrível que

pareça, teria suas raízes fincadas numa forma de pensar essencialista, já que, na

maioria das vezes, o senso comum concebe o "tipo malandro" como sendo esperto

de nascença, como por exemplo, Macunaíma, personagem de Mário de Andrade e

um dos símbolos da malandragem na literatura brasileira. Há, inclusive, no

imaginário cultural do Brasil, a ideia de que o "jogo de cintura", a "malemolência" e

a "ginga" são componentes essenciais do caráter do povo brasileiro. O agir

malandramente já seria fruto do modo de ser do "esperto brasileiro". Nessa direção,

recordemos a "lei de Gerson" - jogador da seleção de 1970 - que proclamava que

todo brasileiro - incluindo ele - gostava de sempre levar vantagem em tudo.

Diante disso tudo se pode questionar: qual o valor da "ética da malandragem"? Ela

tem servido para conservar e engrandecer a vida? Tudo leva a crer que, ao

promovermos essa a apologia da malandragem, perdemos o referencial originário, a

saber, a vida.

A malandragem gratuita, a da "lei de Gerson", a malandragem pela malandragem

está conduzindo ao caminho contrário da conservação e engrandecimento da vida.

Ao se conceber como um povo essencialmente malandro, um povo pacífico e

cordial - para usar o termo de Sérgio Buarque de Holanda -, um povo que "resolve"

seus problemas na base do jeitinho, o brasileiro estaria se desviando de

transformações sociais mais significativas. "Ao funcionar como válvula de escape,

ela [a transgressão pelo jeitinho] impede o surgimento de uma pressão social

efetiva que leve a mudanças tão necessárias no nosso aparato legal e

administrativo" (Lívia Barbosa).

Ou seja, por ser constituída de técnicas individuais de sobrevivência, a malandragem impediria estratégias mais amplas de

insurreição popular.

Gérson, ex-jogador da seleção brasileira de futebol. Em um

comercial de TV, ele afirmav a gostar de lev ar v antagem em

tudo, o que deu origem à expressão "lei de Gérson",

associada ao jeito pouco ético e malandro de ser

<

Além disso, apologia da malandragem e a compreensão do povo brasileiro

como essencialmente malandro traz à tona o perigo da justificação de uma

corrupção generalizada e, por tabela, o efeito colateral de todo um

encadeamento de chagas sociais. Concebida como característica natural,

a corrupção passa a ser entendida como algo inevitável no Brasil. Isso nos

leva a uma licenciosidade ético-legal justificada por uma espécie de

determinação biológica. Essa banalização e justificação da corrupção

trazem como consequência uma desestruturação social que torna as

condições de vida ainda mais precárias. Temos uma espécie de movimento

circular, em que os problemas sociais que engendraram a malandragem

são realimentados pelo "modelo ético" da própria malandragem. Será que a

necessidade de tanta malandragem não levará todos nós a assumirmos o

papel de "manés"?

A compreensão do povo brasileiro como essencialmente

malandro traz à tona o perigo da justificação de uma

corrupção generalizada

REFERÊNCIAS

Sobre Nietzsche e o procedimento genealógico:

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras,

2005

_________. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993

PASCHOAL e FREZZATTI. Antônio Edmilson e Wilson (org). 120 anos de "Para a genealogia da moral". Ijuí:

Unijuí, 2008

Para entender a Malandragem

ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Coleção Buriti 41. 23ª ed. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1986

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Escala Educacional.

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992

DAMATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis - para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:

Zahar, 1979

CANDIDO, Antonio. "Dialética da Malandragem". In: ____ O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades,

1993 www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/leitura/DIALETICA_MALANDRAGEM.rtf

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1995

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000

SCHWARCZ. Lilia Moritz. Complexo de Zé Carioca. Notas sobre uma identidade mestiça e malandra. In:

www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03. htm

João E. Neto é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo

(USP), bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e membro do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN)