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Rev. de Letras - N 0 . 26 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2004 21 GÊNEROS TEXTUAIS ACADÊMICOS: REFLEXÕES SOBRE METODOLOGIAS DE INVESTIGAÇÃO Antonia Dilamar Araújo 1 1 Professora Titular de Lingüística Aplicada e Língua Inglesa do Curso de Letras-Inglês e do Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará. Resumo Partindo do pressuposto que os gêneros textuais são formas socialmente consagradas de organizar e controlar as atividades comunicativas e que é crescente o número de es- tudos que visam a caracterização de gêneros textuais acadê- micos, este trabalho traça um panorama das diferentes metodologias utilizadas na investigação de gêneros. O tra- balho tem também o objetivo de refletir sobre os métodos de análise de gêneros propostos por Bhatia (1993) e Swales (2001), bem como avaliar as dificuldades que a pesquisado- ra sentiu ao analisar o corpus selecionado do gênero tese de doutorado escrita em língua portuguesa e inglesa. Palavras-chave: texto acadêmico - gêneros textuais – metodologias de investigação. Abstract Based on the notion that textual genres are considered social forms of organizing and controlling communicative activities and that an increasing number of studies that aims at characterizing academic textual genres is visible, this paper offers an overview of different methodologies used in the investigation of genres. The paper also has the objective to reflect on the methods of analysis of genres postulated by Bhatia (1993) and Swales (2001), as well to evaluate the difficulties the researcher had when analyzed the selected corpus of the genre doctoral thesis written in English and Portuguese. Key words: academic text – textual genres – methodologies of investigation. INTRODUÇÃO É senso comum que os estudos em análise de gêne- ros desenvolvidos nos últimos anos têm mostrado uma crescente preocupação com a análise de estrutura textual e descrição de estruturas genéricas dos mais diversos textos e, como conseqüência, um número significativo de artigos e livros tem sido publicado no Brasil e no mundo, incluindo nesse contexto, a realização de um Simpósio Nacional de Estudos de Gêneros – SIGET, em sua segunda edição em 2004, como espaço para se discutir e divulgar resultados de pesquisas na área. Como nota Candlin (1993, apud Bhatia, 1997), o interesse pela teoria dos gêneros e suas aplicações quer seja na pesquisa quer seja no ensino não se restringe só a um grupo específico de pesquisadores (lingüistas), mas também a outros estudiosos como tradutores, críticos literá- rios, analistas do discurso, professores de línguas, profissio- nais da comunicação, dentre outros, devido à relevância que a área tem assumido. Considerando que gêneros textuais são formas social- mente consagradas de organizar e controlar as atividades comunicativas e que a análise de gêneros é o estudo do com- portamento lingüístico situado em contextos acadêmicos ou profissionais (Bhatia, 1997:629), a grande maioria dos es- tudos realizados tem revelado a natureza da estruturação genérica dos textos, por meio da descrição e explanação do uso da língua. Ao tentar responder o questionamento do por quê membros de uma comunidade discursiva usam a língua de uma determinada maneira, analistas do discurso tem ten- tado esclarecer não apenas os propósitos comunicativos da comunidade discursiva em foco, mas também as estratégias cognitivas empregadas por seus membros para atingir esses propósitos, considerando os fatores sócio-culturais e cognitivos. Ao responder a essa questão, vários estudiosos (Swales, 1990; Askehave & Swales, 2001; Bhatia, 1993; Halliday & Hasan, 1989) têm oferecido modelos teóricos de análise de gêneros que servem de base na descrição de gêneros. Porém, com o crescimento dos estudos sobre gê- neros vários questionamentos têm surgido e um deles tem me preocupado como pesquisadora e orientadora de traba- lhos acadêmicos em um programa de pós-graduação: a de-

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GÊNEROS TEXTUAIS ACADÊMICOS: REFLEXÕESSOBRE METODOLOGIAS DE INVESTIGAÇÃO

Antonia Dilamar Araújo1

1 Professora Titular de Lingüística Aplicada e Língua Inglesa do Curso de Letras-Inglês e do Curso de Mestrado Acadêmico em LingüísticaAplicada da Universidade Estadual do Ceará.

ResumoPartindo do pressuposto que os gêneros textuais são

formas socialmente consagradas de organizar e controlar asatividades comunicativas e que é crescente o número de es-tudos que visam a caracterização de gêneros textuais acadê-micos, este trabalho traça um panorama das diferentesmetodologias utilizadas na investigação de gêneros. O tra-balho tem também o objetivo de refletir sobre os métodos deanálise de gêneros propostos por Bhatia (1993) e Swales(2001), bem como avaliar as dificuldades que a pesquisado-ra sentiu ao analisar o corpus selecionado do gênero tese dedoutorado escrita em língua portuguesa e inglesa.

Palavras-chave: texto acadêmico - gêneros textuais –metodologias de investigação.

AbstractBased on the notion that textual genres are

considered social forms of organizing and controllingcommunicative activities and that an increasing number ofstudies that aims at characterizing academic textual genresis visible, this paper offers an overview of differentmethodologies used in the investigation of genres. The paperalso has the objective to reflect on the methods of analysisof genres postulated by Bhatia (1993) and Swales (2001),as well to evaluate the difficulties the researcher had whenanalyzed the selected corpus of the genre doctoral thesiswritten in English and Portuguese.

Key words: academic text – textual genres – methodologiesof investigation.

INTRODUÇÃO

É senso comum que os estudos em análise de gêne-ros desenvolvidos nos últimos anos têm mostrado uma

crescente preocupação com a análise de estrutura textual edescrição de estruturas genéricas dos mais diversos textose, como conseqüência, um número significativo de artigos elivros tem sido publicado no Brasil e no mundo, incluindonesse contexto, a realização de um Simpósio Nacional deEstudos de Gêneros – SIGET, em sua segunda edição em2004, como espaço para se discutir e divulgar resultados depesquisas na área. Como nota Candlin (1993, apud Bhatia,1997), o interesse pela teoria dos gêneros e suas aplicaçõesquer seja na pesquisa quer seja no ensino não se restringe sóa um grupo específico de pesquisadores (lingüistas), mastambém a outros estudiosos como tradutores, críticos literá-rios, analistas do discurso, professores de línguas, profissio-nais da comunicação, dentre outros, devido à relevância quea área tem assumido.

Considerando que gêneros textuais são formas social-mente consagradas de organizar e controlar as atividadescomunicativas e que a análise de gêneros é o estudo do com-portamento lingüístico situado em contextos acadêmicos ouprofissionais (Bhatia, 1997:629), a grande maioria dos es-tudos realizados tem revelado a natureza da estruturaçãogenérica dos textos, por meio da descrição e explanação douso da língua. Ao tentar responder o questionamento do porquê membros de uma comunidade discursiva usam a línguade uma determinada maneira, analistas do discurso tem ten-tado esclarecer não apenas os propósitos comunicativos dacomunidade discursiva em foco, mas também as estratégiascognitivas empregadas por seus membros para atingir essespropósitos, considerando os fatores sócio-culturais ecognitivos. Ao responder a essa questão, vários estudiosos(Swales, 1990; Askehave & Swales, 2001; Bhatia, 1993;Halliday & Hasan, 1989) têm oferecido modelos teóricosde análise de gêneros que servem de base na descrição degêneros. Porém, com o crescimento dos estudos sobre gê-neros vários questionamentos têm surgido e um deles temme preocupado como pesquisadora e orientadora de traba-lhos acadêmicos em um programa de pós-graduação: a de-

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finição de procedimentos de análise para gêneros textuaiscoerentes com o enfoque e a perspectiva teórica adotadanos estudos, especialmente para quem está se iniciando naatividade de pesquisa.

Neste artigo, portanto, pretendo analisar os modelosde investigação de gêneros propostos por Bhatia (1993) eAskehave & Swales (2001), mapear as tendências das pes-quisas sobre gêneros no Brasil e discutir o enfoque utiliza-do no estudo do gênero tese de doutorado escrita em lín-guas portuguesa e inglesa, refletindo sobre as dificuldadeslevantadas na análise do corpus coletado.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Bhatia (1997b), em seu artigo intitulado Análise degêneros hoje, reconhece que há uma base comum com rela-ção à teoria de gêneros, apesar das diversas orientações apre-sentadas por estudiosos como Miller (1984), Berkenkotter eHuckin (1995), Martin (1993), Swales (1990) e Bhatia (1993),como também discute os traços mais importantes que carac-terizam essas abordagens, quais sejam gêneros como conhe-cimento convencionado, versatilidade na descrição de gêne-ros e tendência para a inovação. Falarei brevemente sobreestes aspectos já tão enfatizados na literatura sobre gêneros.

O primeiro aspecto diz respeito à visão de que gêne-ros são definidos em termos de uso da linguagem em con-textos comunicativos convencionados, que dá origem a con-juntos específicos de propósitos comunicativos para grupossociais e disciplinares especializados, que estabelecem for-mas estruturadas relativamente estáveis (Bakhtin, 1986) eque impõem, até certo ponto, restrições de uso de recursosléxico-gramaticais. Esta visão está atrelada a três aspectosque são reconhecidos pelos estudiosos de gêneros: 1) re-corrência de situações retóricas, que são identificadaspela caracterização de aspectos relevantes do contextosócio-retórico em que um dado gênero acontece e pormeio dos propósitos comunicativos compartilhados porparticipantes de uma comunidade discursiva particular;2) propósitos comunicativos compartilhados são o segun-do traço específico de descrição de gêneros tanto em ter-mos de recorrência, compartilhamento ou regularidadesna elaboração de gêneros e 3) regularidades de organi-zação estrutural.

O segundo aspecto diz respeito à versatilidade gené-rica e pode ser observada em vários níveis, especialmente,na descrição lingüística de gêneros, que vai desde a visãomais geral dos usos da língua (convenções genéricas) atésua realização mais específica. A versatilidade se estendeao conceito de propósito comunicativo, que por um ladopode ser identificado em um nível mais alto de generaliza-ção e por outro lado, limitado a um nível bem específico.Da mesma forma, tanto pode haver um único propósito co-municativo, como um bem detalhado conjunto de propósi-tos comunicativos.

Embora gênero seja visto como um evento textualretoricamente situado e institucionalizado, há autores quedefendem que os gêneros, por ter uma natureza dinâmica,tendem à inovação e à mudança explorada por membrosexperientes da comunidade discursiva para responder a con-textos retóricos familiares, especialmente, pelo uso de re-cursos de multimídia, da tecnologia informacional e de con-textos multidisciplinares no mundo de trabalho. Asinovações têm levado as pessoas a rever convenções jáestabelecidas e a manipular e responder a novos contextosretóricos para expressar intenções particulares dentro daestrutura dos propósitos comunicativos socialmente reco-nhecidos (Bhatia, 1993).

Esses três aspectos mencionados têm levado estudi-osos a investigar e caracterizar usos da língua como formade responder a situações retóricas recorrentes, ou seja, ten-tar entender porque membros de uma comunidade discursivausam a língua da maneira como eles fazem. Para tanto, es-ses estudiosos utilizam-se de uma metodologia ou procedi-mentos de análise para os estudos dos diferentes gêneros.Uma metodologia predominante é aquela em que pesquisa-dores investigam os gêneros através da caracterização e ex-plicação dos usos da língua, a partir do produto, isto é, dacoleta de um número representativo de exemplares do gê-nero em foco para identificação de traços regulares eprototípicos e do propósito comunicativo. A necessidadede caracterizar gêneros nunca explorados tem motivadoestudiosos a pesquisar um grande número de gêneros, nosentido não só de se entender a construção desse gêneroseja no campo profissional, seja acadêmico, mas tambémpara facilitar o seu ensino na sala de aula ou o seu uso noambiente profissional.

Nesse tipo de metodologia, pode-se situar o modeloproposto por Bhatia (1993), que ao discutir a definição degênero proposta por Swales (1990) mostra que a perspecti-va de Swales só leva em consideração aspectos lingüísticose sociológicos, deixando de lado uma orientação psicológi-ca que enfatiza o conceito de gênero como um processo so-cial dinâmico. Neste tipo de orientação, o pesquisador ten-de a prestar atenção a aspectos táticos na construção dogênero e as escolhas estratégicas feita pelo produtor do gê-nero a fim de realizar suas intenções. Bhatia (1993:21) re-força que o propósito comunicativo é refletido na estruturacognitiva do gênero que, de uma certa forma, representa asregularidades de organização e que estas regularidades de-vem ser vistas como cognitivas pela sua natureza, porqueelas refletem as estratégias que membros de um discursoparticular ou comunidade profissional ou acadêmica usamna construção e entendimento do gênero para realizar pro-pósitos comunicativos específicos.

Para mostrar a conexão entre o propósito comunica-tivo de um gênero particular e sua estrutura cognitiva típica,Bhatia (1993) sugere um modelo de investigação compostode sete passos que pode ser aplicado a qualquer gênero, mas

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que sua adoção dependerá do propósito da análise, do as-pecto do gênero a ser estudado e do background knowledgeque o investigador possui sobre o gênero em questão. Ossete passos são o seguinte:

1. analisar intuitivamente o gênero textual em um con-texto situacional (ao examinar a experiência pré-via do escritor da área e das convenções comuni-cativas associadas ao gênero, as pistas internas dotexto e o conhecimento enciclopédico de mundoque alguém possui);

2. pesquisar a literatura existente sobre o gênero (li-teratura sobre análise lingüística do gênero ou dealguma variedade ou gêneros similares,métodos ou teorias de análise do discur-so ou de gênero);

3. refinar a análise situacional /contextual(definir o falante ou escritor do texto, aaudiência, seu relacionamento e suas me-tas; aspectos históricos, filosóficos, sócio-culturais da comunidade; identificar o tó-pico, assunto, realidade extra-textual queo texto representa e o relacionamento dotexto com a realidade);

4. selecionar o corpus a ser analisado (im-plica em definir o gênero ou sub-gêneroem termos de propósito comunicativo econtexto situacional no qual ele é usado e caracte-rísticas textuais e tamanho da amostra);

5. estudar o contexto institucional (implica em anali-sar o sistema e/ ou metodologia no qual o gêneroé usado e as regras de convençõesque governam o uso do gênero emuma organização particular quefreqüentemente impõe limitesorganizacionais e pré-requisitospara a elaboração do gênero);

6. decidir os níveis de análise lin-güística (o analista decide estudaros traços lingüísticos significantese predominante em um dado gê-nero e pode concentrar-se em umou mais dos seguintes níveis: tra-ços léxico-gramaticais, textua-lização e interpretação estruturaldo gênero textual). A análise tan-to pode ser quantitativa quantoqualitativa ou ambas.

7. checar a análise com um especialista em análisede gênero (por ser um membro que tem expertise ecompetência na cultura disciplinar na prática dogênero em foco, este poderá confirmar as desco-bertas e validará as análises). No entanto, um dosproblemas é encontrar o especialista disponível,preparado e co-operativo para realizar este tarefa.

No entanto, Bhatia (1993) deixa claro que os procedi-mentos descritos neste modelo, embora sejam holísticos, sãoflexíveis, isto é, cada passo é entendido no contexto do todo,eles podem ser separados ou adotados em uma ordem dife-rente, dependendo do grau de conhecimento sobre o gêneroque o investigador traz para a tarefa de análise em particular.

Askehave & Swales (2001), ao revisitar o conceitode propósito comunicativo como um critério principal eimportante na identificação de um gênero, discutem doistipos de procedimentos de análise: o primeiro direcionadopelo texto para a análise genérica (Quadro 1) que envolvecinco níveis a saber:

Em movimento oposto ao modelo de análise estrutu-ral, os autores apresentam um método alternativo de análisede gêneros com base em contexto etnográfico, que consistede seis passos, como pode ser visto no Quadro 2:

Nesse modelo, os autores enfatizam que o passo 5,redirecionamento, estimula os analistas a realizar estudossócio-retóricos que tendem a focalizar no avançotecnológico para mostrar resultados atuais de como atecnologia afeta o modo como os exemplares de gênerosão percebidos e se situam ao seu meio de transmissãocomo: telex, fax, telefone, e-mail, vídeo-conferência, jor-nal on-line, dentre outros.

Quadro 1 -Procedimento de análise de gênero com base na caracte-rização do texto (Askehave & Swales (2001).

Quadro 2 - Procedimento de análise de gênero pelo contexto (Askehave &Swales, 2001: 209, traduzido por esta autora).

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Askhave e Swales (2001) observam que o modelopermite a categorização de gêneros, tópico de interesse naárea de lingüística aplicada, enquanto que Candlin (2000)afirma que a pesquisa metodológica de gêneros que envol-vem descrição, interpretação e explicação continua sendobastante utilizada e típica de muitos estudos de gêneros, combase na análise de um texto–base. Essa visão é compartilha-da por Fairclough (2003), um dos representantes da corren-te teórica de análise crítica do discurso, para quem o estudodo funcionamento da linguagem em processos ideológicosse realiza em três dimensões e que reconhece que para seanalisar diferentes tipos de textos, a abordagem mais ade-quada seria realizar análise textual dentro de uma perspecti-va etnográfica para perceber como as relações de poder tra-balham nas redes de práticas discursiva e social. Para o autor,a descrição e análise dos textos deveriam ser vistas comoum processo aberto que pode ser estimulado através do diá-logo entre áreas de conhecimento e teorias. A contribuiçãode Fairclough (1992) para a análise do discurso como ummétodo de estudo crítico pode ser ilustrado nas três dimen-sões proposta por ele como se apresenta no Quadro 3(Fairclough, 1992:116):

Fairclough apoiado na teoria sistêmica da linguagemde Halliday (1985), que considera a linguagem comomultifuncional e que os textos simultaneamente represen-tam a realidade, ordenam as relações sociais e estabele-cem identidades, observa que essas três dimensões do dis-curso estão colocadas em um quadro tridimensional, nãohavendo, portanto, hierarquia entre elas. O au-tor considera os gêneros como uma maneira deagir e interagir lingüisticamente e estruturamos textos de maneiras específicas. Nessaacepção, os gêneros não podem ser analisadosisolados de sua dimensão social, sem mostrarcomo eles são moldados pelas relações de po-der e ideologia.

ANÁLISE DOS DADOS

Os dados analisados para este estudo fo-ram coletados em nove periódicos nacionais pu-blicados por programas de pós-graduação delingüística e lingüística aplicada do Brasil e emtrês anais de congressos promovidos por associações lin-güísticas e publicados em papel impresso e em CD-Roms

(ANPOLL, ABRALIN, CBLA, GELNE e ENPULI), onzelivros de análise do discurso e gêneros textuais, além de 56dissertações e teses defendidas em sete programas de pós-graduação em lingüística aplicada ou estudos da linguagem(PUC/SP, UFSC, UFPE, UFC, UFRN, UFRJ, UNICAMP).A análise qualiquantitativa desse material baseou-se nosaspectos do foco de investigação e na perspectiva teórico-metodológica adotada nos estudos analisados. Não sendopossível ter acesso a todas as pesquisas de análise de gêne-ros realizadas no Brasil, os dados aqui mostrados represen-tam apenas uma amostra do que se está analisando em ter-mos de gênero discursivos/textuais.

Para fins de esclarecimentos, quando mencionamosteoria ou perspectiva teórica, estamos nos referindo a umaconstrução conceptual e metalingüística, a um corpo de con-ceitos fundamentais, enquanto que metodologia é uma se-qüência de operações que visam a obter um resultado ade-quado às exigências da teoria (Fiorin, 2002:39).

RESULTADOS

Ao fazer um levantamen-to em periódicos publicados porprogramas de pós-graduação naárea de Letras, Lingüística e Es-tudos da Linguagem e Anais decongressos realizados por asso-ciações lingüísticas no Brasil elivros publicados na área, pode-mos perceber que com o adventodas teorias funcionais da lingua-

gem, que enfatizam o estudo do texto em vez de frases iso-ladas, o número de estudos sobre gêneros discursivos/tex-tuais está crescendo especialmente desde o início da décadade 90 até os dias atuais. A Tabela 1 mostra a distribuiçãoquantitativa da publicação de artigos de pesquisas na áreade gêneros por periódico:

Das 56 dissertações e teses analisadas e defendi-das nos programas de pós-graduação em lingüística no

Quadro 3 – Dimensões de análises propostas por Fairclough (1992).

Tabela 1 – Quantidade de artigos publicados por fonte.

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Brasil verificou-se que o maior número de estudos so-bre gêneros estão nos programas da PUC/SP (27) e naUFSC (11).

Ao se analisar a perspectiva teórica adotada noconjunto de trabalhos analisados, constatou-se que a gran-de maioria de trabalhos baseia-se na teoria sócio-retóri-ca de gêneros baseada em Swales (1990) e seguidores(20.7%) e na teoria sócio-interacional de Bakhtin (1992[1953]), Bronckart (1999) e Dolz e Schneuwly (36.9%)ou ainda na perspectiva sistêmico-funcional da lingua-gem baseada em Halliday e Hasan (1989) (6.22%),seguidos de estudos em pequena escala com base naanálise crítica do discurso (Fairclough 1992, Kress,1985) (5.39%) e na linha francesa (Pêcheux, Adam,Charadeau). Como uma grande parte dos estudos ten-ta descrever não somente a estrutura esquemática dogênero, mas também aspectos lexicais que o carac-terizam, percebeu-se combinações de perspectivasteóricas como Swales e Halliday & Hasan, Bakhtin& Swales, ou ainda Swales e Hoey, dentre outros,com mostra a Tabela 2.

Quanto ao foco de investigação dos trabalhos e pes-quisas baseados em gêneros textuais e/ou discursivos, per-cebeu-se que a grande concentração é ainda a descriçãode gêneros, especialmente a caracterização da estruturaesquemática/ retórica, quer seja em gêneros escolares,acadêmicos ou institucionais pouco estudados, motiva-dos pela necessidade de compreender as práticasdiscursivas e as relações sociais associadas ao uso dosdiferentes gêneros (Meurer, 2000, 149) e pelo fato de quemuitos gêneros que circulam e são usados nos diversoscontextos das atividades humanas não foram ainda des-critos e analisados. Dessa forma, a tendência de foco daspesquisas em lingüística aplicada continua sendo a des-crição de gêneros textuais como forma de responder àsinquietações dos pesquisadores de como os usos da lin-guagem se realizam nas diferentes situações de interaçãoentre os participantes de uma determinada comunidade/

sociedade. Os estudos de gêneros têm sido alvo de preo-cupação também por parte de professores interessadosem aplicar os conhecimentos advindos das teorias de gê-neros discursivos/textuais na sala de aula tanto de línguamaterna quanto de língua estrangeira. Assim estudos re-centes nessa área já focalizam gêneros em materiais di-dáticos ou fazem propostas de como ensinar gêneros nasala de aula, ou ainda investigam como os gêneros sãoensinados em sala de aula. A Tabela 3 mostra ospercentuais de tendência do foco de investigação:

No que diz respeito aos procedimentos de análisede gêneros, embora haja diferentes propos-tas teórico-metodológicas para gênero bas-tante familiares para os analistas brasilei-ros (sócio-retórica, sistêmico-funcional,sócio-interacionista, análise crítica do dis-curso), constatei que a maioria dos traba-lhos analisados revela que os gêneros es-tudados são descritos de forma quaseintuitiva guiados pela perspectiva teóricae tentam buscar uma metodologia especí-fica para análise de gênero, constituindoassim em mais uma dificuldade nessa área,dentre outras como a definição de gênerode maneira mais precisa, como mostra aTabela 4 abaixo.

Embora Bhatia (1993) tenha se preocupado comessa questão e tenha proposto um modelo de análise daestrutura cognitiva, considerado por ele como flexível,percebe-se que os analistas sentem dificuldade deimplementar tais passos em suas pesquisas. As conseqüên-cias podem ser percebidas na publicação de trabalhos comum foco na descrição de diferentes gêneros, cujos proce-dimentos de análise baseiam-se na descrição e interpreta-ção de práticas discursivas ou da materialidade dos textos,nas dimensões de micro e macro-análises, ancorados emuma base quantiqualitativa, a partir do tratamento estatís-

Tabela 2 – Distribuição dos trabalhos por perspectiva teórica.

Tabela 3 – Foco de investigação dos trabalhos baseados em gêneros.

Tabela 4 – Procedimentos de análise.

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tico dos dados e, em alguns casos, estatístico–computacional, com o uso da Lingüística de Corpus. Esseprocedimento é, segundo Askehave & Swales (2001),direcionado pelo texto para a análise genérica.

Poucos são os estudos desenvolvidos com focoetnográfico no Brasil, em que o analista é desafiado a darconta dos processos e práticas discursivas de diferentes ti-pos de textos, isto é, em analisar como as pessoas interagematravés da linguagem em uma comunidade discursiva, par-tindo da observação do contexto. Nessa perspectiva, é queAskehave e Swales (2001) propõem como procedimentoalternativo e considerado menos complicado começar-se coma identificação de uma comunidade discursiva, para a partirdela, estudar os valores, intenções e condições materiais dacomunidade discursiva, as expectativas, o repertório de gê-neros praticados, o redirecionamento dos gêneros, para sóentão caracterizar os gêneros que circulam em uma deter-minada comunidade.

Desse modo, as dificuldades encontradas por pes-quisadores de gêneros são grandes, o que leva, às vezes,a incompletude das descrições. Como um exemploilustrativo, cito a pesquisa realizada por esta pesquisa-dora sobre o gênero tese de doutorado (10 exemplares)na área de análise do discurso em língua inglesa e portu-guesa e nas dimensões de micro e macro análise, adotan-do a perspectiva teórica de gêneros de Swales (1990),que embora trazendo uma contribuição para a área, ospesquisadores sentiram dificuldades em validar as análi-ses feitas. Como o estudo era comparativo e tinha o obje-tivo de levantar ou caracterizar estratégias discursivas naelaboração do gênero em foco em duas culturas, senti-mos necessidade de entrevistar os autores dos textos parase entender o porque do uso das estratégias da forma comoforam usadas. No entanto, esse procedimento não podeser realizado ao final da pesquisa, por não se ter tidocondições de fazer contacto pessoal ou por correio ele-trônico os produtores dos textos. Outra dificuldade sen-tida diz respeito à falta de interação entre pesquisadoresou especialistas, isto é, checar junto a um especialista emanálise de gênero que possui competência na cultura dis-ciplinar na prática do gênero em foco para confirmar asdescobertas e validar as análises.

Parece evidente que as dificuldades de se realizarestudos etnográficos talvez motivem os pesquisadores paraa pesquisa de análise genérica a partir de um corpus de exem-plares de texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho, embora limitado na amostra dos da-dos, tentou mostrar os percursos teóricos e metodológicosna análise de gêneros textuais de pesquisadores brasileiros.As reflexões sobre os procedimentos de análise de gênerostextuais tecidas nesse trabalho mostram que o pesquisador

apesar de dispor de diferentes orientações metodológicasna descrição e interpretação de gêneros (com base no tex-to ou no contexto), as descrições genéricas e o uso do gê-nero ainda são feitas com base na intuição e auto-desco-berta do pesquisador.

Ficou evidenciada nesse estudo que a tendênciaanalítica atual ainda é a descrição e interpretação das prá-ticas discursivas de gêneros, talvez pela necessidade dese entender como os gêneros realizam o funcionamentoda linguagem e de como essas caracterizações podem aju-dar o professor no ensino de gêneros na sala de aula delíngua inglesa e de língua materna. O estabelecimento deprocedimentos metodológicos para análise de gênerosdeve ser a preocupação dos estudiosos para dar origem anovos modelos de investigação, a exemplo dos apresen-tados por Bhatia (1993) e Askehave & Swales (2001),que sejam coerentes com as diversas correntes teóricas eque facilite a análise de novos gêneros por parte dos pes-quisadores, ao descrevê-los e explicá-los de forma ade-quada e satisfatória.

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