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GENOMA HUMANO: O DIREITO À INTIMIDADE EO NOVO CÓDIGO CIVIL

Loreci Gottschalk Nolasco1

ResumoResumoResumoResumoResumo: Neste artigo, pretende-se demonstrar os problemas que o Projeto GenomaHumano acarreta do ponto de vista do direito à intimidade e, principalmente,as luzes que o novo Código Civil oferece para solucioná-los. Para isso,serão necessárias algumas considerações sobre o Projeto GenomaHumano, os limites éticos e jurídicos de pesquisa científica e sobre o atualconceito de intimidade, levando sempre em consideração que a intimidadeé um dos núcleos que compõem os direitos de personalidade.

Palavras-Chave:Palavras-Chave:Palavras-Chave:Palavras-Chave:Palavras-Chave: Bioética - Direito Civil - Direitos

1. Introdução

Um passo significativo e decisivo da ciência foi dado no ano de1944, quando se identificou o DNA2 como base molecular dos genes,isto é, quando se descobriu que os genes são formados de DNA. Agenética, entendida como a ciência que tem por objeto de estudofragmentos mais ou menos largos de DNA, que podem seridentificados e isolados dentre toda massa molecular do indivíduo,portanto, não é algo recente.

No entanto, desde a descoberta do DNA como base moleculardos genes até os nossos dias, em que costumeiramente se fala degenoma humano e de clonagem humana com tanta freqüência, comose comenta qualquer outro aspecto da vida, o processo de evoluçãodo objeto de estudo da genética foi muito rápido, impedindo,sobretudo, que houvesse um acompanhamento legal adequado destesfatos sociais e científicos por parte da ciência jurídica como

1 Mestre em Direito pela Unigran/UnB. Professora na UEMS.2 DNA - Ácido desoxirribonuclêico – material genético que contém informações determinantes dos caractereshereditários transmissíveis à descendência. Materiais biológicos suscetíveis à análise do DNA, para fins forenses:sangue, em qualquer quantidade, mesmo que seja um respingo encontrado em madeiras, papéis, vestes, instrumentospérfuro-cortantes, projéteis, no solo etc; esperma em preservativos usados, encontrados no local do crime, ou emvestes; tecidos moles (músculo, vísceras); pêlos (com a raiz, pois é a região onde se encontram células satisfatóriaspara análise); restos de peles (podem ser encontradas embaixo das unhas das vítimas e/ou suspeitos); urina, saliva,secreções diversas, observando que é possível encontrar resíduo de saliva em guimbas de cigarro, envelopes,copos, goma de mascar, além de outros substratos mencionados para o sangue.

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instrumento de regulação da vida em sociedade.Com efeito, só recentemente o Direito começou a se preocupar

com as conseqüências jurídicas da genética e do seu objeto de estudo,já que, somente a partir da década de 1990, quando começaram aser difundidos os estudos relativos à transgênesis (estudos de plantase animais transgênicos) e à clonagem (procedimento capaz dereproduzir réplicas de determinado material biológico tanto deanimais, quanto de seres humanos) é que tais conseqüênciascomeçaram a ter importância do ponto de vista jurídico,principalmente, porque, a partir da clonagem de animais e dapossibilidade de clonagem humana, começou-se a falar em violaçãodo princípio da dignidade humana, regulado no art. 1º, III, daConstituição Federal como princípio fundamental, e, por conseguinte,de violação aos direitos fundamentais relacionados com esseprincípio: o direito à vida, à intimidade, à liberdade e à igualdade,dos quais falaremos mais adiante.

Os avanços científicos cursam geralmente adiante do Direito,que retarda a sua acomodação a conseqüências daqueles. Esseassincronismo entre ciência e Direito origina um “vazio” jurídicoque permite ao filósofo, ao médico e ao jurista refletirem eproporem ajustes ao sistema.

A chamada engenharia genética possibilitou, por exemplo, amodificação programada do patrimônio genético das células e,com isso, do organismo ao qual a célula pertence. Compromessas para o tratamento e a eliminação de enfermidadespor imperfeições genéticas, trouxe consigo também os temidosriscos da construção de novas formas de seres vivos.

Maria Celeste Cordeiro dos Santos, citando Ferrando Mantovaniinforma que as preocupações, nos âmbitos nacional e internacionalsão “de que as tecnologias genéticas sejam usadas não com epara o homem, mas contra o homem; e com a exigência, cada vezmais acusada, de que surja uma regulamentação jurídica que fixeos limites de sua licitude, assim como seus controles”. A autoraafirma ainda que:

A moderna tecnologia reprodutiva produz o colapso de princípios eaxiomas jurídicos que até agora se tinham por absolutos: a regra matersemper certa est, a presunção de paternidade do marido, a presunção

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de direito sobre a duração da gravidez (entre 180 e 300 dias), oprincípio da inalienabilidade do estado civil, a consangüinidade doparentesco e das ordens genealógicas etc.3

A recente preocupação jurídica não consiste, portanto, em impedira utilização da genética, mas em criar mecanismos para a tutelados direitos fundamentais envolvidos em caso de sua violação, bemcomo de evitar que a utilização maciça das novas descobertascientíficas converta a humanidade em cobaia que possa ser utilizadade qualquer maneira e a qualquer custo em nome da ciência. Emoutras palavras, o Direito se preocupa com a coisificação do serhumano que pode advir da utilização desmedida das descobertascientíficas e da sua comercialização em grande escala, na lição deFlavia de Paiva Medeiros de Oliveira.4

No atual momento, os juristas precisam se perguntar se aregulação jurídica que o novo Código Civil confere aos direitosde personalidade é suficiente e adequada para enfrentar umarealidade social em que a genética se torna cada vez mais presentena vida cotidiana do ser humano.

2. O Projeto Genoma Humano

Vivemos em uma época de transição e incerteza. A possibilidadeda eugenia, discriminação, clonagem total ou parcial de sereshumanos e, por outro lado, a cura de doenças de origem genética,patentes de genes humanos são questionamentos que vieram à bailacom a revolução introduzida pelas técnicas de engenharia genética,culminando com o Projeto Genoma Humano.

O conjunto de informações contidas nos cromossomos de umacélula denomina-se genoma, e o DNA (ácido desoxirribonucléico)é o portador da mensagem genética, podendo ser imaginadocomo uma longa fita onde estão escritas, em letras químicas, oscaracteres de cada ser humano, sendo, por isso, sua imagem

3 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei:O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei:O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei:O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei:O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei: implicações médico-legais. SP: Ícone, 1998, p. 23, 28 e29.4 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Genoma Humano, Direito à Intimidade e o Novo Código Civil. RevistaRevistaRevistaRevistaRevistaPrática JurídicaPrática JurídicaPrática JurídicaPrática JurídicaPrática Jurídica. n.15, 30 de junho de 2003, p. 34.

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científica. O Projeto Genoma visa o conhecimento de todo o códigogenético humano e de suas alterações, que são as causas de quatromil moléstias hereditárias. Para tanto tem procurado identificar oscem mil genes existentes nos quarenta e seis cromossomoscomponentes do genoma humano.

Para Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma Humano constitui umdos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXIe um dos mais fascinantes estudos que poderia ter sido feito nesta novaera científica. Com isso o genoma humano,

que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum dahumanidade (art. 1º da Declaração Universal sobre o Genoma e DireitosHumanos), passará a ser a base de toda pesquisa genética humana dospróximos anos. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genéticoda espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genomahumano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando asdiferenças entre uma célula maligna e uma normal para obterdiagnósticos de terapias melhores.5

A importância da descoberta do genoma humano reside napossibilidade de se personalizar a medicina, ou seja, realizartratamentos que se baseiam em conhecimento mais detalhado dafisiologia de cada pessoa, uma vez que o código genético dapessoal determina, em muitos casos, sua reação a ummedicamento, inclusive efeitos colaterais.

Entretanto, às esperanças de cura acopla-se um biopoderincomensurável, decorrente das possibilidades de métodos tecnológicossofisticados de cerceamento da liberdade e aumento da opressão raciale étnica, além do biopoder implícito ao saber manipular a vida viatransgenicidade, hibridismo e clonagem, segundo Celeste Leite dosSantos Pereira Gomes e Sandra Sordi.6

Para as autoras, o Projeto Genoma Humano visa decodificar asinformações contidas nos nossos cromossomos. Ou seja, isso implicaa decodificação de três bilhões de elementos que compõem o livroda vida. Mas, segundo elas, uma vez seqüenciado cada gene eidentificada a informação que contém, assim como o lugar que ocupano cromossomo, não parece complexo imaginar o passo seguinte:

5 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do BiodireitoO estado atual do BiodireitoO estado atual do BiodireitoO estado atual do BiodireitoO estado atual do Biodireito. SP: Saraiva, 2002, p.388/389.6 GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira & Sordi, Sandra. Aspectos Atuais do Projeto Genoma Humano, in SANTOS,Maria Celeste Cordeiros Leite (Org), BiodireitoBiodireitoBiodireitoBiodireitoBiodireito: ciência da vida, os novos desafios. SP: RT, 2001, p. 169-195.

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“tratar de modificar o genoma, extraindo cromossomos supernumerários,agregando genes sãos, eliminado os que apresentem deficiências, oualterando-os.” 7

O Projeto Genoma fará com que os genes sejam identificados e ainformação concentrada neles poderá determinar vidas humanas edestruir iniciativas pessoais. A dignidade e liberdade humanas nãopodem ficar à mercê da manipulação biocientífica. Poderiam seestabelecer bancos de dados de DNA individual e as agênciasgovernamentais, a polícia, os empresários, as companhias de seguros,os empregadores, etc., poderiam fazer mau uso dos mesmos. Opotencial do Projeto Genoma é para o bem, mas suas dimensõesultrapassam nossa imaginação e mostram a crescente complexidadedesse campo. As questões éticas colocadas no projeto dizem respeito,essencialmente, ao acesso e ao uso das informações e à apropriaçãoeconômica e jurídica de seus resultados.

Segundo a Declaração de Bilbao, celebrada em ReuniãoInternacional nos dias 24 a 26 de maio de 1993, na Espanha, asreflexões feitas e conclusões obtidas foram as seguintes:

O desenvolvimento total da cartografia do genoma humano abrirá umanova era na investigação da natureza, estrutura e funções dos genes, oque proporcionará uma visão nova – até agora inimaginável – da fisiologiahumana e permitirá conhecer as enfermidades genéticas. De fato já seidentificaram as bases moleculares de um grande número deles e, à medidaque o projeto avance, são de esperar novos descobrimentos, novas terapiasde prevenção e melhora da saúde humana. O projeto contribuirá tambémpara definir a identidade individual com uma exatidão sem precedentes.Há que se reconhecer, sem dúvida, a existência de alguns perigos, unsconhecidos, e outros que se intuem. É a outra face do projeto. Osparticipantes da Reunião Internacional lembraram alguns lamentáveisexemplos do mau uso da experimentação científica e de práticas eugênicasem décadas anteriores, que servem para alertar a Humanidade, os cientistase os juristas, sobre certos riscos que podem surgir à medida que o ProjetoGenoma Humano avance. Os participantes são conscientes também dapossibilidade de utilizar a informação genética para dividir grupos ediscriminar pessoas, em definitivo, para vulnerar direitos humanosuniversalmente admitidos. Por isso, consideraram oportuno estabelecercertos princípios que devem ser respeitados. Todas as sociedades civilizadas

7 Idem, ibidem, p. 171.

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se organizam legalmente apoiadas no princípio de respeito à dignidadehumana e na proteção dos direitos humanos individuais. As variaçõesgenéticas, do mesmo modo que a diversidade social, constituem atributosdos seres humanos livres. A idéia de uma ‘perfeição’ genética e daeliminação, por meios genéticos, da preciosa variedade da humanidade ésocialmente repulsiva e apresenta um grande risco para a espécie humana,que tem sobrevivido e evoluído, como resultado das inúmeras diferençasgenéticas individuais. Por isso a variedade cultural demanda um definidoe harmônico marco de leis nacionais e acordos internacionais.8

Para Maria Celeste Cordeiro dos Santos, os temas abordados naDeclaração, destacaram a existência de problemas legais a resolver,tais como:

1 – Incidência da genética na liberdade da pessoa, na formação davontade, na conduta humana e, como conseqüência, em suaresponsabilidade ou culpabilidade, o que tem especial repercussão nodireito penal; 2 – Respeito aos direitos humanos, segundo estãoconsagrados nas Constituições dos Estados democráticos e acordosinternacionais, como limite na utilização de técnicas genéticas referentesao ser humano; 3 – Proteção à intimidade pessoal ou confidencialidadena informação genética e determinação dos supostos em que é possívelalterá-la ou transformá-la; 4 – Patenteamento dos genes e seqüênciashumanas fixando limites, direitos de propriedade, benefícios econômicos;5 – Fixação de limites precisos para certas formas de engenharia genéticaque afetam a individualidade, identidade e variabilidade do ser humanopor grave risco que supõem para a dignidade pessoal e para a evoluçãonatural da herança genética; 6 – Utilização da informação genética nocampo de seguros e utilização de provas genéticas no campo trabalhista,quando envolverem discriminações não justificáveis; 7 – Tensão entre ademanda de liberalização total na utilização ou aplicação da investigaçãoe experimentação científica e a proteção de certas liberdades humanasque podem correr riscos pela difusão e utilização não autorizada deinformação genética.9

A enumeração da seqüência dos pares de base que formam o DNAtraz inúmeros benefícios à espécie humana, ao mesmo tempo quegera inúmeros problemas do ponto de vista jurídico, na lição de Fláviade Paiva Medeiros de Oliveira.

8 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 66.9 Idem, ibidem, p. 66/67.

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Para a autora, os benefícios podem ser assim resumidos:

a) melhora do nível de vida do ser humano, ao permitir conheceras alterações genéticas que acarretam anomalias molecularescapazes de deteriorar o funcionamento das células;

b) permite uma administração individualizada de medicamentos,feita de acordo com a alteração genética e com a anomalia molecularconstatada, sendo esta administração de fundamental importânciano tratamento de algumas doenças como, por exemplo, o câncer, omal de Alzheimer e a esquizofrenia.

Em contrapartida, os problemas jurídicos suscitados também sãoinúmeros, tais como os relativos à divulgação dos dados obtidose que fazem parte da informação genética secundária do serhumano, a proteção da privacidade frente a terceiros nos aspectosconcernentes, por exemplo, às relações trabalhistas e àsseguradoras, ao dilema sobre revelação de dados genético, aoassessoramento genéticos, ao diagnóstico pré-natal e ao abortoeugênico, entre tantos outros que têm relação com o princípio dadignidade humana.10

Maria Celeste Cordeiro dos Santos salienta que a chegada daengenharia genética possibilitou a modificação programada dopatrimônio genético de uma célula e, portanto, do organismo a que acélula pertence, seja este um organismo monocelular ou pluricelular e,inclusive, até a construção de novas formas de seres vivos. CitandoMantovani afirma que as vantagens potenciais da tecnologia ética residem:

“a) sobre o plano industrial e agrícola para produção de alimentos,energias e matér ias pr imas; b) sobre o plano da terapiafarmacológica para a produção de proteínas humanas e animais ec) sobre o plano da terapia gênica, cheia de promessas para otratamento e eliminação de enfermidades devidas a imperfeiçõesgenéticas (inclusive o câncer). No entanto ressalta que são grandesos riscos de que “as tecnologias genéticas sejam usadas não com epara o homem, mas contra o homem; e com a exigência cada vezmaior, de que surja uma regulamentação jurídica que fixe os limitesde sua licitude assim como seus controles.”11

10 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 36.11 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 161.

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Com efeito, a autora leciona que:

Os instrumentos jurídicos são o meio adequado, ainda que não o único,e muitas vezes tampouco o mais eficaz, para regulamentar essasatividades vinculadas ao patrimônio genético. Eles devem garantir quetodos os seres humanos se beneficiem dos progressos derivados dasinvestigações sobre o genoma humano e ao mesmo tempo os protejade suas aplicações desviadas ou não desejáveis.12

Por fim, urge a tomada de medidas, inclusive legislativas, queorientem os cientistas em seu trabalho na seara da biotecnologiapara salvaguardar a sobrevivência da espécie humana e o respeitoda dignidade do ser humano, evitando sua coisificação, pois comovimos, a biotecnologia poderá lesar alguém ou alterar suaqualidade de ser único e irrepetível e até mesmo modificar seupatrimônio genético, transformando sua identidade e a dasgerações presentes e futuras. Tal é a gravidade do assunto, que aConstituição Federal, no art. 225, § 1º, incumbiu o Poder Públicode preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genéticodo País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e àmanipulação de material genético. As implicações éticas dosavanços biotecnológicos são conducentes a um paradigma deracionalidade ética contido no art. 1º, III, da Carta Magna, orespeito à dignidade humana, que deve servir de diretriz a todoaplicador do direito, inclusive ao Poder Legislativo. Para MariaHelena Diniz, “O respeito que o ser humano deve a si mesmo é averdadeira medida da atuação do direito para assegurar aadequação da conduta dos cientistas às pautas axiológicas querealizem e concretizem o fundamento constitucional da dignidadehumana, pois, se assim não fosse, transformar-se-ia o homem desujeito em objeto, de fim em meio, assegurando-se sua destruiçãoe não sua sobrevivência.”13

12 Idem, ibidem, p. 74.13 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p.385/386.

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3. Limites Éticos e Jurídicos de Investigação em SeresHumanos

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, IX, proclama al iberdade da at iv idade cient í f ica como um dos direi tosfundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e nãocontenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicosreconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade físicae psíquica, a privacidade, etc. Que poderiam ser gravementeafetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. Nessepasso, Maria Helena Diniz ensina que “Nenhuma liberdade deinvestigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo apessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá asrestrições que foram imprescindíveis para a preservação do serhumano na sua dignidade.”14

Para a autora, os bioeticistas devem ter como paradigma o respeitoà dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do EstadoDemocrático de Direito e o cerne de todo o ordenamento jurídico.Assim sendo, “não poderão bioética e biodireito admitir conduta quevenha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando delasua dignidade e o direito a uma vida digna”.15

Mas, qual o significado de dignidade do homem, quando se estádiante de uma infinidade de valores em sociedades plurais?Significativamente, por dignidade do homem entende, Maria deFátima Freire de Sá, ser “‘o maior dos valores’, ou o ‘princípio jurídicosupremo’, ou ainda o ‘princípio constitucional supremo’”.16

Foi nesse sentido que a Declaração sobre a Utilização do ProgressoCientífico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício daHumanidade, em seu art. 6º dispõe: “Todos os Estados adotarãomedidas tendentes a estender a todos os estratos da população osbenefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nosaspectos sociais quanto materiais, das possíveis conseqüênciasnegativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico,inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo

14 Idem, ibidem, p. 7, 8.15 Idem, ibidem, p. 17.16 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. BiodireitoBiodireitoBiodireitoBiodireitoBiodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 96/97.

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ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privadae à proteção da pessoa humana e de sua integridade física eintelectual.” No mesmo passo a Convenção sobre Direitos Humanose Biomedicina, em seu art. 2º prescreve: “os interesses e o bem-estardo ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado dasociedade ou da ciência”.

O Projeto Genoma Humano, por sua própria natureza e em razãode ser a herança da humanidade, envolve muitas questões ético-jurídicas, como:

a) O Direito à vida, fundamento de todos os demais direitoshumanos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercíciode todos os demais direitos. A vida humana é amparada juridicamentedesde o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo peloespermatozóide (CC, art. 2º, Lei n. 8.974/95 e CP arts. 124 a 128). Odireito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direitode nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalhohonesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF, arts. 5º, LXVII, e229), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), nascituro,criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicasou psíquicas (CF, art. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ouque haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico.

O direito à vida deverá ser respeitado ante a prescriçãoconstitucional de sua inviolabilidade absoluta, sob pena de se destruirou suprimir a própria Constituição Federal, acarretando a ruptura dosistema jurídico. Seria inadmissível qualquer pressão no sentido deuma emenda constitucional relativa à vida humana, como, porexemplo, a referente à legalização do aborto, pois o art. 5º é cláusulapétrea.

Por isso, entende Maria de Fátima Freire de Sá que:

A liberdade e a dignidade são valores intrínsecos à vida, erigidos àcategoria de princípios, de modo que não deve a vida ser consideradabem supremo e absoluto, acima dos dois primeiros valores, sob pena de oamor natural pela vida transformar-se em idolatria. E a conseqüência doculto idólatra à vida é a luta, a todo custo, contra a morte.17

17 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Op. cit. p. 111.

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b) O respeito aos direitos e à dignidade humana, pois todos têmdireito ao reconhecimento desta, independentemente de seuscaracteres genéticos, conforme dispõe a Declaração Universal doGenoma Humano e dos Direitos Humanos nos arts. 2º e 6º, 10, 11,15, 21 e 24, prescrevendo especialmente que “nenhuma pesquisarelativa ao genoma humano poderá prevalecer sobre a dignidadehumana e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais,nem mesmo sendo permitidas quaisquer práticas contrárias àdignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos”(arts. 10 e 11). Além disso, a Declaração Universal dos DireitosHumanos das Gerações Futuras estabelece no art. 3º que é “proibidocausar dano, de qualquer maneira que seja, à forma humana de vida,em particular com atos que comprometam de modo irreversível edefinitivo a preservação da espécie humana, assim como o genomae a herança genética da Humanidade, ou tendam a destruir, no todoou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Nomesmo sentido a Convenção para a Proteção dos Direitos Humanose a Dignidade do Ser Humano em face da Biologia e da Medicina,subscrita em 1996 por 21 membros do Conselho da Europa, nacidade de Oviedo, capital das Astúrias na Espanha, determina que“Nada pode atropelar a dignidade humana, valor máximo que é.Os interesses do ser humano só não têm prevalência sobre ameaçasà saúde e segurança pública, bem como direitos a liberdade doscidadãos. Engenharia Genética: só será permitida com fins preventivospara diagnóstico e terapia. Jamais poderá alterar o patrimôniogenético da descendência”.

c) Direito à intimidade genética (preservação da privacidade dainformação genética), amparado pela Declaração Universal sobre oGenoma Humano e Direitos Humanos da Unesco (1997) e peloCódigo de Nuremberg (1947). Há de reconhecer-se a existência deum novo âmbito inviolável em cada pessoa, constituído por suaestrutura genética própria dentro da qual resultará ilícita toda aintromissão arbitrária e toda publicidade posterior. O art. 7º daDeclaração reza: “se deverá proteger nas condições estipuladas pelalei a confidencialidade dos dados genéticos associados com umapessoa identificável”. No mesmo sentido o art. 5º esclarece quepesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem o genoma de uma

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pessoa só poderão dar-se após uma rigorosa avaliação prévia dospotenciais riscos e benefícios a serem incorridos, depois deconsentimento prévio, livre e informado da pessoa envolvida. ADeclaração de Bilbao também assinala: “A intimidade pessoal épatrimônio exclusivo de cada pessoa e deve ser imune a qualquerintromissão. O consentimento informado é requisito indispensável parainterferir nela”. Além disso, no novo Código Civil brasileiro, o art. 15traz a seguinte redação: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico, ou intervenção cirúrgica”.

Para a professora Maria Helena Diniz:

O DNA é a imagem da sua pessoa e representa um tipo especial depropriedade por conter informações diferentes de todos os outros tipos deinformação pessoal. Suas imagem científica não deve ser invadida, pormera curiosidade, pois exame e rastreamento genéticos apenas podem serrealizados por razões terapêuticas e com o consenso da pessoa ou de seusfamiliares.18

d) Direito à liberdade. Na análise genético-preventiva o pacientepode inteirar-se de antemão de sua propensão à enfermidades graves,de revés esta informação, se conhecida por terceiros, pode acarretara estigmatização social. Em caso de terapia genética, a pessoa deveser informada dos procedimentos, riscos e probabilidade de cura,devendo assim seu consentimento ser prévio, livre e informado. Urgesalientar, ainda, “que deve ser respeitado o direito da pessoa de decidirse será ou não informada dos resultados dos seus exames genéticos edas conseqüências resultantes. Cada pessoa tem, portanto, o direitoinalienável de conhecer ou não a informação contida em seus genes”,na lição de Maria Helena Diniz.19

e) Direito à igualdade. O desenvolvimento do Projeto GenomaHumano traz consigo a possibilidade de uma nova forma dediscriminação de caráter biológico, baseando-se no código genético,o que fere o princípio da igualdade de todos os homens, presente emtodas as sociedades democráticas. Nesse passo, a Convenção para

18 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 394/395.19 Idem, ibidem, p. 393.

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a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano,com respeito à aplicação da Biologia e da Medicina, no cap. IV:“genoma humano”, art. 11 expressamente prevê:

i) não discriminação, sob pena de ferir o princípio da igualdadeconstitucional. O desenvolvimento do Projeto Genoma Humano trazconsigo a possibilidade de uma nova forma de discriminação decaráter biológico, baseando-se no código genético.20

ii) teste genético indicativo: enquanto sirva para identificar o sujeitocomo portador de um gene responsável de uma doença ou a descobriruma predisposição genética a uma doença, podem ser efetuados sócom finalidade sanitária, desde que respeite a vida e a integridade enão envolvam riscos, antes tenham em vista a cura, a melhoria dascondições de saúde ou a sobrevivência individual.

iii) intervenções sobre o genoma humano: aquela capaz de modificar

20 - O Projeto de Lei do Senado Federal 149/97 define crimes resultantes de discriminação genética as seguintescondutas: negar, limitar ou interromper cobertura de plano de saúde com base em informação genética doestipulante ou segurado, assim como estabelecer prêmios diferenciados com base em tal informação; negar, limitarou interromper cobertura por plano de saúde com base em informação genética do contratante ou beneficiário,assim como estabelecer mensalidades diferenciadas com base em tal informação; recusar, negar ou impedirmatrícula, ingresso e permanência de alunos em estabelecimentos de ensino público ou privado; impedir inscriçãoem concurso público ou qualquer outra forma de recrutamento e seleção pessoal com base em informação genéticado postulante; impedir casamento ou convivência familiar e social de pessoas, com base em informação genéticadas mesmas; divulgar informação genética de uma pessoa, a menos que haja prévia autorização por escrito.- A título de exemplificação, citamos as seguintes situações de discriminação: Na Alemanha foi elaborado “umarquivo de dados” de DNA de todas as pessoas condenadas por homicídio, estupro, agressão sexual, abuso ecorrupção de menores. A Inglaterra recentemente anunciou a criação de um banco de dados de DNA para osmeramente suspeitos de práticas de crimes. Trata-se de uma forma de controle social, política de exclusão, dediscriminação genética, em muitos contextos da vida de relação. Nos Estados Unidos, Terri deveria ser uma históriade sucesso científico. Uma falha genética torna-a suscetível a paradas respiratórias. A descoberta pode salvar suavida, mas fez com que perdesse o emprego. Foi demitida o ano passado porque foi considerada “um risco”. Foi oprimeiro caso de discriminação genética dos EUA (Folha de SP, 20.09.2000, p. A-11). Centenas de americanosestão perdendo o emprego ou seguro-saúde por causa dos avanços genéticos. Só em Massachusetts foramrelatados 582 casos de pessoas discriminadas por “falhas” em seus genes. Mas o lobby de empresas e seguradorasestá impedindo o Congresso de aprovar legislação para impedir o acesso a informações genéticas e o seu uso comocritério para contratar e demitir.- Outro fator importante a ser analisado dentro da não-discriminação é a chamada eugenia – ciência que estudaas condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. Especialistas afirmam, que em anospróximos, marcadores genéticos para características humanas como altura, peso ou mesmo coordenação motora,tendência musical e habilidade intelectual, poderão estar disponíveis no mercado. Na Índia, por exemplo, milharesde abortos já são realizados somente com base no sexo do feto. Nos Estados Unidos, um alarmante estudo revelouque 10% das mulheres entrevistadas não hesitariam em abortar uma criança propensa à obesidade. No próximoséculo, as informações reveladas pelo Projeto Genoma permitirão aos médicos selecionar os fetos, produzindo emlaboratório um extraordinário número de características físicas e comportamentais. Pela primeira vez na história, ospais decidirão que tipo de criança nascerá. Em outros termos, a eugenia é a manipulação genética que de per seimplicaria a possibilidade de os pais escolherem o sexo de seus bebês, troca de genes supostamente defeituosospor outros “sadios”, escolhas de ordem estética, racial que comportaria uma forma de seleção artificial da espécie.

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o genoma humano pode ser realizada somente com finalidadepreventiva, diagnóstica ou terapêutica, e só se o seu objetivo não foraquele de introduzir qualquer modificação no genoma de qualquerdescendente; é o caso, por exemplo, da terapia genética, em que apessoa deve ser informada dos procedimentos, riscos e probabilidadede cura, devendo assim seu consentimento ser prévio, livre einformado, o que vem de acordo com o art. 7º do Pacto Internacionalde Direitos Civis e Políticos de 16/12/1966, que traz como fundamentoda ética biomédica o princípio do livre consentimento de uma pessoasubmetida a um experimento científico ou médico.

iv) proibida a criação de embriões humanos com a finalidade depesquisa: atualmente a França, através da Lei n. 94.653 de julho de1994, castiga com pena de 20 anos de reclusão, a prática de eugeniadirigida a organização e seleção de pessoas, e com pena de 7 anosde prisão e 700 mil francos de multa, a concepção in vitro de embriõescom fins industriais ou comerciais.

4. O atual conceito de intimidade e sua regulaçãono novo Código Civil.

Tradicionalmente, o direito à intimidade foi concebido como odireito do ser humano a manter intacta, desconhecida, incontaminadae inviolada sua zona íntima e familiar. Noutros termos, consiste nafaculdade atribuída ao ser humano de manter um âmbito próprio ereservado frente à ação e conhecimento dos demais, considerando-se como um direito necessário para desfrutar de uma mínimaqualidade de vida.

No entanto, em conseqüência das novas tecnologias informáticase biológicas, impõe-se conceituar a intimidade como sendo a garantiaconferida ao ser humano de que ele não será vítima de intromissõesou investigações indesejadas sobre sua vida privada e que taisintromissões não podem ser divulgadas, assim como a garantia deque os dados pessoais do ser humano que se tornem conhecidos porqualquer meio, sejam eles biológicos ou informáticos, não serãopropagados indiscretamente.

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Portanto, formam parte do conteúdo do direito à intimidade umaspecto corporal e outro não corporal, que se refere às recordações,à imagem, à identidade, aos dados armazenados em registros ecomputadores, à vida familiar, à vida conjugal e amorosa, às afeições,às comunicações pessoais e ao domicílio.

A genética, por sua vez, faz com que seja necessário falar emintimidade genética, que consiste na garantia conferida ao ser humanode determinar as condições de acesso à informação genética. Talintimidade compreende dois elementos.

O primeiro consiste no elemento objetivo, integrado pelo própriogenoma ou por qualquer tecido ou parte do corpo humano em queseja possível encontrar a informação genética, assim como pelo direitode ter acesso às informações contidas no genoma. O segundoelemento, denominado de subjetivo, consiste na autodeterminaçãoinformativa, ou seja, na garantia conferida à pessoa investigada dedeterminar quem e em que condições é possível ceder as informaçõessobre o genoma.

O problema do ponto de vista do direito à intimidade, pode serresumido nas seguintes perguntas: quem e como informar os dadosgenéticos obtidos através da técnica de seqüência do genomahumano? Quais os requisitos que devem ser observados na obtençãoe transmissão dos dados obtidos?

O novo Código Civil tutela a intimidade no capítulo relativo aosdireitos de personalidade, protegendo os aspectos não corporais daintimidade nos arts. 16, 17, 18, 19 (que tratam do direito ao nome) eno art. 20 (que trata do direito à imagem), enquanto o aspecto corporalda intimidade se encontra tutelado no art. 21, que faz referência à vidaprivada como direito inviolável do ser humano, cabendo ao juiz, arequerimento do interessado, adotar as providências necessárias paraimpedir ou fazer cessar ato contrário a este direito.

A regulação dispensada pelo novo Código Civil à intimidade émuito escassa e, além dos aspectos clássicos relativos ao nome e àimagem, não enfrenta os problemas suscitados com a clonagemhumana, nem tampouco com a repercussão jurídica causada peladeterminação das seqüências de bases do DNA.

Com efeito, com base na Declaração Universal sobre o GenomaHumano e Direitos Humanos de 1997 e pela Declaração Ibero-latino-americana sobre ética genética, revisada em Buenos Aires em 1998,

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o novo Código Civil poderia ao menos ter lançado as bases geraispara enfrentar o problema relativo às conseqüências jurídicas doProjeto Genoma Humano sobre o direito à intimidade e demaisdireitos de personalidade.21

Segundo Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, essas bases legaisatinentes à intimidade, que posteriormente poderiam servir para aelaboração de lei que tratasse especificamente da matéria e de outrosaspectos relativos à genética, como é o caso da clonagem, podemser assim resumidas:

I) quanto aos princípios gerais, devem ser observados os seguintes:- consentimento prévio livre e informado da pessoa interessada quedeve ser considerado em três momentos: a) autorização da pesquisa outratamento terapêutico; b) divulgação dos dados obtidos; c)armazenamento desses dados;- privacidade da informação genética e exigência de consentimentoexpresso para sua revelação a terceiros;- não-utilização de informações genéticas com efeitos discriminatórios.

II) quanto aos direitos da pessoa submetida à análise científica outerapêutica, sobressaem:- o direito à privacidade de cada pessoa com relação à manipulação,ao armazenamento e à difusão da informação genética individual,garantindo-se o não-uso dessas informações para fins diversos dos quemotivaram sua coleta;- o direito a ser informado, ou não, dos resultados de teste genético e desuas conseqüências, vez que esse direito é um dos pressupostos necessáriosao respeito da vida privada;- o direito à indenização em caso de violação da privacidade e daintimidade, na hipótese de inobservância do dever de confidencialidadee de utilização das informações genéticas com intuito discriminatório.

III) quanto aos deveres do profissional envolvido na pesquisa genética:- dever de guardar confidencialidade sobre a informação genética obtida;

21 A Lei n. 8.974/95 (Lei de Biossegurança) estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicasde Engenharia Genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte deorganismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bemcomo o meio ambiente, em seu art. 8º, incisos II, III e IV, veda, constituindo crime com pena de detenção ou reclusão variávelde acordo com a gravidade do resultado:II – a manipulação genética de células germinais humanas;III – a intervenção em material genético humano “in vivo”, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-seprincípios éticos, tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência;IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.

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- dever de evitar a propagação indiscreta das informações genéticas,velando sempre para que a apresentação e utilização dos resultadoscientíficos obtidos sejam feitos respeitando a intimidade, a privacidade eo anonimato das pessoas que tiveram seu genoma investigado.22

Quanto à proteção aos princípios da autodeterminação e daintimidade da pessoa examinada, vimos ao estudarmos o direito àintimidade genética que o art. 5º da Declaração Universal do GenomaHumano e dos Direitos Humanos protege a vida privada da pessoaenvolvida em pesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem ogenoma humano. Ou seja, refere-se à autonomia privada do paciente,que no momento em que emitir sua decisão, deve estar esclarecidodo diagnóstico, do tratamento mais adequado a se implementar ede seus efeitos, positivos e negativos. A decisão deve ser revestida domaior número possível de informações, que devem ser passadas deforma clara e abrangente, avaliando as opções de tratamento, riscose benefícios. Nos dizeres de Francisco Amaral, autonomia privada é“o princípio pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar umato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos”.23

Quanto ao direito à indenização nos casos acima mencionados,refere-se à justiça no uso da informação genética para garantir eproteger os direitos de todos, inclusive de populações vulneráveis,como crianças, deficientes físicos e mentais, índios etc. Todo indivíduotem direito, segundo a lei internacional e nacional, à justa reparaçãopor danos morais e patrimoniais sofridos em razão de intervençãoque tenha afetado seu genoma (art. 8º da Declaração Universal doGenoma Humano e dos Direitos Humanos).

Quanto à segurança e a eficácia da medicina genética, MariaHelena Diniz assegura que o projeto de um mapa genético somentepoderá ser efetivado por um médico, sendo vedadas a transmissão,a recopilação, o armazenamento e a valoração dos dados genéticospor parte de organismos estatais ou privados. Assim sendo, afirma,“as responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores,incluindo o cuidado, a cautela, a honestidade intelectual e aintegridade na realização de suas pesquisas e ainda na apresentaçãoe utilização de suas descobertas, deverão ser objeto de atenção

22 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 38.23 AMARAL, Francisco. Direito CivilDireito CivilDireito CivilDireito CivilDireito Civil: Introdução. RJ:Renovar, 2000, p. 337/338.

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especial no quadro das pesquisas com o genoma humano, devido asuas implicações ético-sociais.” 24

Considerações finais

Esqueceu o redator do novo Código Civil que a genética é umaspecto real e atual da vida humana e um fenômeno em constante econtínua evolução, razão pela qual se faz necessário estabelecerprincípios que permitam a evolução desse fenômeno científico semque haja agressão ao ser humano em seu bem mais fundamentalque é a dignidade, não servindo como justificativa para uma não-regulação legal de tais princípios a alegação de que ainda é cedopara tentar plasmar critérios definitivos sobre o tema.

Deveria, especialmente, ter o legislador atentado para o fato deque o genoma humano é a base fundamental do indivíduo, assimcomo não se deu conta de que se trata do fundamento para oreconhecimento da dignidade e diversidade intrínseca do ser humano.O que significa que qualquer manipulação indevida do genomaimplica uma violação da dignidade do ser humano.

Estamos em um momento chave para a humanidade. No futuroconheceremos as origens de nossa espécie, sua maravilhosavariedade, suas relações com todas as criaturas, seu lugar no meioambiente e sua visão de futuro. É essencial que os cientistas, filósofos,médicos e juristas de hoje sejam capazes de responder às indagaçõesdesta nova era com um sentido de justiça global.

Ao se defrontar com novos horizontes, o homem deve realizar umareflexão ética sobre os objetivos a alcançar e as possíveisconseqüências, e nenhum objetivo, por mais benéfico que seja, podeser obtido através de ofensa ou degradação ao ser humano.

Em outras palavras, a intervenção do Direito visa a esclarecer práticasque permaneceram muito tempo alijadas do processo jurídico e queprecisam, mais do que nunca, do reconhecimento da ordem jurídica, nãosó pela garantia que este reconhecimento gera, mas e sobretudo porquelegitimadas pelo Direito refletem valores dominantes da sociedade; porqueo homem precisa de limites para administrar sua própria liberdade.

24 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 395.

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A lei se revela um instrumento suficientemente maleável para regularas questões relativas à bioética. Ela deve interferir rapidamente, seajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largodebate parlamentar, vem imantada da legitimidade capaz de garantira validade de sua inserção no meio social concretizando o escopoúltimo de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgateda dignidade humana.

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