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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi Geografia e Música: Leituras geográficas da construção da identidade brasileira através da música MESTRADO EM GEOGRAFIA São Paulo 2014

Geografia e Música: Leituras geográficas da construção da ... Cristina... · de qualificação, e ao meu orientador, Professor Dr. Douglas Santos, cuja pertinência e atenção

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi

Geografia e Música: Leituras geográficas

da construção da identidade brasileira

através da música

MESTRADO EM GEOGRAFIA

São Paulo

2014

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Sheila Cristina Panigassi Tamburo Ortega Rumi

Geografia e Música: Leituras geográficas

da construção da identidade brasileira

através da música

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Mestre em GEOGRAFIA, sob a

orientação do Prof. Dr. Douglas Santos.

São Paulo

2014

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

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Dedico esta dissertação ao meu

Pai, Vagner Tamburo (in memoriam)

e a minha Mãe, Ignez Panigassi Tamburo.

Dedico também ao professor

Dr. Douglas Santos,

um Mestre que,

desde a época da Graduação

da PUC-SP, despertou em mim

o estímulo e o desejo

de buscar nas pesquisas acadêmicas

as perguntas e respostas

mais profundas sobre o mundo.

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Agradecimentos

Ao meu orientador, Prof. Dr. Douglas Santos, que me acolheu com muita

generosidade, com quem, durante a realização desta pesquisa, tive a

oportunidade de compartilhar momentos de profundo aprendizado, ansiedades,

dúvidas, respeito, debates e satisfação. Sou especialmente grata pela maestria

com que a orientação foi conduzida, sempre pautada na responsabilidade,

paciência, sabedoria e abertura ao diálogo e questionamento.

A Profa. Dr. Cecília Cardoso (PUC-SP e FSA) e ao Prof. Dr. Jorge

Barcellos da Silva (UFG), pelas ricas contribuições a esta pesquisa no exame

de qualificação, e ao meu orientador, Professor Dr. Douglas Santos, cuja

pertinência e atenção na leitura foram essenciais para o bom encaminhamento

e finalização da pesquisa.

A minha mãe Ignez, pelas palavras diárias de incentivo e motivação.

Sem seu encorajamento e colaboração, nada seria possível.

Ao meu marido Ricardo, pela compreensão e paciência nos meus

momentos de recolhimento e silêncio.

Aos colegas da PUC-SP, Jonathas, Katia, Carol e Rangel, pelo

estimulante e descontraído convívio acadêmico.

A um grupo especial de seres humanos que fizeram e fazem minha vida

melhor: Dr. Milton Godoy, Ciça e Élvio, Mara, Cristóvão B., Eugênio, Luciana,

Iva e Ione, Raquel e Sérgio, Manu & Cia, Nazaré.

A todos que, direta e indiretamente, ajudaram-me a construir este

trabalho por meio de suas Teses, Livros e Pesquisas.

A Elaine, pelo profissionalismo na revisão e formatação.

Enfim, a todos que torceram e torcem por mim.

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Resumo

Este trabalho investiga o papel das artes, mais especificamente da

música, na construção da identidade nacional brasileira. Para isso, utiliza-se de

dois momentos históricos marcados por profundas transformações no país: o

projeto do maestro Heitor Villa-Lobos de implementar o canto orfeônico no

currículo escolar nacional sob o governo do presidente Getúlio Vargas (1930 a

1945). Esse projeto de ensino musical nas escolas buscava imbuir os alunos

do espírito cívico brasileiro, despertando e construindo a identidade nacional e

a noção de pertencimento ao território. No segundo momento, encontramos a

Ditadura Militar (1964 a 1985) e o movimento musical Tropicalista que é

examinado através das letras irônicas e de dupla conotação de seus

compositores, que buscaram denunciar (ao mesmo tempo que são censurados

e perseguidos) um Brasil marcado pelas desigualdades sociais, embora o

crescimento econômico do país demonstrasse progresso e desenvolvimento

através do fortalecimento de sua industrialização. A leitura geográfica é o meio

de interpretação e o fio condutor dos acontecimentos.

Palavras-chave: Geografia, Industrialização, Música, Brasil, Arte, Estado Novo,

Tropicalismo, Getúlio Vargas, Identidade Nacional, Urbano.

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Abstract

This paperwork investigates the use of the arts, more specifically, the

music, in the construction of the national Brazilian Identity. It does so by

tracking two distinguished historical moments known by profound

transformations in the country: Heitor Villa-Lobos´s musical Project based on

the introduction of “orpheon choirs” in public schools under the Getúlio Vargas´s

leadership (1930 to 1945). This musical project aimed to build an idea of

nationalism and the feeling of belonging to the Brazilian territory. The second

moment, we have the military dictatorship (1964 to 1985), and the musical style

known as “Tropicalista” examined through ironic lyrics and dubious

connotations of its composers, whom aimed to address (considering the

censorship of the moment) a Brazilian social and political position of inequality,

although the economical scenario presented progress and growth through its

industrialization. The geographical interpretations are the guideline for the

whole research.

Key-words: Geography, Industrialization, Music, Brazil, Arts, Estado Novo,

Tropicalism, Getúlio Vargas, National identity, urban.

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Sumário

Introdução .......................................................................................................... 8

Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano: cultura, identidade,

pertencimento e territorialidade. ....................................................................... 14

1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas ................................................................. 24

Capítulo 2 –Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas ........................................ 33

2.1 – O canto das multidões ....................................................................... 46

2.2 – A Geografia das batutas... ................................................................. 59

2.3 – E a Geografia das batucadas de Villa-Lobos ..................................... 60

Capítulo 3 – Utopia Panamericana ................................................................... 63

3.1 – Os 50 anos em 5 na Geografia do Brasil: .......................................... 64

3.2 – Dos anos de flores para os anos de aço ............................................ 70

3.3 – Os anos de aço e a contracultura: um recorte de 1964 a 1969 ......... 73

3.4 – A Contracultura .................................................................................. 75

Capítulo 4 – Miserere Nobis, Brasil. ................................................................. 78

Conclusão ...................................................................................................... 104

Bibliografia...................................................................................................... 108

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Introdução

Minha trajetória geográfica musical

(Antecedentes da pesquisa)

“A Geografia está em toda parte,

embora nem sempre sejamos suficientemente

geógrafos para isto perceber [...]”

Denis Cosgrove

Considerando as sábias palavras do geógrafo Denis Cosgrove, abro

este trabalho de pesquisa de Mestrado. Sempre fazendo uso da Ciência

Geográfica na elucidação, ou pelo menos na tentativa de compreender um

pouco melhor o mundo em que vivemos, fui buscar novamente (antes com a

Monografia de conclusão de curso da Geografia), elementos e respostas nas

pesquisas geográficas que me permitissem construir academicamente um

trabalho que sistematizasse certos questionamentos e anseios com relação à

geografia aliada ao campo musical. Sentimentos que sempre pulsaram, ora

como incômodo, ora como inspiração, mas que sempre estiveram latentes e

muitas vezes inconscientes, que foram amadurecendo, tomando forma com o

passar dos anos e só agora foi possível parar para buscar respostas e mais

perguntas.

Por que música? E por que com geografia? Música porque fui educada

em um ambiente em que a música era e ainda é tão importante e natural

quanto falar ou respirar. Minha mãe, formada em Piano Clássico, faz da arte de

ensinar e educar, através das aulas de Piano, sua profissão há mais de trinta

anos. Desde que me conheço por gente ouço o piano tocando em casa, por

isso, acabei também seguindo os passos de minha mãe e, muito cedo, com

pouco mais de dezessete anos, formei-me em piano clássico. Em meu

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percurso musical, compunham meus estudos diários e aulas semanais

compositores clássicos como Bach, Mozart, Beethoven, Bártok, Schubert,

Brahms, Chopin e outros vários. Dos compositores brasileiros considerados

eruditos, passei por: Francisco Mignone, Zequinha de Abreu, Heitor Villa-Lobos

e Ernesto Nazareth, tive contato com todos eles dos 07 aos 17 anos de idade,

ou seja, com capacidade técnica e talento musical, mas sem maturidade e

bagagem suficientes para entender o que estava tocando e interpretando.

Muito tempo depois fui resgatar e procurar entender essas experiências que,

juntamente com a experiência da vida e o despertar acadêmico, me

propiciaram os questionamentos mencionados anteriormente.

Geografia porque, ao ingressar na vida acadêmica no curso de

Geografia da PUC-SP, por um grande tempo trabalhei na área de

Geoprocessamento com Sistema de Informações Geográficas: uma discussão

e um saber técnico pouco explorados e muito recentes na academia e no

mercado de trabalho para a época, o Geoprocessamento permitiu que leituras

anteriormente pouco experimentadas e praticadas através de Mapas Digitais

fossem tomando forma e me dando experiência para ler o mundo através dos

mapas produzidos.

Após o trabalho com Geoprocessamento, passei quatro anos morando

em Londres, esta foi uma experiência marcante que, além de me expandir os

horizontes geograficamente falando, também me permitiu amadurecer como

brasileira e como geógrafa; a organização dos londrinos aliada à tecnologia e

precisão em mapas, localização e informação foram enriquecedores para quem

vê Geografia em tudo à sua volta. Além do mais, o cotidiano em outra língua e

outra cultura (no caso de Londres nada próximos da nossa realidade) me fez

lembrar diariamente o quanto sou cidadã brasileira. Esse sentimento de ser

brasileiro, esse patriotismo é o que mais nos acompanha quando estamos em

terras estrangeiras, e me parece ser nessas horas, fora de seu país, que você

se sente mais brasileiro: seja pelas diferenças na língua, pelas diferenças nos

hábitos e costumes ou pela falta de feriados prolongados!

Ao retornar ao Brasil, retomei minhas atividades acadêmicas em busca

do Mestrado como um grande objetivo a ser realizado. No campo profissional,

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resgatei meus conhecimentos musicais passando a trabalhar com

musicalização infantil e adulta, além de aulas de Piano Clássico.

Para completar o histórico de minha formação, as influências de meu Pai

também colaboraram muito para minha formação pessoal, cultural e

profissional, por considerá-lo uma pessoa muito à frente de seu tempo, ainda

muito pequena me despertou o interesse pela leitura, por filmes, livros, revistas,

jornais, música e línguas. Se de minha Mãe herdei o interesse pela Música e

pelas Artes, de meu Pai herdei o interesse pela leitura, pelas Grandes Guerras,

pela História, Geografia, Arqueologia, pela pesquisa, pela Ciência de uma

forma geral. Nesse sentido, ainda muito pequena ele me apresentou ao

universo musical brasileiro canções do chamado movimento Tropicalista:

cantores e compositores como Gilberto Gil e Caetano Veloso, a mutante Rita

Lee, e outros cantores como Moraes Moreira, Tim Maia, Roberto Carlos, bem

como as sessões musicais como Bach, Tchaikowsky, Vivaldi faziam parte de

nossa sala de jantar. Como é possível verificar, minhas canções de infância

não foram das mais infantis, e entendo dessa forma que esse estudo, além de

buscar na música elementos geográficos e novos horizontes de pesquisas

acadêmicas, significa também resgatar toda minha trajetória e formação

pessoal até o presente momento.

O esforço em unir Geografia e Música num mesmo trabalho, buscando

compreender como a territorialidade construída e espacializada pode ser

representada através de uma linguagem, e como essa linguagem pode ser

usada também para o caminho inverso, ou seja, para ajudar na construção e

consolidação de uma identidade nacional é o objetivo principal desse trabalho,

cabendo registrar que esta é uma tarefa nada simples.

A linguagem à qual me refiro e sempre será o objeto em questão é a

linguagem musical e terá o papel de nos ajudar a desvendar certas

representações de relações sociais, materializadas numa territorialidade

encontradas nas músicas citadas. Como disse Cosgrove “a geografia está em

todos os lugares”, porém a missão de interpretá-la e estruturá-la sobretudo

através das leituras musicais faz do desafio maior ainda. Sempre com esse

sentimento de que a música revelava uma geografia e que a geografia

construía uma música, continuei minha busca por esse belo e tortuoso

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caminho. Buscar nas fontes de Kant, que é uma referência no mundo

acadêmico, permitiu-me fazer a conexão da música com a geografia e dar

solidez para esta pesquisa.

Assim, conseguindo organizar alguns dos muitos questionamentos e

sentimentos com relação a esses temas, procurei organizar algumas perguntas

que aqui registro:

Por que certas canções e músicas nos transportam ou constroem,

ou nos enraiza a certos lugares?

Como interpretar e materializar esse processo? Como construir

academicamente esse processo?

De que forma a música pode construir e ser construída por uma

territorialidade? E dentro dessa territorialidade, como nossa noção

de pertencimento ao lugar é estabelecida? Que signos de uma

geograficidade fazem parte dessa construção?

São perguntas que talvez sejam respondidas até o final desse trabalho,

ou talvez não. O percurso mostrará. Mas para encerrar esse preâmbulo, deixo

mais uma brilhante colocação do geógrafo Denis Cosgrove: “A geografia serve,

antes de tudo, para ser apreciada”.

Assim me encontro em 2013. O Brasil que hoje é palco das mais

diversas formas de protestos e manifestações como, por exemplo, o

movimento pelo transporte gratuito (MPL), pelo direito de igualdade das

minorias, da igualdade dos sexos, do direito e acesso à educação superior,

bem como à inserção nos mercados de trabalho e consumo, enfim, ao acesso

e o direito à cidadania, é fruto e reflexo de um processo histórico-geográfico de

industrialização e modernização relativamente recente, além, é claro, dos

processos políticos aí envolvidos.

Considerando o caráter contemporâneo em que nossa sociedade se

encontra, pensando na história da revolução industrial recente, moderna no

sentido de ser ainda um tanto quanto jovem dentro das fases do capitalismo,

temos um crescimento dos meios de produção, leia-se industrialização, com

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pouco mais de sessenta anos de existência. Comparada a grandes potências

mundiais como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, somos muito jovens.

Nesse sentido, ao discutirmos questões como territorialidade e construção de

uma identidade, bem como a noção de pertencimento ao país, ao território, faz-

se necessário revisitar alguns momentos cruciais de nossa trajetória, para

compreendermos não só o momento em que nos encontramos hoje, mas

também para interpretar dois períodos distintos na história do Brasil que

marcaram momentos de ruptura com padrões à época consolidados e

definiram certas diretrizes na territorialidade brasileira e na construção do

nacional, os quais serão visitados nesse trabalho.

O primeiro período que será percorrido e investigado no capítulo I,

refere-se àquele que ficou conhecido como Estado Getulista, em que o

presidente Getúlio Vargas, ao assumir o comando do país em 1930, iniciou e

instaurou uma política de grande crescimento econômico e industrial no Brasil.

Compreendido entre os anos de 1930 e 1945, o governo e os planos do

estancieiro gaúcho ocorreram em meio a um cenário econômico mundial de

grandes incertezas: o crash de 1929 – a queda da bolsa de Nova York nos

Estados Unidos, que afetou a economia mundial – a crise cafeeira no Brasil e

as duas Grandes Guerras Mundiais. Esses eventos de extrema importância

certamente influenciaram nos acontecimentos que marcaram os rumos do

Brasil.

Precedendo os acontecimentos do Governo Getúlio Vargas, temos como

parte importante dessa análise o advento da Semana de Arte Moderna,

ocorrida em 1922, na cidade de São Paulo. O movimento que surgiu com a

proposta de renovação sobre o campo das ideias e da estética das artes tinha

como alvo a ruptura com as influências europeias tradicionais e a busca pelas

raízes nacionais. A busca por novos paradigmas em contraponto às velhas

normas acadêmicas no campo das artes: literatura, pintura, poesia, música,

artes plásticas, dança, teatro; a construção de uma nova e autêntica linguagem

nacional que retratasse o momento de transformações pelo qual o país

passava, eram as principais tônicas desse processo. É nesse contexto que se

destaca a figura do músico e maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos, que

analisaremos seu papel na busca por uma construção e afirmação da

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identidade nacional brasileira, bem como na construção da noção de

pertencimento ao território através da música, utilizando-se de composições

que retratavam o Brasil e também por meio do Canto Orfeônico.

O segundo momento compreendido nessa pesquisa diz respeito ao

intenso e tenebroso Regime ou Ditadura Militar, que historicamente definiu-se

entre 1964 até 1985. Esse período histórico, chamada por muitos brasileiros de

“negro” na sociedade e na vida do país, foi marcado sobretudo pela presença

das forças militares no poder, sob comando de governos ditatoriais: a

repressão instaurou-se sobre a vida de toda nação, tendo a censura como

principal ferramenta de controle da população. Nessa conjuntura política e

social do Brasil, temos o movimento da Tropicália – que ocorreu entre 1967 e

1968 – como questionador e revolucionário e que fez de suas produções

artístico-musicais, seu maior expoente no sentido de inovar na estética musical

e artística brasileira. Além de combater estrangeirismos, de procurar construir

uma linguagem genuinamente brasileira nas produções artísticas, o movimento

tropicalista utilizou-se dessa fértil fase cultural para protestar, denunciar e

combater um Brasil marcado pela violência e perseguição, marcado por

grandes diferenças sociais. Certas regiões viviam um Brasil arcaico e

escravista, com traços agraristas e culturas tradicionais beirando as capitanias

hereditárias, ao passo que outras como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais, por exemplo, viviam as relações de um Brasil que se modernizava, que

se industrializava e que buscava nesse processo se consolidar como potência

através de seu crescimento econômico baseado no modelo de consumo de

massa. O movimento tropicalista durou pouco, mas foi suficiente para dar ao

país o gosto da modernidade e do combate à liberdade de expressão.

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Capítulo 1 – Do Brasil agrário ao Brasil urbano:

cultura, identidade, pertencimento e territorialidade

A lendária Semana de Arte Moderna ocorreu em fevereiro de 1922, em

São Paulo, e ficou marcadamente conhecida como a “Semana de 22”. Embora

formalmente o evento tenha tido data para começar, uma segunda-feira, dia 13,

seus efeitos e influências não tiveram data para acabar, ao contrário,

perduraram por décadas e pode-se arriscar dizer que, até os dias de hoje,

podemos encontrar reflexos de suas influências no campo das ideias e das

artes no Brasil. A quebra dos modelos e regras vigentes até aquele momento, a

busca pela ruptura de velhos paradigmas, procurando subverter antigos

conceitos e formas na estética e na concepção da pintura, do teatro, da

literatura, da música, do cinema e da dança, numa busca pelo nacional e

original, eram os objetivos dos artistas que compunham o movimento, os quais

acabaram por influenciar as várias gerações que os sucederam.

A reunião dessa nata intelectual brasileira ocorreu por grandes

motivações de ordem ideológico-cultural; o modernismo veio como uma onda

revolucionária em todos os campos das artes, era o tom para que a

efervescência das ideias pudesse renovar o país culturalmente, procurando se

libertar dos modelos europeus. Inovar e transgredir, romper as barreiras das

influências europeias, encontrar a arte própria, que representasse o nacional e

o original do Brasil. Tratou-se do desejo pela ruptura com velhos paradigmas e

ditames, permitindo novas formas de se pensar o Brasil e, com isso, produzir

arte e cultura no país.

Para que toda essa efervescência circulasse, para que todas essas

ideias se espalhassem, São Paulo foi a capital eleita como veia condutora e

propagadora dessas mudanças; considerada moderna e menos conservadora

que o Rio de Janeiro, a cidade serviu de palco para as inovações e discussões

entre a classe intelectual tradicional e a então chamada modernista.

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Foi na terra da garoa que novas ideias circularam pelos cafés, teatros,

jornais, revistas além do rádio, que ganhou força com sua popularização no

transcorrer do tempo. O que à época se considerou progresso em meio à

paulatina industrialização que começou a ganhar fôlego na cidade com a

chegada e consolidação das indústrias, da mão de obra dos imigrantes e o

nascimento de um mercado consumidor nacional – sedento de novidades e

possibilidades. Foi em meio a tudo isso que surgiu um grupo de jovens artistas,

cansados dos tradicionalismos europeus, do velho e do tradicional que, com as

novas dinâmicas sociais, tomou a forma de anacronismos, procurando o

moderno e o singular para retratar a identidade nacional. Era no contexto dessa

mobilização intelectual e artística que vivia o jovem Heitor Villa-Lobos com sua

energia e brilhantismo, iniciando intensa carreira, tocando e compondo suas

obras musicais do começo de século. Foi também esse o momento da

efervescência urbana do país, em que o maestro compôs sua famosa série de

choros; segundo Squeff e Wisnik, tais composições foram frutos da mistura:

“matriz popular urbana, amalgamada com blocos de outras informações,

primitivas negras e indígenas, rurais, suburbanas e cosmopolitas [...]”, ou seja,

essa fase refletiu exatamente o momento de ruptura, de quebra dos padrões e

raízes europeias, na busca pelo novo e pela construção da identidade nacional,

pelo original brasileiro, espelhando o momento social e político no qual o país

se encontrava.

A exemplo dessa manifestação, é possível encontrar nos textos do poeta

e escritor Mário de Andrade, o desejo pelo novo e pelo nacional e a

consciência por essa busca; a pré-efervescência do modernismo de 22 já vertia

os primeiros sinais de esgotamento, da busca pela ruptura, que já vinha sendo

nutrida e alimentada, sobretudo após o final da primeira guerra mundial:

Surgiram governos novos, sistemas renovados de ciências,

assim como artes novas. A forma principal com que se

manifestou esse precipitar de ideais humanos, foi eles se

generalizarem universalmente e assumirem uma tal

correspondência com a atualidade, que o que não se

relacionava com a essas manifestações, cheirava a século

dezenove, cheirava a mofo, era passadismo. (Andrade, 1976,

p. 194)

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Algumas cidades do Brasil no início do século, sobretudo as capitais,

possuíam as condições ideais para participarem e contribuírem com

determinados movimentos sociais, culturais e políticos. No caso do

modernismo, e na cidade de São Paulo, algumas dessas pré-condições, de

acordo com o músico e pesquisador José Ramos Tinhorão, seriam: “a

consciência de um sentimento nacional alimentado politicamente [...]

exacerbamento do orgulho patriótico [...] durante o governo do Marechal

Floriano Peixoto, e pela descoberta das perspectivas do mercado interno como

fonte de riqueza para a crescente indústria brasileira” (Tinhorão, 1975, p. 191).

Com essa mesma visão, Mário de Andrade situa sua análise acerca do

nacionalismo versus o universalismo no contexto do início do século XX:

Cada país, principalmente cada raça e cada civilização têm, no

momento, suas exigências especiais e específicas, que dão pra

cada nação uma contemporaneidade nacional mais importante

que a universal, que é vaga, idealista e bastante inútil. E cada

artista principiou por isso funcionando de novo em relação a

essa contemporaneidade nacional, mais próxima dele. Nisso

nós não fizemos em música, mais que acentuar o movimento

nacionalista que, no séc. XIX principiara criando escolas

nacionais. (Andrade, 1976, p. 195)

Foi com esse espírito de emancipação artística que, as bases da

semana modernista de 22 foram fundadas, mesmo que muitas vezes ainda não

estivessem ideologicamente claras. Mas a busca pelo expressar sem regras, a

necessidade de transformar, de construir de outra forma, ou seja, sentimentos

nessa direção pareciam ter invadido artistas variados, pensadores e

intelectuais da época. “Havia unanimidade em torno do objetivo central do

grupo, isto é, dos „comovidos iniciadores da batalha dos renovamentos‟” : a

atualização do código estético (Boaventura, 2001, p. 6).

Se, por um lado, o Brasil das artes e da intelectualidade passou por

efervescências na busca pela renovação e quebra de paradigmas, o Brasil da

mão-de-obra, da luta de classes, da produção e do crescimento econômico

também passou por transformações: as greves operárias começavam a tomar

forma e força no país, na busca por melhores condições de trabalho, salário e

direitos trabalhistas. Como aponta o historiador Boris Fausto, “um ciclo de

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greves de grandes proporções surgiu nas principais cidades do país,

especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”, compreendendo os

períodos entre 1917 e 1920. O autor aponta ainda dois importantes fatores

desencadeadores do ciclo dessas greves: a carestia, ou seja, a crise social

causada pela Primeira Guerra Mundial e a decorrente especulação no mercado

de abastecimento dos gêneros alimentícios, e segundo, o início das revoluções

na Europa, sobretudo a de fevereiro de 1917 e a Revolução de Outubro da

Rússia czarista.

Um breve parênteses para apresentarmos, nesse contexto, algumas

características das classes trabalhadoras do Rio de Janeiro e de São Paulo e

algumas diferenças relevantes: enquanto no Rio de Janeiro do final do século

XIX, a classe trabalhadora era composta pela “classe média profissional e

burocrática, militares de carreira, alunos da Escola Militar e estudantes das

escolas superiores”, a de São Paulo “girava em torno da burguesia do café e

não continha grupos militares inquietos – a exemplo do Rio de Janeiro – além

da mão de obra operária ser em sua maioria estrangeira, sem raízes na nova

terra” o que favorecia a influência do anarquismo (Fausto, 1994, p. 299).

Para quem via de fora, os propósitos dos artistas envolvidos na Semana

de 22 não eram claros nem definidos; por conta das intensas e muitas vezes

abstratas manifestações artísticas, as mensagens eram mal interpretadas e

duramente criticadas. A emancipação cultural e intelectual tão almejada

buscava quebrar as correntes clássicas europeias que prendiam os

pensamentos, as formas e os julgamentos. Para dar nomes aos personagens

desse episódio inovador, revolucionário e controverso, podemos citar alguns

participantes desse momento: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de

Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Menotti Del Picchia,

Graça Aranha, Di Cavalcanti, Plínio Salgado entre muitos outros. O jornal O

Estado de São Paulo, divulgando o evento da Semana de Arte Moderna, reflete

sobre a influência dos acontecimentos na “intelligentsia brasileira” (termo

recorrente nos textos da época), em sua publicação diária da semana de 22:

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A remodelação esthetica1 do Brasil iniciada na musica de Villa-

Lobos, na exculptura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti,

Aniita Malfati, Vicente do Rego Monteiro, Zina Alta, e na jovem

e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a

ameaçam de inoportuno arcadismo, academismo e do

provincianismo. O regionalismo pode ser um material literário,

mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao

universal. O estylo clássico obedece a uma disciplina que paira

sobre as coisas e não as possue. Ora, tudo aquilo em que o

Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo,

que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta.

Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo

paradoxal que é o Universo brasileiro, e ella não se pode

desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o

sarcophago do Passado. Também o “academismo” é a morte

pelo frio da arte e da literatura. [...] O que se pôde affirmar para

condemnal-a é que ella suscita o estylo academico, constrange

a livre inspiração, refreia o jovem o ardego talento que deixa de

ser independente para se vagar no molde da Academia. É um

grande mal na renovação esthética do Brasil a nenhum

benefício trará a língua como espirito academico, que muta ao

rancor a originalidade profunda e tumultuaria da nossa floresta

de vocábulos, phrases e ideas. (O Estado de S. Paulo, 14 de

fevereiro de 1922)

Mas as principais questões a se discutir nessa pesquisa sobre a

Semana de 22 não são as formas artísticas e estéticas por si mesmas, as

linhas adotadas ou a linha acadêmica as quais seguirão; dizem respeito sim

aos protestos e à leitura do país que estavam por trás de todo esse discurso. E

são esses os pontos a serem levantados nessa investigação: como as artes

podem contribuir na discussão geográfica (e vice-versa), no que diz respeito às

questões de ordem social, política e econômica que permeavam o país naquele

momento? Como a construção do país foi interpretada e retratada pela classe

intelectual e artística nos recortes histórico-geográficos apresentados? Além

disso, investigar em que medida talvez essas leituras contribuíram nos rumos

do país?

Conforme apresentado, o país encontrava-se num momento de grandes

mudanças estruturais de ordem social e econômica como um todo.

Retrocedendo um pouco no tempo – para traçar uma linha de raciocínio –

1 Optou-se por manter as palavras com a grafia antiga exatamente como constam na citação.

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temos o seguinte quadro: o país saiu de sua condição de colônia, governada

por um sistema monárquico, de economia escravista e base agroexportadora;

passou à condição de uma “república liberal” ou “república oligárquica”, mas

que ainda baseava-se na economia agrícola exportadora, como ocorria na

monarquia. Nessa realidade, o censo de 1920 retrata bem esse fenômeno: das

9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões ou 69,7% trabalhavam na

agricultura; na indústria eram 1,2 milhão – 13,8% – e 1,5 milhão em serviços2 –

16,5% (Fausto, 1994, p. 281).

Dessa forma, a dinâmica da economia cafeeira juntamente com as

forças crescentes das indústrias que começavam a despontar no eixo Centro-

Sul do país, sobretudo no Estado de São Paulo, permitiram que o crescimento

econômico se refletisse sob outra dinâmica territorial e social tanto na capital

paulista quanto em todo seu Estado. Assim, “o desenvolvimento capitalista

caracterizado pela diversificação agrícola, a urbanização e o surto industrial”

constituiria a base inicial das profundas mudanças na região.

É essencial destacar nesse processo, o papel dos imigrantes europeus

na constituição tanto da mão de obra que vai ser empregada nas fazendas de

café – e sustentar por mais um tempo a monocultura cafeeira como base da

economia agroexportadora do país – como aquela que vai ampliar o leque das

produções agrícolas e impulsionar a urbanização na cidade de São Paulo.

Fruto das possibilidades que a cidade oferecia, essa mão de obra abriu o leque

de atividades e serviços como, por exemplo, o artesanato, o comércio de rua,

as fabriquetas de fundo de quintal, os “mestres italianos” e profissionais liberais

(Fausto, 1994). Ainda por conta de todo o processo que envolvia a produção de

café, do plantio à colheita, passando pelo processamento, transporte e

escoamento até o Porto de Santos, o mercado se desdobrava em outros

serviços em função do comércio e dessa mão de obra; a exemplo disso,

encontramos a expansão dos bancos e empregos burocráticos. Assim, o

processo urbano ganhava forma e dinâmica e começava a se retroalimentar.

Dados apontam o crescimento acelerado da capital paulista: entre 1890 e

1900, a população paulistana passou de 64.934 habitantes para 239.820, ou

2 Leia-se “serviços” aqui como atividades urbanas: serviços domésticos remunerados e “bicos” dos mais

variados tipos.

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seja, quase quadruplicou em 10 anos, chegando ao segundo lugar entre as

cinco maiores cidades brasileiras no início do século XX. Nesse sentido,

Moreira (1985) aponta esse movimento ao afirmar que quanto mais o

“desenvolvimento industrial avança no eixo Rio-São Paulo, nuclear da

industrialização no país” mais o campo vai sendo submetido à hierarquia e à

marginalidade da cidade, ou seja, o café vai perdendo força e a indústria vai se

fortalecendo, ao mesmo tempo em que se desenha e intensifica uma nova

relação da agricultura-indústria, como é o caso do Planalto Paulista; o

crescimento e a diversificação se aceleram: “quanto mais o espaço agrário se

subordine à demanda industrial das cidades, seja com os insumos agrícolas,

seja com os produtos alimentícios” (Moreira, 1985, p. 59).

Com todas essas mudanças sociais, políticas e culturais, a cidade de

São Paulo foi agente e receptáculo das transformações mais importantes do

começo do século XX tanto para a cidade e o Estado, quanto para o país. Das

profundas mudanças que ocorreram no campo e que se deslocaram para a

cidade, vemos refletido na metrópole em processo de urbanização a seguinte

situação:

Quando a cafeicultura, arruinando a agroexportação nacional,

entra em estado falimentar, o parque industrial paulista já está

pronto para, junto com o parque industrial já existente no país,

constituir a base de uma nova fase econômica nacional.

(Moreira, 1985, p. 54)

Todas essas realidades do país em fase de mudanças: industrialização,

greves, cafeicultura, urbanização, agrário, modernização, imigração e

crescimento foram retratadas na Semana de 22, bem como depois dela

também. É certo afirmar que o movimento modernista foi um divisor de águas

no contexto das artes e das ideias no Brasil, e consolidou o início de um

período de profundas transformações no país, revelando, através das obras a

nova realidade social que nascia e buscava se consolidar numa identidade

própria para o seu povo. Interessante destacar a leitura feita na época por

intelectuais que já viam a necessidade de mudança de mentalidade no país.

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Apresentamos a leitura do país rural e do país urbano, retratado nas palavras

do jurista Pedro Calmon ao jornal O Estado de São Paulo, o qual noticiava os

acontecimentos do evento de 22:

O ano de 1922 é um excelente ano-limite. A nossa civilização

perdera as suas linhas tradicionais exclusivamente agrícolas e

litorâneas. Tínhamos uma formidável riqueza industrial e uma

economia sertaneja, que os modernos meios de transporte –

com as estradas de rodagem – cada vez mais internavam,

comunicando afinal entre si todos os núcleos produtores. Os

índices de prosperidade de algumas regiões poderiam

equivaler-se aos de países que fazem o assombro da nossa

época: assim o crescimento vertiginoso de São Paulo, o

povoamento das suas zonas cafeeiras, a “construção de suas

cidades”. (O Estado de S. Paulo, 16 de fevereiro de 1922)

Entre muitos exemplos que poderiam ser apresentados sobre a temática

da Semana de 22, no tocante às representações sociais a que as obras do

movimento se propõem a representar do Brasil, temos o quadro do pintor

brasileiro Cândido Portinari. A tela denominada CAFÉ data de 1935 e

representa o espírito social da época analisada nessa discussão. A economia

cafeeira no Brasil e a mão de obra assalariada utilizada nas lavouras são as

tônicas da pintura. Portinari também participou ativamente do movimento

modernista, e sua obra é largamente reconhecida e identificada pela temática

que enfoca a presença do Homem, do trabalhador brasileiro nas telas

coloridas, a alma brasileira da época do café, do início do século, é retratada

com muita força. Após um período fora do Brasil estudando, ele retorna e

começa a retratar o país: a história, o povo, a cultura, a fauna e a flora. Retrata

ainda , através de desenhos, gravuras e murais, a realidade social brasileira:

“preocupado, também, com aqueles que sofrem, Portinari mostra em cores

fortes a pobreza, as dificuldades, a dor” (Projeto Portinari).

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Figura 1: CAFÉ 1935, Portinari.

Outra artista contemporânea de Portinari, também envolvida com as

questões de sua época e que apresentava em suas obras a realidade

brasileira, era Tarsila do Amaral. A artista dizia que queria ser a “pintora do

Brasil” e por isso seus quadros eram a representação da sociedade brasileira:

a divisão entre trabalhadores assalariados, as paisagens rurais, as cidades e o

urbano, morros e favelas, a industrialização.

Todos esses elementos do Brasil em transformação são encontrados em

suas obras. A tela a seguir, por exemplo, é o retrato da interligação e do

crescimento das cidades; os símbolos da urbanidade estão presentes para

retratar essa nova realidade: postes de luz, pontes, sinaleiras e estação de

trem fazem parte do progresso e da conexão entre as regiões brasileiras

através das estradas de ferro que, nessa época, ganhavam força no país.

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Figura 2: Estação de Ferro Central do Brasil.

Nessa direção, um dos idealizadores do movimento de 22 que não

poderia deixar de ser apontado nessa parte da pesquisa é o artista Di

Cavalcanti. Ativo mentor da semana modernista, conhecido por sua

sensibilidade, inteligência e humor, suas obras retratam o Brasil do povo:

carnaval, ritmo, sambistas, baianas, mulatas, seresteiros, trabalhadores, o

morro, operários, enfim, a realidade urbana do Rio de Janeiro do começo do

século XX é parte forte de seus temas. Disse ele certa vez: “Paris pôs uma

marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o

meu amor à Europa transformou meu amor à vida e tudo que é civilizado. E

como civilizado comecei a conhecer minha terra”. Considerado muito mais que

um pintor por sua formação cultural e sensibilidade, foi considerado por

Fernando Sabino como “um grande pintor com formação de um verdadeiro

homem de letras”.

Figura 3: Operários – desenho 1933.

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Apenas para consolidar a contextualização do momento em questão, e

não para encerrar as ideias nem o espírito da época, é interessante apresentar

as palavras de Mário de Andrade acerca do movimento vinte anos depois:

tempo suficiente para repensar e rever muita coisa no que tange os propósitos

e as circunstâncias que permitiram tais manifestações. O trecho foi retirado de

uma série de quatro artigos escritos por Mário de Andrade ao jornal O Estado

de São Paulo, no vigésimo aniversário do modernismo:

Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio de um internacionalismo ingênito. São Paulo era muito mais “moderna” porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente.

Ingenitamente provinciana, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado na política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social, mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade do mundo.

É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro da sua malícia de cidade internacional, um ruralismo, um caráter tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o “exotismo” nacional (o que é prova de vitalidade do seu caráter), mas a interpenetração entre o rural e o urbano. Cousa impossível de achar em São Paulo, como funcionalidade permanente. Como Belém, o Recife, a Cidade do Salvador, apesar do seu urbanismo rescendante, o Rio ainda é uma cidade [...] folclórica. (O Estado de S. Paulo, Especial, Modernismo, 2005)

1.1 – O Brasil de Getúlio Vargas

O período histórico compreendido entre 1930 e 1945 pode ser

considerado o “divisor de águas” na busca pela construção de um Brasil

urbano-industrial; menos dependente de bens importados e mais independente

no que concerne a segurança de sua estabilidade econômica interna. As

transformações na produção de bens de consumo que geravam uma

dependência comercial e financeira do país com relação à venda de produtos

como o café, a borracha e o açúcar, bem como nas importações de produtos

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básicos para o crescimento interno como o petróleo e aço por exemplo, faziam

com que novas medidas fossem tomadas para proteger o Brasil das oscilações

externas da economia mundial.

O crescimento das cidades, sendo essas os novos polos geradores de

emprego e de uma nova forma de se viver, as imigrações, a difusão dos novos

meios de comunicação como o rádio, jornais e revistas de grande circulação,

contribuíram para uma mudança substancial da economia, dos meios de

circulação e da forma com que o Brasil iria se estruturar e territorializar nos

anos seguintes.

A economia mundial dava sinais de esgotamento e seus reflexos já

provavam que a globalização não é um fenômeno exclusivo da pós-

modernidade: a queda da bolsa de Nova York afetando os principais mercados

do mundo, e dentro deles o Brasil, a diminuição de crédito nos bancos

estrangeiros por conta desse momento econômico, a alta dos produtos

importados decorrente do câmbio e a queda nos lucros, foram fatores que

contribuíram para que mudanças de âmbito estrutural fossem feitas no país,

assim vemos que:

O crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importações desses bens, acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias a instalação de uma indústria de bens de capital. (Furtado, 2003, p. 196)

A responsabilidade estava então nas mãos do presidente Getúlio

Vargas; passar o país de uma configuração geográfica basicamente agrária

exportadora, com grandes latifúndios de mentalidade ainda escravista, para um

Brasil urbano e assalariado, autossuficiente, que não sofresse tantas

influências externas do mercado internacional. Para isso, além de toda a

evolução nas formas de produção e nas relações que isso implica, também

teria de preparar a mão de obra, qualificando pessoas através da educação

para que o sistema produtivo pudesse responder à altura do modelo planejado

para o país:

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É significativo observar que o crescente interesse do governo Vargas em promover a industrialização do país, a partir de 1937, refletiu-se no campo educacional. Embora o ministro Capanema tenha promovido uma reforma do ensino secundário, sua maior preocupação se concentrou em organizar o ensino industrial. Um decreto-lei, com o objetivo de preparar mão de obra fabril qualificada. Pouco antes, surgira o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) destinado ao ensino profissional do menor operário. (Fausto, 1994, p. 367)

Nesse sentido, vale apresentar uma sistematização de alguns números

representativos de nossa realidade no início do século XX, utilizando duas

faixas de comparação: 1920 e 1940:

Ano 1920 1940 População total 30,6 milhões 41,1 milhões

População > 20 anos 54% 54%

Agricultura 79% produção total 57% da produção total

Indústria 21% produção total 43% da produção total

Analfabetismo 69,9% 56,2%

Curso primário entre 05 a 19 anos 9% 21%

Ensino superior 13.239 alunos 21.235 alunos

Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p. 389-394. Adaptado pelo autor.

Os números apresentados anteriormente foram extraídos dos censos

nacionais realizados em 1920 e 1940. Pode-se ver dessa forma um pouco da

realidade conjuntural do país em momentos bem distintos e que marcaram

mudanças e foram definidores de uma nova conjuntura. Como Fausto reforça,

é importante realizar uma leitura cuidadosa dessa realidade, já que diferenças

no critério de um censo para outro acontecem, bem como a deficiência em sua

coleta, não representando dessa forma um espelho fiel da realidade, mas

sendo bons indicadores da mesma.

Nesse cenário, podemos rapidamente identificar o aumento da

população total brasileira, da crescente participação da indústria frente à

agricultura, o avanço do número de alunos no ensino primário, bem como o

aumento de estudantes do curso superior e, por consequência, queda no

analfabetismo. É nesse cenário que o projeto de Getúlio Vargas adquiriu força

para a industrialização se consolidar: “O Estado, como vimos, foi o agente

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institucional desse movimento formador do espaço industrial no Brasil”

(Moreira, 1985, p. 50), refletido nas cidades à medida que o campo se esvazia:

“A relação cidade-campo troca de posições, num retraçamento do desenho dos

cheios e vazios da distribuição espacial dos homens, que altera a forma ao

mesmo em tempo que infunde novo conteúdo ao espaço” (idem, ibidem).

Processa-se também na educação essa mudança, que encontrou no

governo o interesse e a mediação necessários para sustentar seus planos de

crescimento para o país e na população agrária, que agora se instalava nas

cidades, o desejo de mudar de vida e se modernizar, abrindo mão do cultivo da

terra e da vida difícil do campo.

Essa transformação urbano-industrial à qual o país será submetido,

sobretudo nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília,

Minas Gerais e Porto Alegre, vai revelar em sua espacialidade as relações

sociais, econômicas e políticas do Estado, ao que vemos:

Sujeito aparente, porque é o veículo da hegemonização dos dominantes no seio da “modernização conservadora” , o Estado territorializar este movimento sob formas de ordenação espacial que encarna todos os momentos do processo evolutivo. (Moreira, 1985, p. 45).

Havia três palavras-chave nesse processo de mudanças profundas

necessárias para que o país pudesse sair de sua condição agrária, dependente

e subordinada à dinâmica do mercado externo e passasse a um país moderno,

urbano-industrial: centralização, modernização e planejamento3.

Centralização: um Estado federal centralizado. Essa era a chave para o

processo do progresso brasileiro e, para isso, Getúlio Vargas reuniu todas suas

forças para controlar e centralizar nas mãos de poucos, as decisões que

definiriam os rumos do país. Governando através de decretos-leis e das

chamadas “interventorias”4, o presidente acabava por não abrir espaço para

3 Grifo nosso.

4 Interventorias: sistema em que os Executivos estaduais passaram a ser chefiados por interventores

diretamente subordinados a Getúlio Vargas. No lugar das assembleias legislativas foram criados departamentos administrativos, cujos membros eram nomeados também pelo presidente da República e, em alguma medida, exerciam um controle sobre os atos dos interventores.

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grupos privados, tais como as oligarquias regionais, evitando assim que certas

decisões pudessem se sobrepor aos interesses nacionais, como se observa:

Na realidade, o presidente ficaria durante todo o Estado Novo com o poder de governar através de decretos-leis, pois não se realizaram nem o plebiscito nem as eleições para o Parlamento. Os governadores dos Estados se transformaram em interventores, e na maioria dos casos foram substituídos. O estado de emergência não foi revogado. (Fausto, 1994, p. 365)

Modernização: nesse sentido, a mudança nas políticas econômicas,

tendo como foco não apenas a cultura exportadora e valorizadora do café, mas

também uma produção agrícola variada e bens de consumo que garantissem o

desenvolvimento de um mercado interno, bem como o desenvolvimento da

mão de obra qualificada necessária para essa transformação – através da

educação – além de contribuir para a independência da demanda externa que

ditava o ritmo da economia brasileira.

Outro aspecto de extrema relevância contido nessa agenda eram os

resultados internos que esse processo poderia trazer consigo; a geração de

mão de obra especializada e consumidora, ou seja, o desenvolvimento das

forças produtivas se reproduzirá na construção de uma geografia urbana. A

geração de renda, a necessidade de consumo, de deslocamento, transporte,

moradia, educação e saúde e, não menos importante, a formação dos

sindicatos, que o campo remotamente oferecia, se materializará nas relações

que ocorrerão na cidade e, nesse sentido: “sob cada uma dessas fases do

espaço distinguem-se as fases estruturais da formação do capitalismo no

Brasil” (Moreira, 1985, p. 54).

Planejamento: juntamente com a centralização do poder e as ações de

cunho socioeconômico, encontra-se o planejamento do território. Para poder

executar seu plano de independência econômica e desenvolvimento social-

industrial, era necessário conhecer o território para poder planejar, ampliar e

manter o controle das ações do Estado. Nesse sentido, na gestão de Vargas,

primeiramente nasceu o Instituto Nacional de Estatística (1934), que

posteriormente transformou-se no Conselho Nacional de Estatística.

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Esse órgão tinha como objetivo maior coordenar todas as atividades

estatísticas das diversas esferas administrativas. Da fusão dos dois órgãos, o

Instituto Nacional de Estatística e o Conselho Nacional de Estatística, nasceu o

I.B.G.E. – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1937. Em 1967, ele

passou ao status de fundação. Retrocedendo um pouco mais na cronologia dos

acontecimentos, de acordo com o próprio órgão:

Durante o período imperial, o único órgão com atividades exclusivamente estatísticas era a Diretoria Geral de Estatística, criada em 1871. Com o advento da República, o governo sentiu necessidade de ampliar essas atividades, principalmente depois da implantação do registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos.

Com o passar do tempo, o órgão responsável pelas estatísticas no Brasil mudou de nome e de funções algumas vezes até 1934, quando foi extinto o Departamento Nacional de Estatística, cujas atribuições passaram aos ministérios competentes.

A carência de um órgão capacitado a articular e coordenar as pesquisas estatísticas, unificando a ação dos serviços especializados em funcionamento no País, favoreceu a criação, em 1934, do Instituto Nacional de Estatística – INE, que iniciou suas atividades em 29 de maio de 1936. No ano seguinte, foi instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao INE, que passou a se chamar, então, Instituto Nacional Brasileiro de Geografia e Estatística.

Desde então, o IBGE cumpre sua missão: identifica e analisa o território, conta a população, mostra como a economia evolui através do trabalho e da produção das pessoas, revelando ainda como elas vivem.5

No contexto que nos interessa, embora o poder continuasse nas mãos de

uma minoria elitista e centralizadora, de mentalidade latifundiária e oligárquica,

o país precisava se atualizar em vários setores. Esse Brasil, em vias de

desenvolvimento, tinha nas mãos de seu líder um ambicioso projeto

modernizador que precisava “dispor de informações confiáveis e conhecer

melhor o território nacional do ponto de vista geográfico”.6 Assim se consolidou

5 Fonte: www.ibge.gov.br. Acessado em 15/01/2014.

6 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC. Site:

www.cpdoc.fgv.br/ A Era Vargas: dos anos 20 a 1945 – Diretrizes do Estado Novo (1937-1945)> Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística acessado em 09/12/2013.

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o órgão que posteriormente norteou e revelou o território dos contrastes, do

urbano e do rural: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.7

É inegável o reconhecimento entre especialistas a respeito do elevado

grau de importância que Vargas teve sobre o processo de transição de um país

agrário e escravista para um país urbano e assalariado. O Brasil em movimento

precisava conhecer, identificar e planejar para se desenvolver. O processo de

industrialização pelo qual o país passou, sobretudo na Região Sudeste, trouxe

reflexos no território de forma a demandar um olhar mais atento aos aspectos

da ocupação humana e econômica e, junto disso, a necessidade de ordenar

todo esse movimento.

Nesse sentido, o quadro8 apresentado a seguir contribui para uma leitura

mais plena desses fatos, à medida que representa o recorte do período

discutido e permite outras possibilidades de reflexão:

ÍNDICES ANUAIS DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL BRASILEIRA (base: 1939=100)

Setor 1921 1925 1930 1935 1938 Têxtil 22.5 33.6 32.6 63.8 86.0

Fumo 42.7 66.4 71.1 85.0 123.8

Química 19.2 27.1 42.6 64.8 103.6

Alimentos 52.4 61.8 80.0 92.9 96.7

Cimentos - - 12.5 52.4 88.5

Siderúrgico 7.1 14.1 22.6 50.2 81.6

Pneus - - 1.0 17.0 65.0

Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. 2 ed. rev. e atual. do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Adaptado pelo autor.

O quadro apresentado9 foi construído por meio de uma planilha original

do IBGE, composta por 14 setores classificados como a indústria de

transformação – conforme fonte original – que se estendem do fumo ao

cimento, passando por têxtil e siderúrgico, calçados, papel e mobiliário dentre

outros.

7 Fonte: www.ibge.gov.br, link missão: “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento

da sua realidade e ao exercício da cidadania”. Acessado em 09/12/2013. 8 Tabela adaptada do vol. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. Acessado

em 23/01/2014. 9 A escolha dos sete setores na lista não é aleatória, mas um entendimento de que representam bem o

contexto da discussão.

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A exemplo da leitura anterior, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística tornou-se uma poderosa ferramenta para a organização, controle e

aproveitamento do território nacional. A execução das ações planejadas por

Vargas e sua cúpula dependia do reconhecimento e mapeamento do território.

As palavras do diretor do departamento de Cartografia, em sua apresentação

no XI Congresso Brasileiro de Cartografia em Porto Alegre, reforçam essa

visão:

O Brasil com seus 8.516.000km² precisa de mapas que representam o seu território com a maior fidelidade possível. Ninguém discute mais esta tese. Qualquer planejamento de obra de certo vulto deve ser precedido de um mapa em escala adequada. Digam-no a Cia. Hidro Elétrica do S. Francisco e a Comissão do São Francisco. A Comissão de Valorização de Amazônia poderá testemunhar as dificuldades que está encontrando diante da ausência quase completa de um mapa adequado da Amazônia. (Mattos, 1954)

Vale ainda apontar outra passagem da apresentação do então diretor

Allyrio Huguney de Mattos, expressando sua indignação na insuficiente

produção cartográfica que o Brasil apresentava até o momento do Congresso,

sendo pouco mais dos 1.000.000 km² de mapas do território nacional face os

mais de 8.000.000 de km² que o país apresenta, considerando o fato de ter

sido descoberto há mais de 400 anos:

A secção de Levantamentos Mistos já executou levantamentos em uma área que se aproxima de um milhão de quilômetros quadrados em parte do Nordeste, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, afora as áreas levantadas pelo SGE10, Minas e São Paulo que podem ser avaliadas em mais ou menos 600.000km². Isto tudo em presença dos 8.500.000 km² do Brasil, é muito pouco, e ainda, como grande parte das cartas publicadas do Rio Grande do Sul, Minas e São Paulo já têm mais de 20 anos de idade, já estão rigorosamente obsoletas e necessitam de atualização. Como grande parte dessas cartas foi elaborada por processos antigos e inadequados à época atual, essa atualização importa quase em nova elaboração.

Convenhamos, portanto que, para um país descoberto, há mais de 400 anos e que já completou mais de 120 anos de soberania, isto é pouco mais que nada. (Mattos, 1954)

10

SGE: Serviço Geográfico do Exército.

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Em sua fala final, ficou claro o desconhecimento do território que o Brasil

ainda apresentava, sobretudo em relação a outros países numa possível

situação de confronto ou guerra:

Nossa pátria não pode entrar em confronto com certos países que são simples colônias. Por exemplo: A Índia, que até pouco tempo atrás era colônia inglesa, já tinha o seu território quase completamente levantado. Na atualidade o Congo Belga pode servir de exemplo para nele mirarmos. E por último, veja-se como a França está operando na Guiana Francesa e no seu império Colonial-África equatorial e Madagascar – e só há uma conclusão forçada: O Brasil não tem um mapa condigno, porque não se esforça para tê-lo. É um proprietário negligente que não conhece a terra que possui porque, para conhecê-la, é necessário antes de tudo mapeá-la. (Mattos, 1954)

É nessa conjuntura de planejamento, organização e desenvolvimento

nacional que, no Rio de Janeiro, se projetará o compositor que vai utilizar da

linguagem musical para implantar o maior projeto de educação musical e cívico

que se desenvolveu em âmbito nacional até hoje.

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Capítulo 2 – Villa-Lobos no Brasil de Getúlio Vargas

“Meu primeiro tratado de harmonia foi o mapa do Brasil”

(Heitor Villa-Lobos)

Foi nesse contexto geográfico e histórico do período Vargas 11

(compreendido de 1930 a 1945) que surgiu a figura do maestro brasileiro Heitor

Villa-Lobos com seu projeto de construção da identidade nacional e seu ideal

civilizador através da música, mais precisamente através do Canto Orfeônico.

Primeiramente, é necessário apresentar um pouco sobre o termo

“orfeão” ou “orphéon”: sua origem vem da palavra francesa orphéon por ter

sido uma atividade musical obrigatória nas escolas municipais de Paris; na

prática quer dizer uma performance coral à capella, ou seja, um coral só de

vozes, sem o acompanhamento de instrumentos musicais. Tradicionalmente o

canto orfeônico é uma modalidade de canto coral, em que a prática musical é

de teor essencialmente pedagógico-escolar e moral.

O termo oriundo das escolas francesas de canto refere-se a Orfeu, deus

da mitologia grega, ligado à música e que possuía o dom de gerar comoção

naqueles que o ouviam. A mitologia também explica que, por conta dessa

capacidade de emocionar e mobilizar, o deus grego foi o responsável por ter

conduzido os trácios12 da selvageria à civilização, pois desceu ao inferno para

resgatar sua amada Eurídice 13e lá amansou as massas populares. Dessa

forma, desde então, considera-se o canto orfeônico um instrumento

“civilizatório” e pedagógico à medida que essa arte em grupo, quando se

utilizando as canções corretas, teria o poder de envolver os participantes numa

prática vocal coletiva capaz de disciplinar o comportamento social e cívico.

11

Será convencionado chamar como Período Vargas o período entre 1930 à 1945, já que temos o Estado Novo oficialmente datado a partir de 1937. 12

Orfeu seria originário do povo trácio, mas os gregos o tomaram para ele. Tracio é o nome que se deu a um povo hindu-europeu que habitava a Trácia, Bulgária, Romênia, Moldávia, nordeste da Grécia, Turquia, leste da Sérvia e partes da Macedônia. Viviam em tribos e foram considerados como o povo mais numeroso do mundo à época conhecido. 13

Eurídice era a deusa grega casada com Orfeu; picada por uma serpente ao fugir de um agricultor que a desejava, morreu prematuramente. Orfeu destroçado com sua perda, buscou no canto o consolo pela perda da amada. Desceu ao inferno para tentar ressuscitar Eurídice e para domar as criaturas, fazendo uso do canto com sucesso.

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Sabe-se que a música era uma das formas de arte mais cultivadas entre os

egípcios, hindus, chineses e japoneses e, na época da construção das

pirâmides e das esfinges, o Egito tinha um coral de 12 mil vozes e orquestras

de 600 instrumentos. Muitos acreditam que foi graças ao canto durante o

trabalho mais pesado que as pirâmides foram feitas (Andrews, 1952, p. 18).

Nesse sentido, o uso da música com objetivos pedagógicos e políticos,

buscando sensibilizar e ao mesmo tempo educar, poderia despertar

sentimentos de civilidade e pertencimento em grupo, fazendo do canto

orfeônico a prática ideal para a construção de uma identidade nacional.

Também se diferencia do conhecido canto coral pelos aspectos técnicos.

Enquanto o canto orfeônico não exige grandes conhecimentos acadêmicos-

musicais, e tem como principal característica a alfabetização musical coletiva –

por isso se realiza em escolas regulares – o canto coral tem como

diferenciação do orfeônico, desenvolver tecnicamente o aluno, pois este exige

conhecimentos vocais mais apurados, bem como o estudo em escolas

específicas de formação de música, o chamado conservatório musical. Dessa

forma, a homenagem feita a Orfeu14 era uma prática coletiva de canto cujo

objetivo maior, segundo Ávila (2010), “era a difusão de ideologias e ideais de

cunho nacionalista, para reforço do sentimento de nacionalidade”. Ainda

apresentando conceitos sobre a prática orfeônica, cabe outra breve observação

feita por Souza na diferenciação entre canto coral e o canto orfeônico:

Enquanto o modelo orfeônico visa a promoção de valores éticos, morais e cívicos por meio de uma educação musical socializadora, o Canto Coral enfatiza o desenvolvimento artístico e musical, não possuindo uma preocupação cívica tão acentuada. (Souza, 2008, p. 3)

14

Saliba explica: Orfeu foi o famoso personagem da mitologia grega antiga, músico prodigioso, era louvado como celebrante de rituais de exaltação e de êxtase coletivo. Glosado em prosa e verso e largamente disseminado, o orfismo transformou-se quase numa tradição na cultura ocidental. Numa de suas inúmeras e obscuras versões, o orfismo concebia duas almas para os homens, a psyche, espécie de alma visível que desaparecia com a morte, e a alma invisível, eternizada em sucessivas migrações. Era com esta última que Orfeu se comunicava com os homens através da catarse e do êxtase coletivos (1993, pp.128-132).

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No Brasil, o canto orfeônico teve sua projeção através das batutas15 do

maestro, músico erudito e compositor Heitor Villa-Lobos; embora ele não tenha

sido o pioneiro nessa prática musical no país, foi através de suas mãos que o

canto orfeônico ganhou dimensões nacionais.

O contato de Villa-Lobos com as escolas europeias musicais na ocasião

de suas incursões pelo velho continente – onde a prática orfeônica era

conhecida e largamente utilizada nas escolas primárias francesas – fez

despertar no maestro o desejo de contribuir na construção de um ideário de

nação e nacionalidade, bem como de “elevar” o Brasil, através da educação, a

estágios superiores de civilização, equiparando-o à Europa. O maestro vinha

se incomodando com a falta de raízes nacionais, de referências tradicionais e

puras na música do país, sobretudo depois de retornar das grandes turnês

europeias:

Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos. Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebi a dolorosa realidade. (Villa-Lobos, 1946, p. 17)

Dono de uma retórica inflamada que muitas vezes soava ufanista, o

maestro buscou na música o veículo de difusão de suas convicções patrióticas

e nacionalistas, como se pode ver a seguir:

Não se pode desejar que um país adolescente, em estado de formação histórica, se apresente desde logo com todos os seus aspectos étnicos e culturais perfeitamente definidos.

Entretanto, o panorama geral da música brasileira, há dez anos atrás, era deveras entristecedor. Por essa época, de volta de uma das minhas viagens ao Velho Mundo, onde estive em contato com os grandes meios musicais e onde tive a oportunidade de estudar as organizações orfeônicas de vários países, volvi o olhar em torno e percebo a dolorosa realidade.

15

Batuta é uma vareta leve de madeira, utilizada por regentes para conduzir orquestras e coros musicais.

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Senti com melancolia que a atmosfera era de indiferença ou de absoluta incompreensão pela música racial, por essa grande música que faz a força das nacionalidades e que representa uma das mais altas aquisições do espírito humano. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 6)

Foi através de seu audacioso projeto de educação musical, no período

do Estado Novo getulista, que o canto orfeônico ganhou visibilidade e

conseguiu ter projeção nacional: “Uma vez implantado na escola regular, seria

possibilitada uma popularização da prática e do conhecimento musical, que

passariam a atingir diversos setores sociais” (Lisboa, 2005, p. 58).

Essa prática educacional que o maestro já vislumbrava para o Brasil vai

encontrar, assim, as condições e o momento ideais para ser difundida no país;

é sobretudo nas capitais e nas cidades mais urbanizadas, em fase de

modernização e crescimento, que as crianças na fase de escolarização – dos

05 aos 19 anos de idade – serão preparadas para a alfabetização musical e

cívica, como mostra o quadro a seguir:

Ano 1920

1940

Curso primário entre 05 a 19 anos

9%

21%

Fonte: Boris Fausto, História do Brasil, p.389-394. Adaptado pelo autor.

Portanto, essa prática só poderia se realizar como movimento

nacionalista e civilizatório – e o projeto de Villa-Lobos só teria sucesso – à

medida que o ensino musical fosse difundido ao maior número de alunos das

escolas públicas nas grandes cidades.

Considerando a época em questão, a educação ainda era voltada para

uma camada restrita da população e, nesse sentido, ao se pensar em escola

pública naquele momento, deve-se fazê-lo tendo em mente uma educação

restrita ainda. De acordo com as pesquisas de Costa (1983) apud Giglioli

(2003), constatou-se o seguinte cenário:

Em 1908 a educação escolarizada no Estado de São Paulo atingia 105.015 indivíduos de uma população estimada em 3.209.160, ou seja, 3;3% da população estava matriculada em algum tipo de escola. Em 1923, a matrícula geral elevou-se a

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360.909; mais do que triplicou, portanto, em relação a 1908, enquanto a população não chegara a duplicar-se. Em 1923, a parcela de matriculados em escolas nos diversos graus era de 7,4% da população total. (Costa, 1983 apud Giglioli, 2003, p. 7)

Sob o Decreto nº 19.890 de 1931, o currículo escolar passou a ter nova

configuração, em que as 12 disciplinas do curso fundamental composto por

cinco séries passam a ter a seguinte disposição:

Ano escolar Disciplinas

1ª série Português, Francês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.

2ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Ciências Físicas e Naturais, Desenho e Música.

3ª série Português, Francês, Inglês, História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho e Música.

4ª série Português, Francês, Inglês, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.

5ª série Português, Latim, Alemão (facultativo) História da Civilização, Geografia, Matemática, Física, Química, História Natural, Desenho.

Fonte: PILETTI, 1990. Adaptado pelo autor.

Numa rápida análise do quadro anterior, é possível constatar que o

ensino de Música estava presente nos três primeiros anos fundamentais da

vida escolar da população. Dessa forma a prática musical era introduzida nos

anos de base da formação da criança, contribuindo para o desenvolvimento

não só musical, mas também cívico do estudante. Essas bases fundadas

foram, com o decorrer dos anos, lapidadas com outras disciplinas. Segundo

Pilleti (1990), ao final do curso fundamental, eram oferecidas alternativas de

grade escolar, que na verdade preparavam o estudante para a futura vida

universitária, de acordo com a área pretendida: 1º) curso jurídico, 2º) cursos de

medicina, odontologia e farmácia, 3º) cursos de engenharia e arquitetura.

Juntamente às reformas educacionais referendadas em 1931 por Getúlio

Vargas, veio a notícia do decreto da obrigatoriedade do ensino do Canto

Orfeônico nas escolas. Destacar o advento “Estado Novo” em todo esse

processo certamente contribuirá para a compreensão do momento nacionalista

pelo qual o país passava na cultura, política e artes em geral, bem como o

papel de Heitor Villa-Lobos e seu projeto musical.

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Alegando o combate ao comunismo, o então presidente Getúlio Vargas

inicia sua política de repressão e censura a seus adversários, na busca pela

centralização do poder. Aproveitando-se dessa situação, Vargas acabou

também por neutralizar seus oponentes, cuidando para que as resistências

políticas ao seu governo fossem aos poucos perdendo forças. Além disso,

disputas políticas em outras regiões do país, como no nordeste e no sul,

também foram sendo neutralizadas, enfraquecendo possíveis focos de

resistência que pudessem atrapalhar a concretização do golpe. Dessa forma,

em 10 de novembro de 1937, o Congresso Nacional foi cercado pela Polícia

Militar e fechado. O rádio, importante novo veículo de comunicação em massa

da época, e que veio a ser um instrumento de grande relevância para a

concretização de uma era nacionalista e de uma política de governo, foi usado

para anunciar que o Estado Novo havia sido instaurado.

Junto com a ditadura do Estado Novo veio também uma nova

Constituição: essencialmente autoritária e centralista, que rompia com as

tradições liberais dos textos constitucionais anteriormente vigentes no país.

Mas, se de um lado, essa nova Constituição do governo Vargas fortalecia o

Estado e ampliava o poder da União no que concerne à ordem econômica e

social, por outro lado, passava a ser um agente promotor de transformações,

concretizando importantes mudanças que não podiam mais serem postergadas

e devem aqui serem ressaltadas. A política social tinha sua bandeira

reformista, já que beneficiava também os trabalhadores, com a criação da

Justiça do Trabalho, o salário mínimo, a jornada de oito horas diárias de

trabalho, férias anuais remuneradas e descanso semanal. Segundo Diniz, em

seu artigo Repensando o Estado Novo:

[...] a despeito de sua heterogeneidade ideológica e política, tinha uma bandeira reformista. Essa bandeira estava relacionada com a temática social, com a questão da igualdade e das liberdades políticas, com o desafio de suprimir as grandes disparidades sociais que marcavam a sociedade brasileira e eliminar as barreiras sociais que tolhiam o desenvolvimento da cidadania política. (Diniz, 1999, p. 22)

Se no Brasil, nesse momento social e político, era instaurado o regime

totalitário, em países da Europa essa condição também começava a tomar

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forma e fazer de países como Alemanha, Itália e Espanha, celeiros de

crueldade e censura, ditando condutas sociais e econômicas em níveis de

extremismos ideológicos, desintegrando qualquer possibilidade de uma

sociedade civil paralela e organizada. Nesses casos, o nacionalismo já

alcançava níveis extremados, a xenofobia fazia parte do processo. Quanto a

esse processo no Brasil, as características mais marcantes e comuns ao

Estado Novo nacional baseavam-se no totalitarismo, militarismo, anti-

liberalismo econômico, unipartidarismo, propaganda governamental e uma

rígida educação. Talvez por conta do processo de formação e construção

histórica do país e de sua formação social, aqui esse modelo radical não tenha

atingido o seu ápice dos níveis sangrentos e devastadores da Europa (nem

teria razões para isso), mas certamente carregava consigo traços fortes e

semelhantes dos modelos europeus. De acordo com Fausto (1994):

[...] a crise mundial aberta em 1929 empurra o Brasil para esse caminho autoritário, já que ela desmonta uma série de pressupostos do capitalismo liberal, que a seu ver, já não era tão liberal, e fornece uma boa justificativa, no plano político, para a crítica à liberdade de expressão, para a crítica ao dissenso, expresso na liberdade partidária, tidos como elementos que conduziriam o país à desordem e ao caos. (Fausto, 1994, p. 19)

Mas, retornando a Villa-Lobos e seu projeto pedagógico-nacionalista, a

conquista desse feito pode ser compreendida nas linhas a seguir, escritas pelo

maestro quando da apresentação do Programa de ensino de música no

departamento de Educação do Distrito Federal:

Nas escolas primárias e mesmo nas secundárias, o que se pretende, sob o ponto de vista estético, não é a formação integral de um músico, mas despertar nos educandos as aptidões naturais, desenvolvê-las, abrindo-lhes horizontes novos e apontando-lhes os institutos superiores de arte, onde é especializada a cultura. Oferecendo-lhes as primeiras noções de arte, proporcionando-lhes audições musicais, cultivando e cultuando os grandes artistas, como figuras de relevo da Humanidade, em todos os tempos. Esse ensino, embora elementar, há de contribuir, poderosamente, para a elevação moral e artística do povo. Assim, pois, as três finalidades distintas obedece a orientação traçada para as escolas do Distrito: a) disciplina; b) civismo; c) educação artística. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 7).

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A organização do maestro diante desse desafio revela suas metas de

colocar o Brasil em outro patamar cultural e educacional. O tripé disciplina,

civismo e educação artística revela, nas palavras do maestro, a capacidade de

organizar e liderar um projeto de dimensões nunca antes imaginadas;

considerando-se as condições culturais, estruturais e educacionais do país,

além das diferenças regionais, das distâncias geográficas e sociais

enfrentadas.

Em 1932, o maestro acabou então por ser incumbido de organizar e

dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA – a qual

tinha por principal missão:

A realização da orientação, do planejamento e do desenvolvimento do estudo da música nas escolas, em todos os níveis. A perspectiva pedagógica da SEMA foi instaurada de acordo com os princípios: disciplina, civismo e educação artística. (Esperidião, 2003, p. 17)

Vale outro parênteses na leitura, para destacar dois importantes

elementos na discussão, disciplina e civismo: dois conceitos importantes na

construção do raciocínio desta pesquisa, já que com a prática deles, a

construção da identidade nacional através da educação musical seria possível

segundo a visão de Villa-Lobos. Se, de acordo com Susan Smith: “music is a

way of articulating the conditions of existence. It is a way of telling stories, of

expressing the way lives are lived and of charting the geography of inequality”,16

então podemos entender o alcance do maestro nacionalista em valorizar e

vivificar nossas raízes, através da assimilação de nosso folclore. E Villa-Lobos

acreditava que por conta dos “poucos séculos da existência do Brasil” ainda

não era compreendida a relevância do canto coletivo na formação dos homens,

sendo este muito mais que apenas uma demonstração de caráter artístico ou

recreativo:

Elas visam tão somente prover o progresso cívico das escolas, pois que nossa gente, talvez em consequência de razões raciais, de clima, de meio [...] ainda não compreende a

16

Tradução nossa: ´´música é uma forma de articulação das condições de existência. É uma forma de contar histórias, de expressar a maneira como a vida é vivida e de traçar, mapear a geografia da desigualdade´´

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importância da disciplina coletiva dos homens.17 (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 8)

Sendo esse trecho escrito pelo próprio maestro, não restam dúvidas de

que suas convicções eram fortes o suficiente para fazer desta oportunidade,

um feito muito maior do que apenas servir a interesses meramente políticos,

como muitos críticos de seu trabalho costumavam apontar.

Observa-se também as facetas do educador, planejador e executor do

gênio musical, que muitas vezes só é lembrado como o compositor excêntrico

e elitista que se aproveitava do folclore brasileiro para se projetar

internacionalmente.

Figura 4: Aula de Canto Orfeônico com Heitor Villa-Lobos

Sendo um homem além de seu tempo, Villa-Lobos considerava a arte

musical muito mais que uma manifestação artística e uma expressão estética

da cultura humana. Ele reconhecia nas artes em geral a possibilidade de se

educar e construir um povo; assim, pelas vias da educação, seria possível

elevá-lo a uma nação unida e consciente de sua identidade e de suas raízes;

também via na prática do canto orfeônico, a chance de se transpor camadas

17

LOBOS, H. V. O ensino popular da música popular no Brasil, p. 12-13. In: PAZ, E. Villa-Lobos e a música popular brasileira.

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sociais, democratizando o acesso à música e despindo-a de elitismos.

Concluindo esse pensamento, seguem as palavras do maestro:

Torna-se também necessária uma explicação do motivo por que um artista já experimentado em sua carreira, material e moralmente feliz, com o seu meio centenário de existência já passado, enverede de surpresa nas atribuições de educador da juventude por intermédio da música, se obrigando a respeitar com a paciência de “resignado” as regras justas e obrigatórias do ensino primário da música, sob sua responsabilidade e orientação. É que sempre me julguei certo, se for útil aos outros. Se todos os artistas formados (que não são muitos) só se ocuparem de fazer arte e não pensarem em quem deve ouvi-la, acabarão as realizações artísticas por não possuírem assistentes, porque os que aprendem pretensiosamente a música nas escolas ou já se julgam também “artistas” e “colegas” autosuficiente não necessitando por conseguinte dos seus “concorrentes”, ou são educados ou instruídos egoisticamente a só apreciarem um determinado estilo, gênero ou autor de músicas. Quanto àqueles que já não possuem nenhuma iniciação musical, já são naturalmente desinteressados e nunca farão o menor esforço de procurar ouvir música, muitas vezes nem sequer pelo rádio. O auditório de concertos é quase sempre formado de elites sociais que, na verdade, e, na maioria da das vezes, não gostam da música e sim do gênero, estilo ou autor que está na moda. É círculo vicioso a vida social da arte da música. Compreendi, por isso, que era preciso que algum músico artista, com absoluta abnegação, sinceridade e coragem, não se importando com as adversidades e empecilhos iniciasse a campanha de catequese da massa popular em favor da formação de uma futura assistência especializada que não precisasse de indumentárias sociais, dos vestidos, de decote afetado, de cartola e casaca, joias e fisionomias circunspectas e que encarasse com seriedade a música da arte ou da subarte, para com ela higienizar a alma e o espírito e se deliciarem. Atualmente, depois deste incrível vendaval que separou, há humanidade, o espírito da alma, eu reio que, como um toque de alvorada, o advento da música nacionalista virá despertar as energias raciais adormecidas [...]

(Villa-Lobos, www.museuvillalobos.org.br. Acessado em 13/12/2013).

Em 1942, conforme o Decreto-Lei nº 4.244, de 09 de abril, as três linhas

de preparação são reduzidas a duas, sob os nomes de Curso Clássico e Curso

Científico. O Curso Ginasial era composto de 13 disciplinas distribuídas

conforme apresentadas a seguir:

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Ano escolar

Disciplinas

1ª série Português, Latim, Francês, Matemática, História do Brasil, Geografia geral, Trabalhos manuais Desenho e Canto Orfeônico.

2ª série Português, Latim, Francês, Inglês, Matemática, História Geral (História da América), Geografia geral, Trabalhos manuais Desenho e Canto Orfeônico.

3ª série Português, Latim, Francês, Inglês, Matemática, Ciências Naturais, História Geral (História antiga e medieval), Geografia do Brasil, Desenho e Canto Orfeônico.

4ª série Português, Latim, Francês, Inglês, Matemática, Ciências Naturais, História do Brasil e História Geral (contemporânea), Geografia do Brasil, Desenho e Canto Orfeônico.

Fonte: PILETTI, 1990. Adaptado pelo autor.

Vemos ainda que a partir dessa mudança o Canto Orfeônico foi

introduzido na grade curricular como prática musical específica, não sendo

mais descrita como Música apenas. As mudanças apresentadas anteriormente

são reflexos da longa gestão do Ministro da Educação Gustavo Capanema,

datada de 1934 a 1945.

Conhecido por sua ativa administração, baseada em grandes reformas

promovidas na área, Gustavo Capanema deu continuidade a projetos

importantes na área da educação, herdadas do governo anterior de Francisco

Campos, os quais continuaram a ser desenvolvidos e colocados em prática.

Alguns exemplos relevantes são: as reformas no ensino secundário (como

vimos nos quadros anteriores); o projeto universitário que deu origem à

Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro; a criação

do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1937 (SPHAN); a

inauguração do Instituto Nacional do Livro, bem como a construção do edifício-

sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro (onde são encontrados os

painéis de Cândido Portinari).

Essa é uma pequena seleção de realizações de sua vasta administração

política e que, pelo conjunto de medidas adotadas, passaram a ser conhecidas

como “Reforma Capanema”. É importante destacar que nesse contexto o

ministro foi assessorado em sua gestão política, com a presença de renomados

intelectuais brasileiros atuando e participando no ministério. Desta forma, as

mudanças e projetos contavam com nomes de peso da intelectualidade

nacional, que atuavam como consultores, formuladores de projetos, defensores

de propostas educativas e programas de governo. O poeta Carlos Drummond

de Andrade, por exemplo, atuava como chefe de gabinete de Gustavo

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Capanema. Outros participantes não menos respeitáveis eram: Mário de

Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Anísio Teixeira, Lourenço Filho,

Fernando de Azevedo, Heitor Villa-Lobos e Manuel Bandeira. Esses são alguns

dos expoentes da cultura, literatura e da música nacionais que compunham o

quadro de colaboradores dessa nova fase da educação brasileira.

Foi nesse momento de mudanças de rumos na educação brasileira e de

proximidade com o ministro Gustavo Capanema, que Heitor Villa-Lobos

apresentou à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo seu inovador

projeto de educação musical a ser introduzido maciçamente nas escolas

públicas. Aceito pelas autoridades a partir de 1937, o projeto foi rapidamente

difundido no ensino escolar, já que seus métodos eram simples de serem

executados e dispensavam grandes investimentos financeiros e materiais.

Outros artistas ligados profundamente à cultura brasileira como a pianista

Magdalena Tagliaferro, a bailarina Eros Volúsica e até o escritor Mário de

Andrade apresentaram ao ministro da Educação e Saúde de Vargas (1939-

1945), projetos que buscavam a reforma do ensino artístico, porém: “[...] O

Estado Novo acabou endossando somente os projetos de fácil execução e que

exigiam pequenas verbas, como o programa de canto orfeônico apresentado

por Villa-Lobos” (Ying, 2007, p. 20).

Para contribuir com esse projeto de expansão da cultura musical, o já

existente Instituto Nacional de Música passa a ser chamado Escola Nacional

de Música e mais tarde criou-se também sob o Decreto-Lei nº 4.993 em 1942 o

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico subordinado ao Departamento

Nacional de Educação.

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Figura 5: Sala do Órpheon Colégio Caetano de Campos – SP.

Heitor Villa-Lobos tornou-se diretor do SEMA – Superintendência de

Educação Musical e Artística – de 1932 a 1941, outro fator que contribuiu para

que seu projeto nacionalista de educação musical conseguisse ser colocado

em prática rapidamente. O órgão atuava sobre todos os departamentos

educacionais no Distrito Federal, mas, como já foi mencionado anteriormente, o

projeto tomou proporções nacionais, influenciando a educação musical de todo

o país, não se restringindo ao Distrito Federal. Pela conjuntura histórica e

política, o momento foi propício tanto para a difusão dos ideais “nacionalistas”

do presidente Vargas, tanto quanto para o projeto cívico de Villa-Lobos.

Para que o projeto atingisse seus objetivos, além das aulas de canto

orfeônico ministradas nas escolas, eram necessários ainda a formação,

treinamento e especialização dos professores para a prática, já que esses

seriam os agentes propagadores da missão. Outros dois pontos importantes a

serem considerados dentro desse plano ainda eram: a divulgação do programa

junto à população, ou seja a propaganda do governo a ser realizada, bem

como a mobilização da sociedade na contribuição presencial dos estudantes

nas datas comemorativas de reunião para o canto orfeônico.

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2.1 – O canto das multidões

Tendo o canto orfeônico sido aprovado em lei e instituído oficialmente

como disciplina escolar, sendo criadas as condições e as devidas estruturas

para a difusão do material didático a ser utilizado no treinamento dos

professores e na cultura musical das escolas, faltava ainda uma peça

importante nesse contexto: as canções a serem executadas nas aulas e

apresentações públicas.

Para que o projeto tivesse seu ciclo completo, o maestro imbuído dessa

missão musical, começou a produzir as peças que seriam executadas nas

escolas e nas grandes celebrações cívicas. Villa-Lobos foi buscar nas raízes

brasileiras e nas melodias folclóricas, as bases de sua inspiração para a

composição do repertório a ser apresentado.

As composições lúdicas apresentavam em suas letras referências aos

símbolos nacionais, ao folclore, às marchinhas, sempre tendo em suas letras

alusões às belezas naturais da terra pátria, às suas grandezas territoriais, a

nobreza do povo brasileiro, aos heróis de nossa história, às particularidades de

cidades como o Rio de Janeiro, ou de Estados como o Ceará, à vida na roça e

ao modo caipira de se viver entre muitos outros signos nacionais. Nesse

sentido, podemos acreditar que os que tiveram contato com seu trabalho não

conseguiam dissociar a identidade brasileira de suas obras.

O conjunto de sua obra é imenso, são mais de 1.500 composições entre

os mais diferentes estilos musicais: sinfonias, choros, concertos, óperas, coral

entre outros.

As peças para a regência do canto orfeônico, como já foi mencionado

anteriormente, foram especialmente desenvolvidas para musicalização infantil

e, além de serem utilizadas nas grandes apresentações, tinham também o

papel de facilitar o acesso das crianças ao universo musical. Despertar a

apreciação musical em um estudante, significa buscar a capacidade de ouvir

atentamente uma música, em que o compromisso estético faz parte da

experiência do ato de ouvir, transformando a audição na razão central da

existência da música. Traçando um paralelo com as artes visuais, seria o

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mesmo ato de contemplar uma obra de arte em seus detalhes, e viver essa

experiência de tal forma que o aluno sai de algum modo transformado por essa

vivência. Nesse sentido, Heitor Villa-Lobos acreditava que a música não

necessitava de grandes recursos para ser aprendida e apreciada; na verdade,

como já foi apresentado em uma de suas falas anteriores, o maestro tinha com

ele também que, por não serem necessários grandes recursos para ouvir e

aprender música, esta poderia ser mais acessível às camadas menos

privilegiadas, não se reduzindo a um pequeno grupo, motivado por modismos

ou tendências. A música é de todos e pode ser para todos. Com isso, a

incessante busca do maestro pela quebra de paradigmas, sobretudo dos

acadêmicos como as escolas tradicionais de música, os chamados

conservatórios musicais inspirados pelo modelo francês era mais ainda

determinada. Como ilustra as palavras de Horta (1987) apud Zanon (2009):

[...] demonstra como Villa-Lobos, subvertendo a clássica primazia da literatura sobre as outras artes, já estava à frente de seus colegas em consolidação estética; enquanto eles ainda panfletavam pela liberdade das amarras acadêmicas, ele escrevia uma obra que dava conceituação moderna à questão da brasilidade. (Horta, 1987 apud Zanon, 2009, p. 30)

A diversificada e infinita sonoridade brasileira sempre foi um dos temas

preferidos do maestro em suas obras. Devido a suas incursões Brasil adentro,

foi possível para Villa-Lobos se inspirar e produzir um vasto e variado repertório

musical em suas composições. Segundo a grande pesquisadora da vida e obra

do compositor, Ermelinda Paz:

[...] já demonstrando profundo sentimento nacionalista, começou a viajar pelo interior do Brasil, iniciando seu bandeirantismo musical. Na busca para conhecer o país, a gente brasileira e sua música, interessado nas manifestações folclóricas, ele viajou pelos Estados do Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Atuando como músico mambembe, Villa recolheu ampla documentação musical. (Paz, 2004, p. 7)

A busca pela descoberta das verdadeiras “raízes brasileiras” (se não as

descobriu, ao menos se inspirou em algumas) o levaram para os lugares mais

variados no país: viagens pela Amazônia para navegar e ouvir os grandes rios,

incursões pelo interior de São Paulo, capital e interior do Norte e Nordeste.

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Narra a biografia do maestro que aos dezoito anos, ou seja, estamos falando

aqui do Brasil de 1905, ele partiu para o chamado Brasil Oriental18 – Espírito

Santo, Bahia e Pernambuco – infiltrou-se nas capitais e no sertão: fazendas e

engenhos do interior, cantos primitivos, temas dos cantadores, instrumentos

rústicos, frevo, maracatu, cantigas de mendigos e lamentações dos cegos

(Grieco, 2009, p. 23). Nesse caso, podemos acrescentar inclusive que o

maestro teve a chance de recolher ampla documentação social do país.

Como não pensar em sua produção como um grande reflexo do Brasil

da época, da construção de uma verdadeira identidade nacional, como uma

declaração do reconhecimento das diversidades regionais que caracterizam e

dão legitimidade a esse imenso território?

Adhemar Nóbrega, musicólogo e professor brasileiro membro da

Academia Brasileira de Música, em seu livro Presença de Villa-Lobos atesta:

Em 1905, decidiu viajar por sua livre iniciativa. À falta de recursos, vendeu boa parte da biblioteca herdada do pai e seguiu em direção ao norte: Espírito Santo, Bahia, Pernambuco – o litoral e o interior; ruelas e becos de Salvador e Recife; engenhos e fazendas; cantos afro-brasileiros, pregões da cidade e desafios de cantadores ao som das violas sertanejas. Embora sem disposições para a pesquisa pura, o jovem músico de 18 anos ouvia e anotava aquela música, que absorvia com avidez. Folclorista, no sentido científico da palavra, Villa-Lobos nunca foi. “O folclore sou eu” - diria mais tarde numa frase de profunda significação para retratar o artista que recolhe e incorpora de tal modo a música do seu povo à sua própria maneira de ser quem quando se exprime, é a voz da própria terra que se faz ouvir. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 2)

Era nesse outro Brasil de múltiplas facetas agrárias, com que Villa-Lobos

se deparava, que alimentava seu gênio criativo musical: da mão de obra

assalariada das lavouras do café e do açúcar, bem como de sua economia, da

sociedade de mentalidade escravista e latifundiária, enfim a realidade rural,

agrária, de relações assalariadas, permeada pelas tradições e ritmos africanos.

Nessa valorização dos diversos gêneros e ritmos tipicamente brasileiros

também ficavam claras suas intenções, principalmente do ponto de vista

18

Classificação Regional do Brasil em 1905, segundo Said Ali. Dessa forma, conforme Silva (2012) compoem a região oriental os Estados de: SE, BA, ES, RJ, DF, MG e SP.

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geográfico, pois a inclusão de ritmos regionais do nordeste, norte e sudeste do

país, provavam que é através da valorização das diferenças que se constrói

uma unidade nacional. É o que vemos na canção número 17 “Canção do

Norte” ao Ceará:

Terra do Sol, do amor, terra da luz!

Sôa o clarim que a tua glória canta!

Terra, o teu nome a fama aos céus remonta.

Num clarão que seduz

Nome que brilha esplêndido luzeiro

Nos fluvos braços de ouro do Cruzeiro.

Nesse sentido, podemos fazer um paralelo das leituras de Villa-Lobos

com as de Mario de Andrade, em Ensaio sobre a música brasileira, pois o

poeta acredita que embora a música “não adoce os caracteres, o coro

generaliza os sentimentos” não importando onde estamos, em certos

momentos “[...] a mesma doçura molenga, a mesma garganta, a mesma

malinconia, a mesma ferocia, a mesma sexualidade peguenta, o mesmo choro

de amor rege a criação da música nacional de norte a sul”:

A mesma doçura molenga, a mesma Carece que os sergipanos se espantem na doçura ao topar com um verso deles numa toada gaúcha. Carece que a espanholada do baiano se confraternize com a mesma baianada do goiano. E si a rapaziada que feriram o assento do pastoreio perceberem que na Ronda gaúcha, na toada de Mato Grosso, no aboio do Ceará, na moda paulista, no desafio do Piauí, no coco norte-riograndense, uma chula do Rio Branco, e até no maxixe carioca, e até numa dança dramática do rio Madeira, lugar de mato e rio, lugar que não tem gado, persiste a mesma obsessão nacional por excelência [...]. (Mário de Andrade, apud Squeff e Wisnik, 1982, p.147-8)

Porém, foram nas grandes cidades em formação, sobretudo no início do

século XX, que as relações do urbano começaram a se materializar e que essa

música encontrava as condições para se realizar enquanto projeto, como

coloca José Ramos Tinhorão:

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A consciência de um sentimento nacional alimentado politicamente, após a República, através das eleições de presidente pelo “sufrágio direto da nação” , pelo exacerbamento do orgulho patriótico em face da pressão estrangeira durante o governo do Marechal Floriano Peixoto, e pela descoberta das perspectivas do mercado interno como fonte de riqueza para a crescente indústria brasileira, vinha provocando desde os primeiros anos do século XX um clima de expectativa ansiosa, o que se traduzia, nos grandes centros urbanos, por um permanente estado de ebulição social. (Tinhorão, 1975).

Todas essas influências se misturaram para ganhar vida e voz

(literalmente) nas futuras composições. Mas como o próprio maestro dizia:

Sim, sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha música eu deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu não ponho mordaça na exuberância tropical de nossas florestas e dos nossos céus, que eu transponho instintivamente para tudo que escrevo. (Villa-Lobos apud Paz, 2004, p. 2)

Sem contar a época que morou em Minas Gerais, onde lá fez seus

primeiros contatos com as modas de viola, bem como no Rio de Janeiro onde

suas influências desceram do morro e da malandragem. Além do Brasil

“folclórico, selvagem e nacionalista” que o maestro buscava apresentar em

suas composições – e que veremos mais adiante em alguns exemplos – como

não pensar também no Brasil do urbano, da industrialização e da

modernização? Se era entre as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito

Federal que ele se dividia e vivia, então, como não considerar que sua

inspiração e influência viessem dessas capitais, que se encontravam em

acelerado processo de urbanização? Desde que o país saíra há pouco tempo

de uma Monarquia escravista no final do século XIX e passara a ser uma

República oligárquica, em vias de transformação, (re)construindo-se como

sociedade brasileira e não mais como colonizada e se afirmando como nação.

Um país que começava a se industrializar lentamente, a criar um mercado

interno e necessitava absorver uma mão de obra excedente escrava, fruto da

abolição, que deveria ser absorvida nas cidades e nas indústrias em vias de

expansão e diversificação e que, por sua vez, necessitava de mão de obra

especializada como, por exemplo, o preparo técnico.

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Foi nesse cenário que Villa-Lobos foi influenciado e influenciou, seja em

suas composições, seja em seu projeto de educação musical, vislumbrando a

concepção de um Brasil autêntico musical e culturalmente à procura de revelar

suas raízes. Segundo Squeff & Wisnik (1982):

É próprio dos países colonizados essa vocação para o exterior; o Brasil, porém, teve-a inclusive quando tentou a libertação sob a bandeira nacionalista. Pelo menos foi isso que aconteceu com a música. E principalmente com a música de Villa-Lobos. (Squeff & Wisnik, 1982, p. 59)

Villa-Lobos foi um incansável pesquisador e estudioso de nossos ritmos,

regionalismos, contrastes e paisagens, bem como de nosso folclore. Aqui

reside boa parte do material que serviu de inspiração para as canções

executadas nos grandes eventos. Já vislumbrando o poder das artes na

construção de ideologias, Governo e maestro encontram na música, mais

especificamente no canto orfeônico, seu potencial para usá-lo como uma

ferramenta voltada para construir e difundir certos ideais, no caso dessa

investigação, o nacionalismo e a nascente identidade do povo brasileiro. E o

compositor elaborou:

O canto coletivo, com seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na comunidade, valorizando no seu espírito a ideia da necessidade da renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades. [...] O canto orfeônico é uma das mais altas cristalizações e o verdadeiro apanágio da música, porque, com seu enorme poder de coesão, criando um poderoso organismo coletivo, ele integra o indivíduo no patrimônio social da Pátria. (Villa-Lobos, 1940, p. 10)

O maestro dizia: se o país carecia de cultura musical e ainda era jovem

do ponto de vista histórico, o que cantar? Quais seriam as músicas apropriadas

para serem apresentadas a grandes multidões, nos eventos cívicos e ainda

atender ao propósito do canto orfeônico em si?

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Em seu artigo “Os defensores do ensino de música na escola brasileira

durante a primeira metade do século XX”, o musicólogo Wilson Lemos Jr.

destaca os anos da década de 1920 como o início das discussões a respeito

da finalidade da execução de hinários. Canções consideradas estúrdias, ou

seja, letras infantis sobre travessuras e brincadeiras já tinham sua função

questionada; para alguns educadores, letras assim não faziam o menor sentido

de serem executadas, até mesmo para os que regiam o coro e não

compreendiam a finalidade pedagógica das canções. Uma nota publicada no

jornal Folha da Noite, em 1923, aponta essa questão:

Em lugar de encher a cabeça das crianças com famosos hinos que nas escolas se cantam, de letra de música estúrdias, sem a menor compreensão por parte, muitas vezes, até dos professores, é preciso que se ensine os pequenos a cantar as nossas canções apanhadas entre o povo [...] Temos já canções nossas? Canções, temo-las e muitas; falta-nos somente quem as ame e as queira cantar. Da sistematização delas se encarregou o próprio Villa-Lobos e, muito breve, ouvi-las-emos nos seus adoráveis concertos [...]. Kiefer (1986, p. 142-143 apud JR 2010)

Para o repertório musical, as canções tinham que ser atrativas do ponto

de vista pedagógico, para que o aluno pudesse se identificar com as letras e,

ao mesmo tempo, cantar com facilidade. Além de terem o objetivo de

preservarem os valores culturais nacionais: baseado sobretudo no folclore, as

linhas melódicas, as notas e os ritmos eram assim pensadas. De toda pesquisa

musical feita pelo maestro, surge o famoso Guia Prático, de Heitor Villa-Lobos

(grifo nosso).

Esse guia é de valor histórico inestimável (merece a menção); a obra

didática é composta por 137 peças de canções populares, e foi elaborada

visando dar às crianças uma compreensão maior sobre o temário cultural e

sobre o folclórico brasileiro, além das referências marcantes feitas a temas

como o trabalho e seu valor, pátria, disciplina militar, datas simbólicas como

sete de setembro e o hino nacional, entre outros simbolismos carregados de

mensagens patrióticas e nacionalistas; ao mesmo tempo a sua prática permitia

o que o maestro considerava “uma melhora no nível artístico nacional”:

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[...] êstes solfejos obedecem a uma relativa liberdade de desenho melódico para, não só melhor orientar os alunos na compreensão das melodias populares e irregulares, como para habituá-los a se preocuparem conscientemente com os elementos das manifestações populares, nativas e cultivadas que se encontram na atmosfera musical do nosso país, e assim sentirem a razão psicológica da música nacional. (Ávila, 2010, p. 28).

Outra publicação importante que compõe o acervo do maestro é o 1º

Volume do Canto Orfeônico utilizado como guia nas escolas e nas

apresentações cívicas que é também composto por marchas, canções e cantos

marciais. Nesse volume apresentado na figura a seguir, a tônica é por

introduzir e praticar ritmos de marcha no estudante; dessa forma, segundo o

maestro, a “vontade cívica” e os assuntos “patrióticos” serão despertados no

jovem brasileiro:

[...] cheguei à conclusão da absoluta necessidade de serem ministrados a juventude, exercícios constantes de marchas, cantos, cânticos ou cantigas marciais.

Acrésce, ainda, que as letras sobre melodias ritmadas, não só auxiliam a memória indispensável para gravar, com presteza por audição, os fatores musicais – como despertam maior interesse cívico pelos assuntos patrióticos que encerram as músicas do presente livro. (Villa-Lobos, 1940, prefácio)

A canção “Marcha escolar (ida para o recreio)”, 1º volume do Canto

Orfeônico, ilustra muito bem essa filosofia cívica e disciplinar, como veremos a

seguir a transcrição do original:

Marcha Escolar

Vamos colegas, Findo é o estudo

Esqueçamos tudo Vamos recrear

Todos em alas

Como bons soldados

Bem perfilados

Já marchar, marchar

Vamos colegas, Findo é o estudo

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Esqueçamos tudo esqueçamos tudo

Vamos recrear Todos em alas

Já marchar, marchar

Todos alerta,

De cabeça erguida,

Posição correta,

Vamos dois a dois

Em linha certa,

Todos aprumados,

E bem ritmados,

Caminhemos, pois!

Todos em fila,

Num alegre bando,

A voz do comando,

Marchemos assim!

No campo aberto,

Como é bom a gente

Ir livremente,

Recrear, enfim!

Outro exemplo dessas canções civilizatórias e patrióticas está na música

Meu País – Canção Patriótica Brasileira (Exortação). Em ritmo marcial, a letra

evoca vários heróis nacionais como Tiradentes, Anchieta, Barroso, Caxias e

Dumont; possivelmente numa tentativa de incorporar heróis históricos no

cotidiano escolar na busca pela construção da identidade nacional. Além disso,

através de qualidades como “povo forte” e “terra pacífica” procura enaltecer as

qualidades brasileiras, incentivando a paz e um futuro calmo e belo, chamando

ainda a nação para a sua nacionalidade, como veremos a seguir:

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Meu País – Canção Patriótica Brasileira

(Exortação)

Do céu nos fala alto Cruzeiro

Com voz de estrelas e nos bem diz

Levanta a fronte que és brasileiro!

Lembras que és filho deste país!

Lembra que és filho deste país!

Vê como é lindo!

Seu povo altivo! Verdes seus campos e o céu d´anil!

Então, num brado ardente e vivo, exalto a glória do meu Brasil!

Brasil! Brasil! Ó Terra dum povo forte e audaz, Invicto és

Tu na luta e triumphador na paz!

Olha o passado: heróis ardentes saltam das tumbas, brilhas

quaes sóes, Barroso, Anchieta, e Tiradentes, Caxias, Dumont

[...]

Quantos heróis! Que povo póde, por toda a terra, mostrar tais

feitos? Ser tão viril?

E nosso ardor, na paz na luta, exalta a glória do meu Brasil! [...]

Em outra canção orfeônica, destaca-se a figura dos heróis nacionais

brasileiros: Tiradentes aparece como a figura libertadora do país e o território

brasileiro é ressaltado como uma terra fértil e produtiva. A primeira parte da

letra musical foi retirada do original “Canto Orfeônico – Marchas, Canções e

Cantos Marciais para Educação Consciente da Unidade do Movimento”:

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Tiradentes – Canto patriótico

Canção número 25 – Letra de Viriato Corrêa

O teu seio opulento e fecundo, Terra

Moça morena e gentil,

Seja a plaga mais livre do mundo

Meu querido e formoso Brasil!

O teu seio opulento e fecundo, Terra

Moça morena e gentil, ah!

Seja a plaga mais livre do mundo

Meu querido e formoso Brasil

Liberdade! Liberdade!

Em teu seio resplendente,

Leva bem a eternidade

Nossa terra nossa gente!

Libergente!

Ao fulsil!

Independência! Salve! Brasil!

Como é possível verificar, as funções práticas do canto orfeônico –

transmitir mensagens de cunho patriótico e incutir comportamentos através da

coletividade – refletem-se nas letras das partituras; a plateia e o próprio coral

acabam por, nessa via, se transformarem numa ferramenta educativa com fins

sociais, políticos e ideológicos. A exemplo dessa alma cívica e nacionalista,

mais uma canção reforça esse espírito patriótico: a canção número 35 do

mesmo livro, exalta a figura de outro importante herói nacional, Duque de

Caxias. A letra é carregada de símbolos que exaltam os tempos de paz e

heroísmo. Interessante a mensagem que a letra transmite, considerando a data

dessa composição: entre 1940 e 1942, em plena Segunda Guerra Mundial:

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Duque de Caxias – Canção Patriótica:

Sobre a história da Pátria, o Caxias

Quando a guerra troveja minaz

O esplendor do teu gládio irradias

Como um íris de glória e de paz

Salve, Duque glorioso e sagrado

O´Caxias invito e gentil

Salve, flor de estadista e soldado

Salve, herói militar do Brasil

Foste sil!

O maestro referia-se sempre em suas falas a uma “multidão

desinteressada de qualquer espécie de cultura e divorciada da grande e

verdadeira arte musical”. Nesse percurso, o contexto político e histórico do

Estado Novo de Getúlio Vargas encontra os meios propícios para preparar a

nação para as mudanças que o país iria passar; dessa forma, concretizando

lentamente os ideais de nacionalismo e patriotismo. O Canto do Lavrador vai

destacar muito bem esses ideais que vão de encontro com os interesses do

momento:

Vem Lavrador

Vamos todos a cantar,

Numa alvorada de prazer:

Pelos campos, pelos montes vales e montes revolver;

Semear por toda a parte,

Pela planície e pela serra: para encher de flôr e frutos,

Frutos e florestas toda a Terra!

Ah! Feliz é quem no Brasil nasceu

Sob o céu primaveril! [...]

A cantar, plantar, no verdor do chão

A Semente e o Coração!

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Ah! Feliz é quem no Brasil

Nascei sob o céu primaveril!

Já é bem feliz, sob um céu de anil,

Lavrador ser do Brasil! [...]

Nessa análise, podemos entender o que Wisnik considera como sendo

“o lugar estratégico na relação do Estado com as maiorias iletradas do país,

lugar a ser ocupado pelas concentrações corais, pela prática disciplinadora

cívico artística do orfeão escolar [...]”. Com esses objetivos e através de letras

como as apresentadas anteriormente, o projeto de Heitor Villa-Lobos vai

ganhando espaço no projeto do Estado de Getúlio Vargas [...].

O canto orfeônico, como já mencionado anteriormente, não se restringia

às salas escolares e nos cursos de educação musical; as chamadas

“concentrações orfeônicas” mobilizavam grandes multidões e eram realizadas

em feriados importantes de caráter cívico, datas de celebrações nacionais

como Dia da Independência e Dia da Bandeira por exemplo. Os locais

escolhidos para as apresentações eram próprios para multidões: o estádio do

Fluminense no Rio de Janeiro, o estádio do Vasco da Gama também no Rio, a

Esplanada do Castelo, o Largo do Russel.

Figura 6: Concentração orfeônica no campo do Clube de Regatas da Gama, Rio de Janeiro, 7 de julho de 1935.

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2.2 – A Geografia das batutas...

Mais de 12.000 vozes entre operários, professores, alunos e soldados

foram reunidas no dia 24 de maio de 1931 em São Paulo; para a divulgação de

um evento dessas proporções, técnicas modernas de propaganda tais como

folhetos, foram lançados prospectos de aviões, foram entregues nas escolas e

fábricas. Pode-se refletir na relação mobilização urbana via poder público

encontrando formas de se viabilizar; utilizando-se da música orfeônica como

elo e ferramenta para concretizar os interesses do Estado sob essa nova

sociedade: “Não foram os camponeses brasileiros os alvos visados pela

música de Villa-Lobos. Foi a música urbana, com todas as múltiplas influências

que ela recebeu, o grande mote do compositor” (Squeff & Wisnik, 1982, p. 58).

Na visão do maestro, ao despertar no indivíduo o espírito da

coletividade, propiciando num ambiente musical a possibilidade de relações

interpessoais, sociabilizando-o culturalmente através da música, o patriotismo e

a formação moral e cívica poderiam ser introduzidos e desenvolvidos pelo

canto em grupo:

Cheios de fé na força poderosa da música, sentimos que era chegado o momento de realizar uma alta e nobre missão educadora dentro da nossa Pátria [...] Era preciso por toda a nossa energia a serviço da Pátria e da coletividade, utilizando a música como um meio de formação e de renovação moral, cívica e artística de um povo [...] crentes de que o canto orfeônico é uma fonte de energia cívica vitalizadora e um poderoso fator educacional. (Villa-Lobos, 1991, p. 9)

Segundo Parada (2009), o maestro não estava lá por acaso, na verdade

sua presença “não ocorreu de forma acidental nem desinteressada – ao

organizar o evento, dava uma demonstração de tenentismo artístico

convencido da capacidade mobilizadora e regeneradora da música”. Assim,

considerando-se todo o material pesquisado e apresentado até o momento

sobre a presença e o papel de Heitor Villa-Lobos na construção da identidade

nacional do país através da institucionalização do canto orfeônico temos: a

reformulação da educação e da educação musical nas escolas brasileiras, as

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composições do maestro que buscavam construir e representar uma cultura

nacional, a realidade urbana e regional do país, a construção da civilidade e do

patriotismo através do culto ao nacional, o Estado Novo de Getúlio Vargas e a

modernização do Brasil. Encerram-se as ideias desse capítulo, destacando as

finalidades da prática coral, apresentadas na página 7 do segundo volume

Canto Orfeônico, publicado sob a Portaria nº 300, de 7 de maio de 1946 do

Ministério da Educação e Saúde:

A) Estimular o hábito de perfeito convívio coletivo, aperfeiçoando o

senso de apuração do bom gosto.

B) Desenvolver os fatores essenciais da sensibilidade musical,

baseados no ritmo, no som e na palavra.

C) Proporcionar a educação do caráter em relação à vida social, por

intermédio da música viva.

D) Incutir o sentimento cívico de disciplina, o senso da solidariedade e

da responsabilidade no ambiente escolar.

E) Despertar o amor pela música e o interesse pelas realizações

artísticas.

F) Promover a confraternização entre os escolares.

2.3 – E a Geografia das batucadas de Villa-Lobos

O Rio de Janeiro era o Rio de Villa-Lobos, a cidade maravilhosa foi o

palco que serviu de inspiração e de transformação de sua música. Depois de

um tempo morando em Minas Gerais – por conta de perseguições políticas

sofridas por seu pai que atacava o então Marechal Floriano Peixoto – o menino

Heitor já começava o seu contato maior com a música e suas primeiras notas

são tocadas num violoncelo através de uma viola adaptada para sua idade.

Estudiosos de sua obra acreditam e creditam sua memória e herança

musicais datando dessa época: o contato com a música de raiz e da moda de

Viola de Minas Gerais, criou essa influência que mais tarde iria aparecer ao

longo de seu trabalho. Os encontros musicais promovidos por seu pai –

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professor e funcionário da biblioteca nacional do Rio – nos quais amigos

instrumentistas executavam o que se tocava de mais atual e original em termos

de música popular das ruas do Rio de Janeiro, com certeza também

contribuíram para sua formação musical e convicções patrióticas. Após a morte

de seu pai, os famosos “choros”, proibidos até então, entraram também para o

repertório de Villa.

Para se ter uma ideia da importância e da representatividade do

cotidiano, do urbano e até das camadas sociais através do “choro” nos anos de

1910 e 1920, seguem as palavras de Pixinguinha:

Tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas mais humildes. Se havia uma festa, iam logo chamar os chorões; o choro era tocado na sala de visitas. Lá no quintal e para os empregados, era tocado o samba. (Paz, 2004, p. 6)

Um dos trabalhos que já refletiam o Brasil da época foi a composição

das “Canções Típicas Brasileiras”, em 1919, para canto e piano. Para escrevê-

las, Villa-Lobos utilizou gravações indígenas realizadas por Roquette Pinto19

que as trouxe de sua incursão pelo interior do Amazonas em 1911. A seguir,

segue trecho (raro de ser encontrado) da letra da música Estrela é lua nova

que compõe o conjunto das “Canções Típicas Brasileiras”:

Estrela do céu é lua nova

Cravejada de ouro ma kumbebê,

Óia ma kumbêbê,

Óia ma kumbaribá,

Estrela do céu é lua nova

Cravejada de ouro ma kumbêbê

Óia ma kumbêbê

Óia ma kumbaribá

19

Edgard Roquette Pinto, um dos maiores defensores da radiofusão educativa no Brasil teve importante papel na divulgação da ciência no início do século XX. Participou da expedição Rondon em Mato Grosso e investigou os índios Pareci e Nhambiquara, publicando obra de grande interesse geográfico e etnológico. Fonte: www.museudavida.fiocruz.br acessado em 02/12/2013.

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O fragmento apresentado anteriormente é, segundo muitos estudiosos,

inspirado no que se costumava chamar de “canto de macumba”; assim

evidencia-se que o maestro compositor também frequentava casas de

macumba, terreiros e mães de santo, hábito muito comum entre os músicos no

transcorrer dos anos 1920 e 1930 no Rio de Janeiro. Outra pérola musical que

data da mesma época é o canto “Xangô”, também inspirado nas melodias dos

terreiros e nos cânticos religiosos das Umbandas, Candomblés e Encantarias.

Xangô é uma das canções típicas Brasileiras de Villa-Lobos e integra o

segundo volume do Canto Orfeônico (publicada em 1950), que foi um projeto

musical destinado a divulgar ideais nacionalistas por meio da educação

musical. A seguir Xangô, música de Heitor Villa-Lobos e letra baseada no ritual

nagô de candomblé:

Xangô!

Olê gondilê olalá...

Gon gon gon gon gondilá!

Xangô!

Olê gondilê olelê

Gon gon gon gon gondilê! 20

20

Áudio disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=EOuvy7Xi2nQ Canto Brasileiro Xango Heitor Villa-Lobos Angela Diel mezzo-soprano e Marie Boulenger piano. Acessado em 07/02/2014.

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63

Capítulo 3 – Utopia Panamericana

Os anos que compreenderam a década de 1960 foram marcados por

importantes mudanças no âmbito político e social para a sociedade moderna

como um todo; novos projetos culturais e ideológicos ganharam força e

trouxeram à tona uma leitura crítica dos acontecimentos da sociedade, além de

buscarem construir novos padrões morais, comportamentais, políticos e

sociais.

Nesse caminho, merecem destaque alguns acontecimentos marcantes

em nível mundial: a Guerra do Vietnã (que se iniciou em 1955 e se estendeu

por toda a década de 1960, acabando apenas em 1975), a entrada dos

Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1965), a chegada do homem ao espaço

(1962), a construção do muro de Berlim (1961), o movimento hippie e o

fortalecimento dos movimentos pacifistas por todo esse período, o surgimento

do grupo musical de rock inglesa chamado Beatles, a Primavera de Praga

(1968) e os assassinatos do presidente Kennedy nos Estados Unidos (1963) e

do líder Martin Luther King (1968).

No Brasil especificamente alguns acontecimentos tiveram suma

importância no destino do país, pois trouxeram, como consequência para a

nação, grandes mudanças de paradigmas e de estrutura do ponto de vista

político e social como um todo, determinando dessa forma os caminhos que o

país iria seguir.

Para destacar alguns dos mais significativos fatos que ocorreram dentro

do período referido, podemos citar: a transferência da capital do Brasil do Rio

de Janeiro para Brasília em 1960, a eleição de Jânio Quadros como presidente

e sua posterior renúncia em 1961, o golpe militar que tirou do comando o

presidente João Goulart e instaurou no país o regime da Ditadura Militar em

1964, o início das transmissões dos festivais de Música Popular Brasileira na

televisão em 1965 e a instauração dos Atos Institucionais (AI) da Ditadura

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64

Militar, com detalhe para o Ato Institucional número 5, ou somente o AI-5

(1968).

A transferência da capital do Brasil do Rio de Janeiro para Brasília em

1961, é um divisor de águas tanto no sentido geográfico de sua localização

como também no tocante à dinâmica das relações estabelecidas com o distrito

federal que até hoje, têm suas consequências para a nação do ponto de vista

econômico, social e político.

A construção de Brasília por si só seria um capítulo à parte no que se

refere às análises e críticas desse feito, mas no caso dessa pesquisa, a leitura

da construção da capital passa por esferas de outra ordem. Apresentaremos

nesse tema fatos e dados que ajudarão a compor o cenário mencionado, bem

como a leitura do movimento Tropicalista que virá a seguir juntamente com a

Ditadura Militar; para tanto, é necessário retroceder um pouco no tempo e no

espaço para que essa interpretação seja compreensível.

3.1 – Os 50 anos em 5 na Geografia do Brasil

A gestão do presidente Juscelino Kubitschek ocorreu de 1956 a 1960.

Eleito com uma das menores percentagens de votos válidos (33,82%) até

então dadas a um presidente da República21 pelas vias democráticas para

suceder o presidente Getúlio Vargas (que havia se suicidado em 1954), JK,

como era chamado, enfrentou grandes desafios pela frente. Além de enfrentar

a oposição que tentava por todas as vias derrubá-lo e impedi-lo de assumir o

mandato, o presidente tinha também a missão de colocar em prática as

promessas feitas em sua campanha eleitoral. Considerada uma campanha

“voltada para o futuro”,22 tinha o ambicioso plano de modernizar o país de forma

intensa nos seus cinco anos de gestão, utilizando o slogan “50 anos em 5”.

O plano anunciado em sua campanha continha 30 metas de governo,

com seus respectivos custos e fontes de financiamento, coroadas pela meta-

síntese: a construção de Brasília. O plano de Metas do presidente foi dividido

21

Retirado do site cpdoc.fgv.br acessado em 26/11/2013. 22

Idem.

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65

em seis grandes grupos a saber: energia, transportes, alimentação, indústrias

de base, educação e a construção de Brasília chamada de meta-síntese

(Fausto, 1994, p. 425). No quadro a seguir, podemos compreender melhor do

que se tratava especificamente essas metas e como foram classificadas:

SETOR METAS

Energia Energias elétrica, nuclear, carvão mineral, petróleo: produção e refinação.

Transportes Ferrovias: reaparelhamento e construção, rodovias: pavimentação e construção, portos e dragagem, marinha

mercante e transporte aeroviário.

Alimentação Trigo, armazéns e silos, frigoríficos, matadouros industriais, mecanização da agricultura, fertilizantes.

Base Siderurgia, alumínio, metais não-ferrosos, cimento, álcalis, celulose e papel, borracha, exportações de minérios, Indústrias

automobilística e mecânica, construção naval.

Educação Formação de mão de obra técnica para o desenvolvimento do país.

Meta-Síntese Construção de Brasília.

Fonte: SUMOC. Boletins, vários anos, 1955-1964. Adaptado pelo autor.

Esse ambicioso projeto de construir e transferir a nova capital do país

tinha em sua essência alguns outros propósitos: além de transferir a capital e o

centro do poder nacional para a região central do país, tinha também o objetivo

de construir uma cidade totalmente planejada para tal feito e, com isso,

promover a movimentação da economia local e regional, além de despertar o

espírito nacionalista e patriótico do povo através de sua ideologia nacional

desenvolvimentista.

Para demonstrar a importância da cidade no Rio de Janeiro nesse

contexto, bem como a importância da mudança de capital, é necessário um

rápido parênteses na construção do raciocínio anterior, apenas para

acrescentar algumas informações relevantes a respeito da cidade que deixaria

de ser o centro do poder político do Brasil. Sede da capital federal do país

desde 1763, quando da transferência da sede do vice-reinado de Salvador para

o Rio de Janeiro, a cidade tinha em sua localização alguns dos requisitos que

atendia aos interesses da Coroa Portuguesa: a vantagem de ser uma cidade

portuária facilitava a comunicação com o outro lado do Atlântico, mais

precisamente com o Império Português; consequentemente, a cidade se

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transformava num centro que permitia o fluxo na circulação de homens,

escravos, mercadorias, comércio, bens, produtos, serviços e também ideias e

ideais. Além disso, a cidade ganhara mais importância ainda quando, em 1808,

ocorreu a chegada da família Real Portuguesa no Brasil se instalando na

cidade do Rio de Janeiro.

Tendo em mente toda a importância histórica e política que a cidade

maravilhosa carregava em sua trajetória na breve apresentação anterior e

considerando o contexto político do Brasil da década de 1950 em diante; a

mudança que estava prestes a ser operada, trazia (e ainda traz)

questionamentos a respeito dessa alteração, segundo Motta:

Aos anos dourados representados pelo período em que foi o cérebro e o coração do país, seguiram-se os anos de chumbo, marcados por drásticas mudanças de estatuto político e administrativo que levaram a cidade à condição de estado da Guanabara e depois de município do Rio de Janeiro, capital de mesmo nome. Ao glorioso passado de centro político e cultural do país, teria sucedido o presente da decadência. (Motta, 2000, p. 3)

Ainda segundo a autora, algumas correntes apontam que a transferência

da capital federal para a nova cidade devia-se muito ao fato de o Rio de

Janeiro, por seu passado histórico e intelectual, ter cidadãos mais “politizados”,

enquanto Brasília, por ser uma “ilha da fantasia oculta e isolada”23, favorecia o

fortalecimento da ditadura militar.

Assim, no Brasil dos anos 50, o presidente Juscelino conseguiu, com a

ajuda dos arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, projetar e construir a

capital do futuro; em três anos seus principais prédios foram concluídos: em

1958 a fachada do palácio da Alvorada estampava a capa da revista Manchete.

JK sabia das implicações de seu projeto diante da nação: atrasos implicariam o

abandono do sonho e, por isso, o presidente instalado no Catetinho (menção

feita à sede do Catete no Rio de Janeiro) acompanhava a realização do sonho

de urbanistas e arquitetos que viam, na cidade planejada, a possibilidade do

planejamento colocado em prática. O sonho de igualdade era promovido no

23

Idem.

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67

discurso do Estado através de espaços divididos para lazer, moradia e

trabalho.

A entrevista do urbanista Lúcio Costa ao jornal O Estado de São Paulo,

em 1988, revela mais um pouco de sua visão a respeito da construção de

Brasília e suas contradições:

O que ocorre em Brasília e fere nossa sensibilidade é essa coisa sem remédio, porque é o próprio Brasil. É uma coexistência, lado a lado, da arquitetura e da antiarquitetura, que se alastra; da inteligência e da antiinteligência, que não para; é o apuro parede-meia com a vulgaridade, o desenvolvimento atolado no subdesenvolvimento; são as facilidades e o relativo bem-estar de uma parte, e as dificuldades e o crônico mal estar da parte maior. Se em Brasília esse contaste avulta é porque o primeiro élan – visou além – algo maior. Brasília é portanto, uma síntese do Brasil, com seus aspectos positivos e negativos, mas é também testemunho de nossa força viva latente. Do ponto de vista do tesoureiro, do ministro da Fazenda, a construção da cidade pode ter sido mesmo insensatez, mas do ponto de vista do estadista, foi um gesto de lúcida coragem e confiança no Brasil definitivo. (Costa, 1988, O Estado de São Paulo)

As implicações políticas dessa mudança para os rumos do país até hoje

são questionadas e questionáveis e, embora não seja o centro dessa

investigação, fica a reflexão e o direito ao questionamento e dúvidas. Mas, não

encerrando a questão e sim a complementando, temos na visão do urbanista

Lúcio Costa argumentos que contrariam correntes que defendiam e ainda

defendem o Rio de Janeiro como capital federal. Por outro lado, a leitura de

Boris Fausto (1994) nos apresenta a construção de Brasília e o Plano de Metas

do presidente JK e o impacto desse projeto em nível nacional, como sendo:

Anos de otimismo, embalados por altos índices de crescimento econômico, pelo sonho realizado da construção de Brasília. Os “cinquenta anos em cinco” da propaganda oficial repercutiram em amplas camadas da população. (Fausto, 1994, p. 422)

Em geral, mesmo com muito a se crescer nas atividades industriais e

econômicas do país e, embora possamos entender que os indicadores

econômicos da época apontassem números um tanto quanto baixos se

considerarmos a extensão do território brasileiro e sua enorme capacidade

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produtiva não explorada devidamente, os objetivos do Plano de Metas –

lembrando que dentro delas temos a importante participação da construção de

Brasília – os resultados já se mostravam bons se comparados com os de

outros anos na leitura comparativa de três décadas importantes do contexto

econômico nacional. A seguir, um breve recorte no PIB das décadas de 1940,

1950, 1960 e 1970, considerando o momento de crescimento econômico em

que o país se encontrava; para compreensão vale o destaque que os números

são apresentados em taxas médias:

Década PIB

1940-1950 5,90%

1950-1960 7,38%

1960-1970 6,01%

Fonte: Bacha & Bonelli (2001). Adaptado pelo autor.

Segundo Fausto (1994, p. 427), o governo de JK “promoveu uma ampla

atividade do Estado nos setor de infraestrutura como no incentivo direto à

industrialização”, com isso, a política econômica de seu governo combinou o

Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro para promover o

desenvolvimento, com ênfase na industrialização24 e, de certa forma, prevendo

os rumos da economia que o país seguiria na fase da Ditadura Militar, porém

em outro contexto.

Se a construção de Brasília ativou toda uma dinâmica interna de

produção e crescimento econômico através da construção civil, sobretudo no

que diz respeito à utilização de grande volume da mão de obra nacional e às

consequentes migrações internas, ou seja, o deslocamento populacional para

trabalhar na região, e toda a movimentação que essas relações trazem do

ponto de vista econômico e comercial que se refletem na geografia do país; por

outro lado, a industrialização baseada no capital estrangeiro também teve sua

importante fatia de participação nos números apresentados que se refletirão e

poderão ser interpretados na configuração do espaço geográfico brasileiro.

Na composição desse cenário econômico de crescimento nacional, na

outra ponta da economia estavam as indústrias estrangeiras. O governo de JK

24

Idem.

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69

procurava despertar o interesse dessas empresas, atraindo investimentos

através de algumas facilidades que permitiam às multinacionais transações e

transferências de equipamentos no país sem maiores despesas. Essas

manobras eram possíveis através do uso de um recurso da época do governo

de Café Filho, chamado Instrução.

Assim, a Instrução 113 da Sumoc 25 foi utilizada nas manobras do

governo, e permitiu que importantes equipamentos de uso industrial fossem

transferidos para o Brasil sem que o pagamento dessas importações fossem

realizadas aos cofres nacionais. Com essa medida, os investimentos aos olhos

dos estrangeiros se tornavam interessantes e não se tornaram tão onerosos, e

a economia do país ganhava na obtenção de maquinário moderno. A Instrução

113 foi utilizada em áreas consideradas essenciais pelo governo; as indústrias

automobilística, de transportes e de transportes aéreos, as estradas de ferro,

eletricidade e aço (Fausto, 1994, p. 427). Os resultados dessa ação foram

visíveis entre 1955 e 1961 como mostram os números: entre 1955 e 1961, o

valor da produção industrial, descontada a inflação, cresceu em 80% com altas

porcentagens nas indústrias do aço (100%), mecânicas (125%), de eletricidade

e comunicações (380%) e de material de transporte (600%). (idem)

Para compor o raciocínio anterior e contribuir em nossas análises e

reflexões acerca do crescimento econômico brasileiro, apresentamos dois

quadros a seguir: o primeiro, representa o crescimento do emprego na indústria

automotiva a partir de 1957; o segundo, a produção total de veículos no mesmo

período:

25

Sumoc: Superintendência da Moeda e do Crédito, tinha por objetivo principal combinar a orientação monetária do país.

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70

Tabela 1: Emprego de 1957 a 1970 em número de Pessoas

Ano Veículos Máquinas agrícolas e Rodoviárias

Total

1957 9.773 - 9.773

1958 19.248 - 19.248

1959 29.323 - 29.323

1960 38.410 60 38.470

1961 37.404 349 37.753

1962 48.523 1.267 479.790

1963 43.994 1.610 45.604

1964 44.414 1.882 46.296

1965 49.456 2.591 52.047

1966 50.662 2.431 53.093

1967 46.396 2.139 48.535

1968 60.437 2.516 62.953

1969 61.059 3.208 64.267

1970 65.902 4.140 70.042

Fonte: Anuário da Indústria Automobilística Brasileira 2014. Posição em 31 de dezembro de

cada ano.

Tabela 2: Produção total de veículos de 1957 a 1970

Ano Carros Comerciais leves

Caminhões Ônibus Total produzido

1957 1.166 10.871 16.259 2.246 30.542

1958 3.831 26.480 26.998 3.674 60.983

1959 14.495 41.959 36.657 3.003 96.114

1960 42.619 48.735 37.810 3.877 133.041

1961 60.205 54.886 26.891 3.602 145.584

1962 83.876 67.648 36.174 3.496 191.194

1963 94.764 55.397 21.556 2.474 174.191

1964 104.710 54.503 21.790 2.704 183.707

1965 113.772 46.456 21.828 3.131 185.187

1966 128.821 60.735 31.098 3.955 224.609

1967 139.260 54.421 27.141 4.665 225.487

1968 165.045 66.984 40.642 7.044 279.715

1969 244.379 63.073 40.569 5.679 353.700

1970 306.915 66.728 38.388 4.393 416.089

Fonte: Anuário da Indústria Automobilística Brasileira 2014. Posição em 31 de dezembro de cada ano.

3.2 – Dos anos de flores para os anos de aço

Do milagre econômico que o Brasil viveu nos anos do governo de

Juscelino Kubitscheck e todos os louros da industrialização e construção de

Brasília que a época recebeu, andamos um pouco nos anos para o momento

chegar na Ditadura Militar que ocorreu no país entre 1964 e 1985.

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O período da ditadura militar no Brasil abrange alguns aspectos

fundamentais para a compreensão da conjuntura político e econômica do país

envolvidas nesse trabalho de pesquisa, bem como é indispensável para a

leitura e interpretação das letras das canções apresentadas e analisadas aqui.

Numa breve contextualização, politicamente o período compreendido

entre 1964 a 1985 foi regido por governos ditatoriais, que teve início com o

Golpe Militar ao então presidente João Goulart; para muitos brasileiros, Jango

como era chamado, representava a ideia da possibilidade do Brasil ser tomado

por Comunistas, já que seu governo então extremamente enfraquecido por

planos econômicos fracassados perdia apoio das elites ao mesmo tempo em

que movimentos sociais começavam a ganhar força no país.

A conjuntura econômica dos anos que se sucederam após o milagre

econômico do Brasil não era das melhores: déficits no setor público, gastos dos

Estados, desequilíbrio nas contas da União, gastos com subsídios a produtos

agrícolas importados, baixo desempenho das empresas públicas, bem como

aumento na arrecadação dos impostos era o cenário que compunha a situação

do país.

A exemplo dos movimentos sociais mencionados anteriormente, líderes

estudantis da UNE – União Nacional dos Estudantes – começaram a entrar em

cena, reivindicando principalmente o fim da exclusão social e do analfabetismo,

demandas que refletiam os problemas de ordem estrutural e econômica no

país. Em outro segmento da sociedade, as insatisfações de ordem social

ganhavam força através da Igreja Católica, surgindo divisões políticas com

orientações socialistas que se aliaram aos insatisfeitos estudantes, adicionando

poder nas manifestações que só faziam aumentar a pressão por

transformações profundas na sociedade naquele momento. Paralelamente

ocorria em Brasília uma rebelião de sargentos que pleiteavam o direito de se

candidatarem a cargos eletivos, o que preocupou ainda mais a alta cúpula das

Forças Armadas.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o presidente João Goulart convocava

um comício para mobilizar as massas em busca de apoio nas reformas de

base; mudanças nos setores da agricultura, economia, educação, político e

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social preocupavam certas camadas sociais brasileiras. Exemplos podem ser

encontrados em vários segmentos: a desapropriação de terras subutilizadas, a

nacionalização de refinarias de petróleo de origem privada que ainda não

estavam nas mãos da Petrobrás; a redução de gastos públicos com o corte de

subsídios de alguns produtos de importação e o aumento de impostos sobre os

contribuintes de renda mais elevada; tais medidas impactavam na sociedade

civil que se encontrava insatisfeita, mas que aparentemente não queria ser

afetada pelas mudanças anunciadas no governo.

De acordo com Fausto (1994), os problemas econômicos e a falta de

apoio de setores interessados no fracasso das medidas adotadas contribuíam

para preparar o terreno ao golpe militar:

O plano econômico dependia da colaboração dos setores que dispunham de voz na sociedade. Essa colaboração mais uma vez faltou. Os beneficiários da inflação não tinham interesse no êxito das medidas; os inimigos de Jango desejavam a ruína do governo e o golpe; o movimento operário se recusava a aceitar restrições aos salários; a esquerda via o dedo do imperialismo por toda parte [...]. (Fausto, 1994, p. 456)

A exemplo do que foi apresentado anteriormente, uma série de medidas

desastrosas e mal interpretadas pelas diversas camadas da sociedade já

sinalizava que João Goulart não teria vida longa na liderança do país. Suas

iniciativas e decisões já não mais inspiravam segurança para certas camadas

da nação; dessa forma, alguns setores já se organizavam para a tomada do

poder, sobretudo os mais conservadores e tradicionais como os militares. Estes

não confiavam mais nos atos e nas decisões do presidente por uma série de

incidentes que se sucederam ao longo de certos acontecimentos, a saber: a

quebra de hierarquia, a ausência da ordem social (a exemplo das

manifestações citadas anteriormente) e o receio do comunismo, pois o

presidente não se posicionava fortemente quanto à questão; todos esses

fatores deixavam margens para muitas dúvidas e inseguranças, abrindo

precedentes para a organização do golpe.

Outra agente que teve importante participação em todo esse movimento

e que é necessário ser mencionado é o papel dos meios de comunicação

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nesse momento: a imprensa teve sua parcela de participação na propagação

dos acontecimentos e na divulgação do “fantasma do comunismo”, contribuindo

assim para a queda de Jango; as notícias que circulavam nos jornais de grande

expressão, ajudaram a exacerbar as posições ideológicas em conflito,

aumentando dessa forma o temor pela dominação comunista. Os atores que

articularam e executaram o duro golpe na nação brasileira temiam muito mais

os ideais revolucionários que circulavam internamente entre os grupos

organizados e que mostravam sua força nos momentos de crises no país, a

exemplo da Liga Camponesa e da União Nacional dos Estudantes, do que a

possibilidade das influências externas como no caso do Comunismo Cubano e

outros movimentos revolucionários internacionais como os ocorridos na Ásia e

África. Nesse sentido, os Estados Unidos da América, que já haviam iniciado

sua campanha contra o país de Fidel Castro, não só viram com bons olhos os

acontecimentos no Brasil, como também o apoiaram na forma de suporte

logístico aos militares se preciso fosse, de acordo com a operação secreta

“Operação Brother Sam”.

Assim, consideradas as conjunturas apresentadas em 31 de maço de

1964, o Golpe Militar foi dado no Brasil, derrubando o presidente eleito pelo

voto direto João Goulart, e colocando em seu lugar, militares que governarão o

país através dos decretos chamados Atos Institucionais (AI).

3.3 – Os anos de aço e a contracultura: um recorte de 1964 a 1969

Instaurada o Regime da Ditadura Militar através do Golpe dado pelos

militares em 31 de março de 1964, o país passou a viver uma realidade bem

diferente do ponto de vista da liberdade de expressão. Se no governo de João

Goulart, a imprensa participava e influenciava ativamente as decisões políticas

no Brasil a ponto de tomar partido de lados políticos, após o golpe militar os

meios de comunicação passaram a ser perseguidos e silenciados, através da

censura instaurada em todo o território nacional.

O Ato Institucional número I, ou AI-1, estabeleceu por votação indireta

do Congresso Nacional o novo presidente da República: o general Humberto

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74

de Alencar Castelo Branco fora eleito, e seu governo se estenderia até dia 31

de janeiro de 1966. Várias das medidas do AI-1 tinham por objetivo “reforçar o

Poder Executivo e reduzir o campo de ação do Congresso” (Fausto, 1994, p.

466), justificando os atos de exceção que se seguiram em todas as esferas de

ação do governo. Esse e outros Atos Institucionais não eram previstos na

Constituição Brasileira, mas tinham o poder de “cassar mandatos, suspender

imunidades parlamentares e direitos políticos pelo prazo de dez anos; bem

como suspender as garantias de estabilidade e vitaliciedade dos magistrados e

funcionários públicos” (Fausto, 1994, p. 466). Nos primeiros dias do golpe, uma

violenta repressão se espalhou nos setores políticos mais mobilizados à

esquerda, como o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), a UNE (União

Nacional dos Estudantes), as Ligas Camponesas e os grupos católicos.

Centenas de pessoas foram atingidas em seus direitos com os Atos

Institucionais e, através dos cinco Atos, o Brasil passou a ser governado no

que foi considerado a fase mais severa e difícil do regime militar no país.

Para administrar a economia do país, o regime instaurou o Programa de

Ação Econômica do Governo (PAEG), com políticas voltadas à recuperação

das finanças públicas que se encontravam deficitárias; algumas dessas

medidas foram o controle dos gastos do Estado, o aumento dos impostos, corte

de subsídios a produtos básicos como trigo e petróleo, a introdução da

correção monetária para pagamento de impostos em atraso e a criação de

índices para reajustes de salários abaixo da inflação. Com essas medidas, os

trabalhadores começaram a sofrer com o arrocho salarial: na intenção de

impedir a subida dos preços e da inflação e diminuir despesas na máquina do

Estado, a população assalariada brasileira de forma geral, pagou uma conta

cara nesse processo. Com esse achatamento salarial e medidas que impediam

greves, o poder das empresas sobre o processo de contratação e de salários

aumentou no país, dificultando mais ainda a vida do brasileiro. Em linhas

gerais, era esse o cenário em que o Brasil, leia-se a classe trabalhadora e

assalariada, foi inserido no contexto da Ditadura Militar: arrocho salarial,

abertura ao capital estrangeiro, investimentos em grandes obras com o aporte

financeiro internacional (o que mais tarde iria se refletir na grande dívida

externa do país), controle de movimentos sindicais e trabalhistas, censura aos

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movimentos questionadores e contrários aos atos do governo, incentivos a

produtos de exportação – deixando de lado os produtos que compunham a

base da alimentação do brasileiro e consequente encarecimento do custo de

vida da população e beneficiamento de poucos em detrimento de muitos. O

chamado “Milagre Brasileiro” que o Regime da Ditadura Militar realizou no país,

custou e custa até hoje à sociedade brasileira, um valor muito alto.

Assim, os fatores que foram levando o Brasil a se modernizar,

vinculando-se ao capital externo, impedindo o domínio comunista, e colocando

ordem interna sob o regime do medo e da repressão, também trouxe a nossa

sociedade uma grande má distribuição de renda e desigualdade social que até

hoje pagamos socialmente e economicamente pelas decisões do período.

3.4 – A Contracultura

Sendo a década de 1960 a década marcada pelas revoluções e

contestações em várias partes do mundo, no Brasil não seria diferente. A

insatisfação e a rebeldia tomaram conta dos jovens em movimentos que

buscavam novos horizontes: a revolução sexual, a quebra de paradigmas, o

uso da pílula anticoncepcional, a afirmação da mulher perante a sociedade, a

justiça social, a renovação de valores, a liberdade de escolha, entre tantos

outros, eram algumas das transformações pelos quais a juventude passava nos

cinco continentes. Conhecido como o movimento da contracultura, essas

manifestações políticas e culturais denunciavam não somente o capitalismo e

suas consequências de desigualdade e perversidade, mas também buscavam

alternativas para a construção de um sistema mais justo.

Conhecida por muitos como sendo a fase do “Sexo, drogas e rock &

roll”, pois esse momento foi marcado pelo nascimento de importantes bandas e

movimentos artísticos e musicais como os Beatles, Rolling Stones, The Doors,

Os Mutantes, os Tropicalistas entre tantos outros, somamos o movimento pela

liberação sexual e pela descoberta e uso de drogas como o LSD e a Maconha

que ocorriam juntamente às transformações culturais e musicais da época.

Mas, a leitura de todo esse movimento é muito mais profunda que a definição

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dada anteriormente; para tanto nos concentraremos na leitura que Hollanda

faz:

[...] prefiro tomar um rumo diferente e me concentrar numa outra descoberta da época, mais importante, e que pode iluminar todas as outras. Falo da surpreendente “descoberta do Outro” , fator decisivo nas formas de lutas e resistências culturais que desenharam a década de 60. [...]. (Hollanda, s.d. – www.heloisabuarquedehollanda.com.br)

O “outro” a que Hollanda se refere diz respeito aos atores envolvidos nas

Guerras do final dos anos 50 na Europa, bem como ao processo de

descolonização que ocorrera sobretudo no Continente Africano; num paralelo

com a obra de Frantz Fanon, Le Damnées de la Terre26, na qual em seu

prefácio Sartre faz um paralelo entre a relação dialética entre o Senhor e o

Escravo na sociedade moderna: “Há não muito tempo, a terra tinha dois bilhões

de habitantes: quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos

milhões de nativos. Os primeiros tinham a palavra, os outros simplesmente a

usavam (...)”, a autora quer com esses paralelos nos mostrar como a revolução

cultural dos anos 60 significou muito mais que protestos por pura rebeldia que

toda juventude possui dentro de si. Para ela, os movimentos da época

significaram o momento em que “novos sujeitos da história” ou as “identidades

coletivas”, poderíamos arriscar dizer “identidades nacionais”, surgiram nesse

processo:

Portanto, os anos 60, foram o momento em que todos esses “nativos” tornaram-se seres humanos. Essa sim, uma autêntica revolução de repercussão política tanto nas políticas externas das metrópoles quanto nas políticas internas das diversas sociedades nacionais. Ou seja, as guerras de descolonização naquele momento definiram mudanças significativas no que diz respeito aos súditos externos – ou os “nativos” habitantes das ex-colônias – quanto em relação aos súditos internos destes países – os negros, as mulheres, as minorias. (Hollanda, s.d. – www.heloisabuarquedehollanda.com.br)

É com esse espírito, da descoberta do outro e da coletividade, e

arriscaríamos dizer ainda do nacional e da busca por mais igualdade e menos

26

Tradução: Os condenados da Terra.

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exploração, que gostaríamos de pensar e contextualizar os movimentos e

manifestações dos anos 60, bem como o movimento da Tropicália que será

apresentado a seguir.

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78

Capítulo 4 – Miserere Nobis, Brasil

Se no segundo capítulo investigamos em Heitor Villa-Lobos a busca pela

construção e afirmação da identidade nacional brasileira através da música,

neste, juntamente com as leituras feitas no capítulo três, buscaremos, por meio

de algumas canções que marcaram a época do movimento da Tropicália,

compreender como essa identidade construída e questionada se materializou

no Brasil moderno e urbano dos anos 60.

O título Miserere Nobis Brasil é uma alusão à canção de Gilberto Gil,

Misere Nobis do disco Tropicália, ou Panis et circenses de 1968. A expressão

em latim usada na música de Gilberto Gil significa “tenha piedade”. E para

completar a ideia nesse sentido, acrescentamos Tenha piedade, Brasil: dentro

da conjuntura já apresentada anteriormente no tocante às condições

econômicas e políticas do Brasil – antes e durante o Regime da Ditadura Militar

– bem como no momento em que as revoluções comportamentais e sociais

tomaram conta da segunda metade da década de 1960 em várias partes do

mundo, é que apresentamos a canção mencionada.

Antes, apenas uma breve explicação sobre a abertura instrumental da

canção: a música tem início com acordes solenes de um órgão de igreja, como

se estivéssemos numa missa ou num funeral. Quase fúnebre. Subitamente é

cortada por uma campainha de bicicleta e, logo em seguida, acordes e cordas

de guitarra elétrica. Tudo muito intenso e muito simbólico, pois dentro do

contexto do movimento da Tropicália, o uso da guitarra elétrica, por exemplo,

era contestada por muitos músicos que se consideravam conservadores e

nacionalistas. Guitarra elétrica era coisa que vinha do estrangeiro e, no

pensamento ufanista de muitos, um sinal de “alienação cultural”. Assim, a

canção começa com Gilberto Gil entoando a frase litúrgica em latim. Vejamos a

letra completa e logo em seguida algumas reflexões:

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Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, ia iá

É no sempre, sempre serão

Já não somos como na chegada

Calados e magros, esperando o jantar

Na borda do prato se limita a janta

As espinhas do peixe de volta pro mar

As espinhas do peixe de volta pro mar

Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, iaiá

É no sempre, sempre serão

Tomara que um dia de um dia seja

Para todos e sempre a mesma cerveja

Tomara que um dia de um dia não

Para todos e sempre metade do pão

Tomara que um dia de um dia seja

Que seja de linho a toalha da mesa

Tomara que um dia de um dia não

Na mesa da gente tem banana e feijão

Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, iaiá

É no sempre, sempre serão

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Já não somos como na chegada

O sol já é claro nas águas quietas do mangue

Derramemos vinho no linho da mesa

Molhada de vinho e manchada de sangue

Molhada de vinho e manchada de sangue

Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, iaiá

É no sempre, sempre serão

Bê, rê, a – Bra

Zê, i, lê – zil

Fê, u-fu

Zê, i, lê – zil

Cê, a – ca

Nê, agá, a, o, til-ão

Ora pro nobis

Ora pro nobis

E a canção se encerra com tiros de canhão. É inegável que ao ouvirmos

a canção, a primeira impressão que se tem seja a sensação de uma atitude

alegórica e irreverente; embora carregada de simbolismos que à primeira vista

se pareçam mais com uma poesia concreta ou modernista, ao repassá-la uma

ou duas vezes mais, a mensagem é recebida mesmo que ainda, carregada de

códigos a serem decifrados. Mas para os que vivenciaram a época dos anos

duros da repressão militar, a música pode não ser tão enigmática quanto

pareça. Para os demais brasileiros que apenas conheceram um pouco desse

período sombrio da história brasileira através dos livros, as mensagens não são

tão evidentes assim.

“É no sempre será, ô, iaiá, É no sempre serão” essas duas estrofes

talvez tenha, em sua essência, uma crítica à passividade e ao comodismo do

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povo brasileiro, que quando se encontra em apuros, quando tudo está muito

ruim se consola ao pensar no dia em que as coisas vão melhorar: “um dia, se

Deus quiser” ou “quem sabe o dia que [...]” e assim as coisas ficam.

Outra possibilidade de leitura é a crítica à Igreja Católica que, mesmo

diante das mudanças, mesmo diante do moderno e do novo, tudo fica igual. E

nesse sentido, a condenação à resignação da pobreza fatalista, “porque Deus

quis assim, meu filho. Somos todos pecadores e sempre será assim, você não

sairá dessa vida de dificuldades, mas não perca a Fé. O sempre serão. E a

canção repleta de figuras de linguagem e jogos de palavras que hora

confundem o ouvinte, hora os desafia, continua:

Já não somos como na chegada

Calados e magros, esperando o jantar

Na borda do prato se limita a janta

As espinhas do peixe de volta pro mar

As espinhas do peixe de volta pro mar

A pobreza aqui é pintada e denunciada em palavras como magros,

borda do prato, limitar o jantar, espinhas de peixe. Assim, o Brasil é retratado

num paralelo de contradições se analisarmos o momento político e econômico

do país; ao mesmo tempo em que a Ditadura Militar defendia a ordem nacional

e a manutenção da pátria – no sentido de sua identidade nacional, o país ainda

se arrastava para se recuperar e tirar o atraso de sua industrialização tardia. E

assim a letra prossegue:

Tomara que um dia de um dia seja

Para todos e sempre a mesma cerveja

Tomara que um dia de um dia não

Para todos e sempre metade do pão

Em tom de sarcasmo e denúncia social, tomara que sempre se tenha

comida na mesa; mais uma vez, a pobreza e a desigualdade sociais sendo

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veiculadas através da arte. A conscientização do povo brasileiro de sua própria

realidade, era cantada, canalizada através das manifestações artísticas e

nesse caso a música sendo utilizada como canal de discussão dos problemas

sociais da época. Aqui vale o rápido parênteses para destacar o uso de uma

linguagem cifrada e fragmentada que fazia parte não só do movimento estético

a que se propunha a Tropicália, mas também como parte de uma estratégia de

acusação às condições de vida do país, não declaradas por conta da censura.

Segundo Celso Favaretto, em seu livro Tropicália Alegoria Alegria:

Todos esses músicos e cantores, ao lado de poetas, cineastas,

teatrólogos e artistas plásticos, uniram-se, apesar de suas

peculiaridades de estilo em torno de um projeto: falar do país,

denunciar a miséria, a exploração, o autoritarismo político, a

repressão, falar por aqueles que não podiam. (Favaretto, 1979,

p. 101)

A letra continua retratando mais sobre o quadro social brasileiro:

Tomara que um dia de um dia seja

Que seja de linho a toalha da mesa

Tomara que um dia de um dia não

Na mesa da gente tem banana e feijão

E depois:

Já não somos como na chegada

O sol já é claro nas águas quietas do mangue

Derramemos vinho no linho da mesa

Molhada de vinho e manchada de sangue

Molhada de vinho e manchada de sangue

Nessa parte da letra, a alusão à ditadura e ao clima de violência é feita

através do uso de figuras de linguagem e traça sutilmente um paralelo à igreja

católica com o uso dos símbolos vinho e sangue: a possível transmutação de

um em outro. As possibilidades de interpretação são várias, porém considerado

o contexto em que foi gravada a letra, podemos caminhar para essa vertente

de análise. E finalizando:

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Bê, rê, a – Bra

Zê, i, lê – zil

Fê, u-fu

Zê, i, lê – zil

Cê, a – ca

Nê, agá, a, o, til-ão

A música se encerra com palavras sendo soletradas, podendo ser

compreendidas à medida que vão sendo cantadas e conectadas; na verdade a

construção delas é a mensagem sutil aos censores: Brasil, fuzil, canhão [...]. E

a parte instrumental na verdade se encerra com um grande tiro de canhão. Não

precisamos dizer mais nada.

Assim, como é possível verificar, a arte cumpre seu papel ao permitir

que através de uma letra de música e de uma musicalidade, a realidade urbana

e social de um país seja denunciada. Mesmo sob forte domínio militar, os

meios de comunicação da época – rádio, jornais e televisão – cada qual

desempenhando sua função, seja de reprimir, seja de alienar, seja de informar,

permitiu a difusão das ideias e ideais, inclusive através dos festivais de música.

A “propaganda” assim chamada pelo governo, era o instrumento pelo qual,

através dos jornais e emissoras de televisão, tratavam de manter a máquina do

Estado funcionando em seus propósitos políticos. Nesse momento de

engajamento político-social, a mocidade intelectual acreditava que a arte

estava necessariamente vinculada às lutas político-sociais do país. Heloisa

Buarque de Hollanda ilustra em seu depoimento:

Eu me lembro do hoje “incríveis anos 60” como o momento extraordinariamente marcado pelos debates em torno do engajamento e da eficácia revolucionária da palavra poética, palavra que, naquela hora, se representava como muito poderosa e até mesmo como instrumento de projetos de tomada de poder. (Hollanda, 1980, p. 15)

Outra música do mesmo trabalho Tropicália ou Panis et Circencis que

ilustra muito bem o contexto de conflitos políticos e culturais com a ditadura é a

música Lindonéia. De autoria de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a letra retrata

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numa melodia de bolero, o desaparecimento da jovem Lindonéia (1968)27. Na

voz da cantora Nara Leão, a violência das grandes cidades é retratada de

forma a sugerir que, mesmo os não militantes contra o regime em vigor,

sofressem as consequências do sistema. A letra é muito interessante do ponto

de vista estético, pois a construção da mensagem é feita também como a de

Miserere Nobis; a história de seu desaparecimento é contada através da

construção de uma sequência de fatos e ao mesmo tempo, ligando-se algumas

palavras-chave, a sugestão do que pode ter acontecido com ela, chega de

outra forma:

Na frente do espelho

Sem que ninguém a visse

Miss

Linda, feia

Lindonéia desaparecida

Despedaçados

Atropelados

Cachorros mortos nas ruas

Policiais vigiando

O sol batendo nas frutas

Sangrando

Oh, meu amor

A solidão vai me matar de dor

Lindonéia, cor parda

Frutas na feira

Lindonéia solteira

Lindonéia domingo

Segunda-feira

Lindonéia desaparecida

Na igreja, no andor

27

Para ouvir: www.letras.mus.br

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Lindonéia desaparecida

Na preguiça, no progresso

Lindonéia desaparecida

Nas paradas de sucesso

Ah, meu amor

A solidão vai me matar de dor

No avesso do espelho

Mas desaparecida

Ela aparece na fotografia

Do outro lado da vida

Despedaçados

Atropelados

Cachorros mortos nas ruas

Policiais vigiando

O sol batendo nas frutas

Sangrando

Oh, meu amor

A solidão vai me matar

Vai me matar

Vai me matar de dor

O diálogo se manifesta sob forma de protesto velado e a musa

inspiradora Lindonéia surgiu de um diálogo direto com a obra de Rubens

Gerchman, Lindonéia, a Gioconda dos subúrbios28, uma interpretação de La

Gioconda, de Leonardo da Vinci. Ao que parece, em ambos os casos a

28

Lindonéia, a Gioconda do subúrbio: “[...] a rigor, Lindonéia não é um retrato, apesar de seu subtítulo – a Gioconda dos subúrbios – nos atrair nesta direção. É fragmento do fragmento da nova paisagem [...] a nova paisagem é formada das figuras do imperativo urbano: política, crises, crimes, guerras. Tudo se passa nas cidades, e Lindonéia seria um pedaço de jornal que seria um pedaço da cidade. Não fosse a moldura, que doméstica e privatiza Lindonéia, e permite que, em princípio, sendo uma de muitas e muitas anônimas Lindonéias, se individualize e se transforme na Lindonéia, de Rubens Gerchmanm cantada por Caetano” (Paulo Sergio Duarte). Fonte: www.brasilartesenciclopedias.com.br acessado em 13/12/2013.

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Lindonéia, de Rubens e de Caetano, sofre com a violência urbana; seu

desaparecimento misterioso é registrado através de uma ficha policial que vai sendo

construída ao longo da canção como vemos no recorte a seguir (grifo nosso):

Lindonéia, cor parda

Frutas na feira

Lindonéia solteira

Lindonéia domingo

Segunda-feira

Lindonéia desaparecida

Na igreja, no andor

Descrita como sendo de cor parda, solteira e desaparecida, Lindonéia pode

ter sido vítima tanto da violência urbana que já dava seus sinais mais fortes nas

grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, como pode ter sido vítima da

ditadura; os termos utilizados para descrevê-la são usados tanto em fichas

criminais quanto em censos. Além disso, o cenário montado ao longo da canção,

leva o ouvinte a crer que seu trágico destino seja fruto da insegurança da cidade

grande29. Os cachorros atropelados e despedaçados são outros indicativos da

violência na vida urbana, sobretudo com a presença dos militares. A linguagem

visual utilizada consegue criar a imagem das frutas ao sol brilhando, é destruída

violentamente pelo contraste com o sangrando. Mesmo com figuras desconexas,

a construção se faz e a mensagem é enviada. De acordo com Favaretto, o

movimento Tropicalista:

Se assemelhou a uma explosão colorida, uma explosão de letras e arranjos das canções mais populares da época, confundido critérios da MPB, desnorteando público e crítica, e acima de tudo, expondo uma nova sensibilidade musical, fortemente marcada pela vida urbana, pela visualidade e pela modernização. (Favaretto, 1979, p. 85)

29

Impossível não pensar no pedreiro Amarildo, ao ouvir a canção: por conta de sua cor, classe e condição social, foi torturado, morto e desaparecido por policiais da Unidade Pacificadora do Rio de Janeiro em 13/07/2013.

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O movimento do Tropicalismo mistura diversos elementos de nossa

cultura, seja a de massa, seja a considerada mais elitizada; a modernização

aparece nas diferentes linguagens: seja no campo visual e ou musical, a

urbanidade, a modernidade das cidades grandes aparecem como resultado do

cruzamento da arte com a política.

A canção Parque Industrial, que faz parte do disco Tropicália (já citado

anteriormente), celebra essa evolução: a letra ironiza o consumo em massa,

consequência do desenvolvimento industrial, da produção em série e também

levanta outros pontos que veremos mais adiante:

Retocai o céu de anil

Bandeirolas no cordão

Grande festa em toda a nação

Despertai com orações

O avanço industrial

Vem trazer nossa redenção

Tem garotas propaganda

Aeromoças e ternura no cartaz

Basta olhar na parede

Minha alegria num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado

Já vem pronto e tabelado

É somente requentar e usar

É somente requentar e usar

O que é made, made, made

Made in Brazil

O que é made, made, made

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Made in Brazil

Retocai o céu de anil

Bandeirolas no cordão

Grande festa em toda a nação

Despertai com orações

O avanço industrial

Vem trazer nossa redenção

A revista moralista

Traz uma lista dos pecados da vedete

E tem jornal popular que

Nunca se espreme

Porque pode derramar

É um banco de sangue encadernado

Já vem pronto e tabelado

É somente folhear e usar

É somente folhear e usar

O que é made, made, made

Made in Brazil

O que é made, made, made

Made in Brazil

(vamos votar pilantra)

O que é made, made, made

Made in Brazil

Made in Brazil

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As ideias dessa canção são apresentadas com muita ironia e sátira à

“modernização brasileira”: de garotas propaganda a aeromoças, passando pelo

sorriso engarrafado, temos elementos que simbolizam a época da

industrialização e modernização do Brasil nas grandes cidades: o parque

industrial. Possivelmente os compositores estão fazendo uma menção especial

às grandes concentrações industriais no entorno de cidades como São Paulo,

as cidades do ABC podem ser enquadradas nessa categoria. Santo André, São

Caetano e São Bernardo do Campo já eram à época polos industriais já

consolidados nos anos de 1960 quando abrigavam as grandes montadoras de

veículos, outras indústrias de processamento e de base para o país de um lado

e também o movimento operário do outro.

Aqui nossas discussões se cruzam; se analisamos anteriormente a

política nacionalista de Getúlio Vargas e sua participação na construção de um

ideário nacional – inclusive através da música de Heitor Villa-Lobos – aqui ele

também tem sua parcela de participação na esfera das críticas tropicalistas: o

nascimento da Petrobrás em 1953. O início da construção da Refinaria

Presidente Bernardes dá à cidade de Cubatão o status de industrializada (grifo

nosso). Nesse sentido, podemos fazer o esforço de entender que o parque

industrial referia-se a muito mais que as críticas a símbolos de consumo de

massa da classe urbana, mas também às grandes indústrias criadas com o

intuito de nacionalizar a economia e os modos de produção, girando uma roda

produção – comércio – consumo e produção novamente, que só nas grandes

cidades poderiam se realizar com a intensidade esperada pelo governo. Como

pontua Dunn:

A maioria das músicas tropicalistas representa algum aspecto da vida urbana, das disparidades da modernização desigual às mudanças nas percepções referentes à tecnologia, ao espaço e à experiência afetiva. Os tropicalistas mostravam-se fascinados pelo ambiente urbano de São Paulo, com seus grandes outdoors, redes de mídia e indústrias pesadas. (Dunn, 2009, p. 125)

Se Dunn coloca que os tropicalistas mostravam-se “fascinados” pela

urbanidade de São Paulo, pelo ar cosmopolita, bem como pelas consequentes

oportunidades que a cidade oferecia em termos culturais, poderíamos arriscar

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dizer que eles também se mostravam “incomodados” e talvez até “deslocados”

sob a óptica criativa, intelectual e social: “o movimento tropicalista, até certo

ponto, era produto da tensão criativa entre os baianos e o meio cultural

cosmopolita que encontraram em São Paulo” (2009, p. 125). E nessa

conjuntura, os incômodos surgem, assim como as críticas pesadas à política

econômica e social adotadas na época: ao mesmo em tempo que o país se

modernizava, agora dando passos mais lentos, o fazia dentro de um regime

ditatorial militar, em que as diferenças e os contrastes sociais se acentuavam.

O incentivo ao consumo em massa, a cultura dos meios de comunicação dos

jornais, revistas e redes de televisão da época eram os pontos de

questionamento do movimento tropicalista que se refletem em Parque Industrial

de uma forma velada, já que não podemos esquecer que a censura imposta

pela ditadura impedia a liberdade de expressão e de pensamento.

Nesse período, o cantor e compositor Tom Zé, que sempre participara

com Caetano Veloso e Gilberto Gil na criação das canções, apresentou em seu

disco “Tom Zé – Grande Liquidação – 1968”, o espírito das críticas à época. A

introdução “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade” toca no

mesmo tom crítico de seus colegas e revela o Brasil “das massas e

massificado”:

Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições. Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém pode ser infeliz. Entretanto, quando os sorrisos se descuidam, os noticiários mostram muita miséria. Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. (As vezes por outras coisas também) [...] Adormecemos em berço esplêndido e acordamos cremedentalizados, tergalizados, yêyêlizados, sambatizados e miss-sificados pela nossa própria máquina deteriorada de pensar.

Uma rápida observação para a contemporaneidade das palavras

apresentadas anteriormente: contextualizando essa época e fazendo um

paralelo com o Brasil de 2013 dos protestos, da economia movida pelo crédito

e pelo consumo, do consumo rápido e da alienação pelos meios de

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comunicação como a televisão, revistas e internet, fica a reflexão da atualidade

dessa letra.

Retornando à análise da letra Parque Industrial, encontramos em mais

algumas passagens, outras críticas à modernização do Brasil; podemos buscar

entender que as críticas feitas não eram pelo fato de o Brasil estar se

modernizando e industrializando, mas sim pela forma como esse processo no

tocante ao social e à economia se davam. A massificação, o consumismo, a

homogeneização social e cultural que estava ocorrendo no país, segundo

leitura dos tropicalistas, não representavam o brasileiro, a identidade nacional,

e nem resolviam os problemas sociais de desigualdade e má distribuição de

renda. Ilustra esse pensamento, uma das entrevistas que Gilberto Gil deu, após

retornar do exílio político, o qual aconteceu juntamente com Caetano Veloso:

Teve um momento em minha vida em que eu achei que tinha obrigações políticas com a sociedade, no sentido de contribuir o mais intensamente possível para as transformações desejadas. E, de uma certa forma, eu ainda penso assim e ainda faço assim, só que tive desilusões muito grandes, eu aprendi que a gente não pode tanto, não pode. A gente pode outras coisas, mas não necessariamente transformar o mundo da noite pro dia. (Gil apud Dunn, 2009, p. 201)

Aprofundando mais um pouco a análise, podemos destacar as menções

feitas à “garota-propaganda, aeromoça e ternura no cartaz”: essas alusões às

figuras femininas são metáforas referentes ao momento cultural e social em

que o país se encontrava: a garota propaganda diz respeito aos produtos de

consumo em massa difundidos por meio das revistas e da televisão, as quais

se consolidavam como influentes meios de comunicação da época. A figura da

aeromoça, numa referência ao segmento da indústria aeronáutica no país,

tratava-se de um setor que buscava se consolidar através do apoio do regime

militar – interessava aos militares uma indústria nacional de produção de

aviões, bem como de uma escola que formasse um polo de pesquisas onde

mão de obra para a produção dos aviões e na formação de pilotos e

engenheiros atenderiam às demandas nacionais. Somando-se a isso, também

surgiu a possibilidade de ver na figura da aeromoça o glamour e a ostentação

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que se associavam às viagens de avião; à época, apenas os muito ricos se

deslocavam através de viagens aéreas e, nesse sentido, o símbolo da

aeromoça representava a figura de ostentação e status das classes com renda

mais privilegiada.

Por fim, completando essa parte da análise, temos a figura da “ternura

no cartaz”: acreditamos ser uma referência à cantora Maysa que lançou seu

álbum batizado de Ternura, e cartaz, na verdade, é o selo Cartaz do mercado

fonográfico.

Num aprofundamento da contextualização econômica e industrial do

país do momento da letra Parque Industrial, as referências contextualizadas na

fase econômica fazem parte do segundo momento da industrialização

brasileira. Esse período, como denomina o economista Ricardo Bielsthowsky,

ficou conhecido como o Segundo Ciclo Desenvolvimentista 30 quando o

Governo vigente da ditadura militar “buscava soluções para a sustentabilidade

macroeconômica, para qual se deu uma solução conservadora: arrocho salarial

e concentração de renda”.

O ciclo de desenvolvimento via industrialização que compreendeu o

período entre 1930 a 1980, tinha como estratégia maior a formação de um

parque industrial complexo com o suporte estatal; a taxa de crescimento em

médias anuais para o país no período de 1950 a 1980 foi de 7,4% . Em 1963, o

então economista do governo Celso Furtado lançou mão de um plano

econômico para tentar salvar a economia do país que se encontrava num

momento crítico.

Retomando ideias e conceitos já apresentados, o chamado Plano Trienal

de Desenvolvimento Econômico e Social de 1962 “procurou estabelecer regras

e instrumentos rígidos para controle do déficit público e refreamento do

crescimento inflacionário” 31 , as linhas adotadas tinham como objetivo: “um

conjunto coerente de medidas, que buscavam resolver os problemas de longo

e curto prazo” (Fausto, 1994) através da combinação de três elementos:

30

Segundo Ricardo Bielsthowsky, Desenvolvimentismo é a ideologia que defende a participação do Estado na condução do desenvolvimento econômico, por meio do desenho e implementação de estratégias e políticas. 31

http://cpdoc.fgv.br/produção/dossies/Jango/artigos

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crescimento econômico, reformas sociais e combate à inflação; assim,

buscava-se, entre outras metas, reduzir a inflação do país que galgava nos

54,8% em 1962 (Idem, ibidem).

Numa breve retrospectiva, ao voltarmos cinco anos do momento da

canção (1968) para situamos alguns pontos: o sistema presidencialista acabara

de ser reestabelecido no país em 1963, através de um plebiscito em que

aproximadamente 77% da população votante recusava a permanência do

parlamentarismo. João Goulart era o escolhido para a chefia do governo; para

ministro extraordinário do planejamento, o economista Celso Furtado, o

principal formulador do Plano Trienal, era o indicado para ajudar a resolver a

grave crise financeira e estrutural que se instalara no país. Mas os problemas

econômicos e políticos que o governo Goulart enfrentava se agravavam devido

a uma combinação de fatores que incluíam a estabilização fracassada de 1963,

a deterioração do quadro político, a aceleração inflacionária e o fim do ciclo de

investimentos iniciados no Plano de Metas foram os deflagradores para

contribuir com o cenário que já gestava o golpe militar e seus consequentes

vinte anos de ditadura no Brasil.

Ao que parece, o cenário em que o país se encontrava no momento da

implantação do Plano Trienal, no tocante ao ponto de vista político e social era

o que se segue:

O plano econômico dependia da colaboração dos setores que dispunham de voz na sociedade. Essa colaboração mais uma vez faltou. Os beneficiários da inflação não tinham interesse no êxito das medidas; os inimigos de Jango desejavam a ruína do governo e o golpe; o movimento operário se recusava a aceitar restrições aos salários; a esquerda via o dedo do imperialismo por toda a parte. Os credores externos mostravam-se reticentes [...]. (Fausto, 1994, p. 456)

As últimas estrofes da canção fazem uma sátira às revistas moralistas e

aos jornais populares sangrentos que circulavam no país à época e nos lembra

mais uma vez que tudo é feito em larga escala, num consumo massificado,

pois tudo “já vem pronto e tabelado” e sendo assim é somente “folhear e usar”

porque é tudo “O que é made, made, made/ Made in Brazil”! Aqui podemos

refletir a respeito da dialética da situação: se por um lado o país se

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industrializava, se modernizava e criava as bases para um crescimento

econômico e social fundado no desenvolvimento e na independência externa,

por outro lado, o mesmo desenvolvimento industrial anulava as forças de

milhares de trabalhadores urbanos, já que os movimentos operários dessa

época não conseguiam conjugar forças para uma mobilização expressiva: “a

grande massa dos assalariados, fustigada pela inflação, praticamente ignorou a

ordem de greve geral decretada pelo CGT”32 (Fausto,1994) bem como muitas

outras foram silenciadas pelo governo militar.

Assim, procurando compreender que “todas essas músicas tropicalistas

são marcadas por uma ambivalência similar em relação à mídia de massa e ao

consumismo” (Dunn, 2009), podemos refletir que o movimento tropicalista tinha

sim algo além da inovação musical e estética, e que a tentativa pela

“desalienação” do povo se dava através das artes.

Outro exemplo das ambivalências carregadas de críticas e denúncias

nas canções da época é a que encontramos na canção-manifesto chamada

Tropicália de 1967. Vista como símbolo maior das canções-denúncia segundo

Dunn (2009): “é o exemplo mais notável de representação alegórica na música

brasileira”, veremos como essas representações são construídas pelo olhar

crítico do músico sobre sua leitura de Brasil, e como através de alegorias e

alguns signos que remetem à noção de territorialidade e identidade brasileiras

são expressos na canção, bem como o que eles representam:

Quando Pero Vaz de Caminha

Descobriu que as terras brasileiras

Eram férteis e verdejantes,

Escreveu uma carta ao rei:

Tudo que nela se planta,

Tudo cresce e floresce.

E o Gauss da época gravou.

32

CGT: Comando Geral dos Trabalhadores.

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Essa primeira estrofe da música faz alusão à Carta do Descobrimento33

redigida por Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel; nela o escrivão descreve

a paisagem brasileira no momento do descobrimento ao avistar o Monte

Pascoal na Bahia em 22 de abril de 1500. Faz-se aqui um breve parênteses

sobre essa introdução: ela foi sugerida pelo baterista da banda, que nada

sabendo sobre a letra e as intenções do compositor, lembrou-se da Carta e fez

essa paródia usada como introdução, ao ouvir a base orquestral da canção “[...]

que eram apenas sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do

naipe de metais que se superpunham”, segundo Caetano em seu livro Verdade

Tropical.

Assim, continuando temos:

Sobre a cabeça os aviões

Sob os meus pés os caminhões

Aponta contra os chapadões

Meu nariz

Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

No planalto central do país

Nos versos anteriores, encontramos elementos que podem ser

interpretados como símbolos de Brasil e nos dão margem para explorar um

pouco alguns paralelos com o contexto histórico e geográfico da época. Os

aviões e caminhões, por exemplo, possibilitam-nos pensar em Brasília e as

rodovias, respectivamente; os aviões, ou o avião, talvez possa ser relacionado

ao maior símbolo do Brasil: a recém criada Capital Federal Brasília, fundada

em 21 de abril de 1960 e localizada na porção Centro-Oeste do país, ao longo

da região geográfica conhecida como Planalto Central. Nesse sentido, os

“chapadões” também poderiam ser Brasília, pois eles correspondem às zonas

de rochas cristalinas localizadas geograficamente no centro do Brasil, bem

onde a Capital fora instalada.

33

A “Carta do Descobrimento” encontra-se disponível para acesso na Biblioteca Digital Camões. (www.instituto-camoes.pt)

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Com relação aos caminhões, pode-se pensar nas novas rodovias sendo

construídas, que ligariam o Distrito Federal às diversas regiões brasileiras e

outra possibilidade seria a chegada das indústrias automobilística e

aeronáutica ao país. Quanto a primeira probabilidade, para ilustrar, pode-se

referir à Rodovia BR-163 Belém-Pará onde não só criou-se um maior

deslocamento populacional para essa região ainda pouco povoada, mas,

sobretudo, maior integração econômica do país. Quanto a segunda

possibilidade, Caetano poderia estar fazendo uma alegoria ao Plano de Metas

do Presidente Juscelino Kubitscheck, que visava dinamizar a economia,

através de um programa de industrialização e modernização das indústrias,

como parte de seu programa nacional-desenvolvimentista e anti-imperialista.

Prosseguindo temos:

Viva a Bossa, sa, sa

Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

Viva a Bossa, sa, sa

Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento

É de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde

Atrás da verde mata

O luar do sertão

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga

Estreita e torta

E no joelho uma criança

Sorridente, feia e morta

Estende a mão

Aqui tomamos a liberdade de destacar a palavra monumento que se

repete na música, buscando valorizar sua repetição ao longo da canção (já que

sonoramente fica mais claro e marcante esse acontecimento do que

apresentado na forma escrita). De qualquer maneira, o ponto é que o

monumento ao qual Caetano tanto faz menção repetidas vezes é a cidade de

Brasília como muitos imaginam ao ouvi-la. Temos a confirmação das

especulações das primeiras linhas, já que essa ideia não é explicitada em

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nenhum momento na canção, pois o nome da capital federal não é mencionado

vez alguma. Mas, sua importância histórico-geográfica finalmente parece ter

mais sentido agora, essa sensação fica mais clara. De acordo com Christopher

Dunn:

A letra de Tropicália forma uma montagem fragmentada de eventos, emblemas, ditados populares e citações musicais e literárias. Apesar de não explicitado, o tema mais evidente na música é Brasília, o monumento à alta arquitetura modernista e à modernização desenvolvimentista que se tornou o centro político e administrativo do regime militar depois de 1964. “Tropicália” alude à trajetória de Brasília de símbolo utópico de progresso nacional à alegria antiutópica do fracasso de uma modernidade democrática no Brasil. (Dunn, 2009, p. 111)

Aqui, as palavras do próprio compositor elucidam e esclarecem um

pouco mais o assunto:

Era uma imagem assim de grande ironia, e a descrição do monumento era como se fosse uma descrição de uma imagem mais ou menos inconsciente da sensação de estar no Brasil e ser brasileiro naquela época. Então, você pensa em Brasília, no Planalto Central, e há um orgulho pela arquitetura, mas ao mesmo tempo não é disso que se está tratando. Era “que monstro é que ficou”, porque Brasília foi construída e logo depois veio a ditadura e Brasília esteve sempre ali como centro da ditadura. (Dunn, 2009, p. 111)

Já a menção à criança sorridente, feia e morta “é uma alegoria da

derrota da modernização redistributiva e da manutenção da pobreza abjeta”,

segundo a leitura de Christopher Dunn. Infelizmente, nesse contexto, o autor

está correto, já que, tendo ciência das desigualdades sociais desse país, a

imagem que nos vêm à cabeça ao refletir sobre a criança feia e morta

estendendo a mão é exatamente o contraste social em que o Brasil se

encontrava e, nesse sentido, tem se arrastado pelas décadas seguintes até

nossos dias atuais; essa música tem um “quê” de contemporâneo, uma vez

que algumas questões levantadas na canção, relevantes da chamada “Pátria

amada”, como, por exemplo, distribuição de renda, direito à cidadania e

reforma agrária ainda são temas de discussão e estão, a meu ver e aos olhos

de muitos brasileiros, longe de terem um desfecho satisfatório. A pátria

estendendo a mão, não se sabe se para pedir ajuda ou para oferecê-la [...].

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Dando prosseguimento:

Viva a mata, ta, ta

Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

Viva a mata, ta, ta

Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscina

Com água azul de Amaralina

Coqueiro, brisa e fala nordestina

E faróis

Essa passagem ilustra a constelação de alegorias a que a letra e a

musicalidade nos remetem, o jogo de palavras entre “mata” e “mulata” brinca

com o imaginário do ouvinte e do leitor nos remetendo a uma ideia de Brasil, de

nacionalidade, já que toda vez que pensamos na “mata”, pensamos na mata

brasileira; localizamos as diferentes regiões do Brasil onde essa mata pode

estar: seja ela a Mata Atlântica ou a Mata dos Cocais, ou ainda uma mata que

nos seja local, enfim são infinitas as possibilidades, mas sempre tendo em

mente que muito possivelmente nos remeteremos a uma toponímia nacional, já

que a música toda nos remete a símbolos nacionais. Difícil saber nesse caso,

mas se pensamos em mata, imaginamos que o ouvinte/leitor não vá pensar

numa mata distante, de outro país, por exemplo; pensamos sempre em lugares

onde tivemos ou temos alguma conexão, alguma memória de infância, até

afetiva. E nesse sentido, sendo nós brasileiros e, em se tratando de um

trabalho sobre a nacionalidade, a noção de pertencimento ao lugar, ao

território, a discussão não poderia tomar um caminho diferente.

Igualmente, temos o jogo de ideias na palavra “mulata”, pois essa figura,

em nosso imaginário, foi construída muitas vezes dentro de um cenário carioca,

no morro, na praia, no samba e, outra vez , temos o exercício da toponímia. As

palavras que, ao serem ouvidas e lidas, já nos dão uma localização e uma

associação a uma determinada região, a um determinado lugar. Parece um

tanto quanto óbvio, mas como pensar em mata e não pensar no Brasil, como

pensar em mulata e não nos transportarmos para o Rio de Janeiro, para as

rodas de samba, para o morro, para as favelas e desfiles de escolas de samba.

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Difícil pensar em coqueiros e não pensarmos em Bahia, ou no Nordeste. Ou

pensarmos nos índios e não sermos transportados diretamente para regiões da

Amazônia, do litoral paulistano ou na região do Planalto Central. Mas como

disse Caetano: “A mata e a mulata, de qualquer modo, são duas entidades

múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas”, ou seja, vemos aqui outro jogo de

palavras nos remetendo a infinitas possibilidades, e sempre nos remetendo aos

símbolos que representam as raízes brasileiras, e, nessa construção, a música

cumpre seu papel de ser uma metáfora que nos permite pensar nossa

identidade.

Posto isso, continuamos:

Na mão direita tem uma roseira

Autenticando eterna primavera

E no jardim os urubus passeiam

A tarde inteira entre os girassóis

Viva Maria, iá-iá

Viva a Bahia, iá, iá, iá, iá

Viva Maria, iá, iá

Viva a Bahia, iá, iá, iá, iá

No trecho acima há mais referências à nossa cultura brasileira e,

consequentemente, mesmo que inconsciente para o ouvinte/leitor, à identidade

pátria, às raízes culturais brasileiras e à memória simbólica dos lugares. Fica

ainda clara a referência que o compositor faz a sua terra natal, Bahia, disso

não há dúvidas. A simples expressão “iá-iá” tem muito mais a dizer do que

aparentemente ser um simples trocadilho para rimas. Segundo explicações de

Caetano Veloso, em seu livro Verdade Tropical, a expressão “iá- iá” é o modo

como os negros da Bahia sempre chamavam suas patroas e todas as mulheres

que lhes fossem superiores, já que iá é a palavra para mãe na língua ioruba34.

Tampouco a brincadeira com o nome mais conhecido em nosso país

“Maria” e a força que ele carrega consigo no sentido de representar sob certos

34

Os iorubás ou iorubas (em iorubá: Yorùbá), também conhecidos como ou yorubá (io•ru•bá) ou yoruba, são um dos maiores grupo etno-linguístico ou grupo étnico na África Ocidental. Durante o último período da escravatura, os iorubás foram concentrados nas zonas urbanas, então em pleno apogeu: nas regiões suburbanas ricas e desenvolvidas do Norte e Nordeste, particularmente em Salvador e no Recife.

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aspectos, nossa cultura popular. Recorrendo ao compositor novamente temos

suas considerações a respeito:

[...] dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por

qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos),

uma reestudada geral na tradição e no significado da música

popular brasileira [...]. (Veloso, 1997, p. 186)

Seguindo adiante, temos mais:

No pulso esquerdo o bang-bang

Em suas veias corre

Muito pouco sangue

Mas seu coração

Balança um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes

Pelos cinco mil alto-falantes

Senhoras e senhores

Ele põe os olhos grandes

Sobre mim

Viva Iracema, ma, ma

Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Viva Iracema, ma, ma

Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

A ideia de ter no pulso esquerdo um bang bang é uma referência à

guerrilha que combatia a repressão da ditadura; o pulso esquerdo é a

oposição, a luta armada articulada da esquerda. O coração balançando um

samba de tamborim é o coração brasileiro, a identidade nacional, o caráter

nacionalista latente, mesmo que por fora, a frieza dos combates e das

guerrilhas não demonstre, que no fundo, a luta é pelo Brasil. Os cinco mil alto-

falantes representavam a censura, bem como a ideia dos “olhos grandes”; na

letra da canção foi a forma encontrada para passar a mensagem que todos

eram e se sentiam vigiados, incluindo a Tropicália. As notícias sobre os

movimentos de resistência não circulavam na imprensa e não chegavam ao

conhecimento da população, pois o Ato Institucional número 05, o AI-5,

cumpria esse papel de censurar os meios de comunicação.

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O final dessa estrofe revela, numa análise mais atenta e minuciosa,

outros pontos que permitem refletir melhor sobre nossas raízes, pois alguns

conceitos acerca de Brasil estão entrelaçados nesse rosário de símbolos. O

jogo feito com certas palavras que, para muitos podem passar despercebidas

ou soar apenas como poéticas na verdade, são pontos de articulações culturais

que nos revelam um discurso a respeito da identidade nacional: Iracema e

Ipanema.

Iracema representa para Caetano um anagrama de América, cujo nome

refere-se a índia América, personagem central do romance de José de Alencar

intitulado Iracema e subtitulado Lenda do Ceará. E, segundo pesquisas, para o

próprio José de Alencar, esse trocadilho é válido e intencional também,

buscando narrar, em sua construção, o processo de colonização do Brasil e de

toda a América pelos invasores europeus.

Quanto ao nome Ipanema, há dois possíveis significados, duas

possibilidades de leitura: em tupi quer dizer “água ruim”. Para os que não

imaginam a possibilidade da língua indígena, Ipanema também representa a

praia carioca, imortalizada juntamente com a Garota de Ipanema nas linhas de

Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Seguindo:

Domingo é o fino-da-bossa

Segunda-feira está na fossa

Terça-feira vai à roça

Porém...

O monumento é bem moderno

Não disse nada do modelo

Do meu terno

Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem

Que tudo mais vá pro inferno

Meu bem

Segundo o próprio compositor: “seria necessária muita paciência

(sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais

longas e não menos cheias de sugestões”. E é exatamente o que estamos

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explorando aqui. As possibilidades são muitas e, a exemplo das linhas

apresentadas anteriormente, “que tudo mais vá pro inferno meu bem” é a

possibilidade de vinculação com uma canção popular brasileira dos anos 60,

mais precisamente, a famosa letra da jovem guarda de Roberto Carlos de

1965. Claro que essa amarração fica mais factível à medida que o leitor ou

ouvinte conheça a canção. Vale o exercício da escuta. Embora tida por muitos

como um movimento ausente de discussões políticas – considerando que,

historicamente os anos de 1960 no Brasil foram os primeiros e mais difíceis

anos da ditadura militar – ainda assim a Jovem Guarda refletia os valores, a

identidade e o comportamento de uma parte da juventude brasileira, e isso

importou para Caetano a ponto de ser mencionado em sua música.

Viva a banda, da, da

Carmen Miranda, da, da, da, da

Viva a banda, da, da

Carmen Miranda, da, da, da, da

A parte final tem grande peso, embora pareça inocentemente construída

para dar um ritmo derradeiro ao concluir a canção: a menção a Carmen

Miranda e o refrão da da da da, na verdade, são carregados de significado e

importância. Começando a reflexão pela artista mencionada nas linhas finais, a

artista vestida de forma exótica, com uma cesta de frutas tropicais na cabeça,

exuberantes trajes de baiana e trejeitos caricatos, transmitia a imagem do

Brasil tropical para o mundo: por se tratar de uma figura representante da

cultura popular brasileira, conceito de figura popular brasileira e produto de

exportação, ela é evocada na letra muito provavelmente com essa finalidade.

Conforme Caetano observou: “era como Andy Warhol colocando a lata de sopa

na pintura [...]”. Agora, como não pensar e sentir esse Brasil, sua identidade e

suas raízes ao ouvir na canção, na chamada pela figura da cantora? Temos a

música sendo utilizada como uma metáfora da própria cultura!

A banda-da-da, além da possibilidade abordada anteriormente, numa

referência a Carmen Miranda, também pode ser pensada no contexto da

música de Chico Buarque, “A Banda”. Essa canção, composta e interpretada

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pelo próprio Chico, narra o episódio de uma banda musical que trazia alegria

aos moradores de uma cidade do interior. Acredita-se que a tristeza era

causada pela Ditadura Militar e toda vez que a banda passava despertava a

alegria dos moradores e, por um momento, o povo sofrido e oprimido deixava

suas tristezas de lado para celebrar a passagem da banda.

E mais: para ele, a mistura do refrão “da da da” com o final de Miranda,

além disso, a possibilidade da música de Chico Buarque, evoca(va) uma

terceira leitura de outro famoso ícone de representação cultural brasileiro:

Dadá, a companheira do cangaceiro Corisco, personagens reais e centrais do

filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do cineasta Glauber Rocha.

É necessário um parênteses para esse filme que, além de ser um marco

para o cinema novo nacional, retratou, na geografia do sertão nordestino, a

dura e crua realidade política e social do Brasil agrário. Esse filme juntamente

com o outro marco do cineasta Glauber Rocha, Terra em transe35 foram os

grandes motivadores e inspiradores da canção Tropicália, segundo Caetano

Veloso.

Ainda de acordo com as palavras de Caetano e por isso as resgatamos,

a fim de enfatizar a importância dessa letra no contexto em que essa pesquisa

se baseia:

Basta que se diga por agora que essa canção sem nome

justificou para mim a existência do disco, do movimento e da

minha considerável dedicação à profissão que ainda me

parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do

que me foi sugerido por Terra em transe. (Veloso, 1997, p. 187)

35

Terra em transe do cineasta Glauber Rocha foi um filme rodado nos anos 60 quando a grande crítica era novamente a política brasileira. Segundo trecho do Wikipedia, acessado em 19/11/2013, o filme: “pode ser lido como uma grande parábola da história do Brasil no período de 1960-66, na medida em que metaforiza em seus personagens diferentes tendências políticas presentes no Brasil no contexto. Realiza uma exaustiva crítica de todos aqueles que participaram desse processo, incluindo diferentes correntes da chamada esquerda brasileira. Isto foi um dos motivos, pelos quais foi tão mal recebido pela crítica e pelos intelectuais nacionais”.

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Conclusão

Este trabalho procurou investigar um tema ainda pouco abordado nas

pesquisas brasileiras, no campo da Ciência Geográfica: o uso da música na

construção da identidade nacional e do sentimento de pertencimento ao

território.

A Música como forma de civilizar, educar, unir e controlar uma nação ou

uma comunidade data de muito tempo; desde os primórdios da formação da

civilização têm-se notícias dessas práticas de acordo com estudos

antropológicos, sociais e musicais. No entanto, a música, como forma de arte

que é, cumpre seu papel de não apenas educar e civilizar, mas também de

denunciar, criticar e (re)construir ideias e ideologias. Nesse sentido, podemos

afirmar que o uso da arte pode atender tanto a interesses que objetivem a

construção e união de um povo, bem como sua separação e destruição.

No Brasil, o evento da Semana de Arte Moderna de 1922 permitiu que o

papel das artes fosse questionado e repensado, não apenas do ponto de vista

estético e acadêmico, mas também no exercício de suas funções sociais.

Pintores, poetas e compositores puderam, nessa semana, quebrar e

transformar paradigmas clássicos, influências europeias no campo da técnica e

da estética para encontrar suas próprias representações e técnicas, na busca

pelo original, pelo nacional, enfim, pelas raízes brasileiras. As transformações

ocorridas na sociedade brasileira, em consequência da urbanização, da

modernização e da industrialização, começou a ser questionada através de

artistas e intelectuais como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Mario de Andrade,

Heitor Villa-Lobos e tantos outros.

O advento conhecido como Estado Novo, no período de 1930 a 1945,

sob a presidência do militar Getúlio Vargas, trouxe consigo profundas

mudanças nos rumos do país. A modernização industrial e o avanço

econômico, além de se refletirem na geografia das cidades e nas suas

decorrentes relações, também trouxeram para a educação brasileira mudanças

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e avanços. A reforma curricular pela qual as escolas passaram tivera como

objetivo principal preparar e capacitar uma mão de obra apta a ingressar nos

postos de trabalho gerados por essa industrialização, para assim acompanhar

e promover o planejado desenvolvimento do país.

Nesse processo de transformações pelo qual o Brasil passava, a música

passou a ser parte do currículo escolar no ensino secundário e, a partir dos

anos 30, o projeto de canto orfeônico formulado pelo maestro foi introduzido

como disciplina artística na grade escolar. Essas reformulações vieram ao

encontro dos interesses da gestão do presidente Getúlio Vargas, notoriamente

caracterizado como nacionalista, bem como ao encontro das ambições do

maestro, que sonhava em colocar o Brasil em outro patamar musical e cultural.

Por não necessitar de altos investimentos para sua realização, já que

basicamente a voz do aluno era o instrumento necessário para a execução das

aulas, o projeto do maestro foi facilmente aprovado e executado pelo Estado.

Em consonância com a conjuntura de modernização e crescimento em

que o país se encontrava, o programa nacional de canto orfeônico de Villa-

Lobos buscava repertório nas canções folclóricas e nas composições

inspiradas em ritmos e melodias regionais do Brasil, com o objetivo maior de

despertar o sentimento de unidade nacional e de pertencimento à terra pátria.

A “formação” de cidadãos imbuídos do espírito cívico ocorria através de duas

frentes: as aulas ministradas pelo grupo de professores, especialmente

treinados para isso, e das grandes apresentações cívico-orfeônicas, em que o

maestro regia corais com mais de 10.000 vozes. O resultado desse trabalho

pedagógico musical pôde ser constatado através dos grandiosos espetáculos

orfeônicos que ocorriam em lugares abertos e de grande capacidade para

comportar o elevado número de pessoas que se apresentavam, tendo como

palco estádios de futebol lotados de “cantores” no Rio de Janeiro, São Paulo e

Distrito Federal.

Dez anos após o mandato do presidente Getúlio Vargas (1954), o Brasil

passou por um movimento político militar que culminou num Golpe de Estado.

O Regime da Ditadura Militar teve início no país sob o principal pretexto de

proteger o país da ameaça comunista internacional. Através dos Atos

Institucionais que não eram previstos na Constituição Brasileira, mas tinham o

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poder de “cassar mandatos, suspender imunidades parlamentares e direitos

políticos pelo prazo de dez anos; bem como suspender as garantias de

estabilidade e vitaliciedade dos magistrados e funcionários públicos” (Fausto,

1994, p. 466) o país era governando sob a doutrina da censura e da

perseguição. Com o passar dos anos o regime foi se endurecendo e fechando;

os artificialismos dos Atos Institucionais para dar legitimidade aos atos políticos

contrários às leis, que até então vigentes que garantiam os direitos aos

cidadãos no país, acabaram por marcar o período como os “anos de chumbo”.

Perseguição e repressão aos que se opunham ao movimento político militar

eram os principais objetivos dos governantes: impedir que grupos

contestadores e opositores ao regime expressassem sua opinião. Com punição

severa aos que ousassem fazê-lo, através de perseguição, tortura, exílio e até

a morte, os militantes de “esquerda”, como eram chamados, não podiam

expressar suas ideias tampouco fazer qualquer menção de oposição ao que

estava acontecendo na realidade.

O momento econômico em que o país se encontrava não era dos

melhores; o presidente João Goulart deposto pelo golpe, não tinha conseguido

colocar o Brasil numa situação equilibrada: o período pós Segunda Guerra

Mundial causou uma série de problemas de ordem social e econômica, como a

escassez de alimentos e a hiperinflação, o que acentuou a insatisfação e os

questionamentos a respeito dos rumos políticos e ideológicos do país. Os

conflitos decorrentes da insatisfação entre as correntes de pensamentos que

detinham o poder acabaram por aumentar a crise. Esses fatores aliados ao

receio do avanço comunista, e somados a problemas internos de ordem

hierárquica no âmbito militar, culminaram no golpe.

Na segunda metade da década de 1960, movimentos sociais eclodiram

em várias partes do mundo em busca de mudança de valores e transformação

de paradigmas. O questionamento e a contestação nos valores sociais, nos

padrões de comportamento e consumo que estavam impregnados nas

sociedades dos anos 50, além da insatisfação com as Guerras, a desigualdade

social e o consumismo alimentado pelos governos como forma de crescimento

econômicos nos países mais industrializados, como Estados Unidos e alguns

países da Europa, desencadearam uma onda de manifestações ao redor do

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mundo. A falta de pensamento crítico, o avanço do capitalismo, a repressão

sexual e a repressão da mulher e das minorias, a influência da religião na

sociedade eram alguns dos pontos que norteavam esses protestos. Nesse

contexto, as artes como forma de expressão tiveram papel fundamental na

denúncia e crítica dessas sociedades.

No Brasil, o movimento Tropicalista, constituído por alguns jovens

cantores e compositores intelectualizados em busca de expressar suas visões

de mundo, se baseava na poesia, na música, na intelectualidade e nos

acadêmicos da época para denunciar o Brasil da Ditadura Militar. Na forma de

canções de protesto, sempre com letras metafóricas e de duplo sentido para

burlar a censura, os membros desse grupo buscaram denunciar a

desigualdade social, despertar as pessoas para o nacionalismo, a repressão, a

industrialização calcada no consumo de massa e no autoritarismo, a alienação

e o próprio regime censor que não compreendia as letras que procuravam

driblar o regime.

Canções marcantes como Lindonéia, Geléia Geral, Tropicália e tantas

outras que fizeram parte desse período musical e artístíco ajudaram a construir

e imortalizar, de certa forma, a história de nosso país nessa época. Guardadas

as proporções, o movimento Tropicalista, mesmo durando tão pouco (seus

adeptos foram até exilados do país para que não fossem mortos), conseguiu

imprimir a realidade brasileira nas músicas que produziam da mesma forma

que Heitor Villa-Lobos conseguiu dar ao Brasil, a nacionalidade de suas

músicas e de sua identidade que até então não haviam sido exploradas como

deveriam.

Cérebros e espíritos à frente de seu tempo, que até hoje não receberam

a devida compreensão e reconhecimentos, não só pelo seu legado artístico e

cultural, mas também pelas suas contribuições sociais e políticas para a vida

do BRASIL.

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